Capuz Vermelho #26: "Tesouro Divino"


"Ataque e sempre seu inimigo encontrará um modo de se defender. Defenda-se, e ele achará mil maneiras de lhe atacar."

                                                                                Trecho do Diário de Rosie Campbell; Página 95.

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Nota do capítulo: Partes em itálico representam flashback ou menções específicas.

CAPÍTULO 26: TESOURO DIVINO

Passos apertados e rápidos passeavam em linha reta por aquele chão de pedra nauseabundo, repleto de coliformes fecais esparramados pelas poças d'água irregulares. O local era detentor de uma atmosfera soturna, dispondo-se de uma parede com azulejos brancos sujos de terra úmida, além de uma mortiça luz fluorescente, meio esverdeada, que contribuía para o aspecto sombrio do recinto, iluminando apenas uma pequena parte, deixando o restante em certas "camadas": semi-escuridão no centro e breu total nos fundos. No teto molhado, gotículas de água caíam em direção às poças e o único som predominante, como se várias torneiras estivessem dispostas.

A figura foi se aproximando... e parara bem diante de parede esquerda do local. Alheia ao odor fétido exalado pelo piso, a pessoa respirara fundo, logo expirando o ar com decisão.

Vestindo um sobretudo cinza escuro e muito bem abotoado, típicos de espiãs norte-americanas e inglesas, e uma calça apertada preta e botas de couro de mesma cor, a mulher exibiu uma gradativa luz amarelada tomando conta de seus olhos azuis.

Rapidamente, dois finos raios luminosos e amarelos saíram das pupilas daquela moça, penetrando diretamente na parede. Meneava levemente a cabeça... como se estivesse realizando uma obra de arte para expor a alguém em específico.

Com um piscar, os raios sumiram em segundos.

Dera um sorriso presunçoso à "obra-prima" e saíra pela direita com o ritmo com o qual chegara.

Na parede, desenhado com exímio talento, havia um símbolo brilhando a mesma luz amarela do raio que o havia formado.

Um Ankh aparentemente "quebrando" o que parecia ser um disco solar...

                                                                                          ***

Área florestal de Raizenbool - 07h52. 

Enfiando uma série de apetrechos de caça em sua mochila, Hector se preparava para se encaminhar ao lado de Rosie até a sede dos caçadores de aluguel que participavam da operação de desmanche das fábricas instaladas pelas tropas de Abamanu, ficando cerca de 90 quilômetros ao norte. A base era subterrânea, com capacidade máxima para abrigar mais de 200 pessoas, e escondia-se através de uma fachada de um velho condomínio abandonado, tendo seu acesso por uma entrada secreta no chão.

Edgar fora contactado por Hector, o caçador-detetive revelando uma brusca mudança de planos que intrigara o líder da operação. A vinda daquele homem afro-descendente e vestido de smoking tirara-lhe o sono na madrugada que se passou. Após pôr a última caixa com munições de balas de prata dentro da mochila, pegou-se vislumbrando um último item na mesa.

O pequeno amuleto dado por Áker que serviria como comunicador em casos de emergência... ou quando Rosie finalmente se decidisse acerca da atordoante proposta oferecida.

Encarou aquele pequeno objeto dourado e circular com uma certa tensão. Com os dedos trêmulos, pegara-o com hesitação e o enfiara em um bolso externo do sobretudo.

Rosie chegara à cozinha com rapidez, aproximando-se da mesa.

- Já está pronto? - perguntou ela, olhando-o.

As palavras daquele ser ainda ecoavam na mente do caçador. "Usem-os quando quiserem se comunicar comigo.".

- Hector? - insistiu Rosie, estranhando o comportamento do parceiro. - Você está bem?

Desvencilhando-se de suas divagações, Hector estremecera levemente e olhou-a com firmeza, assentindo positivamente.

Abruptamente, pôs as duas mãos nos ombros da jovem, assustando-a.

- Rosie, aconteça o que acontecer, livre-se do amuleto. - disse ele, com urgência na voz.

- Hector, conversamos sobre isso ontem. Ao meu ver, ele falou a verdade. Não vou abrir mão disso aqui. - disse ela, retirando o amuleto do bolso de sua calça de couro apertada. Mostrara-o, o objeto reluzindo à luz solar que entrava pela janela. - Fique tranquilo. Minha resposta continua sendo não.

- Mas nada garante que você permaneça com essa recusa por muito mais tempo. - afirmou ele, tornando a andar de um lado para o outro, desesperado. Parara de repente. - Ele ainda não deu sinais convincentes para que possamos confiar nele.

Extasiada, Rosie caminhou até a janela com um olhar cansado, erguendo o capuz e pondo-o sobre a cabeça.

- Diferente de você... Naquela hora, não me senti ameaçada. - relatou, a expressão desconfortável. - Foi como se eu já o conhecesse, como se eu já estivesse familiarizada com ele. - virara o rosto para o caçador, o olhar aflito. - Sei que acredita que ainda exista um jeito de pararmos isso... de impedir que essa guerra venha até nós com força total. Tenho medo, Hector. Medo de que isso possa colocar nossos amigos em perigo, de uma forma ou de outra eles vão querer estar envolvidos.

Hector lembrara-se da excruciante possibilidade de se depararem com seus companheiros de caçada sob os efeitos devastadores da substância tóxica liberada. "Se conseguirmos chegar até a fábrica central, há uma chance de encontrarmos o verdadeiro responsável pela criação e liberação da substância... bem como também encontrar Charlie! Sim, a origem da substância é mundana! O que implica dizer que há alguém... algum cientista sequestrado que está trabalhando sob ameaça de Abamanu!", pensou ele, mal contendo suas emoções.

- Como ele disse: Ainda é cedo para abandonarmos as esperanças. Ao menos nesse único ponto eu concordo. - afirmou Hector, andando devagar até Rosie. - Eu tenho feito algumas especulações comigo mesmo, e já me desculpo por não compartilha-las com você. - fez uma pausa, endurecendo o semblante. - Vai haver algum momento em que vamos encontrar um outro modo de acabarmos com isso. Sei que vai. Eu acredito.

- Agindo assim, só estarão adiando o inevitável. - disse uma já conhecida voz em algum ponto da cozinha.

Ambos olharam simultaneamente para o mesmo lugar, e fitaram estupefatos.

- E, consequentemente, adiantando a extinção de sua espécie. - afirmou Áker, parado próximo ao fogão. Andara até a dupla, um tanto apressado. - Mas não tenho tempo para discutir a respeito, temos um grave problema.

Hector o estudou com fogo nos olhos, enraivecido.

- Não havia dito que apareceria apenas quando nos comunicássemos com você? - questionou ele, esbaforido.

- Estamos no meio de uma guerra, acostume-se quando surgirem ocasiões inesperadas que resultem nas minhas visitas sem aviso. - disse ele, convicto. - Posso aparecer quando e onde eu quiser, não necessariamente quando me chamam através dos amuletos.

- Acredite - disse Hector, sem minimizar o tom. -, pensei em jogar isso aqui fora. - mostrou o pequeno amuleto tirando-o do bolso. - Mas mudei de ideia quando percebi que pode nos ser muito útil caso corramos perigo.

- Sou um arauto, não um guarda-costas. - retrucou ele, franzindo o cenho.

- Acho que sei o que pode estar pensando: Que somos aproveitadores e que podemos desfrutar das suas habilidades quando nos convir. - fizera uma pausa, afastando o cabelo dos olhos. - Talvez não pense isso de Rosie, mas de mim...

- Já chega, Hector! - vociferou Rosie, puxando-o de leve pelo braço. Virara-o com força. - O que você tem na cabeça? - sussurrou ela, fulminando-o com os olhos.

- Atente-se, Rosie: Ele não é confiável. - cochichou o caçador, balançando a cabeça de leve.

- Você não é confiável. - salientou Rosie, desviando lentamente o olhar para Áker, logo tornando a andar em sua direção.

O caçador suspirou de modo pesado, olhando para o chão cabisbaixo, depois tornando a fitar Rosie como se houvesse sido substituído. Como se sua figura de protetor fosse quebrada em vários pedaços. Um turbilhão de sentimentos lhe assaltou a quietude, dentre eles, talvez o mais forte, o ciúme. Cerrando os punhos, se pôs atrás de Rosie, tentando ao máximo conter seu incômodo mediante a influência de Áker sobre ela.

- Então, nos diga. - disse Rosie, a expressão séria. - Qual é esse outro problema que está metido no meio de todo esse pesadelo?

- À primeira vista - começou Áker caminhando em direção à Hector, mas ficando entre os dois. - pode parecer algo isolado... - fizera uma pausa, olhando para ambos de modo misterioso. - ... mas que somente irão entender se vierem comigo. - ergueu as duas mãos e tocara-os nos ombros.

Novamente tendo suas percepções desafiadas, a dupla se viu em um recinto completamente diferente de onde estavam, ambos sentindo como se a realidade ao redor tivesse se alterado e materializado um mundo distinto, desconhecido e inexplorado. Hector tivera dúvidas quanto aos atributos do arauto de Yuga, encarando-o com um olhar de estranheza.

- E aqui estamos. - disse Áker, tirando as mãos dos ombros de Rosie e Hector.

- Que lugar é esse? - perguntou Rosie, olhando em volta, espantada.

- Isso é algum tipo de teste? - indagou Hector, arqueando uma sobrancelha, desconfiado.

Do modo mais condescendente possível, o arauto voltou-se para ele, exibindo um ar tranquilo.

- Jogos são obras do inimigo. - andara até o caçador, fixando os olhos nele. - E, para ser franco, eu estou longe de me equiparar à eles. Não vou coagi-lo a confiar em mim, isto iria contra os meus princípios. Mas vou dar provas de que sou confiável. No final, a decisão caberá a você. - fez uma pausa, virando as costas para Hector e caminhando à frente. - Tudo o que sei, tudo o que me foi concedido, apenas foi transmitir a mensagem de majestade sobre a proposta à Rosie Campbell...

Passando por Rosie, Áker a olhou incisivamente.

- Que com certeza, em vista de suas expressões e postura, ainda não se decidiu.

- E a resposta continua sendo a mesma: É não. - respondeu Rosie, o tom embargado de impaciência.

Áker fora percorrendo o curto corredor. O local possuía paredes pintadas de cinza, ornamentadas com estátuas pequenas e bustos de grandes figuras políticas de diversos países. No teto, pendiam lustres que iluminavam-no intensamente, enfileirados do início ao fim.

Entreolhando-se por um segundo, Rosie e Hector manifestavam as mesmas reações. Seguiram o arauto, sem escolhas a fazer, as dúvidas os torturando a cada passo.

- Será que dá para nos dizer o que está havendo? - perguntou Hector, soando ríspido.

- Não é adequado eu revelar do que se trata agora. - afirmou Áker, sem diminuir o ritmo dos passos. - Prefiro que descubram sozinhos... quando atravessarem aquela porta.

- Nós estávamos de saída. - retrucou Rosie. - Íamos organizar uma operação definitiva para...

- Shhh! - chiou Àker, olhando-a por cima do ombro com uma expressão severa, pondo o indicador frente aos lábios pedindo silêncio. - Cale-se. - sussurrou.

Franzindo o cenho e visivelmente sentindo-se ofendida, Rosie balançara a cabeça, sem entender.

- O quê?! Por que não posso falar?

- É inapropriado agora... estamos bem perto. - disse ele, mantendo o tom baixo. - Além disso, é perigoso, quase cometeu um erro terrível.

- Erro!? - protestou Rosie. - Eu só ia dizer que...

- Rosie. - disse Hector, tocando-a rapidamente. - Acho melhor fazermos o que ele diz.

A jovem o encarou por alguns segundos, aparentando estar perdida. "Áker também consegue hipnotizar? Se for verdade, estou vendo a prova agora mesmo.", pensou, intrigada sobre Hector aparentemente ter mostrado apoio à Áker de repente.

As portas duplas de madeira polida e brancas foram abertas com uma nítida precisão pelo arauto, revelando o outro lado como um aposento sofisticado: Paredes pintadas de laranja claro, ornamentadas com vários símbolos e linhas e decoradas com quadros de pintores renomados. A luminosidade calma dos lustres dava às obras expostas pela sala um aspecto épico sem igual. Preservadas por tampos de vidro sustentados por blocos de pedra maciços que ocupavam boa parte do local, as obras ali apresentadas pareciam, vistas da entrada, serem tipos peculiares de armas.

Estendendo a mão para permitir passagem, Áker lançou-lhes um sorriso calmo e leve.

- Contemplem as maravilhas divinas. - disse ele, alterando a expressão ao olhar de relance para as armas.

Rosie o analisou por alguns instantes de maneira curiosa.

- Onde realmente estamos?

- Isto aqui é um requisitado antiquário, um dos mais ativos destes país. - disse ele, a fala rápida. - É tudo o que posso revelar.

Sem esperar por mais nada, Hector adentrara na sala de exposição, dando-se conta de que qualquer outra pergunta feita resultaria em uma resposta vaga e nada convencedora. Rosie o acompanhara, olhando de relance para Áker meio preocupada. Enquanto fechava a porta depressa, o arauto, através da brecha, assentiu lentamente para Rosie com um semblante de confiança. Retribuindo com um sorriso fraco, Rosie entendera aquele recado. "Ele vai estar ao nosso lado quando as coisas ficarem críticas. Ele não está aqui somente para fazer uma oferta e ouvir uma resposta... Está aqui para me manter salva também. Quer que eu tenha tempo para decidir e que nada interfira nisso.", pensou ela enquanto seguia atrás de Hector até a parede oposta da sala que abrigava uma porta. "Agora sei porque Hector não foi com a cara dele.".

Pegou-se observando os objetos ali expostos. Armas que remetiam aos mais famosos deuses. Ou, pelo que se poderia constatar em primeira olhada, suas réplicas exatas.

Hector também ficara apreciando enquanto andava, com uma expressão intrigada no rosto. "Não lembro de ter visitado nenhum antiquário que preserve com tanta dedicação nenhuma réplica de alguma arma divina. Geralmente, são mais vistas em museus clássicos... como o finado Museu de História de Londres. Isso que me é estranho. Não são obras tipicamente expostas em antiquários.", pensou ele, sentindo uma pontada de mistério no ar naquele ambiente silencioso. "Áker deixou bem claro pela maneira como se expressou. Se eu mantivesse minha desconfiança nele, eu relevaria a sua suposta intenção de nos fazer perder o foco. Mas percebo que não é isso... Não parece ser um caso isolado... certamente não é.".

A porta dos fundos, localizada à direita, abrira repentinamente. Dela saíra uma bela mulher de pele morena com cabelos pretos cacheados e olhos castanhos, usando um vestido vermelho com alças e um colar cujo pingente era de diamante puro no formato de uma garra.

- Olá. Em que posso ajuda-los? - cumprimentou ela, soando gentil.

- Você é a atendente desta ala? - perguntou Hector, semi-cerrando os olhos.

- Sim. - respondeu ela, assentindo, estudando as figuras de ambos minuciosamente. - Minha vez agora: São clientes? - perguntou, sorrindo de modo misterioso.

Rosie respirou fundo, fitando aquela mulher como se não gostasse dela à primeira vista. Olhou discretamente para Hector, esperando uma reação do mesmo.

- Uma pergunta meio desnecessária... - disse ele, deixando transparecer sua desconfiança. - ... para alguém que parecia estar nos esperando.

A mulher rira baixinho, como se estivesse zombando do caçador.

- Tudo bem, então. Se não vieram comprar nada...

- Na verdade, viemos sim. - disparou Rosie, sorrindo forçadamente para a mulher.

Hector a olhou como se a mesma tivesse enlouquecido. Antes que pudesse protestar, já via Rosie apontar para um dos artefatos expostos.

- Aquela ali. - disse ela, escolhendo aleatoriamente.

A moça fechara a cara, claramente incomodada com a escolha da jovem.

- Ahn... Desculpe, mas o Cinturão de Hipólita não está à venda. Quero dizer... - ela se interrompeu, mostrando uma postura desconcertada, como se não soubesse se portar adequadamente àquela situação. Olhara de modo rápido para Hector e Rosie, assumindo uma face de tensão. - Lamento, mas esta peça já está reservada a um comprador que veio na semana passada.

Hector se aproximou dela com ar austero. A mulher o encarara, recuando alguns passos.

- Como um bom detetive e especialista em conduzir interrogatórios, sei muito bem quando alguém está mentindo descarada e perfeitamente. - afirmou o caçador, olhando-a desafiador.

Rosie se interpôs, pondo-se lado à lado com o caçador, assumindo um tom semelhante.

- E, como diz o ditado, mentira possui perna curta. - redarguiu ela.

Se vendo perante àquelas duas desafiadoras composturas, a mulher esquadrinhou com os olhos toda a sala, em uma tentativa de demonstrar indiferença à ameaça que aqueles jovens visitantes representavam para sua incontrolável ambição. Praguejou internamente quanto a preferência de Rosie pelo valioso Cinturão de Hipólita. A sua "impecável" atuação se desfizera em segundos e de um modo desapontadamente fácil. "Aqueles malditos! Sempre achando que estão no controle da situação, enquanto faço o papel de uma reles lacaia! Apenas me disseram o básico do básico!".

Hector endurecera ainda mais a expressão, encarando-a do modo mais pungente e intimidador possível.

- Nós sabemos exatamente o que você é.

A moça deixou formar um sorriso de canto de boca aliado a um olhar escarniante para ambos. Era a hora de abandonar de vez o verniz teatral de uma bela atendente despretensiosa.

Caminhando pelo trajeto formado por um tapete vermelho que ficava entre duas fileiras de blocos de pedra maciça revestidos de veludo branco por cima e que preservavam relíquias invendáveis e inestimáveis, protegidas sob tampos de vidro quadrados.

Ela parara e colocou a mão sobre um dos tampos, olhando o objeto com certo orgulho. Erguera um pouco a face, o queixo levantado, esbanjando uma nítida arrogância ao se virar para os visitantes.

Seu semblante havia se alterado completamente.

- Não precisam me olhar desse jeito. Já me encontro em rendição. - afirmou ela, dando de ombros. - No entanto... Não significa que venceram.

Rosie andara alguns passos à frente, tomando cuidado para qualquer movimento imprevisível.

- Há uma razão bem especial para estarmos aqui.

- Ah, é claro, o guia de vocês foi bem competente em não expor o necessário. - disse ela, a expressão canalha.

- Ele mencionou grave. - disse Hector, pondo-se lado à lado com Rosie, cerrando os punhos. - Além do mais, Charlie nos fez um breve resumo sobre vocês... Coletores.

A mulher, em um gesto de total menosprezo aos "clientes", virou-se de costas, assumindo uma expressão de inquietação com um sorriso nervoso.

- O raio de Zeus, a foice de Chronos, o Escudo de Égide de Atena, o tridente de Poseidon, o elmo de Hades, o arco solar de Apolo, o arco lunar de Ártemis, a lança de Anhur, o cetro de Anúbis, a trombeta de Heimdall, o martelo de Thor, a lança Gugnir de Odin, a espada de Surt... e muitas outras. Todas elas nossas, para sempre. - disse a mulher, vangloriando-se da conquista.

Rosie tornou a completar o argumento de Hector.

- Se Áker nos trouxe até aqui, tendo em mente que vocês não passam de ladrões assassinos, quer dizer que cometeram um crime muito ousado. - ponderou ela, avançando em passos lentos e cautelosos. - Estes artefatos... - desviara o olhar para as peças ali expostas. - ... são autênticos?

Após um suspiro preguiçoso e demorado, a moça parecia refletir quanto a questão. "Como são previsíveis.". Bastara seguir com o roteiro que lhe havia sido entregue, que nada mais era que uma máscara para uma ordem direta e acatável pelo ditos "superiores".

- Você parece estar tensa. - comentou Hector, estudando-a. - O que denuncia que não possui as rédeas dessa artimanha, você foi enviada até aqui por que esteve nos observando o tempo todo, possuem esse poder.

Ela dera uma risadinha, tremendo os ombros, mal contendo-se.

- De fato, era uma de nossas maiores dádivas. Espionar nosso inimigos até que nossas miras estivessem precisamente formadas, possibilitando um ataque formidável. - ela fez uma pausa, olhando-os por cima do ombro em gesto de sedução para Hector. - Mas graças a algum aliado de vocês, nós não temos mais essa permissão.

Estremecendo, Hector arregalara os olhos, como se não acreditasse no que acabara de ouvir.

- Como assim um aliado nosso? Do que está falando? - indagar ele, furioso.

- Acho que não sou a única com tensão aqui. - ironizou ela, fechando os olhos. - O seu amigo mensageiro estava ciente de nossas habilidades, por isso se recusou a revelar os detalhes, sem saber que nós fomos proibidos de usarmos nosso alto poder de observação.

- E com isso - emendou Rosie - você confessa ter nos observado chegar aqui. - pôs as mãos na cintura, fechando a cara. - E também a única que não fez o dever de casa.

- Exato. Não obedeço protocolos desesperados quando viso uma vantagem. - retrucou ela, virando-se para Rosie.

- Ainda não respondeu minha pergunta! - vociferou Hector, ansioso. - Diga-nos de uma vez o que significa tudo isso! O que está havendo aqui, afinal?

- Ora, calma. - pediu ela, franzindo o cenho. - São jovens demais para perderem tempo se irritando inapropriadamente.

O caçador dera três firmes passos à frente, bufando em fúria ao fitar o rosto cínico da mulher.

- Me deu um bom motivo para me irritar. - disse ele, a respiração pesada. - Não vai querer que eu dê uma razão para irritar você.

- Assim como também não vai querer uma de minhas garras cravada no meio da sua cabeça. Desafiar a um de nós, para um mortal, é uma corajosa tentativa de suicídio. - declarou ela, cruzando os braços, logo relanceando os olhos para Rosie como se esperasse uma reação por parte dela. - Eu não faço o tipo "traficante de informações". Mas pelo que me relataram, um membro influente do grupo de vocês fez um acordo com um dos nossos... bem, ele foi escolhido e convencido a guardar segredo sobre nosso acordo com Abamanu.

A afirmação fizera Rosie sentir suas entranhas remexerem, transmitindo-lhe uma sensação de que o mundo parara de girar. "Se isso for verdade... Com o que Charlie nos disse sobre eles: O fato deles quererem assumir o lugar dos deuses no trono maior... As armas! Isso explica tudo!". Por fim, ligara os pontos e chegara à desalentadora conclusão.

Abruptamente, se virou para Hector com um alarde estampado no olhar.

- Hector! Estas armas são verdadeiras! O acordo com Abamanu explica tudo! O roubo desses artefatos é o resultado dessa parceria!

O caçador a olhou com espanto, logo tornando a voltar a encarar a mulher, lívido.

- Errado. - destacou a moça. - Com relação aos artefatos, eu confirmo com total veemência. No entanto, nossas aquisições em nada se correlacionam ao acordo. Foi tudo graças á influência que conseguimos ao realiza-lo, justo no momento mais propício.

- E que momento seria este? - questionou Hector, olhando-a com mais braveza.

- Deixarmos o jovem Charlie viver custará caro para nosso estimado Chronos. - afirmou ela, lançando um sorriso puramente enigmático.

Com a vontade de avançar contra ela fervendo em seu sangue, Rosie se limitou a defronta-la com o olhar cada vez mais agastado.

- Então Charlie é o prêmio. - disse Hector, assentindo. - Não estou nada surpreso.

- A foice de Chronos está aqui. - declarou Rosie, apontando para a referida arma à sua esquerda. - Então é óbvio que você sabe o que houve com ele.

- Estamos fazendo um favor à ele. - argumentou a mulher, ajeitando uma mecha do cabeço, colocando-a atrás da orelha. - O único fato que o livrará da condenação é a morte de Charlie, o único mago do tempo remanescente...

- Já chega. - interrompeu Hector, voltando-se para o outro lado, dirigindo-se à saída principal da sala. - Já ouvi o bastante. Vamos, Rosie.

- É mesmo? - indagou a mulher, em um tom irônico. - Não gostaria de saber o nome do mortal que fez o acordo com um dos nossos?

Estacando de repente, o caçador fechara os olhos, sentindo sua cabeça, aos poucos, tornar-se algo similar a uma bomba-relógio.

- Pare de testar nossa paciência e nos deixe ir! - exigiu ele, ríspido, mantendo-se de costas para ela.

Rosie se aproximara depressa dele, agarrando-o de leve no braço em um gesto de convencimento.

- Ela parece estar dizendo a verdade nua e crua. - sua expressão era de uma palidez aliada a uma apreensão sem tamanho. - Além disso, ela talvez saiba onde Charlie está.

- Rosie, lembre-se do que Charlie nos disse no dia em que iríamos deter Mollock. - sussurrou Hector, preocupado. - Não se deve intimidar um Coletor de qualquer forma. Ela pode e quer nos matar aqui a qualquer momento, sem nenhum esforço. Então, eu duvido que qualquer tentativa de fazê-la falar funcione. - ele fez uma pausa, olhando de esguelha para ela. - Pode até ser possível, mas ela teria que nos matar depois.

- Ela me matar não tem problema nenhum. - arriscou Rosie, idealizando uma medida desesperada.

Hector lançou-lhe um olhar reprovativo.

- Mas é claro sim. O que está pensando em fazer? Nós lutaremos juntos até o fim, foi o que prometi a nós dois. A operação precisa de nossas presenças.

- Não precisa de mim para comandar um bando de caçadores em treinamento. - disse Rosie, balançando a cabeça. - Pense nas vantagens ao invés dos riscos, por favor.

- Rosie! - disse Hector, seus sussurros tornando-se um tanto mais altos. - Não vou deixar que morra com a ideia de que isso vá dar fim à essa guerra. Como eu disse antes: Vamos encontrar uma alternativa. Só segure um pouco mais as pontas. Enquanto isso, vou encontrar um modo de sairmos daqui ilesos.

Um rascante som de palmas batendo fora ouvido. Era a moça aplaudindo a dupla enquanto assistia-os cochicharem sobre como deverão escapar daquele antiquário. Seu semblante era de genuíno tédio.

- Estão de parabéns. - disse ela, novamente soando irônica. - Conspirando em um lugar onde residem seres letais e com poderes de observação a longa distância. Tiveram partes de suas vidas sendo criados por animais selvagens? - implicou, elucidando um eufemismo na frase, dando a entender que estava chamando-os de idiotas ou estúpidos.

Ambos viraram-se para ela, os olhares fuzilantes.

- A partir do momento - começou Hector, firme no tom - em que você largou sua atuação, já estava claro que não iria ter a audácia de retomar com sua observação secreta, por isso eu e Rosie tínhamos uma chance de nos falarmos em voz baixa. - fez uma pausa, olhando em volta da sala para os dois lados. - Além disso, presumo que seus superiores não estejam nas outras salas.

- Oh, como adivinhou? - indagou ela, fingindo surpresa, levantando uma sobrancelha.

- Não tenho tempo para explicar. - desconversou Hector, olhando de soslaio e relance para Rosie, demonstrando temerosidade. - Você está sozinha, a deixaram na esperança de que assumisse o controle da situação. Essa é a nossa chance.

Rosie virara o rosto para ele rapidamente, engolindo a saliva enquanto fitava a face do caçador assustadoramente confiante. "Espera aí! O que ele pretende fazer? Negociar com ela mesmo tendo lembrado do que Charlie nos disse?! Não... ele não seria tão estúpido. Hector, seja lá o que estiver pensando, é bom que seja direto e rápido. Nosso tempo está se esgotando.".

A mulher exibiu um incômodo ar soberbo ao dar mais alguns passos à frente, movendo os dedos de maneira suspeita. Sentira a confiança de Hector e estava pronta para destruí-la dependendo do que ele fosse propor.

- Sua desobediência para com seus superiores a torna nossa escrava. - disparou o caçador, sem medo.

Rosie novamente olhara para ele, visivelmente irritada e tensa.

- Hector... - disse baixinho, mal movendo a boca, os dentes trincados.

O caçador devolvera-lhe uma piscadela discreta que durou milissegundos.

- Provisoriamente. - completara ele, respirando fundo.

- É impressão minha ou temos um novo acordo sendo proposto aqui? - especulou ela, a expressão aproveitadora. - Vocês tem muita sorte que meus chefes estejam a milhas de distância daqui e, como são bons no que fazem, estão extremamente focados na tarefa atual.

Ajeitando seu sobretudo, Hector adquirira uma postura que competisse com a dela, arriscando todas as esperanças naquela medida desesperada e incerta.

- Vocês tem Charlie como troféu. Nos leve até ele. - pediu, aguardando as reações da moça.

- Isso me desvincularia do acordo com Abamanu. - rebateu ela, insatisfeita. - Acham mesmo que vou deixar usarem minha independência secreta como catapulta para chegarem até o mago do tempo? Ambas as partes devem se beneficiar, certo? Portanto, se assim for, é bom que minha recompensa seja tentadora. - assumira um tom rigoroso, logo assimilando a verossimilhança do acordo.

- Tudo bem, ótimo. - disse Hector, sem se exaltar. - Darei uma relíquia folheada a ouro tirada de um museu do país. Só revelarei o que é quando tivermos Charlie conosco. - inclinou-se leve e ousadamente para ela - O que acha? Concorda?

A mulher mordera os lábios vagarosamente, parecendo pensar nas vantagens que obteria. Ser execrada pelos companheiros e banida do acordo com o Cavaleiro da Noite Eterna ao mesmo tempo em que sairia ganhando algo de valor equivalente às relíquias divinas roubadas lhe era verdadeiramente excitante. Havia uma constante universal e irrefutável entre os Coletores: Eles não podem matar uns aos outros. Tendo isso em mente, era compreensível que ela não exibisse quaisquer sinais de desespero. Era tão igual quanto aos seus auto-proclamados chefes, mesmo sendo rebaixada a uma reles servente e peoa em um jogo amplamente arquitetado.

Enrolando alguns fios de cabelo no dedo, a moça os olhara com ar de decisão.

- Se conseguirem o mago do tempo de volta, automática e obviamente meus irmãos ficam sem a recompensa proposta pelo acordo com Abamanu.

- Por que querer Charlie - interferiu Rosie - quando se tem um arsenal de armas e artefatos pertencentes aos deuses?

- Não será o bastante para eles enquanto uma missão estiver incompleta. - retrucou ela. - O acordo está feito. Mas quero que saibam que sofrerei as consequências pelo meu ato, embora ostentando uma incrível relíquia de ouro... - olhou para Hector com interesse. - mas submetida a um interrogatório sobre quem levou o mago do tempo. Ele vai ser alvejado novamente. E pode acabar morto... como deveria estar.

- Nós temos nossos trunfos. - afirmara Hector, novamente relanceando Rosie. A jovem retribuiu-lhe uma expressão de desconforto, já imaginando quais eram as intenções do caçador para o "último recurso" se caso Charlie for salvo e recolocado na lista negra dos Coletores. "Ele não pensa em todos os riscos. Que droga, Hector!".

- Adoraria que me revelasse quais. Sei que há muito mais em jogo. - disse ela, sorrindo.

- Um acordo que destrói outro. - comentou Hector, também sorrindo, mas de maneira forçada.

- Muito sagaz. - elogiou ela, andando em direção à saída principal com uma exuberante elegância realçada pelo seu vestido escarlate. - Sigam-me. - disse, abrindo as portas duplas de madeira marfim.

A passagem do outro lado revelara um extenso labirinto de corredores longos. Indo na frente, a mulher gesticulou para que viessem movendo o indicador, mirando os olhos em Hector, que pareceu ignorar a tentativa de sedução. "Minha preferência está em mulheres de verdade. E você, certamente, não é uma.", pensou ele, caminhando ao lado de Rosie ao atravessar a soleira da porta.

As portas fecharam-se com um baque através de uma telecinesia perpetrada pela mulher. O corredor possuía as mesmas cores do qual estavam anteriormente, bem como os mesmos lustres e suas luzes amareladas suaves. O piso estava coberto por um tapete vermelho macio que se estendia até o final do corredor.

Rosie era só insegurança, enquanto Hector vigiava a "escrava" com afinco, sem alterar o ritmo dos passos. A jovem visualizara uma deixa para sussurrar suas aflições que brotavam e cresciam mais e mais.

- Hector, se ela estiver mesmo nos levando até Charlie... onde vamos arranjar uma relíquia folheada à ouro e retirada de um museu? - questionou ela, aborrecida.

- Lamento dizer, mas... Honestamente, não sei. - disse ele, dando uma risadinha tensa. - Mas confie em mim. Sinto que ela vai tentar algo que dificulte as coisas para nós... e é aí que Áker entra em ação.

- Além de não ser nosso guarda-costa, ele não é nosso super-herói protetor. - redarguiu Rosie, incomodada com a ideia do caçador em usar o arauto como meio de escapar de situações difíceis. - Por incrível que pareça, eu meio que consigo sentir a presença dele... em algum lugar fora daqui. Nem sei porque ele me deu o amuleto.

Hector virara o rosto para ela, parecendo intrigado com aquela súbita revelação.

- Isso só se manifestou depois que entramos aqui? - perguntou ele.

A jovem assentiu, ajeitando um pouco mais o capuz sobre a cabeça , sem tirar os olhos da moça que caminhava a poucos metros à frente deles, sem pressa.

- E se ele lhe deu o amuleto... significa que ele confia em você também. - disse ela, em tom convencedor.

- É, talvez você tenha razão. - sussurrou Hector, o tom quase inaudível. - Eu fui injusto. O julguei mal e cedo demais. Mas ainda não consigo processar a ideia de você ser o receptáculo de Yuga.

- Por isso vamos encontrar uma alternativa... como você mesmo disse. - afirmou Rosie, concordante com as expectativas do caçador e fitando a mulher de modo mais incisivo. - E já repito: Minha resposta é não.

                                                                                        ***

Um ar aprazível fluía naquela atmosfera de aparente tranquilidade plena.

Fachos de luz solar atravessavam a janela, banhando o pequeno aposento. Um quarto de hóspede localizado em um hotel declarado sem classe, além de absurdamente barato.

Uma figura feminina se remexia lentamente na cama, despertando aos poucos de seu profundo sono. Desconfortavelmente, ela parecia querer se desvencilhar de algo...

Seus belos cabelos ruivos alaranjados estavam jogados sobre o travesseiro branco e macio. Abriu os olhos abruptamente, deparando-se com a intensa claridade provinda do mundo externo. Levou as mãos ao do rosto, gemendo de incômodo e virando-se para o outro lado. Pela fresta entre os dedos, entreviu uma silhueta humana arrumando o que pareciam ser malas de viagens. "Onde eu estou? Quem é essa mulher?", se perguntou ela, tirando, por fim, as mãos da face.

Alexia, com rapidez, erigira seu corpo, sem desviar o foco naquela bela mulher que estava de costas, preparando maletas com roupas dentro. Os estonteantes cabelos castanhos e lisos da moça reluziam à luz que adentrava. Tremendo, a vidente ficara alguns minutos imaginando como pudera ter chegado ali. "Não lembro de ter vindo pra cá. Como cheguei aqui, afinal?".

- Pode deixar, eu sei exatamente o que deve estar pensando. - dissera Eleonor, fechando a última mala. - Não se queixe por não estar lembrada do que houve. Mas afirmo que você não foi sequestrada por mim, meus hábitos podem parecer criminosos, mas não sou nenhuma fugitiva da polícia. - ela se virara para a jovem, exibindo uma expressão suave e condescendente, seus olhos verdes destacando-se. - Você, finalmente, está salva.

Alexia balbuciava algo inaudível, mas as palavras pareceram não querer sair de seus trêmulos lábios.

- Shhh. - chiou Eleonor, aproximando-se dela na tentativa de acalma-la. - Está tudo bem. Você está segura. Não precisa ter medo. - ela se sentou na lateral, passando sua mão pelo branco rosto da vidente. - O pior já passou. Acabou. Você está livre.

- Não consigo entender... - gaguejou Alexia, sem alterar seu desespero. - Com pude ser salva justo no dia em que eu estava prestes a ser morta? Quem é você, afinal?

- Me chamo Eleonor. Nos conhecemos no campo de concentração. - respondeu a bruxa, séria. - Não quis revelar meu rosto como medida de precaução. A salvei por uma razão muito especial.

Alexia parecera não compreender, fazendo uma cara de confusa e balançando a cabeça.

- Como... como você sabia que eu estava...

- Também fui levada até lá. - disparou ela, interrompendo a vidente. - Injustamente, tal como você. Estava no meio de uma manifestação que pedia o cessar-fogo das tropas alemãs, bem como o fim do partido nazista. Me deixei levar pela curiosidade e acabei sendo confundida com um dos manifestantes. As tropas de Hitler vieram para recolhe-los dali e conduzi-los para os campos de concentração. - ela fez uma pausa, demonstrando uma face angustiada e abatida. - Fui espancada, molestada e humilhada. Fui submetida a interrogatório violento. Quando estavam fartos das tentativas em vão em arrancar respostas de mim, me trancafiaram num lugar imundo e fétido junto com alguns judeus. Meu rosto estava coberto por um capuz. E aí eu te encontrei.

Com a expressão petrificada e atônita, Alexia ouvia atentamente ao relato daquela misteriosa mulher.

- Hector havia me falado sobre você... - continuou Eleonor. - Sabe o parceiro que ele dizia estar acompanhado enquanto estava no palácio de Mollock...

- Era você!? - murmurou Alexia, estupefata. - Mas como ele a conheceu? Quando?

- Ele disse que você era um dos rostos mais lindos que já havia visto na vida. - disse a moça, forçando um sorriso fraco. - Reconheci você ao lembrar do desenho que ele fez. Revelou que é uma vidente... e que sofre por não compreender totalmente esse dom. - passou a olha-la com mais expectativa.

As lembranças da última vez em que vira o caçador se amontoaram em sua mente, levando-a a rememorar as figuras de Êmina, Lester, Adam, Rosie... e, sobretudo, de Charlie. Como se uma forte e bruta mão agarrasse seu coração, Alexia sentira um aperto no peito ao revisitar aquela excruciante cena, na qual assistia o mago do tempo ser carregado no ombro de Mollock - já dominado por Abamanu - enquanto seu corpo levitava completamente imóvel no ar... e em seguida, via o ofuscante raio de luz branca descer dos céus e levar seu amigo juntamente com o inimigo. Após o horror, veio a súbita queda. Depois a escuridão e a inconsciência completa.

Uma lágrima brotara do olho direito da vidente, ao passo em que ela reunia forças para falar.

- Eu... eu não consigo... - dizia ela, a voz embargada de comoção. - ... lembrar de quem me levou... depois que eu acordei nas Ruínas Cinzas, eu não sei como sobrevivi. Só lembro daquela noite, meus amigos lutando contra Mollock... e de estar naquele inferno, vendo companheiros de cela sendo açoitados e massacrados. - seu pranto se intensificara, de modo que a fizesse abraçar Eleonor, que retribuíra o gesto, fortemente emocionada. Os soluços da jovem carregavam toda a dor sentida no campo, expelindo toda a sofreguidão causada.

Eleonor afagara suas costas. Alexia estava vestindo um velho e sujo vestido preto-esverdeado.

- Eu sinto muito. - disse a mulher, fechando os olhos e deixando descer uma lágrima. - Deveria ter tido mais paciência para treinar o feitiço de memória...

Esbugalhando os olhos, Alexia soltara-se do abraço rapidamente, olhando para Eleonor como se tivesse sido traída.

- Você disso feitiço? O que você é? Uma bruxa?

- Sim. - respondeu ela, assentindo firmemente. - Estando diante de você aqui, Alexia, não possuo nenhum direito de esconder algo. Eu confesso ter usado uma magia em você... Queria que esquecesse todo o horror que passou naquela prisão. Me perdoe, por favor. - suplicara ela, juntando as mãos, o olhar tristonho. - Eu fui covarde. Fugi para a Alemanha para dar a impressão de que sumi do mapa. Nesse período, continuei meu treinamento, mas não havia sido o suficiente. Consegui trazê-la de volta graças a uma magia de teleporte aperfeiçoada.

- É por isso que estamos aqui? - perguntou Alexia, esquadrinhando com os olhos o recinto.

- Sim. - confirmou a bruxa. - Mas fique tranquila. Estamos em um hotel barato em Paris, foi o único lugar que consegui imaginar na hora de conjurar a magia.

A vidente a fitou com suspeita cautelosa.

-  Por que simplesmente não imaginou a Inglaterra? Podíamos ter voltado para casa. Não faz sentido estarmos aqui. - seu tom elevara-se em aflição.

- É, eu sei. - disse Eleonor, esfregando o rosto com as mãos, levantando-se depressa. - Mas acontece que é um caso bem mais complexo do que você pode imaginar. Só posso dizer que estou sendo perseguida... por traição ao meu clã. - revelara ela, pondo a mão no peito com um ar taciturno.

- O que você fez? - indagou Alexia, curiosa sobre a história.

Virando-se rapidamente para a vidente, Eleonor enxugara suas lágrimas, sem nenhuma pretensão de responder aquela pergunta de maneira resumida. Sua postura denotava uma pressa contagiante.

- Não há tempo para contar histórias. - declarou ela. - Devemos partir em trinta minutos.

Alexia se empertigara, logo pulando da cama como se já se sentisse revigorada novamente. Sua face exibia uma profunda preocupação.

- Partir? Mas para onde vamos?

- Nós vamos voltar para a Inglaterra. - ela apontou para as malas postas sobre uma mesa pequena de madeira. - Preciso correr certos riscos.

- Planeja reencontrar Hector? - perguntara Alexia, empolgando-se e aproximando-se dela.

A bruxa pensara por alguns instantes indicando insegurança quanto uma decisão daquelas. Recordou-se do dia em que enviara uma carta para o caçador, contando sobre sua difícil vida naquele país mergulhado na tensão causada pela guerra, o que aprendeu e reaprendeu sobre magia e sua atitude equivocada ao enfeitiçar um lobisomem meta-simbionte para impedi-lo de interferir em sua fuga.

- Eu ainda estou pensando nisso. - respondeu ela, vagamente decidida. - Talvez sim, talvez não. - dera de ombros. - Não sei se há uma chance de nossos caminhos se cruzarem novamente. Apenas quero ajuda-la.

- Como assim? - Alexia franzira o cenho, perdida. - Você já fez muito por mim. E eu agradeço. Quando voltarmos para lá, seguiremos com nossas vidas. Fico na Inglaterra, talvez eu reveja meus amigos, ver se estão vivos e bem, enquanto você... sei lá, talvez continue fugindo.

Eleonor suspirara pesarosamente, a seriedade em sua face quase assustadora. Seus olhos pareciam transparecer algum tipo de desaprovação na ideia da vidente.

- Alexia, devo dizer que as coisas não serão exatamente assim. - afirmou ela, balançando a cabeça em negação. - Depois do que Hector me contou sobre você, não estou disposta a abrir mão dessa oportunidade. - chegara mais perto dela, tocando-a nos ombros. - Posso me redimir dos meus erros ajudando você. Quero provar que consigo fazer o bem. Quero ter essa sensação pelo menos uma única vez na vida. - a olhou ainda mais incisivamente. - Eu sei como ajuda-la a controlar este dom.

Voltando a tremer de nervosismo, Alexia encarou a bruxa com incerteza.

- Vai usar sua magia... para permitir que eu controle minhas visões?

Eleonor assentira com afinco. Por outro lado, a vidente se limitou a enxergar aquela possibilidade com desconfiança, tentando assimilar quais implicações aquela ideia teria em sua vida. "Este dom... essas minhas visões sempre me fizeram sofrer. Eu sofria enquanto várias pessoas buscavam minha ajuda. Agora parece que me encontro em uma situação inversa: Ela quer me ajudar para que eu não sofra mais.".

Os olhos verdes de Eleonor abrilhantavam cada vez mais sua vontade persistente em auxiliar aquela jovem mulher de 27 anos a alcançar uma luz no fim do túnel.

- Prometo não envolve-la nos meus problemas com o Coven. - garantiu ela, firme em seu tom. - Só basta que achemos um lugar bastante secreto... e que confie em mim.

Um lampejo de decisão desprendeu Alexia das amarras que a hesitação colocara em sua mente. Suspirou forte, assentindo com determinação, até sentindo-se obrigada a agradece-la novamente por te-la encorajada daquela forma, com apenas um olhar de compreensão e carregado de sinceridade. A culpa era um pormenor malévolo partilhado entre as duas.

- Sim. - respondera Alexia. - Eu aceito.

                                                                                       ***

Com uma impaciência que dilacerava sua calma, Hector, novamente, tornou a conferir o relógio. Marcava-se 08:45. O horário, contudo, lhe despertou ideias tidas como absurdas, mas que, àquela altura, talvez pudessem se mostrar plausíveis. "Quando Áker nos teleportou não eram nem oito horas. Será que estamos mesmo em nosso mundo? Ou tudo não passa de um truque, uma ilusão? Afinal, ainda mal o conhecemos, suas habilidades ainda são um mistério. É provável... que seja minha maldição que esteja mexendo com minha noção de tempo.", especulou o caçador, caminhando à direita de Rosie rumo à porta no final do corredor.

A mulher, ao se ver diante do "fim da linha", parara bruscamente para agarrar a dourada maçaneta e, em seguida, gira-la tranquilamente. Olhou por cima do ombro, encarando os dois visitantes com certo escárnio. Ambos ficaram a aguardar a porta se abrir por completo.

O que se revelara foi um aposento provido de uma elegância nitidamente superior ao do cômodo anterior.  Paredes revestidas com papéis marfim exibindo pequenos losangos, alguns candelabros pendendo no teto se fazendo deslumbrantes com suas luminosidades deleitáveis, além de carpetes escarlates e macios.

Expostas próximas nas laterais do recinto e sustentadas por pequenas estruturas verticais de madeira estavam as estonteantes máscaras mortuárias - cerca de 6 em cada lado -  de grandes personalidades históricas, extremamente bem conservadas sob vidros reforçados, realçando a austeridade que a saleta proporcionava aos convidados.

A mulher fora andando mais alguns passos até o aproximar-se da parte central da sala, logo parando para, então, voltar-se aos seus "chefes". Suas pupilas castanho claro moviam-se com desenvoltura e sua expressão era de completo mistério. Rosie cerrara os punhos fuzilando a mulher com o olhar, sem a menor intenção de desperdiçar mais alguns minutos.

- E é aqui onde paramos? - indagou ela, desconfiada. - Sem querer ofender, mas não me parece nada convincente Charlie estar por aqui. - foi chegando mais perto, assumindo uma corajosa diretriz. - Alguma passagem secreta? Ou eu deveria considerar que você não nos disse tudo.

Hector demonstrara insegurança e procurou um meio de apoiar Rosie naquele interrogatório.

- São boas perguntas. - disse o caçador, também se aproximando. - Afinal, nós tínhamos a ideia de que algum soldado de Abamanu viesse a trocar de lugar com você para nos conduzir ao verdadeiro covil. Esta sala é um completo beco sem saída.

- Eu disse que estava sozinha, não disse? - questionou a mulher, olhando para ambos de maneira sonsa.

- Eu duvido muito. - retrucou Rosie, permanecendo a encara-la. Suas mãos já tocavam o cinto de utilidades de onde guardavam-se suas adagas. - Dá pra ver nos seus olhos...

- O que insinua? Que tenho mentido para vocês para que o acordo fosse selado? - perguntou a mulher, inclinando a cabeça para um lado, fingindo estranheza.

- Adivinhou nossos pensamentos. - rebateu Hector, forçando um sorriso novamente, embora mantivesse-se encarando-a com raiva.

- Oh, é sério? - disse a moça, andando para um lado com ar de ironia. - Pena que não adivinharam minhas intenções.

A afirmação fizera Rosie ganhar um impulso violento de fúria. Sacara sua adaga, o barulho rascante da lâmina desembainhando, dando alguns passos à frente mostrando-se desafiante. Hector a advertiu com um discreto aceno negativo de cabeça, erguendo a mão para impedi-la de atacar.

- Mas Hector...

- Está tudo bem, Rosie. - afirmou o caçador, olhando de volta para a mulher. - Abamanu jamais deixaria Charlie em poder dos Coletores enquanto orquestra seus planos de dominação global. Tendo em vista o papel de Charlie, ele só seria entregue aos Coletores apenas quando a expansão do império terminasse. - fez uma pausa de efeito, engolindo a saliva. - E quanto à você... pode ter certeza que não sairemos daqui sem antes sabermos de algumas respostas.

A mulher o fitou com um interesse mais elevado que outrora.

- Gosto de você, caçador. - provocou ela, sorrindo sacanamente. - Rápido no gatilho, mas ainda ingênuo demais para lidar conosco. - olhara para Rosie com desdém. - E a sua parceira... Bem, eu devo dizer que ela está bem encrencada.

- O que quer dizer? - perguntou Rosie, segurando firmemente a adaga, pronta para um ataque sem relutância.

- Você não está sozinha, não é mesmo? - questionou Hector, levantando uma sobrancelha.

- Há um bom tempo. - revelou ela, assumindo seriedade. - Não conto com meus chefes porque não passam de um bando de arrogantes e estúpidos, então eu esnobei eles por séculos, mesmo ainda exercendo as funções, afinal eu visava meus ganhos. Se não fosse por ela... eu estaria completamente perdida, eu me odiaria pensando não ser digna dos méritos.

Hector bufara, aproximando-se mais alguns passos.

- Ela quem? - perguntou, o tom de voz aumentado.

- Aquela que quer a cabeça de Rosie Campbell numa bandeja para a próxima coroação. - ditara ela, relanceando a jovem de capuz que a ameaçava perfura-la. - E também aquela que fará de mim o que quiser... já que eu descumpri suas ordens! - dissera, adquirindo um tom de emergência e desespero.

Uma nova presença começou a ser sentida pela dupla de heróis. Com as batidas do seu coração descompassadas e aceleradas, Rosie se virou abruptamente para olhar para trás, a face empalidecida. Hector imitou seu movimento... e ficara igualmente surpreso.

Aproximava-se do trio uma bela mulher caucasiana, voluptuosa e de alisados cabelos pretos que iam até seu busto. Suas botas pretas com altos saltos faziam os sons de seus passos destacarem-se, propiciando-lhe uma altivez avassaladora aliada ao seu sobretudo cinza e bem abotoado com um cinto preto inclinado e outro em sua cintura com armas. Rosie se viu petrificada ao deparar-se com os penetrantes olhos verdes claros da moça furiosa. "Que sensação estranha é essa? Eu... eu sinto como se a tivesse visto em algum lugar... como se a conhecesse!".

- Quem é você, afinal? - perguntara o caçador em um timbre severo.

A moça o ignorou e concentrou todo o seu foco em seu principal alvo, sem desviar. Parou, ficando alguns poucos metros à frente de sua mais nova rival, a qual encarava com um ódio antes reprimido.

A Coletora arriscara-se na tentativa de sair despercebida, recuando alguns passos discretamente ao olhar de soslaio para uma suposta saída de emergência próxima.

- Parada aí! - bradou a mulher colérica, sem tirar os olhos de Rosie. - Traidores como você não devem alcançar nenhum tipo de salvação.

- Eu... - gaguejava ela, desconcertada. - Não tive outra escolha! Eu fui tentada! Culpe-o! - apontou para Hector com indignação. - Perceba que no fim das contas, eu trouxe Rosie Campbell à você. Eu já fiz meu trabalho por aqui!

- O seu trabalho... - disse a moça, agora voltando-se para ela. - ... era conduzir somente ela até mim. O que esse verme faz aqui? - disse, gesticulando com a cabeça em direção à Hector.

- Eu o enganei fazendo-o acreditar que o mago do tempo estaria aqui. Me prometeu uma boa recompensa em troca, mas tudo não passou de um falso acordo. - relatara ela, olhando para Rosie e Hector de modo aflito e rápido. - Por favor, tem que acreditar em mim! Eu o mataria aqui mesmo se ele recusasse cumprir sua parte.

- O que certamente não vai acontecer. - retrucou o caçador olhando de modo semi-cerrado. - E eu me recuso. Você nos levou até o fim de linha, agora mostra a verdade sobre para quem realmente vinha trabalhando.

- Então talvez signifique que você não saiba nada sobre onde está Charlie! - vociferou Rosie, fulminando-a com os olhos.

A moça de sobretudo com face jovial e severa levantara uma das sobrancelhas para a Coletora. Impôs um funcional suborno à sua nova criada para que vigiasse os passos de Rosie, sob a garantia da entrega de inúmeras riquezas destinadas apenas para seu deleite. Naquele dia, especificamente, lhe era sua chance de ouro para mostrar seu valor, embora se sentisse pressionada quase o tempo todo. A ideia de armazenar as armas e artefatos divinos roubados naquele antiquário fora sugerida por ela... o Coletor disfarçado de uma bela dama de vermelho. O feito possuía a intenção de atrair a atenção do arauto de Yuga imediatamente, de modo a faze-lo sentir a gravidade de uma situação que fugiria do controle se caso movesse seus pauzinhos para interferir. Com a chefia no encalço de Áker, ela teria toda e qualquer informação a respeito do fardo de Rosie, inclusive sobre a mesma estar sendo, aparentemente, protegida pelo mensageiro. Seu ódio pela jovem crescia quanto mais a olhava.

- Bem... Acordo é acordo. - enunciou a jovem mulher, calmamente abeirando-se em direção à sua incompetente aliada. - Agradeço por ter trazido a mortal. Mas abomino sua ingenuidade ao cair na lábia de um reles humano. - seus passos tomaram mais intensidade, enquanto a moça erguia levemente a mão fazendo surgir gradativamente uma esfera de luz amarela e irradiante na palma. - Um aliado se deixar ludibriar por seres inferiores para mim é um ato imperdoável.

A Coletora tremera em completo pânico, suando em demasia ao sentir o calor escaldante provindo da esfera luminosa, ao passo em que recuava com a mente bloqueada pelo medo, sem entrever nenhuma chance de fuga.

- Senhora, por favor...

- Foi um prazer trabalhar com você. - disse a infame mulher, investindo ao agarrar o braço de sua informante com extrema força e puxa-la para mais perto, logo rapidamente fazendo-a engolir a esfera de luz amarelada e fechando o maxilar dela. A empurrara cruelmente, fazendo-a cambalear para trás enquanto seu corpo se debatia em desespero e suas mãos passeavam pela garganta, na tentativa de tirar, de algum modo, aquela energia potencialmente flamejante dentro de si. Levou as mãos à cabeça, ajoelhando-se. Uma luminosidade fora crescendo de seu corpo, de dentro para fora, dando a rápida impressão de sua falsa pele humana estar queimando depressa.

Rosie e Hector afastaram-se, tentando proteger seus olhos da intensa claridade, enquanto a executora sorria, saboreando o momento. A luz se expandia como se fosse tomar conta de todo o espaço, à medida em que o corpo da Coletora desaparecia, sendo incinerado.

Ouviu-se um abafado urro vindo da executada, a mesma exibindo uma face de horror com olhos brilhantes, seu rosto desintegrando-se.

A claridade diminuíra velozmente, reduzindo-se, logo exibindo o terrível resultado com uma pequena e densa montanha de cinzas no chão, que, por sinal, fumaçava um vapor lento e quente.

A dupla heroica encarara com estupefação o ato dantesco da odiosa mulher... que agora os mantinha como reféns por tempo indeterminado.

- Muito bem... - dissera ela, virando-se para os dois com ar bravio. - Hora de cuidar da tarefa pela qual me auto-designei. - ela foi se aproximando ameaçadoramente. - Eu, Sekhmet, irmã e consorte de Yuga, tenho a obrigação de acusa-la... Rosie Campbell.

Olhando de relance para Hector com surpresa, Rosie reunia coragem suficiente para digerir aquela informação alarmante. "Ela disse irmã?!".

- O Coletor disse - começou a jovem, adquirindo uma postura brava. - que você quer minha cabeça como prêmio. Por quê? - elevara o tom de voz, ríspida.

A deusa se limitou a dar uma risadinha de presunção, pondo as mãos na cintura.

- Eu não apenas vim para ser seu pior pesadelo... vim para reivindicar o que é meu por direito. - assumira um tom sério, olhando para Rosie com cólera.

Hector sentiu-se obrigado a intervir.

- E o que seria? - perguntou ele, curioso sobre o propósito da deusa.

- Não é algo que lhe diga respeito. - retrucou ela, bufando. - Meu amado cometeu um erro terrível. Estou aqui para conserta-lo.

- Vai ter que me matar se quiser descobrir como. - desafiou Rosie, assumindo as rédeas da situação, preparando sua adaga.

- Rosie - disse Hector, preocupado. - não acho que seja...

- É melhor você ficar fora disso. - declarou ela, autoritária. - Ela claramente tem contas a acertar comigo. Eu posso sentir... - pôs a mão esquerda cerrada no peito - A raiva. Estou sendo estimulada a lutar pelo que é meu. - foi andando alguns passos até sua rival, sacando mais uma adaga tranquilamente. - Não vou culpar Áker por ter nos trazido até aqui... talvez ele não sabia que essa vadia estava tramando algo contra mim.

Hector ia se afastando, temendo que a tensão aumentasse a níveis críticos... sem conseguir tirar os olhos da ameaçadora deusa solar e fiel esposa da divindade oposta à Abamanu.

- Olhe bem como fala... - instou Sekhmet, fechando os punhos e sorrindo levemente. - Deixe a raiva crescer. Isso vai facilitar minha conquista. - deixou seus olhos brilharem uma luz amarela, logo disparando dois retos e finos raios letais.

Como que por reflexo, Rosie exibira as duas adagas, cruzando-as em um "x" diante de sua face a fim de se defender do ataque. O calor dos raios instantaneamente dificultou a resistência imposta por Rosie, superaquecendo as lâminas, tornando árduo o processo para manter a defesa constante. Rangendo os dentes, Rosie forçou ao tentar empurrar as adagas na intenção de frear a gradual força dos raios. Jamais lutara contra tamanho poder. "Mas que droga! Minhas mãos já estão queimando e mal saí do lugar! Não pode ser... estão derretendo!", pensou ela, arregalando os olhos ao perceber as lâminas, pouco à pouco, se desfazendo em uma pasta quente feito lava de vulcão. "Ela vai me matar!".

Repentinamente, Sekhmet vira a ruína de sua aparente vitória na forma de um caríssimo vaso branco de tamanho médio voar em sua direção... e acertar-lhe na cabeça violentamente, o impacto ressoando em seus ouvidos. Cessara os raios ao piscar os olhos e se ver com um dor aguda no crânio, apoiando-se em dos tampos de vidro para as máscaras mortuárias.

Rosie olhara depressa para Hector, o responsável pelo feito corajoso.

- Eu não sei se agradeço ou mando você fugir de uma vez. - disse ela, sorrindo fracamente.

- Estava óbvio que se ela piscasse os olhos, os raios, ao invés de desviar de curso, iriam desaparecer. - disse ele, olhando com desprezo para a deusa, que se recompunha ao fita-lo com fúria.

Reavendo a compostura, Sekhmet erguera a mão direita apontando para Hector, sua testa não apresentando nenhum ferimento. Fechara a mão e, utilizando-se de uma telecinesia inerente, levantara o caçador, tirando-o do chão além de priva-lo da respiração. Logo, em um rápido movimento, o jogara para a esquerda com brutalidade. O caçador-detetive fora lançado até um pequeno compartimento, colidindo-se com estantes envidraçadas que expunham vasos de cristais antigos. O impacto de suas costas fez o vidro se estilhaçar inteiramente e lhe proporcionar alguns cortes no rosto e na boca, além da madeira das estantes ter sido danificada. Uma chuva de cristais fragmentados caíra sobre ele, fazendo-o se sentir cada vez mais impotente... por enquanto que a já conhecida sensação maldita não lhe vinha para assumir o controle de suas funções mentais e motoras.

"Não... Agora não!", pensava ele, sentindo os conhecidos efeitos aflorarem dentro de si, apertando com força a gola do sobretudo como sentisse-se sufocado, ao passo em que se esforçava para se levantar, os pequenos cacos de vidro tilintando ao cair do seu corpo.

"Rosie... Tome cuidado.".

A jovem canalizava, naquele instante, todas as suas forças para confrontar fisicamente a vingativa deusa solar, que, estranhamente, defendia-se e atacava com força equivalente à da adversária.

Com chutes bem movimentados e precedidos por giros rápidos, Rosie colocava em prática todo o aprendizado que conseguira com Êmina sobre artes marciais. A cada soco, revidara com uma investida de sua adaga. Logo em seguida, um desvio veloz de Sekhmet, forçando a coluna para baixo e retomando a postura para dar uma forte cabeçada na jovem de capuz. Mesmo cambaleando, Rosie não baixara a guarda, defendendo-se dos constantes golpes da deusa.

Rosie, em um impulso corajoso, pegara-a pela cabeça e a batera contra a parede, partindo da ideia de que a mesma mal conseguiria sentir dor ou ganhar ferimentos. Sekhmet, ainda mais rápida, a pegara pelo braço direito, investira com um chute no estômago e a pegara pelos ombros para joga-la longe, fazendo-a voar em direção a joias de ouro e artigos de vidro bastante caros, quebrantando-os com um forte impacto.

- Farei com que nosso símbolo seja a última que veja nesta sua vida medíocre! - atacou Sekhmet, andando a passos largos até Rosie.

Recompondo a força, a jovem se libertara dos fragmentos de vidro levantando-se depressa para lançar uma adaga contra a oponente, a lâmina cintilando enquanto arremessada horizontalmente.

Por meio de telecinesia, a deusa erguera uma mão para jogar a adaga para um lado, que logo cravara-se na parede. Depois mais outra lançada, jogada para a direita graças ao poder de sua fervorosa mente.

- Gostaria de saber porque está pegando leve comigo. - questionou Rosie, posicionando-se para lutar.

- Apenas desejo testar seus limites. - respondeu Sekhmet, com um sorriso sacana. - Desperte todo o seu ódio... e o entregue à mim! - exclamara ela, aproximando-se com ameaça.

- Não foi muito inteligente revelar seu plano dessa forma. - disse Rosie, afastando-se aos poucos, limpando o sangue de um pequeno corte na boca. - Minha calma é a sua fraqueza. O seu atraso e sua falha também. Não vou me irritar só porque está me forçando ou porque está lutando de igual pra igual comigo! - fez uma pausa, relanceando a parede atrás de si - Se é tão forte o suficiente para vir me atormentar, porque não o foi ao convencer Yuga a mudar de ideia sobre mim?

Antes que Sekhmet pudesse proferir alguma resposta, Hector irrompera da pequeno compartimento, correndo até ambas para impedir uma tragédia iminente.

- Rosie! Afasta-se dela! - gritava ele.

Sekhmet levantara sua mão esquerda ao virar-se para o caçador, fazendo emergir do chão uma "parede" de fogo. Arregalando os olhos e praguejando em voz alta, o caçador recuara imediatamente ao se ver diante das chamas crescentes, um obstáculo intransponível. Por incrível que parecesse, o fogo não se alastrava pelas paredes ou pelo resto do chão, sendo, portanto, precisamente controlado pela deusa por enquanto que seu embate com Rosie prosseguia. As labaredas escaldantes ocultavam parcialmente as formas das duas. Hector se limitou a pôr as mãos na cabeça em desespero, sem absolutamente nenhuma ideia do que fazer. "Se eu chamar Áker, ela, obviamente, vai perceber num piscar de olhos e impedir! Mas do que adiantaria? Ela parece ser mais forte, talvez igualmente ou até mais do que o próprio Yuga. Rosie... Não, não posso pensar no pior! Tenho que sair daqui... e me acalmar... Áker pode aparecer uma hora ou outra para ajuda-la...". O caçador se afastava da parede flamejante, cambaleando como um bêbado desorientado, procurando, em vão, algo para se apoiar.
O mundo pareceu girar em velocidade máxima ao seu redor, até que todos os objetos pertencentes à sala lhe fossem apenas borrões disformes e irregulares, como se estivesse adentrando em um estado hipnótico ou entorpecedor. "Não posso me transformar aqui!", gritou ele, mentalmente, já alcançando a porta e bem sabendo da sua irrelevância para apartar a briga. Relutou em não olhar para as mãos e dar de cara com pelos e unhas crescendo ao sair discretamente da sala, tonto.

- Agradeça-me por poupar o seu amigo caçador. - provocou Sekhmet, sem alterar o tom ameaçador. - Não conseguiria nada sem ele na cruzada contra o inimigo de meu amado. Mas nem por isso retiro o que penso a seu respeito.

- É bom deixa-lo em paz. - disse Rosie, olhando-a com fúria. - Além disso, acho melhor mudarmos de local. Estou disposta a lutar pelo que me foi dado, isto me torna mais forte. Portanto, aqui onde estamos não é adequado para lutarmos. - sugeriu ela, sentindo o calor insuportável das chamas tomar conta do ambiente, fazendo-a ofegar levemente.

- O plano está cada vez mais surpreendentemente funcional. - disse Sekhmet, sorrindo maliciosamente, seus lisos cabelos pretos iluminados pelo alaranjado do fogo. - O local anteriormente sugerido. O caçador vindo me impedir. Eu tornando este lugar uma sauna... Tudo está indo de acordo com o planejado. - ela fez uma pausa, levantando uma mão com o indicador, o dedo maior e o polegar juntos - Seu pedido é uma ordem, privilegiada. - disse ela, soando sarcástica.

O barulho do estalar de dedos brincara com a percepção de Rosie.

Via-se em um lugar totalmente distinto, úmido, o ar frio, dando a impressão de estarem presas em uma sala subterrânea, sendo que, na verdade, era um antigo refeitório de um presídio fechado há anos, abandonado em péssimas condições de higiene e estrutura. No chão, expandiam-se poças d'água sujas, e nas paredes azulejos quebrados e uma única lâmpada fluorescente enfraquecida que esteve ligada desde o dia do fechamento definitivo da penitenciária, em seus últimos dias de vida útil.

- Então você previu mesmo meus movimentos? - indagou Rosie, questionando sobre a artimanha perspicaz da deusa.

- Não só previu - bradou uma voz grave em algum ponto do lugar à esquerda - como também quis chamar minha atenção.

Por reflexo, Rosie voltara-se na direção da voz e entreviu a figura de um homem vestindo um smoking, parado diante da parede, observando algo desenhado. Uma sensação de amparo acometeu-a de imediato ao saber de quem se tratava.

O arauto de Yuga apreciava o talento artístico de sua chefe expressado naquela sob a forma de um uma Cruz de Ansata - vulgo Ankh - parecendo partir ao meio um disco solar, ou, como o visitante esperado pôde depreender, o emblema do império. Os olhos analítico de Áker fitaram a "obra-prima" por vários segundos de puro silêncio.

- Uma bela declaração de guerra, devo admitir. - disse ele, por fim.

- É um aviso. - afirmou Sekhmet, o tom de voz orgulhoso. - Destinado a todas as tropas que se curvaram à nova e estúpida diretriz. Mas agora posso garantir à você que eu estou no controle, ou, indo mais além, a um passo de assumir o trono.

- Majestade está e sempre estará no controle de seus subordinados, incluindo à mim. - disse Áker, virando-se para encarar a deusa, logo em seguida tornando a andar na direção de Rosie com tranquilidade. Se pôs à frente da jovem, dando-lhe uma piscadela amigável com um sorriso discreto.

- Que grande piada. - zombou Sekhmet, revirando os olhos. - Eles tremem de medo assim que ouvem meu nome.

- Você quer reconstruir o império com os muros da sua arrogância. - atacara Áker, olhando-a seriamente. - Além do mais, o que fez foi uma clara demonstração de traição. Onde já se viu firmar uma aliança com um membro de uma classe de seres mais perversos e letais que existem no universo para alvejar uma vida inocente?

- Inocente?! - repetiu ela, franzindo o cenho e sorrindo cinicamente. - Rosie Campbell está longe, muito longe do arquétipo de inocente.

- Ela está sob minha proteção. - afirmou o arauto, reforçando sua postura, sem se abater com o soberbo tom da deusa. - Ganharia mais se apoiasse o ideal de majestade, deveria estar do nosso lado! - exaltara-se, fulminando-a com o olhar.

- Eu estava, antes de meu amado cometer o pior erro de sua vida! - rebatera Sekhmet, dando alguns passos à frente. - Jurar o fim de uma guerra a uma reles mortal. Escolheu, dentre 4 bilhões dos protozoários que vivem neste mundo subalterno às forças da natureza, logo a filha de um seguidor do inimigo que atrasou o progresso do império. Ele traiu a mim e a si mesmo!

Rosie mordera os lábios enquanto cerrava os punhos, de modo que mal conseguia conter sua raiva contra aquela deusa de natureza repulsiva. Sentia raiva por ter de compartilhar este sentimento com sua mais nova nêmese. "A raiva que gera mais raiva. Ela continua tentando me intimidar, querendo despertar meu lado negro.".

- Veja pelo seu lado também e repense seus conceitos. - afirmara ela, intervindo. - Cometeu uma traição que você nem mesmo consegue justificar. Olha, eu posso jurar à você que não gosto nem um pouco da ideia de Yuga em querer me usar para vencer Abamanu. - virara-se para Áker, o semblante fechado. - E minha resposta continua sendo não.

O arauto a fitou com preocupação por um instante.

- Então eu estaria lhe fazendo um favor ao mata-la. - disse Sekhmet, cruzando os braços e olhando para Rosie com escárnio. - O estranho é que você resistiu, com aquele argumento de "lutar pelo que é meu". Tendo negado a proposta, não acha sua posição um tanto controversa? - desafiou ela, encarando seu alvo com mais incisão.

- Já chega. - disse Áker, severo. - Rosie, continue atrás, melhor ficar afastada. - avisou o arauto, parecendo ciente de suas ideias, fosse o que fosse o que estava prestes a fazer.

Obedecendo ao pedido, a jovem recuara alguns passos, apreensiva.

Áker, defrontando com a colérica deusa, fechara o punho direito com extrema força... até fazer surgir uma luz alaranjada irradiar, como se sua mão estivesse prestes a queimar. Foi se aproximando com cautela, as pupilas de seus olhos reluzindo um brilho amarelo implacável, clareando parte de seu rosto.

Ao reunir e ganhar força suficiente, por fim abrira a mão, liberando uma rajada luminosa e flamejante, como o vento de uma tempestade solar mas em menor escala. Ao disparar o ataque, seus olhos ferveram incontrolavelmente. Sekhmet andava até ele, completamente alheia aos efeitos... ou a ausência deles.

O brilho cessara rapidamente, e a deusa continuara andando, sorrindo despreocupadamente.

- Sua vibração solar não me fez nem cócegas. - disse ela, parando a poucos metros à frente dele. - Que soldadinho patético você é. - relanceou Rosie com os olhos. - Como consorte de Yuga, eu ordeno que me entregue Rosie Campbell para que eu possa mata-la... - inclinou um pouco o rosto para ele. - Ou farei com que se sinta obrigado a fazê-lo por mim.


                                                                                      ***

Trôpego, Hector seguia deambulando por um corredor - que, na verdade, era apenas mais um dentre vários em um labirinto -, esperançoso por alguma saída alternativa pelos fundos do antiquário. A vertigem que lhe pegara desprevenido o fez esquecer por alguns instantes que estava envolvido em um conflito de interesses entre divindades. Sua preocupação naquela hora era unicamente em Rosie.

Ao chegar na metade do corredor, lembrara-se do amuleto dourado dado por Áker e, por fim, de chama-lo para apaziguar as tensões. "Não posso sair daqui... sem Rosie. Áker deve conhece-la... Não, ele, obviamente, a conhece! Mas não sei. A aparição dela me faz duvidar do verdadeiro papel de Áker. Será que ele não passa de um escravo? Quem a enviou? Yuga? Os planos mudaram e ele agora quer Rosie morta para reaver seu poder máximo?", perguntava-se o caçador, recobrando a orientação por definitivo e caminhando com mais postura.

No mesmo momento em que iria tirar o amuleto do bolso externo do sobretudo, o caçador vira dois homens do Exército chegarem ao corredor dobrando pela direita. Fitou ambos por alguns segundos com desconfiança, de certo modo surpreso com as aparições repentinas. "Mas... O que soldados do Exército fazem aqui?".

- Sr. Crannon. - chamou um deles, andando mais rápido até o caçador.

- Sim... - respondeu Hector, pouco à vontade. - Eu posso saber por que estão aqui?

- Nós quem lhe perguntamos. - redarguiu o outro, sacando algemas do bolso de trás. - O que o senhor faz em um lugar desses quando deveria estar supervisionando a operação?

- Ahn... Acho que o general Holt não lhe explicou direito... - disse Hector, dando um sorriso nervoso. - Assinei um contrato exclusivo... para firmar meu anonimato e ajudar apenas por meio de ligações e gravações.

Os soldados permaneceram calados por alguns segundos, aproximando-se com uma severidade cuja impressão dada era a de que aumentavam de tamanho.

O da esquerda puxara um saco de veludo preto do bolso, mas mantendo-o escondido por enquanto.

- Além disso - continuou Hector, não gostando nem um pouco do tom da situação. - nós tivemos um pequeno contratempo e...

- Nós!? - murmurou o soldado da direita, expressando incômodo. - O general não especificou nada sobre um segundo supervisor. Quem mais você envolveu?

- Tudo bem, eu confesso, é uma amiga... Ela se chama Rosie Campbell... - fez uma pausa, reparando nas algemas produzindo um tilintar. - O que significa isso?

- Viemos porque detectamos atividade e o radar nos trouxe até aqui. - respondeu o soldado que trazia o saco de veludo, chegando mais perto.  - É uma surpresa o encontrarmos neste lugar justo quando o general reduziu seus níveis de confiança no senhor.

Hector franzira o cenho, sem entender.

- O quê? Mas o que eu fiz para o general ter deixado de confiar em mim?

- Saberá no interrogatório. - disse o soldado da esquerda, rapidamente lançando o saco de veludo sobre a cabeça de Hector, cobrindo-a por inteiro. - A diferença é que o general é quem fará as perguntas.

O outro viera em seguida, algemando o caçador.

- Lamento, Sr. Crannon. - disse ele, fechando as algemas. - Mas terá que vir conosco. Para o bem da sua reputação e do seu próprio.

Sem questionar, o caçador se deixou ser conduzido até a saída no final do corredor. Encararia a escuridão durante todo o trajeto até enfrentar a ira do general Holt e sua série de questionamentos.

"Mas e quanto à Rosie?! Não!"

                                                                                       ***

Deliciando-se com a leveza da brisa que passava pela janela, Alexia ocupava-se, lendo um livro de ficção sossegadamente, enquanto Eleonor, sentada à sua frente, organizava alguns folhetos com escritos em latim, fazendo uma espécie de seleção cuidadosa. Ambas haviam pegado a tempo o trem das nove e embarcado com segurança - com Alexia passando-se por sua filha em um passageiro disfarce.

Situadas no sexto vagão e separadas por uma média mesa de madeira fina, com uma ampla vista da paisagem externa, elas permaneciam em silêncio, como que ainda tementes quanto a segurança do local - algum soldado nazista infiltrado e disfarçado entre os passageiros, estando, implacavelmente, no encalço da dupla.

A vidente baixara o livro, esboçando um semblante de preocupação e tirando seu foco.

- Algum problema? - perguntou Eleonor, notando a apreensão da jovem.

- Você tinha dito que o seu Coven havia começado uma busca incansável... - disse Alexia, desviando o olhar para a janela.

A bruxa suspirara, sorrindo.

- Não há o que temer no presente momento. - garantiu ela. - Primeiramente vou me comprometer com seu caso. Vou explicar tudo em detalhes quando chegarmos.

- Eu tive uma visão. - disparou Alexia, sem alterar a expressão.

- Sobre o quê?

- Olha... - ela resistiu, levando uma mão à cabeça e fechando os olhos. - Eu só consigo pensar em reencontrar meus amigos, só isso. Principalmente Charlie... lembro que ele foi levado por Abamanu.

Empertigando-se ao ouvir as palavras da vidente, Eleonor rapidamente interessara-se pelo assunto.

- Também estava nas Ruínas Cinzas? Hector especulou que você ficaria de fora.

- Não, minha presença era necessária lá, embora Charlie não aprovasse a ideia. - contou Alexia, sentindo-se mais calma. - Eu tenho que confessar... minhas últimas visões tem sido relacionadas à Rosie. Hector falou com você sobre ela?

Uma pontada de angústia embargou o coração de Eleonor, uma recordação inesperada de sua neta ainda inocente quanto ao mundo lá fora... um mundo no qual ela seria vítima de uma série de pesadelos. Tentando responder da melhor forma possível, a bruxa não se intimidou mediante à sensação entristecedora.

- Sim... Na verdade, foi a primeira coisa que o ouvi falando no dia que nos conhecemos. - revelou ela, olhando para a paisagem banhada pelo sol matutino. - Se sentia culpado. Como se tivesse cometido um erro que talvez não consiga reparar.

Um silêncio caíra sobre as duas. Alexia ficara pensativa quanto à fatídica noite... e lembrou-se das palavras do ex-amigo de Hector, Michael, nas quais o mesmo afirmava que o caçador seria o melhor dos membros da fraternidade. "Nós fomos traídos... por Hector?!", pensou ela, recusando-se a acreditar.

- Eleonor. - disse Alexia, cabisbaixa. - Desejo boa sorte quando for iniciar sua busca por Hector.

A bruxa a olhou com condescendência e tocou em sua branca mão.

- Pode deixar. Isto não vai ser nem um pouco difícil. - disse ela, sorrindo levemente.

Erguendo a cabeça lentamente, Alexia assentira devagar.

- Espero realmente que não seja. Pois ele vai precisar bastante do seu apoio. - disse ela com seriedade.

O trem dirigia-se a todo vapor, rumando à Estação Ferroviária de Londres, com horário de chegada determinado para o meio-dia.

                                                                                   ***

Áker dera uma risadinha escarniante, zombando da prepotência de sua chefe. Era-lhe risível o fato de ainda continuar sendo subordinado de alguém que claramente desonrara para com os propósitos do império, se tornando uma vergonha para o que o emblema representa.

A deusa fechara a cara, enfurecendo-se com a zombaria.

- O que é tão engraçado, serviçal?

- Não sei qual das duas ordens: Você ainda assumir comando sobre mim ou me pedir para que mate Rosie. - disse ele, recobrando a seriedade. - Quem está sendo patético agora?

- Ou então eu o mato. - sugeriu ela, sacando uma média espada de lâmina dourada.

- Não vou impedi-la de tentar. - afirmou Áker, balançando levemente a cabeça. - Mas algum soldado tomará coragem e vai relatar à majestade todas as atrocidades que cometeu: Ter se aliado a uma aberração, perpetrar um atentado à vida de Rosie Campbell e ter me matado. - a olhou estreitamente. - O que ele vai achar disso? Quão decepcionado você acha que ele ficará?

Sekhmet se limitou a fechar os olhos, aparentando estar controlando mais uma de suas explosões.

Rosie aquietava suas emoções, observando a conversa e imaginando até onde aquilo iria culminar. "A única saída que existe é Áker me tirar daqui. Ele tem que saber uma forma para deixa-la longe de mim."

- Você é apenas um mensageiro. - insultou a deusa, fuzilando com o olhar. - Não fale como se ele depositasse mais confiança em você do que em mim. Se o que disse ocorresse, ele compreenderia minhas motivações!

- Ele a trancafiaria em uma cela - redarguiu Áker, igualando-se ao tom da deusa. - para que aprendesse a lição de que jamais deve-se contrariar as vontades do imperador.

- Não tenha tanta certeza. - rebateu ela, afastando uma mecha do cabelo. - Possuo direito a uma boa parcela dos bens do império, ele me conferiu estas regalias. Quero impedi-lo de realizar a ruína do reinado.

- Vai salvar o império ceifando uma vida inocente? Quão correspondente isso é aos nossos princípios. - ironizou Áker.

- E que escolha eu tenho?

- Várias. - disse ele, olhando de soslaio para a parede da esquerda. - E uma delas é você aceitar a minha ordem de restrição, para que fique distante de Rosie Campbell.

Sekhmet deu uma risada alta repleta de escárnio.

- Não pense que vou desistir tão facilmente! Se depender de mim, esta mortal não chegará nem perto de conhecer a grandeza do poder de meu amado... muito menos de senti-la correndo por suas veias! - vociferara ela, olhando para Rosie com extremo ódio.

- Está na hora de você ir. - disse Áker, estalado os dedos com boa vontade.

Instantaneamente, surgira uma figura diferenciada na parede à esquerda... exatamente no ponto de onde estava o símbolo desenhado, exibindo um completamente distinto, brilhando intensamente uma luz amarela em seus contornos e linhas.

- O que você fez? - indagou Sekhmet, olhando para Áker com um misto de raiva e desespero.

- Afastando você de seus alvos. - disse o arauto.

De repente, a deusa perdera totalmente o controle de seu corpo, ficando inerte mediante ao poder daquele façanha.

- Não consigo me mover! - gritara ela, sentindo seu corpo ser atraído para a parede gradativamente. - Está cometendo um grande erro! Proteger esta mortal lhe custará muito caro! Grave minhas palavras, serviçal maldito! - esbravejava, enquanto seus pés imóveis eram arrastados em direção ao símbolo.

Em uma fração de segundos, Sekhmet fora puxada pela força implacável, gritando em altíssimo tom desesperadamente como uma alma torturada... até, por fim, desaparecer através de um brilho ainda mais intenso, dando a impressão de seu corpo ter se colidido com a parede.

Protegendo os olhos com a capa vermelha, Rosie, contudo, pensava não ter se livrado completamente da vingativa deusa solar.

O símbolo diminuíra velozmente sua luminosidade, até suas linhas sumirem por completo na parede.

Com uma condescendência genuína, Áker voltara-se para sua protegida.

- Você está bem?

- Sim. - respondeu Rosie, recompondo a calma e esfregando os olhos. - O que foi aquilo?

- Modifiquei o símbolo e o transformei em um portal. - disse ele, sucinto. - A mandei diretamente de volta ao palácio.

- Mas isso com certeza não me livra das tentativas dela. - argumentou Rosie, preocupada.

- Sim, eu sei, ela não vai parar. Mas enquanto eu estiver ao seu lado... e enquanto você não estiver decidida, e eu sei que ainda não está... eu estarei, firme e forte, protegendo-a. - disse ele, pondo uma mão no ombro da jovem.

- Nós entendemos sua motivação. Queria nos mostrar o que os Coletores haviam feito. As armas dos deuses...

- Tudo bem. - interrompeu ele, assentindo vagarosamente. - Elas serão devolvidas quando eu conseguir uma oportunidade. No momento, é impossível. Tanto pela vigilância dos Coletores quanto pelos portadores originais estarem ocupados com o julgamento de Chronos, que espero que dure até que a guerra entre majestade e Abamanu cesse por definitivo.

- Hum... - Rosie ficara pensativa por alguns segundos. - Ela também tinha mencionado isso. Que a morte de Charlie livraria Chronos da condenação.

- Não estou muito informado quanto a isso. - disse Áker, pondo a mão no queixo e refletindo a respeito. - Mas pelo que me lembro, Chronos conferiu a mortais o saber divino, e isto, para o Conselho, é um crime grave de primeira classe. Espero que consigam libertar o mago do tempo, embora não possam evitar a iminente punição de Chronos.

- Se Hector estivesse aqui...  - ela cortara a frase, alterando sua expressão de calma para aflição. - Essa não! Hector... Onde ele pode estar? Consegue sentir a presença dele?

O arauto se concentrava, apurando seus sentidos ao máximo. Tornou a olhar para Rosie com igual preocupação.

- Infelizmente, sinto sua energia sendo transferida para outro lugar.

Rosie franzira o cenho, sem estar convencida.

- Dá pra ser mais específico?

- O amuleto ainda está com ele... No entanto, ele não está sozinho. - fez uma pausa, tocando-a novamente no ombro. - Melhor eu leva-la para casa. Vou mante-la informada se caso eu descobrir a respeito.

- Tudo bem. - dissera Rosie, assentindo e denotando exaustão na voz. - Só me tira daqui.

                                                                                          ***

O aperto de mão dado expressava uma confiança mútua entre ambos os concordantes. 

A mão grossa e pesada do general Holt praticamente queria esmagar a de Hector, tamanho era o entusiasmo do comandante das tropas militares inglesa, autorizado pelo comitê superior a agir de forma alheia e isolada à guerra que ocorria entre as potências mais influentes do mundo. 

Edgar havia avisado o caçador-detetive antes do mesmo entrar na espaçosa sala: "Prepare-se para conhecer uma das mentes brilhantes desta iniciativa.". 

E Hector, num instante, havia capturado o espírito bravo do general e contagiado-se com sua empolgação equilibrada. 

- É uma honra conhece-lo, general. Ainda mais por ter me autorizado a ser supervisor. - disse Hector, contente pela aceitação... e mentido sobre a ideia da supervisão, que, na verdade, fora sugerida por Vannoy e repassada por Edgar ao caçador. 

- Fiz um estudo sobre a tal Legião dos Caçadores. Claro, por insistência de Vannoy. - disse Holt, retornando à sua mesa, deixando-se iluminar novamente pela luz do sol que atravessava a alta janela. - Não sei como sobreviveu ao incidente da noite passada, senhor Crannon, mas fico feliz por ver que aparenta ter envergadura suficiente para conduzir nossos planos. 

- Ahn... Quantos caçadores, ao todo, irão participar da operação? - perguntou Hector, sem jeito. 

- Caçadores de pouca experiência, o senhor quer dizer. - corrigiu Holt, o fitando intensamente e sorrindo. - Cerca de 52 ou 60, no máximo, entre 18 e 20 anos. 

"60 caçadores de aluguel... e nesta faixa etária!?", pensou Hector, incerto sobre o número. 

- Senhor general... eu me sinto obrigado a sugerir uma mudança radical na minha posição. 

Holt arqueara uma sobrancelha, intrigado. 

- E o que seria? Algum problema quanto à supervisão? 

- Na verdade... sim. - respondeu ele, tenso, cofiando a barba de leve. - Como são novos demais, talvez não se sintam muito à vontade recebendo orientações de um caçador da Legião. Podem se sentir pressionados. 

O general passara vários instantes avaliando a decisão com cuidado. 

- Hum... Pode estar com razão, senhor Crannon. - concordou ele, colocando os pés em cima da mesa de trabalho e acendendo um cigarro, relaxando. - Tendo em vista... que são todos sonhadores... querem, um dia, estarem no mesmo patamar que seus colegas... Meus pêsames sobre eles. 

"Não estão mortos! Quem lhe disse isso?", pensou Hector, em polvorosa com a afirmação do general. 

- Como pretende agir, afinal? - perguntou Holt, lançando uma baforada. 

- Hum, deixe-me ver... - disse Hector, pensando nas possibilidades. - Por meio de gravações ou telefonemas. Poderia ser? - perguntou ele, dando de ombros. 

- É, me parece efetivo. - disse o general, assentindo, pondo as cinzas no cinzeiro. - Partilho da mesma crença. Um orientador anônimo pode lhes proporcionar mais... coragem. - ele fez uma pausa, olhando para Hector. - Com direito a modificador de voz, é claro. 

- Ah sim, isso seria... de grande ajuda. - disse Hector, sorrindo nervosamente. - Quando vão me repassar os detalhes da primeira operação?

- Você começa hoje. - disparou ele. - Edgar divide o comando com você. 

- Não estou entendendo. - estranhou Hector. - Não me disseram nada sobre agir em campo aberto na zona de perigo. 

- Sua supervisão... começará amanhã de manhã. - informou o general, espreguiçando-se. - Hoje será seu teste. 

- Um teste? 

- Sim, isso mesmo. Veremos se suas qualidades como caçador foram mantidas. - disse ele, abrindo uma garrafa de uísque. - Daqui a pouco um dos caçadores subordinados de Edgar vai estar lhe informando tudo. - após tomar um gole, o líquido alcoólico descendo fervente na garganta, mostrara uma folha com uma caneta em cima para Hector. - Assine aqui. - apontara para uma espécie de tinta preta em um pequeno recipiente de metal. - Depois ponha seu polegar aqui e coloque no devido local, abaixo da assinatura. 

- Sim, senhor. - assentiu Hector, aproximando-se da mesa, logo pegando a caneta para assinar. 

- Seja bem-vindo à iniciativa, senhor Crannon. 

                                                                                    ***
                                                                           
Em todos os anos atuando como um agente da proteção à vida humana, Hector jamais se vira vítima de uma situação daquela natureza.

A ideia de ser preso e vendado, sem nenhum direito de fazer perguntas ou esboçar resistência, ainda mais com o fato de ter abandonado uma missão por um evento do qual não teria o menor controle, era-lhe torturante.

Sentia-se como um genuíno criminoso sendo flagrado fugindo da lei.

Mãos e pés amarrados por fortes nós de cordas. Uma dormência no corpo provocada pela circulação afetada pelas amarras. E um úmido odor indiscernível que lhe entrava pelas narinas, mesmo estando com a face coberta. A dormência lhe foi positiva quanto a conter os subsequentes arrepios.

"Dois soldados estão em vigília...", pensou ele, apurando os sentidos ao sentir as presenças dos homens de Holt o observando com olhares frios e desdenhosos. Passados trinta segundos, antes que pudesse imaginar as suspeitas do general, uma pesada e grossa mão puxara o saco de veludo, retirando-o da cabeça de Hector com pressa.

Os olhos temporariamente turvos do caçador se depararam com um ambiente parcialmente escuro, iluminado somente por uma lâmpada branca e esférica que pendia do teto sob um fio elétrico. As paredes eram verdes, de um concreto decadente.

Ofegando, Hector se viu como um animal engaiolado, ou até mesmo um assassino perverso que fora condenado á cadeira elétrica. Para seu alívio, ao redro não havia nada de aparelhos eletrocutores ou ferramentas de tortura. Contudo, para sua infelicidade, uma figura robusta, de aspecto severo, avizinhava-se a passos soturnos.

Uma baforada de cigarro pairou no ar gelado da sala por vários segundos. Hector, mais cedo, desejara não ter que encarar aqueles intimidadores olhos azuis naquele dia.

Jogando fora o cigarro, o general Holt deixara-se visível, saindo da penumbra, a face que mostrava seus bem vividos 50 anos, exibindo seu bem conservado bigode grisalho e seu curto e comum cabelo prateado. Inclinou-se para Hector, mantendo a austeridade do semblante.

- Por que me trouxeram até aqui? - perguntou Hector, rebatendo com mesma rigorosidade.

- Suponho que Edgar tenha combinado com você...  - começou o general, a voz áspera. - ... a mudança repentina dos planos... Sugerida por... Adivinhe. - disse, soando sarcástico. - Senhor Crannon, em nosso primeiro encontro, que, por sinal, desejei ter sido também o último, garantiu seu total comprometimento com as operações, sua supervisão voluntária...

- Era uma emergência! - vociferou Hector, apressado em demasia para dar explicações. - Nós fomos obrigados a prestar atenção em um problema de similar gravidade!

Olhando de soslaio para um lado, o general deu um suspiro de desalento.

- Senhor Crannon, por favor, coopere conosco. Não me obrigue a incluir desacato à autoridade na sua ficha. - afirmou ele, categórico. - Uma fonte aparentemente segura nos informou que você foi responsável por uma chacina durante uma de suas primeiras missões para deter um grupo de infectados. - provou o que todos diziam a seu respeito: ele prezava por ir direto ao ponto. - Será verdade que estivemos trabalhando com um caçador de dupla vida, com tendências assassinas? - olhou para os dois lados, lançando sorrisos maliciosos para os soldados, que também retribuíram com sorrisos e risadinhas zombeteiras. Voltou-se para o caçador, recobrando a severidade. - Nós temos a prova. Aliás, uma foto.

"Ótimo, acho que Rosie e eu estamos no mesmo barco".

- Com todo o respeito, general, mas isto tudo aqui é um exagero. - opinou Hector, balançando a cabeça levemente, desaprovando a ideia do general.

- É exagero um homem de minha posição manter preso um indivíduo perigoso enquanto lhe arranca informações? - perguntou Holt, arqueando uma sobrancelha.

- Eu sei o que significa perigo, senhor. E certamente não posso ser categorizado como tal. - desafiou Hector, fuzilando o general como olhar, enquanto uma gota de suor pingava da ponta de um dos fios de seu cabelo.

- O aviso "Procurado" abaixo de um retrato-falado seu já lhe diz o bastante? - questionou Holt, novamente inclinando-se para o caçador.

- Acredito que alguém esteja tentando me incriminar por um algo que não fiz. - afirmou Hector, forçando as amarras postas por trás da cadeira.

- Suspeitas? - indagou Holt, olhando-o fingidamente com expectativa.

- Lobisomens. - arriscou ele, a fala rápida. - Essa testemunha misteriosa talvez não tenha mencionado. Eu cheguei lá depois de impedirmos os infectados de fugirem. Algo chamou minha atenção, então eu tive que ir conferir. Verifiquei... todas as marcas nas paredes, as feridas profundas, a largura dos cortes.

- E por que um relatório sobre esse caso não chegou ao conhecimento de Vannoy ou dos caçadores? - pressionou Holt, cruzando os braços, tornando-se cada vez mais incisivo.

Ao engolir em saco o questionamento, Hector vasculhou mentalmente as alternativas, os caminhos que deveria percorrer para afugentar as suspeitas que pesavam como chumbo grosso.

- Não havia necessidade. Nosso foco eram os infectados, unicamente. - respondeu ele, sem rodeios. - Se puder, ao menos, me dizer de quem se trata essa testemunha...

- É anônima. - retrucou Holt, ríspido, fitando-o com desprezo. - Estupidamente, assim como você.

- Como assim estupidamente? - estremeceu Hector, sentindo-se ofendido. - Autorizou meu anonimato. Apoiou minha decisão e agora a despreza?

- Exatamente. - confirmou o outro, andando devagar para um lado. - E com isso eu quero dizer que suspendo sua licença para agir anonimamente. - disparou, virando o rosto para Hector. - Sua metodologia não é confiável.

Os nervos em ebulição enalteceram a desesperadora tentativa de Hector em provar sua inocência. Mas de que forma? Estava cativo, submetido a interrogatório e coibindo a si mesmo para não fazer declarações que vão além do necessário a se dizer àquela altura. O caçador o fitava estupefato, incrédulo quanto à decisão. Lívido, mal conteve-se em protestar.

- Isso é absurdo! Não pode me desvincular da operação, ainda mais sendo eu um caçador da Legião. O Mestre Vannoy jamais admitiria que um de seus preferidos fosse tratado desta forma. - argumentou Hector, a vontade de se desvencilhar das cordas pulsando.

Holt deu uma risadinha presunçosa.

- Vannoy está sabendo apenas do que eu quero que ele saiba. - revelou o general, despreocupado. - E quanto a sua desvinculação... Ela só ocorrerá quando os resultados de nossas investigações nos forem satisfatórios... e comprovem nossas suspeitas.

- Que investigações? - perguntou o caçador, franzindo o cenho.

- O status quo da cena do crime... permanece o mesmo do dia da missão. - disse Holt, conciso, acendendo um novo cigarro. - Estamos colhendo várias respostas a cada dia. Se os peritos encontrarem suas digitais em um dos corpos das vítimas... é melhor nem pensar em fugir do país quando o mandado de prisão chegar à sua casa.

Relanceando os dois soldados ao seu lado que mantinham a observação atenta e segura de cada movimento brusco que viesse a fazer, Hector se limitou a encarar o vazio e se perder em seus pensamentos, imaginando as piores cadeias de eventos possíveis. "Áker! Se eu pudesse chama-lo agora... Não, é impossível agora, espere um pouco, controle-se... Holt ainda não deixou explícitas as suas intenções. Eu sou um criminoso. Mas ele chegará ao ponto de cometer um crime me mantendo preso aqui?", pensou ele, lentamente erguendo a cabeça para encarar a impenetrável e inflexível figura de William BuckHolt com suas densas baforadas e o olhar intenso e gélido.

O general se aprontava para sair da sala e terminar aquela conversa de uma vez por todas, ainda que dúvidas quisessem mante-lo ali por mais tempo.

- Diga-me... senhor Crannon... - colocara as mãos para trás, sem largar o cigarro da boca. Por fim, o tirara, jogando um pouco de cinza no chão. - O que sua amiga, Rosie Campbell, tem de tão especial?

A pergunta pegara Hector desprevenido, deixando-o petrificado de tensão por alguns instantes.

Holt virara-se para ele, pondo novamente o cigarro na boca.

- Sei que está a par de acontecimentos ocultos. As atividades mais recentes constatam que algo esteja ocorrendo fora de nosso campo de visão, aparentemente um caso isolado em relação ao nosso atual trabalho. - inclinou um pouco mais para frente a cabeça, estreitando os olhos. - Há uma ligação?

- Senhor... - Hector se esforçava para dar uma resposta decente, parecendo estar esgotado. - Há certas coisas... das quais o senhor e sua equipe não devem saber... pelo menos por enquanto ainda não. - fez uma pausa, entristecendo o semblante. - Rosie está sob minha proteção. Ela estava prestes a ser infectada, estava em coma em um hospital e eu a salvei. Ela não foi forçada... tanto a participar das operações quanto a aceitar um destino terrível.

Olhando-o com incredulidade, o general pareceu reprimir uma risada diabólica.

- Ela está sendo protegida por um suposto assassino?! - disse ele, acentuando as suspeitas.

- Espero que os resultados das investigações culminem na minha inocência. - disse Hector, desviando o rosto para um lado, enojado com a soberba de Holt. - O que eu falei a respeito de Rosie é tudo o que o senhor deve saber, por ora.

Holt soltara um resmungo raivoso, jogando o cigarro para um canto da sala, em seguida virando-se para a porta a fim de sair daquele sufocante recinto.

- Quem é você para dizer o que devo ou não saber?

"Aonde ele pensa que vai? Ele não pretende..,".

- Senhor Crannon - disse Holt, parando próximo à porta, quase abraçado pela escuridão da entrada. - eu vou emitir um comunicado a sua amiga ou talvez mandar um dos caçadores até ela. Seu anonimato acabou, embora ainda continue aliado à operação. No entanto, é bastante provável que apenas Rosie Campbell se encarregue de comandar as missões a partir de agora, então veremos se ela tem desenvoltura. - fez uma pausa, virando-se novamente para o caçador. - O que me leva a desconfiar de seu posicionamento... - disse ele, tirando algo do bolso. - É isto.

Hector o olhava atentamente, sem pestanejar, curioso quanto à imprevisibilidade do general.

Assim que viu um fugaz brilho na escuridão parcial em torno do homem, o caçador não tivera dúvidas. Um arrepio seguido de um embrulho no estômago lhe aprisionou ainda mais.

"Não pode ser! Seu maldito, devolva isso!". As palavras estavam engasgadas. Limitou-se a ranger os dentes em fúria.

- Enquanto não for totalmente honesto comigo, senhor Crannon, não tenho outra escolha a não ser mante-lo aqui sob custódia, levando em conta o perigo que o senhor provavelmente representa. - olhou para o que segurava com certa empolgação. - Houve uma época em que eu colecionava artigos caros e de luxo...

Hector tremia, forçando com mais vontade os nós das cordas, fazendo a cadeira balançar discretamente.

- Gostei desse aqui. - disse o general, mostrando o amuleto dourado de Yuga para o caçador... intencionando um confisco.


                                                                              CONTINUA...

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