Contos do Corvo #28
A VERDADEIRA FADA DOS DENTES
Esqueça tudo o que ouviu falar a respeito desse mito idiota e infantil que contava sobre deixar um dente de leite embaixo do travesseiro e no dia seguinte, plim, num passe de mágica você achar uma moeda que a fada do dente ofereceu em troca quando você estava dormindo. Isso que testemunhei foi bem antes da lenda se popularizar e começar a enganar criancinhas banguelas. Nem tinha me socializado com meu bando e lembro como era bem solitário. Essa é a história de Elaine, uma garotinha de 8 anos bastante popular na escola primária gratuita onde frequentava.
Meus olhares passaram a se fixar nela depois que me instalei numa árvore enorme lá perto da qual fiz meu então novo lar. Seus cabelos loiros e meio cacheados balançavam com seu andar desfilante até deixar os meninos excitados... quero dizer, suspirando. Elaine era conhecida por ter uma lábia invejável, um poder de persuasão que chegava a ser visto como estranho por vir de uma doce menina. Interessado nela, passei a investiga-la. Espiona-la, aliás. Me espantou a dualidade da vida dela.
No colégio fazia qualquer um parar o que estava fazendo só para assisti-la passar. Mas em casa... a guria era meio que desprezada por seus pais. Se Elaine derramava a comida no chão, eram seis palmadas na mão pelo descuido. Ao contrário do que esperei ela nem exprimiu um gemido. Que garota firme. Uma criança da sua idade normalmente estaria chorando aos berros. Os pais, carrascos, pareciam cansados da resistência da filha e a tachavam de incorrigível. Eles eram proprietários de uma mercearia pouco frequentada, mas o lucro conseguia ao menos pagar as despesas maiores.
Elaine ficava enfurnada no quarto na maior parte do dia e interagia pouco com os pais por conta da educação de rigorosidade exagerada. Foi quando a vi mexer no seu dente que estava mole.
Um tanto empolgada, ela disparou correndo para contar aos pais. Sua mãe foi a primeira saber, logo chamando o marido para dar uma olhada. O pai não perdeu tempo... Acabou com a alegria da filha, que estava a contar sobre a fada dos dentes que era só mais um produto da sua imaginação serelepe dizendo que ela a visitaria em seu quarto, ao trazer um alicate de uso profissional, depois pegando à força pelo queixo dela e arrancou o dente na marra, direto e rápido. Elaine soltou um grito de dor que soou muito agudo nos meus ouvidos.
Ouvi o pai dizer enquanto via sua filha chorar e se ajoelhar cuspindo volumes de sangue no chão: "Tá vendo só? Agora ela finalmente sentiu a dor!".
Explosiva, a garota deixou seu monstro sair da jaula ao dizer, com ódio profundo, para o pai: "Seu porco, filho da p***!". A boca de Elaine ficou mais suja de sangue depois das bofetadas que a mãe lhe deu. Até fiquei surpreso vendo uma menina com 8 anos na cara falando um palavrão daqueles.
"Eu só queria ver a fada dos dentes!", reclamava a garota, jogada no chão. Eu não sei... nunca tinha visto uma cena daquela natureza antes. Mas eu tinha que admitir que me revoltei pela atitude daqueles pais maldosos que só queriam ver a única filha que foi parida de mal gosto aprender a ter jeito na vida na base da violência. Elaine ficou encarando, entristecida e sentindo-se humilhada, os pais rindo com deboche da própria filha. Dali em diante me convenci de que ela, provavelmente, foi um presente indesejado. Depois da sessão de escárnio, cogitaram tira-la da escola confiando na suspeita de que a filha fez péssimas amizades.
O dente... acho que foi parar no esgoto ou lixo, sei lá. Mas sabia de uma coisa: Elaine tinha se cansado de sofrer nas mãos de pessoas inexperientes em educar. Vi a doçura dos olhos darem lugar à vingança. Por incrível que pareça, ela mesma arrancou outro dente de leite três dias depois. Sem o alicate ou qualquer outra ferramenta.
Dando o pontapé inicial no plano, ela ficou mais próxima de seus colegas, até para os que esnobava. Escolheu um deles - um garotinho com cabelo meio black power - para dizer que se inspirou nos pais para o comércio: Comprar dentes de leite.
Cada dente valia uma moeda de 50 centavos. Elaine conduzia as barganhas usando como artifício a fantasia que sua mente fértil criou sobre uma mulher loira com vestido rosa de bailarina e com asas brilhantes e transparentes que batiam como de borboletas, além de uma varinha de condão com uma estrela amarela na ponta que usava para fazer sua mágica. A típica caracterização de uma fada no imaginário infantil.
Claramente as crianças caíam fundo no golpe e ofertavam seus dentes para economizarem mais do que costumavam ganhar em mesadas. No caso de Elaine, isso nunca aconteceu, e logicamente ela não revelaria algo assim para matar sua popularidade. Tudo feito em segredo, acima de qualquer suspeita.
Daí em diante, os pais de Elaine perceberam que o caixa andava menos cheio que o normal.
O que era no mínimo estranho já que a filha acatava a ordem de nunca pôr os pés no local. Restava a hipótese de Elaine estar entrando escondido nas vezes em que os dois iam juntos à igreja fazer promessas aos santos e a loja ficava uns 15 minutos vulnerável. O "suposto" roubo de Elaine causou uma queda na rentabilidade.
Pela primeira vez eu tinha visto a mãe se posicionar contra a uma ideia do pai, pedindo que ele não fizesse uma besteira contra a própria filha que tinha total direito de defesa. A coisa piorou quando um dos garotos da classe de Elaine apareceu na frente da casa para vê-la e acabou por contar, sem que ela soubesse, detalhadamente, o que ela andava aprontando nas redondezas do colégio.
Chocados, os pais tomaram uma decisão que colocaria um basta nas pilantragens da garota. Elaine levou o pior esporro de sua vida, tenho certeza. Pagou o preço por optar pela vingança contra os pais que não a amavam. Quis saber o nome do garoto e o pai o revelou. Elaine, em um ato de pura impulsividade, enfiou o alicate num olho do pai e foi até a cozinha onde a mãe se surpreendeu por ela ter saído do quarto enquanto seu pai ainda proferia o sermão, percebendo o alicate nas mãos dela depois. Ela pegou uma faca afiada e cortou a garganta de sua mãe, logo em seguida tirando cada dente um à um ignorando os gritos dela e o sangue que espirrava no seu rosto. "Mais pra minha coleção", ouvi ela dizer baixinho depois de terminar o serviço.
Os dentes da mãe e do pai - morto por hemorragia grave no olho - foram colocados num pote de vidro repleto dos dentes de leite de seus colegas que fizera de trouxas.
Em um dado momento sua mente, possessa de raiva e rancor, alcançou um nível de imaginação jamais antes atingido. Realmente, ela desejou com profundidade e intensidade que a fada dos dentes viesse. Um produto da imaginação doentia de uma criança tornou-se real naquela noite.
Você já ouviu falar de Tulpas?
Não? Explicando resumidamente: Os Tulpas nada mais são do que entidades criadas pela mente de uma ou até de mais pessoas, materializações de personagens originados da imaginação movida pela intensa força de vontade e concentração. O desejo de dar vida à este ser ultrapassa os limites até o ponto de se transformar em algo físico.
Tem um detalhe bastante interessante sobre os Tulpas: Conforme a variação de humor de seu criador, eles tendem a sofrer certas alterações, físicas e emocionais. Elaine, antes do sentimento de vingança consumi-la, sonhava ver a fada dos dentes com a aparência de uma donzela, como descrevi antes. No entanto, após o assassinato dos pais e se dar conta do total desprezo que sentiam por ela... bem, as coisas mudaram drasticamente.
A fada que veio lhe visitar possuía uma aura trevosa, emanando uma carga de energia sombria como até então não tinha visto, flutuando poucos centímetros do chão com seu corpo esquelético de pele marrom terra e um vestido sujo, rasgado e podre como se abutres tivessem vomitado sobre ele. O par de asas estava definhado, com pedacinhos caindo no chão e "evaporando" em seguida, pareciam asas de morcego. E o rosto... nossa, nem tenho como explicar, só digo que é horroroso, abominante. Lembro que tinha um maxilar alargado até o torso com uma dúzia de dentes.
E então Elaine negociou com a "fada". Prometeu lhe dar os dentes que coletou em troca de apagar cada rastro deixado pelas mortes dos pais. A "fada", consciente, prometeu realizar o desejo, jurando sua lealdade eterna à criadora.
Desde então a existência da fada dos dentes se alastrou por entre as crianças tomando como base a figura imaginada por Elaine em sua inocência, sendo passada de geração à geração.
Mal sabiam elas que a verdadeira se encontrava sob o domínio de uma mente precocemente sádica. Tulpas, às vezes, podem ser manifestações de seu lado mais obscuro se sentimentos ruins corromperem seu coração. É como um bebê com consciência quase própria querendo sair do ventre.
Esse é o caso de Elaine. Esta é a fada dos dentes original.
Nota do autor: Os acompanhantes do corvo - a menina e o coveiro - retornam na edição 30.
*A imagem acima é propriedade de seu respectivo autor e foi usada para ilustrar esta postagem sem fins lucrativos.
*Imagem retirada de: http://misteriosfantasticos.blogspot.com.br/2010/10/corvos.html
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