Capuz Vermelho #39: "A calmaria antes da tormenta"


CAPÍTULO 39: A CALMARIA ANTES DA TORMENTA

5 dias depois... 

Palácio Subterrâneo de Abamanu 

Uma das paredes rugosas da cela localizada na masmorra estava quase preenchida pelos traços verticais e horizontais que representavam o número de dias nos quais o mago do tempo passara trancafiado. O jovem usava uma lasca de carvão para desenhar o último traço, um horizontal que atravessava os outros quatro. Havia passado-se uma semana desde a última distorção avaliada como extrema. Largou o pedaço desgastado e voltou a sentar-se no chão nauseabundo, apoiando seus pulsos nos joelhos. "Algo que me diz que esse pesadelo vai terminar em breve. Se uma alma viva não pode ser capaz de me libertar... a morte irá.".

As chamas das tochas quase apagaram-se com um soprar gélido provocado pela aparição repentina de Abamanu. Charlie, sobressaltado, alarmou-se com o vulto troncudo e tenebroso, levantando-se depressa.

- O que você quer? - perguntou ele, rispidamente. - Não quero saber mais nada sobre o julgamento de Chronos. Exijo que minha sentença seja declarada, agora mesmo!

- Quieto, seu verme. - disse Abamanu, usando telecinesia com a mão direita para empurra-lo contra a parede e mante-lo acalmado - Farei o favor de amenizar sua ansiedade já que finalmente se deu conta de que não tem mais nada a perder. Os coletores, com muita diligência, cumpriram o dever de realocar as armas divinas em certos locais onde itens de grande valia são negociados.

A ficha para o mago do tempo caíra como balde de água fria.

- Como é?! - indagou ele, a face espantada - Não... Puseram as armas à leilão! O que diabos você pretende com isso sabendo que tem um problema bem maior à sua espera?

- Yuga pode esperar. - retrucou ele, os lupinos olhos amarelos realçados - Ele finalmente apoderou-se de Rosie Campbell como seu porto seguro. Desde o seu nascimento, ela não passou de um termômetro ou um filtro de energia pura que corria em suas veias sem que soubesse. Fiz minha parte em tentar avisar.

- Não!! - exclamou Charlie, frustrado, virando-se para a parede e socando-a fortemente com a mão direita. - Não, não, não... - lamentava ele chorosamente, o sangue começando a escorrer por entre os dedos do punho fechado - Todo esse tempo... eu sabia... senti que existia uma aura familiar em toda aquela manifestação.

- Do que está falando? - perguntou Abamanu, o tom frio.

- O que Yuga está irradiando... - disse o mago do tempo, recompondo a calma - ... é de uma proporção que nunca antes pude sentir. É novo. Assustador. Jamais senti uma distorção tão poderosa a ponto de me intimidar e me fazer temer pela minha própria vida mesmo estando tão distante... era como se a qualquer momento se aproximaria de mim e me destruiria de dentro pra fora. - olhou para o deus lunar por cima do ombro, a luz das chamas cintilando seu olhar - Significa que isso é pior do que quando você veio à Terra. Você não é um oponente páreo, mas vai ter de se render, está num beco sem saída.

- Eu? Me render? Com quem acha que está falando? - perguntou Abamanu, debochante - Eu estou só começando. Hector e sua horda de miseráveis não consegue se focar em outra coisa senão em resgatar sua cara protegida com a qual falhou indesculpavelmente. Isso me abre uma brecha. A sociedade humana não foi largamente corrompida como planejei. Agora imagine-os... - estreitou os olhos - Desiludidos. Seus egos feridos. Suas posições manchadas pela vergonha. Mas nada comparado ao desespero que vai tomar conta de suas mentes quando perceberem que suas crenças e apegos não significam absolutamente nada. Eles sentirão na pele que o poder de um deus se encontra do outro lado de uma ponte que nunca atravessarão. E se tentarem, vão cair no abismo.

A ideia geral do nefasto plano já tinha sido processada por Charlie.

- Enganar as pessoas... para depois vê-las sofrerem as consequências por serem curiosas. Belo trabalho você e seus novos empregados estão fazendo. A inocência dos humanos é só um estimulante para que monstros como você se vejam um passo à frente. - disse o mago do tempo, dando alguns passos em aproximação - Mas não vai ser assim por muito tempo. E me refiro ao seu plano. Yuga pode ter cessado a destruição, mas quando ele despertar sua fúria novamente essas pessoas podem ser alvos fácies e como as armas são fontes abundante de energia... ficará ainda mais forte e o mundo que você tanto quer governar será destruído. Onde seu império renovado se encaixa nesse cenário? Melhor repensar suas prioridades antes que seja tarde.

- Ouvir a sugestão de um refém será de grande ajuda. - ironizou o deus lunar, desdenhoso.

- Ouça-me - disse Charlie, veemente e aborrecido -, suas opções vão se esgotando aos poucos, as consequências desse plano serão apenas um farol para que Yuga chegue a essas pessoas que serão envolvidas nessa loucura. A saída consciente seria aceitar confronta-lo novamente.

- Nunca! - vociferou Abamanu, aproximando seu rosto às grades enferrujadas - Disse que não sou bom o bastante para enfrenta-lo, eu concordo, eu também senti a mesma coisa. Pedi para que encontrasse meu escriba e você ficou se preocupando com a ameaça que Yuga representa a este mundo decadente. À esta altura, pode estar aliado à Hector e contado sobre o Vazio e as armas necessárias para abri-lo.

Um lampejo de relembrança acometeu o mago do tempo.

- Vazio? - indagou ele, pensativo - Esse nome não soa estranho... já o ouvi em alguma sessão...

- Porque o ingrediente final para abrir o portal é o sangue de um mortal comungado com os princípios de um deus. - afirmou Abamanu, enfático - Quem será este infeliz? - deu um sorriso presunçoso mostrando suas brancas presas.

- Vá se desanimando. - disse Charlie, sorrindo levemente, o rosto meio sujo de terra - Não sou o único que selei um pacto divino. Confio nas possibilidades e Hector é inteligente o suficiente para considerar cada uma delas e chegar até o fim para conseguir Rosie de volta.

- Ah, você é o único sim. - rebateu o deus lunar, confiante - A profetisa? Ela mal conhece meu escriba, além de ser um alvo extremamente fácil. Nem mesmo Hector pode servir, não adianta ter carregado sobras do meu poder em um objeto insignificante sem ter aceitado minha proposta. Um mortal com uma ligação sólida com um deus. Você... é... o único. - afirmou, inclinando-se para o jovem expelindo um bafo gelado pelo focinho e encarando o olhar raivoso do mago do tempo. Se afastou com uma postura misteriosa - Sabe... Andei pensando no que tinha dito recentemente sobre o tempo em inatividade e o que isso provoca em um mago do tempo. Parabéns, me convenceu.

- Diga logo o que decidiu. - pediu Charlie, a expressão fortemente séria.

- Vou antecipar o grande evento. - disparou Abamanu - Depois dos leilões, você terá um reencontro bastante caloroso com os coletores. E como presume-se que Yuga esteja preparando um golpe ainda mais destrutivo com essa trégua misteriosa e você é de suma importância para o ritual para aprisiona-lo... - sorriu de forma malevolente - Vou estar ocupado demais confiando em meus novos guerreiros.

Uma faísca de revolta avassalou em Charlie, fazendo-o segurar as grades com força e encara-lo.

- Maldito, então esse é o verdadeiro plano! - acusou ele, olhando-o enraivecido - Como os deuses abdicaram temporariamente de suas armas para o julgamento de Chronos, isso possibilita elas estarem abertas ao controle de qualquer um que toca-las. Vai controla-los como suas peças!

- É uma pena que não verei mais essa perspicácia. - disse Abamanu, confessando admirar-se com o quanto o jovem demonstrava sua inteligência e rapidez na compreensão. - E então, Charlie? Onde está a sua genuína vontade de morrer?

O mago do tempo teve de admitir que caiu em uma armadilha. Depois de saber que o seu resgate voltara a ter algum significado, o desespero retornou com a mesma força. "Eles precisam de mim! Desgraçado, usou minha própria mentira contra mim... Ele quer utilizar pessoas inocentes que tem um poder imenso nas mãos pois confia na ideia de que a fonte do poder divino vem de seu item mais precioso e elas serão recrutadas como meros soldados numa ofensiva contra Yuga. E se Hector e os outros intervirem, serão mortos, já que Abamanu também pode usar habilidades de Mollock e obviamente vai hipnotiza-las a seguirem seus comandos. Será uma catástrofe... Não posso morrer, não quero!", penso Charlie, ajoelhado e cabisbaixo diante das grades que segurava sem nem ter percebido quando o deus lunar desapareceu dali.

O vento tornara a soprar em seu desfavor e os sussurros da morte pareciam zomba-lo.

                                                                                       ***

Por uma rua de Raizenbool, Alexia, com seu costumeiro vestido de seda púrpura com alças finas, caminhava por uma calçada carregando uma sacola de papelão com alguns legumes dentro. O sol forte da manhã penetrava em seus belos cabelos ruivos alaranjados deixando-os com um certo brilho.

Relanceou um poste de iluminação à sua esquerda pelo qual passaria ignorando... se não fosse por um diferencial. "Mas o que é isso, afinal?", pensou ela, estreitando os olhos, intrigada ao desviar do percurso e direcionar sua atenção aos dizeres no papel branco colado.

Admitiu que a imagem do tridente de Poseidon desenhado no centro do panfleto foi o elemento chamativo. Leu cada palavra do anúncio.

O trecho "Itens autênticos que farão você sentir-se como um deus" a deixou um tanto alarmada.

"Quem estaria organizando tantos leilões assim para um único dia?", pensou a vidente, desconfiada.

Num ato de impulso, arrancara-o do poste com a mão direita e guardando-o junto aos legumes que comprara. Um garoto meio sardento usando uma boina cinza e suspensório sobre uma camisa xadrez preta e branca, trazendo um volume de folhas, se aproximou dela com um sorriso gentil.

- Interessada? - perguntou ele, entregando um panfleto.

A profetisa se virou, meio surpresa.

- Ahn, err... Eu já peguei um, na verdade. Obrigada. - disse ela, sorrindo, logo dando continuidade à andança em retorno ao Casarão. O garoto não desfez da expressão educada e observou-a ir em frente.

Repentinamente, um entortamento no seu sorriso precedeu um piscada que revelou olhos completamente vermelhos como sangue.

Um homem careca, segurando um jornal aberto, encostado num poste do outro lado da esquina e com vestes negras, acenou positivamente com a cabeça para o menino... que não passava de um dos coletores muito bem disfarçados a fim de fazer parecer que crianças inocentes estavam sendo usadas para divulgar um evento não legalizado. Trabalho infantil era uma proibição rígida, mas em se tratando de uma situação com certa peculiaridade claramente seriam decretadas punições dobradas.

Aquilo era apenas parte de uma tentativa para um segundo desvio de atenções, consistindo em manter as atenções de uma revoltada população diretamente ao governo, acusado de exploração de menores a favor da visibilidade de eventos com fins lucrativos, ainda mais em plenos tempos de desespero.

                                                                                        ***

QG Alternativo do Exército Britânico 

No corredor que direcionava à sala de contenção, dois soldados que faziam guarda visualizaram com estranheza a figura que se avizinhava, não demorando a exibir incômodo compartilhado.

- O que faz aqui, senhor Crannon? - perguntou um deles, rude - Esqueceu que o General rasgou seu contrato por deserção? - fez uma pausa, segurando firmemente o fuzil e cogitando mira-lo no caçador  - Se der mais um passo, seremos obrigados a prende-lo. Se reagir, atiraremos.

- Tenho um assunto importante a tratar com o General. - justificou Hector, sem intimidação - Não vim implorar por readmissão, muito menos limpar minha imagem com explicações inúteis.

- O General não quer nada com você. Vá embora, caçador medíocre.

O outro soldado chamara a atenção de seu parceiro com um toque no braço e falou em seu ouvido.

- Óbvio que ele veio ver a antiga companheira dele.

- Não diria companheira. - retrucou Hector, franzindo o cenho com um sorriso leve, chegando mais perto.

- Não quis dizer nesse sentido. - respondeu o soldado, soando ríspido - Queremos saber: Como passou pela segurança?

- Não tenho de dar satisfações, fiquem cientes de que não sairei de mãos vazias. - disse o caçador, a expressão séria, ficando bem mais próximo dos fardados que exalavam altivez. - Posso ter cortado relações com o Exército, mas quando se trata de alguém com quem me importo e que causou prejuízos às pessoas que tanto querem proteger... não me sinto no direito de ficar em silêncio ou estagnado. - fez uma pausa, olhando-os por um instante com bastante seriedade - Então, se tiverem a gentileza de chama-lo...

- Não precisa. - disse a voz áspera de Holt, que abrira a porta de entrada da sala com surpresa - Tem minha permissão concedida. - olhou para ambos os soldados - Os coloquei aí somente por precaução, com registradores de EMF ocultados para no caso de ainda haver certos infiltrados. Sabe como é... Confiar se tornou perigoso ultimamente.

- Mas a leitura não funciona apenas quando há manifestação sendo irradiada? - questionou Hector, provando que tinha jogado fora o conhecimento que obteve durante seu período como aliado.

Holt demonstrou sua costumeira apatia, a escuridão da sala atrás dele fazendo-se atrativa.

- Eu mandei fabricarem novos e avançados. - declarou ele, virando-se para o interior do recinto em seguida - Venha. Já imagino o que deseja me contar.

- Então é assim? - indagou Hector, mergulhando na escuridão que envolvia boa parte da sala - As mágoas foram sanadas? - fechara a porta.

- Não confunda as coisas, senhor Crannon. - disse Holt, puxando a corda da longa persiana que protegia a vidraça, deixando um pouco de iluminação chegar ao piso de granito cinza - Meu coração ainda sangra... por ter me arrependido de acreditar na sua diligência. Sabia no que estava se metendo e resolveu brincar com minha boa vontade quando decidiu fugir sem prestar nenhuma justificativa. - virou-se para o caçador, sisudo - Foi por medo? Vergonha de si mesmo por não se encaixar?

- Olha, General... - disse Hector, sentindo-se pouco à vontade e um tanto ansioso - Prefiro que nos foquemos apenas no atual problema. Seria melhor... que enterrássemos nossas divergências passadas, absolutamente tudo que levou ao meu banimento da aliança. Minha fuga, as omissões, as evidências que colheu do assassinato...

- Espere, que assassinato? - perguntou Holt, olhando-o com súbita desconfiança - Não sei do que está falando. Se refere à morte do soldado Heller? Ah sim, acabo de lembrar que nesse período ainda estava dado como fugitivo e não estava a par de nada. Então, que evidências são essas?

A garganta de Hector secou repentinamente. Não fazia sentido nenhum ver o General aparentemente não se recordar de ter reunido provas cabais que aproximavam o caçador de sua incriminação como autor do assassinato brutal que cometera aos indefesos tios e primos de Edgar.

"Mas o que... Ele não lembra da conversa que tivemos, do interrogatório com toda aquela pressão para me fazer confessar? Calma, devo ser cuidadoso... De fato, ele realmente expressa não saber de nada a respeito disso. Consigo ver, está sendo completamente honesto pelas suas feições. Talvez seja... Sim, é plausível, não tenho dúvidas. Áker mencionou o General na nossa reunião da semana passada com Údon, dando a entender que o visitou em algum momento após o ataque de Yuga em Liverpool. Também falou sobre o plano de limpar as mentes das testemunhas... Já se passaram dois dias desde que os danos foram reparados, então o deletamento já deve estar acontecendo ou ocorrendo em horas alternadas. Áker fez isso primeiro no General, mas, de alguma forma, pôde selecionar as memórias relacionadas ao meu crime? Ele limpou minha bagunça e nem sequer quis falar sobre isso. Vou tratar de agradece-lo depois, agora quero ir direto ao assunto...", pensou Hector.

- Ahn... Desculpe, ainda estou... um pouco perturbado com tudo que aconteceu entre nós, com Rosie, que acabo soltando coisas que não tem nada a ver. - disse o caçador, tentando parecer natural - A propósito, é sobre ela que vim falar. Você se encontrou com Áker, não foi? O arauto de Yuga.

- O que se disse ex-subordinado de Sekhmet e usa um mordomo negro como recipiente? - indagou o General, andando alguns passos até Hector - Sim, ele veio. E arauto de quem? - franziu o cenho - Yura... desculpe, não entendi bem.

- Yuga, uma divindade... - disse o caçador, fechando os olhos por um só segundo e passando rápido a língua entre os lábios, tentando manter-se tranquilo - Eu poderia resumir para o senhor entender melhor, mas acontece que o tempo é curto. Vocês não prenderam Rosie. Na verdade, o motivo pelo qual vim foi em virtude do quão estranha foi essa rendição. - pausou, desviando o olhar para a cela de contenção - Posso ver? Onde está?

- Lá embaixo. - disse Holt, caminhando até a vidraça para observar ao lado do caçador - O que quis dizer com não termos a prendido? - a ficha caíra como um raio, fazendo-o virar o rosto para ele com estupefação - Não me diga que isso...

- Sim, que bom que entendeu. - disse Hector, olhando para o corpo de Rosie, alguns metros abaixo deles na alta cela, em posição meditativa e emanando uma luz amarela em torno dele - Há quanto tempo está assim? - perguntou, sentindo o coração entrar em palpitações.

- Desde a captura. - respondeu o General, secamente, mantendo os olhos intrigados fixos no deus solar - Não disse um pio até agora. Parece ter mergulhado num estado de meditação impossível de romper. - virou o rosto para Hector - Aquela vadia arrogante me alertou sobre Campbell ser uma ameaça adormecida para que eu concordasse que somente ela é quem faria as regras desse joguinho sádico ou seja lá o quê que ela estava elaborando para salvar seu império.

- Sim, e ela se divertiu levando seu olho esquerdo como prêmio pelo pacto. - disse Hector, não prevendo a reação imediatamente espantada de Holt.

- Vo-Você sabia!? - quis saber ele, enfezando-se - Como?

- Depois que me libertaram, Rosie passou um tempo sendo treinada e orientada enquanto eu permaneci sem dar notícias até nos reencontrarmos naquela missão avaliativa no bunker. - disse Hector, sem deixar de olhar para Rosie flutuando no ar envolta daquela densa energia - Na conversa que tivemos até chegar à base dos miméticos disfarçados de sobreviventes, ela me mostrou a cópia de uma ficha completa de Betsy Rossman que surrupiou, confirmando que Sekhmet estava entre o Exército e presumimos que ela mirasse no senhor a fim de um acordo que favorecesse seu plano para mata-la.

A cabeça do General girava a ponto de uma latente dor brotar.

- Não escondo o fato de que estou bravo. Mas vou relevar, já que estamos diante de uma causa que exige nossas atenções redobradas e total apoio mútuo e você e Campbell não nos devem mais nada. Se tem algo a acrescentar sobre essa revelação assustadora, então fale.

O caçador suspirou pesadamente, voltando-se para Holt.

- Rosie foi uma vítima fatal nessa história. Existia sim algo extraordinário dentro dela. Jurei à mim mesmo protege-la desde o dia em que nos vimos pela primeira vez e meus esforços foram em vão. Mas serei direto pra não acabar falando sobre meus sentimentos em relação a esse pesadelo. - fez uma pausa, baixando uma cabeça, em seguida reerguendo-a lentamente - O ser abominável que assumiu seu corpo e mente... pode ter visto uma vantagem na prisão. Também não estranhou?

- Ainda pensava que era Rosie Campbell completamente insana com seus poderes então adormecidos. - disse o General, levantando uma sobrancelha - Seu amigo sobrenatural se recusou a entrar em detalhes porque talvez acha que faço parte da grande parcela de mortais a não endoidecerem com essa verdade alucinante. Ele até fez parecer o contrário, mas a mim ninguém engana.

"Na verdade, houve uma fase de loucura nela, mas acho que farei como Áker", pensou Hector, contendo-se para não dizer mais do que deveria.

- Rosie foi possuída pouco antes dos primeiros assassinatos de criminosos estamparem as primeiras páginas dos jornais. O que quer que sejam as intenções de Yuga com esse silêncio, essa complacência na hora de ser abordado por simples humanos... eu sugiro que tomem providências rápido. Como sugestão, acho que devem abandonar o QG.

- De jeito nenhum. - retrucou Holt, incomodado.

- Pense bem: Sem nenhuma visualização que lhe mostrasse uma conveniência, ele já os teria matado antes que apontassem as armas. - argumentou Hector - Está bem óbvio que isso muda tudo agora que a verdade está à tona. E então, General? A decisão final está em suas mãos. Está mantendo encarcerada uma bomba-relógio capaz de causar estragos imensuráveis.

- Não quero ouvir mais nada. - decretou o General, mostrando-se aborrecidamente cansado pela fala e postura - Pela primeira vez em muitos anos tenho um prisioneiro que pode cooperar com obtenção de informações e não vou perder essa chance. Nada que bajulações e alguns falsos juramentos de servidão não resolvam. Ele não sairá desta sala, a menos que eu permita. - determinou ele, veemente na expressão, dando olhadelas constantes para o ponto baixo da sala de contenção.

Hector fechou os olhos por um segundo, passando uma mão no rosto em preocupação pela decisão do chefe militar que lhe pareceu absurda.

- General, por favor, compreenda. - insistiu o caçador, tentando convence-lo - Por quanto tempo Yuga permanecerá preso não depende das suas ordens. Ele nem mesmo é mais um deus, se transformou numa criatura totalmente repugnante, embora muito poderosa...

- Já chega! - disse Holt, enfurecido - Já pode ir embora pois ouvi o que foi necessário. A decisão final é minha, como bem disse, e pretendo testar minhas opções, eu abri minha mente para esse mundo novo me imbuindo com uma noção clara de contingência. - fez uma pausa, afastando-se alguns passos - Ou, se quiser, pode continuar assistindo a essa sessão de meditação zen. Mas fique tranquilo: Seu segredo está seguro comigo, senhor Crannon. - falou, com certo amargor no tom - Afinal, somos parte da minoria dos que estão prontos.

Rendendo-se à irrevogável escolha do General, Hector o viu, com olhar lamentoso, fechar a porta da sala de controle com força.

O caçador logo voltou, com certa fervorosidade na expressão, a visualizar Yuga alguns metros abaixo na prisão específica para sobrenaturais, apoiando suas mãos na massa de concreto abaixo da larga vidraça como um espectador.

- Não vai se sobressair tão fácil, Yuga. Eu juro. Você sucumbirá... e vou resgatar Rosie, nem que pra isso eu deva morrer.

                                                                                     ***

Área florestal de Raizenbool 

A chegada abrupta de Alexia ao Casarão destruiu todo o silêncio anteriormente reinante no local.

Údon, estremecido, levantou-se da poltrona, encarando a vidente com certa preocupação, seus olhos relanceando o corpo dela para detectar algum tipo de dano. Áker e Lester estavam presentes, próximos um do outro em pé.

- Alexia, pelos deuses benevolentes, por onde esteve? - perguntou o arqueu, aproximando-se dela. - Meu aviso não foi suficientemente claro? Saídas não-autorizadas podem...

- Em primeiro lugar: Só porque estamos ligados não significa que devo ser protegida ou ficar sob vigília 24 horas por dia, portanto, com todo o respeito, eu posso me cuidar sozinha. - disparou ela, logo em seguida pondo a sacola de papelão sobre o sofá e, depressa, retirando de dentro o panfleto - E em segundo lugar: Temos um probleminha... ao que parece.  - disse, visualizando o conteúdo sem aparentar muita certeza sobre se tratar ou não de um agravante. Áker foi chegando perto, curioso, enquanto Lester a olhava intrigado - Não sei porque, mas... Pode significar uma coisa obscura. - entregou o papel à Údon que lera. - Não entendo do assunto, mas me soa incomum leilões simultâneos em 20 cidades. Todo mundo sabe que casas leiloeiras dificilmente firmam parcerias.

- O que estão ofertando, Údon? - perguntou Áker, suspeitoso.

- Aaah... Que jeito amador de fazer propaganda. Por outro lado, incrivelmente presunçoso. - disse Údon, ainda olhando para o panfleto. Logo o amassara com força, fazendo uma bolinha - Pode ficar tranquila, você só sofreu uma péssima tentativa de tapeação. - jogara a bolinha da papel para trás, o semblante calmo e desinteressado - A elite mortal terá em sua coleção artefatos lendários de matéria-prima duvidosa. Mas tudo bem, eu compreendo, muitos deles sentem-se confortáveis com qualquer enganação que estimule a obediência aos instintos pecaminosos.

- Leiloar artefatos lendários?! - disse Áker, tornando-se pensativo por um instante - Espere, me parece que isso seja... - ergueu um olhar desconfiado para Údon - Algum tipo de artimanha para nos distrair.

- O que quer dizer? - indagou o arqueu, franzindo o cenho - Não vamos fazer apostas com um mísero pedaço de papel como base. Tenho por mim que não passa de afazeres comuns de mortais...

- Talvez seja isso que eles querem que pensemos. - retrucou o arauto, enfezado.

A porta abriu-se repentinamente.

- Eles quem? - perguntou Hector, entrando com rapidez, fechando a porta em seguida. - Sobre o que estão falando? É alguma novidade? - andou em direção aos aliados.

- Aonde você tinha se metido cara? - perguntou Lester, direcionando-se à ele - Você some, não diz pra qual lugar vai, isso mexe com a gente a ponto de pensar que aconteceu uma coisa terrível, ainda mais nessas circunstâncias.

- Fui visitar Rosie. - disse ele, secamente - Conversei com o General... - olhou para Áker - A propósito, Áker, eu fico imensamente grato pelo favor. Prometo que farei de tudo para retribuir.

O arauto, satisfeito, assentira. Alexia mostrou-se curiosa a respeito.

- Mas que favor é esse? - indagou, olhando para ambos.

- É uma longa história. - respondeu Hector, suspirando ao olhar para a vidente - E não importa. Temos prioridades em jogo. Podem me dizer sobre o que conversavam?

- Alexia encontrou um papel que divulga leilões simultâneos que vão acontecer em 20 cidades do país. - disse Lester - E, pelo visto, as ofertas parecem coisa de outro mundo. Tem caroço nesse angu, na certa. Mas justo a pessoa que deveria ao menos sondar o que está por trás disso acredita ser apenas um eventozinho comum da alta. Nada demais. - desviou sua expressão insatisfeita para o arqueu que lhe devolveu um revirar de olhos.

- Pode haver uma chance desses artefatos serem falsos. - salientou ele, querendo fazer com que seu ponto fosse considerado - Áker está se preocupando à toa novamente.

- A toa?! - disse o arauto, arqueando as sobrancelhas, logo virando-se para Hector - Ouça, Hector, armas divinas estão para serem lançadas à venda como se fossem obras forjadas por mãos humanas. Isso em poucos dias após Yuga ser preso. Não te faz lembrar algo? - fez uma pausa, aproximando-se do caçador - Ocorre à você alguma ponta de suspeita a partir de um anúncio que por mais comum que pareça até a profetisa desconfiou?

Hector necessitava se concentrar nas novas informações, mas encontrava dificuldades para enevoar os pensamentos que se carregavam e fixavam na mente com Rosie sendo feita refém em seu próprio corpo por uma entidade insanamente maligna e sem a menor oportunidade de controle. Respirações fundas pareciam ajuda-lo a se esforçar melhor. Leilões de armas conhecidas com portadores ainda mais conhecidos lhe fornecia uma sensação incômoda, possibilitando os fragmentos de memória reconstituírem-se de pouco em pouco. "20 cidades... Nunca vi algo similar antes..."

- Darei uma dica: Sekhmet. - disse Áker, ajudando-o.

- O Antiquário... - disse Hector, sentindo sua mente "explodir" com a palavra-chave, sua expressão tornando-se mais séria - Os Coletores estão... armando leilões com as armas roubadas... - passou uma mão no rosto até cofiar a barba, dando alguns passos pela sala - Isso não pode estar acontecendo.

- Você disse Coletores? - indagou Údon, ficando apreensivo - Aposta no envolvimento dessas aberrações sanguinárias?

- Abamanu provavelmente quer desviar nossas atenções usando seus sócios. - disse Hector, imergindo fundo na problemática - Logo quando precisamos de somente sete das que foram roubadas. Ele considerou que fôssemos cogitar abrir o portal do Vazio para prender Yuga. Agora que seu grande inimigo se encontra fora de atividade, ele resolveu lançar esse jogo contra nós.

- Então vamos jogar. - decidiu Lester, determinado - Pode ser que ele queira desafiar a gente em conseguir essas armas até que o outro monstro saia da jaula.

- Mas são os Coletores. - disse Alexia, preocupando-se - Charlie nos avisou uma vez sobre o quão perigosos podem ser caso cruzemos com o caminho deles. Precisam ser extremamente cuidadosos.

- E nós seremos. Tive uma ideia. - declarou Hector, postando-se como um líder diante dos outros - Podemos entrar em contato com caçadores não-licenciados que foram desqualificados em vários exames. Tenho uma lista com pelo menos 30 deles.

- Ótimo, boa ideia. - disse Lester, concordante - Ah! Devíamos incluir aquele carinha americano, ele era até engraçado, o nome dele era... - tentou recordar-se, com o dedo na boca e as pupilas pra cima - ... deixa eu ver... ahn, era Joshua? - perguntou a Hector, estreitando os olhos - Todo mundo o chamava de Josh, acho que esse é o nome. Você lembra dele? Achava ele uma figura...

Aquele nome pronunciado inocentemente pelo amigo caçador foi absorvido na forma de uma dolorosa pontada no coração seguida de uma angústia que sempre vinha de acompanhante. A dor daquela perda trágica voltou à tona nas lembranças de Hector quando o mesmo segurava o corpo ensanguentado e agonizante do jovem caçador de aluguel cruelmente ferido e morto por Mollock.

- Sim... - respondeu ele, assentindo e tentando, ao máximo, disfarçar a pérfida sensação - Estou lembrado dele. Vamos torcer para que esteja disponível. - o coração apertou forte ao dizer aquilo.

- Então esse é o plano perfeito de vocês?! - contestou Údon, meio duvidante - Confiar a um exército de homens sem nenhuma experiência com ameaças extremas. Genial. Nem posso imaginar o quanto ficarão empolgados ao saberem no que consiste a missão aparentemente fácil.

Lester sentiu que devia concordar em partes com o arqueu.

- Odeio admitir, mas acho que ele tem um pouquinho de razão.

- Um pouquinho?! Odeia admitir?! Nem quando falo a verdade você me dá alguma moral. - reclamou ele, aborrecido.

- Está bem, vou tentar inventar algo que chegue o mais próximo do razoável para que eles consigam suportar sem saírem impressionados demais. - disse Hector, consciente de que era arriscado levar seus colegas de profissão à um ninho de seres que sequer eram capazes de enfrentar.

- Seja convincente, Hector. - recomendou Áker - Está pondo em jogo vidas humanas inocentes que podem não reagir com segurança caso não tenham tanta sorte.

- E daí que você vai encabeçar a lista negra de outros caçadores que vivem em outros países e você vai ter que se virar com um alvo na sua cabeça porque os caras não brincam em serviço. - alertou Lester, ciente das consequências - Mas, de qualquer forma, vamos precisar disso, não temos escolha. - falara, dando de ombros.

- Ótimo. - disse Hector, preparado - Prestem atenção. Vai funcionar da seguinte maneira: Alexia estava em Croydon...

- Sabia para onde ela tinha ido? - perguntou Údon, a voz elevada quebrando a explicação do caçador.

- Praticamente saímos na mesma hora. - revelou Alexia, a fim de tranquiliza-lo. - Acordamos bem cedo e, por coincidência, dissemos um ao outro nossos destinos.

- Ah sim... - disse o arqueu, mais calmo, logo olhando para Hector - Prossiga.

- Como eu estava dizendo... Alexia saiu para Croydon e certamente encontrou o anúncio em algum ponto. Mas tenho uma dúvida: Quantas casas de leilão foram registradas?

- Nesse anúncio só especifica duas em Londres. - respondeu ela, olhando de relance para o panfleto que, minutos antes, tornou-se uma bolinha de papel amassada.

- Aí é que está. Dois locais para cada anúncio. 20 cidades... com duas casas de leilão. O que eu sugiro é agirmos em duplas. Em outras palavras, duas duplas para cada casa numa cidade. - disse o caçador.

- Isso também me inclui obrigatoriamente? - questionou Áker, sem saber como se encaixaria.

Hector pensara um pouco antes de proferir uma resposta segura.

- Você pode ficar isento do plano, Áker. - definiu ele, firmemente.

- Mas se as coisas esquentarem, uma ajudinha cairia bem. - palpitou Lester, sorrindo pretensiosamente ao arauto.

- Não se preocupem, estarei em alerta máximo assim que começarem. - garantiu o arauto. - Contem comigo.

- Portanto, está definido. - disse Hector, esfregando de leve as mãos - Ficaremos com Londres. Lester e eu numa casa e Alexia e Údon noutra. Espero que haja tempo necessário para nos aprontarmos.

Uma fagulha de aflição tomou conta de Alexia em questão de segundos, fazendo-a voltar seus olhos para o panfleto amassado novamente.

- Eu receio que não. - disse ela, pegando a bolinha de papel e desfazendo-a. Claramente isso serviu para conferir um detalhe que ficou quase esquecido. A vidente ergueu seus olhos para o caçador após ler o trecho que tinha visto sem dar muita importância. - Os leilões vão acontecer hoje a tarde, as duas.

Hector, sério, engoliu a saliva, sentindo uma urgência pulsar forte dentro de si.

- Então é melhor nos apressarmos. Agora.

                                                                                                 ***

Palácio subterrâneo de Abamanu 

O deus lunar batera com sua mão direita na mesa quadrada em demonstração irritadiça. Um silêncio tornou a atmosfera soturna naquela sala de reuniões com seus sócios supostamente leais disfarçados de homens engravatados, atraentes e bem intencionados.

O olhar lupino de insatisfação de Abamanu fuzilou cada um deles.

- E quando eu acredito que nem chegariam perto de me desapontar, vocês me vêm com esse deslize patético! Reconheço a ousadia e a astúcia de vocês, mas o mínimo que esperava disso era ao menos um pouco de frieza nos movimentos.

- Me parece estar insinuando que só queremos... nos exibir. - disse um coletor, sob a pele de um homem de rosto jovial e caucasiano, cabelo preto partido e olhos azuis. - Somos melhores que isso. Nunca erramos a mão em nenhum passo.

- Então deixaram a desejar dessa vez. - retrucou Abamanu, mantendo sua raiva - A divulgação era para ser secreta, voltada somente a uma classe dos mortais. E o que fizeram? Um festival de anúncios em papel como se propagandeassem um parque de diversões. Costumam viver entre eles mais do que entre vocês mesmos, deveriam ter uma noção básica de como funcionam algumas leis.

Um coletor - disfarçado de um senhor de 50 anos com cabelos e barba quase branco e de óculos de armação média - protestou.

- Permitiu que agíssemos livremente nesse caso. O fato é que você não confia o bastante em nós e por isso qualquer ideia que pensarmos seria tida como um erro.

- É como eu estava dizendo ontem. - disse o careca que havia dado as informações anteriores, lançando um olhar capcioso ao deus - Isso significa que nossa diligência é subestimada. Antes não parecia tanto, mas agora vemos que isso é verdade. Somos tão empregados quanto aqueles cães pulguentos que andam com as duas pernas.

- Se sente-se tão injustiçado com meu modo de trata-los - disse Abamanu, categórico no tom -, então o convido a se retirar antes que se arrependa.

- Me pareceu uma ameaça. - dissera outro, um troncudo homem afro-descendente careca. - Será que não vê? Temos um código a zelar. Também vale para esse tipo de aliança. Ele diz que coletores unidos triunfam unidos. Em outras palavras, se um é demitido, todo o resto se demite. E então, quimera? Você quer ou não o seu grande exército de falsos deuses?

Abamanu bufara em impaciência atingida no limite, voltando novamente sua face enfezada aos sócios.

- O governo dos mortais proíbe esse tipo de atividade quando não há legalização reconhecida. - argumentou, hesitante - Além do mais, esse método pode servir como farol para alguns inimigos meus... Os amigos do mago do tempo. Precisam de sete armas para abrir o portal para o Vazio, a prisão unicamente feita para deuses, e prender Yuga no objetivo de salvar Rosie Campbell.

- Se os representantes do governo intervirem, mataremos todos. - disse o mais velho, ajeitando o óculos tocando na ponte com dois dedos - O problema são esses impertinentes que você mencionou.

- Como medida preventiva, eu proponho todos ficarem alertas a qualquer indício suspeito. - sugeriu Abamanu, com as mãos apoiadas na mesa e visualizando todos na postura correta de um líder - Façam inspeções contínuas a cada visitante. - sorriu com canalhice - Principalmente em uma certa vidente muito íntima ao mago do tempo.

                                                                                       ***

Área florestal de Raizenbool 

Para favorecerem uma entrada parcialmente segura na casa de leilão deveriam ser necessários alguns disfarces básicos. Os itens a serem verificados e selecionados encontravam-se no primeiro quarto de hóspedes do andar de cima, cujo guarda-roupa abandonado pelos antigos habitantes dispunha de uma aceitável coleção de roupas sociais masculinas e femininas.

Údon pegou uma altamente empoeirada boina preta feita de algodão. Soprou-a e viu a nuvem de poeira lançar-se no ar para perto de Alexia que se virou à ele desconfortada.

- Ah desculpe. - disse ele, num sorriso nervoso - Olha... Não querendo ser estraga-prazeres, mas, no meu caso, ainda não sou acostumado a usar vestimentas comuns dos mortais... E-eu simplesmente poderia disfarçar minha energia e entrar de fininho pelos fundos...

- Nem pensar. - reprovou Alexia, virando-se para ele com um vestido de seda bege em mãos - Isso é dificultar as coisas mais do que já estão pro nosso lado. Fazendo isso vai estar exposto de qualquer forma, podendo ser pego em flagrante e, pior, acabar morto. - alterou a expressão calma para apreensiva de repente - Espera... O fato de estarmos ligados não significa que... se você morrer primeiro eu também morro e do contrário a ligação só é desfeita?

Údon lançou um fechado sorriso de compreensão à eleita.

- Não há com o que se preocupar quanto a isso, Alexia. Mas sim, a morte desfaz a ligação. - aquilo não tranquilizou-a - Não do modo que você suspeitava, mas quando o profeta morre naturalmente. Sendo mais claro: Imagine você envelhecida e com inúmeros problemas de saúde. Entendeu agora? Assassinatos não quebram nosso elo. Só o fim natural do ciclo de vida é o que determina o fim da ligação para logo uma nova ser forjada depois. - colocou a boina na cabeça da vidente que abriu um sorriso branco seguido de um riso rápido.

- Isso não cai nada bem em mim. - disse ela, tirando a boina, ainda sorridente.

- Está bem, eu topo, agora, de vez. - disse Údon, mexendo nas gavetas para escolher suas peças, aliviando Alexia - Não conte ao Hector que relutei.

- Finalmente descobriu a vantagem de entrarmos e sairmos disfarçados. - disse a vidente, pegando mais roupas.

- Não sairei do seu lado nem por um minuto, a menos que haja uma suspeita. - prometeu ele - Vou mante-la indetectável aos malditos coletores a ponto de acharem que é uma estranha.

- Isso é mesmo possível? - indagou ela, empertigada - Digo... No caso de você fizer isso, é como uma doação temporária... do tipo que pode deixa-lo vulnerável? Se for assim, não é justo.

- Se fosse assim arriscaríamos a minha parte sugerida. - disse Údon, voltando-se para ela - Mas como, felizmente, eu posso compartilhar disso com mais pessoas, então seguimos como manda o figurino.

- Então eu, Hector e Lester podemos ter nossas identidades ocultadas, certo?

- Correto. - assentiu ele, segurando uma camisa de flanela vermelha - Com o véu ativo, os coletores ficarão crentes que estão diante de pessoas que nunca viram antes. Sim, eu sei que eles vigiaram o mago do tempo, inclusive quando o conheceram. - olhou para um canto, pensativo - Na verdade, eu previ isso. Todos eles sabem cada traço, cada feição de seus rostos milimetricamente... Mas a ocultação vai ajudar, vai conseguir bloquear a facilidade que eles tem em detectar humanos especiais.

Alexia olhou para o relógio de parede, logo em seguida apressando-se.

- São 10 e meia. - disse, voltando a retirar as roupas do móvel - Posso estar receosa, mas uma parte de mim acredita que vamos escapar sem nenhum arranhão.

"Queria muito ter essa fé, Alexia", pensou Údon, reprimindo, com todo afinco, um medo que se manifestou eufemisticamente na forma de uma simples relutância controlada.

                                                                                             ***

Grande Londres

A casa de leilão via-se relativamente lotada para o julgamento prévio de Hector e Lester, que ali adentravam como dois homens mais velhos, esquadrinhando o interior do local que exibia uma estrutura acomodável e um pouco longe dos padrões exigentes da elite social. O caçador-detetive, usando um chapéu marrom e óculos de grau médio, aliado a um casaco de pelos cinza escuro por cima de uma camisa azul marinho, olhou atento para um balcão de atendimento onde um homem engravatado e bem vestido com seu terno negro parecia revistar cada visitante da "fila".

Lester emanou certa hesitação.

- Ainda não confio muito no tal véu que o barba cinza colocou na gente. - disse ele, quase falando no ouvido esquerdo de Hector - E essa roupa tá começando a me dar nos nervos, acho que uma traça tá me picando. - reclamou, referindo-se ao suéter verde-escuro que lhe acometia uma coceira que torcia para não estragar sua desenvoltura. Em geral, sua aparência disfarçada destacava-se pelo cabelo preto molhado em gel penteado para trás.

- É nossa vez agora. - disse Hector, andando até o balcão de inspeção - Aguente firme. Údon nos assegurou que isso nos manteria fora de perigo por um certo tempo.

- Ei, espera. - disse Lester, pegando no braço esquerdo do caçador, fazendo-o parar - Limite de tempo!? Isso nunca soa bem. - atestou, o tom continuando baixo.

- Ao que pude entender, compartilhar desse recurso com mais pessoas significa menor tempo para o disfarce perfeito. - declarou Hector, olhando-o firmemente - Assim sugiro que enxerguemos Údon como... uma âncora, que nos segura até o fim.

- E três pessoas pode ser um navio muito grande pra ele segurar. - contestou ele, pessimista.

- Ele é mais forte do que aparenta. Dê um voto de confiança, ele nos provou ser capaz de coisas grandiosas. - disse Hector, preferindo andar na contramão da incerteza, logo voltando a direcionar-se ao balcão.

- Como ferrar a mente de uma pessoa, por exemplo. - retrucou Lester, acompanhando-o, sem vergonha de subestimar o arqueu.

O coletor lhes lançou um cordial e fechado sorriso de boas-vindas.

- E vocês, cavalheiros? Aposto que não vieram brincar em serviço. Parecem bons jogadores.

- Nós só queremos apenas... pegar nossos números. - disse Hector, soando forçado, o que causou em Lester um nervosismo incontrolável - Não estamos exatamente acompanhados... - olhou para o caçador estrategista que mal sabia como portar-se - ... é que... nos conhecemos na calçada, daí puxamos conversa até...

- Não me interessa. - interrompeu o coletor, grosseiro, mas mantendo o sorriso - Vou ser generoso. Ganham passe livre pelas aparências modestas, vejo que são diferentes. Fiquem à vontade. - apontou para a urna onde retiravam-se broches com números que serviam de identificação a cada comprador.

No salão dos lances, madames e cavalheiros sentavam-se tranquilamente nas cadeiras bem organizadas para o grande momento. Algumas conversas paralelas serviam para abrandar o silêncio, pois todos, sem exceção, eram competidores em uma disputa de enorme valiosidade.

Ao sentarem-se, Hector e Lester esforçavam-se para mostrar posturas que obrigatoriamente deveriam encaixar-se ao ambiente sem nenhum escapamento de traços distintos, mas tinham de se acalmar por saberem que não pareciam tão notados.

- Parece normal pra você aquele cara ter nos deixado passar só por parecermos legais? - questionou Lester, apreensivo ao sentar-se - Não consigo gostar disso. Além do mais, sua atuação foi digna de Oscar... - soltou um riso rápido e zombeteiro.

- Tentei lidar com a insegurança da melhor forma que pude. - disse Hector, justificando-se, atento ao palanque onde via-se o martelo de arremate. - Então, nesse sentido, sua insegurança também foi a minha na hora H. Mas agora sabemos que funciona. - olhou no relógio de pulso - Um minuto. Está pronto?

- Tudo tem sua primeira vez. - disse Lester, esfregando de leve as mãos ao se preparar - Até porque não é só um simples bazar de quinquilharias. São as armas dos deuses... dos deuses, cara. O que poderia superar tudo isso em valor?

- Absolutamente nada me vem a cabeça. - respondeu Hector, o semblante sério. A chegada do leiloeiro ao palco ouriçou sua atenção no máximo. Seu acompanhante trazia o reluzente elmo dourado de Hades, logo colocando-o sobre uma bandeja de aço. "Um bom começo", pensou Hector.

- Vejam só o que temos aqui. - disse o coletor leiloeiro, visualizando o artefato com entusiasmo. - Uma réplica exata do elmo de Hades, o temível deus do submundo, fidedigna a muitos livros de mitologia antigos. Esta peça nem sequer chegou a um museu de história grega, sendo anteriormente propriedade da comunidade nacional de objetos lendários e míticos que cedeu toda a sua boa vontade em aprovar este leilão. Aliás, meus parabéns a todos os membros.

- Comunidade nacional? Réplica exata? Até parece. - murmurou Lester, meio revoltado com tamanha cretinice.

- A forma como ludibriam todas essas pessoas... é de dar nojo. - opinou Hector, vendo os olhares ávidos dos compradores ao elmo, alguns já prontos para se levantar ao primeiro lance. - Estão totalmente crentes de que são mesmo itens de luxo que você pode usar para enfeitar a sala. Talvez até alguns aqui imaginem serem falsos, mas ainda assim vêm porque... a mentira é um caminho bem mais confortável. - deu um sorriso leve, balançando a cabeça em negação ao sentir dó daquelas pessoas.

O coletor pegara o martelo virando-se de frente à sua "plateia".

- Muito bem. Quem quer começar?

- Eu. - levantou-se um homem esguio com terno xadrez cinza e branco e de cabelos meio ruivos penteados de lado além do bigode de mesmo tom - 10 mil.

Lester sentira suas mãos molharem em suor.

- Pode ser eu agora? - perguntou ele a Hector, empolgado.

- Bem, não viemos aqui pra assistir, então vá em frente.

O caçador levantara-se com gosto, erguendo a mão.

- 15 mil. - disse ele, percebendo algumas risadinhas baixas pelo lance baixo. Hector sentiu-se um pouco constrangido. "Será que ninguém nesse muquifo pensou que eu sou um novato?".

O homem sorriu de forma presunçosa para ele como zombaria, voltando-se ao leiloeiro.

- 28 mil. - disse ele.

- 40 mil. - rebateu Lester, aflorando sua competitividade.

- 70 mil. - revidou o homem, olhando-o com rudeza.

- 125 mil. - disse Lester, sentindo estar levando vantagem ao notar indício de desistência no oponente.

Segundos de silêncio tornaram a atmosfera tensa.

- Dou-lhe uma... - disse o coletor, com um sorriso canalha para ambos - .... dou-lhe duas... - seu olhar focara no nervoso homem ruivo. - ... e...

- 500 mil! - disparou ele, voltando à competição com rigor.

- Então é assim né? - disse Lester, em voz baixa - 950 mil.

- Um milhão! - disse o homem, parecendo desesperado.

A disputa continuava acirradamente e Hector se recostava na cadeira preocupando-se com os valores cada vez mais altos sugeridos pelo amigo. "Está indo bem, Lester... Ele está quase com a corda no pescoço. Se vencermos, a parte difícil certamente será falar com meus tios.".

                                                                                       ***

Para o alívio e sorte de ambos, a inspeção ocorreu dentro das expectativas. Alexia e Údon viram disponíveis duas cadeiras na última fileira e sentaram-se com rapidez na casa de leilão que mais se assemelhava a um museu de menor porte, com uma decoração elegante em tons de sépia e dourado.

- Mais calma agora? - perguntou Údon, falando baixo e inclinando-se de lado, sentado à esquerda dela.

- É, você venceu, estou convencida. - respondeu a vidente, apertando o vestido com as mãos apoiadas nas coxas em nervosismo. - Me desculpa, eu fiquei com receio, mas no fundo vi que te subestimei, então não achei justo. - olhou para ele - Não quer dizer que não confio em você... Ahn... quero dizer, ainda não totalmente. Talvez numa escala de zero a dez... sete está bom pra você? - estreitou os olhos.

- Pouco mais da metade é reconfortante. - disse o arqueu, satisfeito, seus ondulados cabelos grisalhos prendidos para trás por um elástico. Seu terno marrom - calças de mesma cor - por cima de uma camisa branca e gravata vermelha e larga foram elogiados pela vidente por terem caído tão bem. Um som de um pequeno sino tocou. O jogo estava para iniciar-se. - Fique atenta. - disse ele, focado.

O coletor subira ao palanque esbanjando bom humor.

- Boa tarde, senhoras e senhores. Devem estar ansiosos para obterem valiosos itens olimpianos. Garanto aos vencedores que no final... - falou com ar de mistério - ... se sentirão mais importantes.

"O que aquela besta infernal está planejando?", pensou Údon, atentando-se a última frase. "Que tipo de vantagem esse leilões oferecem? É tudo um plano para competir conosco na batalha contra Yuga? Pra quê armas oferecidas a mortais descuidados?"

- Bem, iremos iniciar, como aperitivo, com este brilhante artefato. - disse o coletor, estalando os dedos para seu companheiro trazer a primeira arma a ser leiloada. Viu-se um cetro prateado com linhas sinuosas destacantes. - Chamado de cetro alquímico. Esta beleza de arma, segundo constam fontes em livros de alquimia primitiva, ele tem um potencial de amplificar os poderes da lendária pedra filosofal. Daí a pergunta óbvia é: De que serve o cetro sem a pedra? A utilização dele para algum propósito não me parece razoável vindo de vocês, então posso convence-los dizendo que ele foi avaliado em 2 milhões em três leilões secretos na América, mas a Grande Depressão desanimou compradores persistentes, o levando a ser um artigo de luxo para exposição em algum museu até ser transferido para a Europa e... voilá, aqui está ele, numa oportunidade única de ser adquirido a um lance que corresponda ao seu valor histórico.

Uma mulher trajando uma túnica negra com capuz - que ocultava parte de seu rosto - levantou-se de repente à três fileiras de onde Alexia e Údon estavam.

- Dou dois milhões e meio por ele. - disse ela, firme na decisão. - Me parece adequado, ainda que nenhum valor em dinheiro se compare ao da alquimia. - levantou a mão direita na altura do busto - Dois milhões e meio. É meu único lance.

O coletor a fitou com um olhar malicioso e um sorriso aberto e enigmático, pois adorava ver a confiança estampada no rosto dos negociantes como se fossem imbatíveis.

- Alguém deseja confrontar o lance desta dama? - perguntou, com o martelo a ser batido.

Um silêncio imperou por alguns segundos, embora ouvissem-se cochichos e resmungos.

Alexia, aos poucos, percebia um detalhe na mulher que desfocou sua atenção na situação geral. Especificamente, na braçadeira que ela usava no braço esquerdo.

- Acho que já vi isso antes... - disse ela, pensando alto, fazendo Údon estranhar.

- O quê? Do que fala?

- Esse símbolo na braçadeira que ela tem, veja. - disse a vidente, apontando discretamente - Me soa familiar. Lembra de quando eu estava mantida prisioneira por Robert Loub, em plena Síndrome de Estocolmo. Me lembro de ter visto, pessoas com esse símbolo, seja em broches, pingentes ou até mesmo tatuadas nos pulsos. Ele recebia visitas daquelas pessoas com certa frequência. Nunca soube porque. E se eu perguntasse, me puniria.

O tal símbolo nada mais era do que uma estrela de oito pontas que parecia um círculo com flechas apontadas em oito direções.

- Pareciam um tipo de... sociedade secreta, como os Red Wolfs. - complementou ela, suspeitando. - De alguma forma, tiveram papel importante na criação das quimeras, mas é só minha teoria.

- História bem intrigante - disse o arqueu -, mas não vem ao caso agora. O leilão de verdade só começa quando uma arma divina aparecer.

- Mas ela é um deles. Se quer tanto o cetro, com certeza não é para algo bom. - disse ela, insistente.

- Concentre-se apenas na nossa missão. - disse Údon, enfático - Estamos a mercê de coisas bem mais perigosas. E nem pense em procurar sarna pra se coçar em relação a essa suposta sociedade secreta depois que vencermos aqueles dois. E nós iremos, não duvide.

O martelo batera confirmando a venda.

- Muito bem. Vendido para a senhorita...

- Dora. - disse a mulher.

O cetro fora retirado da bandeja, dando lugar a outro artefato mais chamativo.

- Chegou a hora de vermos quem dará o maior lance neste... estupendo e magnífico... arco de Apolo.

Ambos, arqueu e eleita, entreolharam-se preparados e assentindo.

                                                                                         ***

- Vendido! - disse o coletor, batendo forte com o martelo e apontando para Hector com uma piscadela.

Alguns suspiros e murmúrios de frustração puderam ser ouvidos de homens e mulheres que participavam do acirrado confronto de lances para o cobiçado tridente de Poseidon que reluzia em sua cor dourada estonteante, possuindo o tamanho de um ser humano com 1,80m.

Lester mal aguentava-se de empolgação pela vitória, a segunda conquistada após algumas perdas.

Hector, por outro lado, não exibia felicidade no semblante. O caçador sentou-se novamente, a postura insegura voltando com força maior.

- A sorte parece conspirar pro nosso lado agora. - disse Lester, esperançoso. - Já temos o elmo de Hades, agora o poderoso tridente de Poseidon... um dos mais bonitos, diga-se de passagem. Quero ver qual o próximo.

- Melhor não cantar vitória antes do tempo. - alertou Hector, pouco otimista - Estamos aqui há quase duas horas e nesse período nós fomos o que menos contaram com a sorte no meio de mais de trinta pessoas tendo cinco delas ganhado duas armas cada uma. Perdemos dez armas olimpianas.

- E daí? Vai que Alexia e Údon ou os caçadores estejam com melhor sorte. - palpitou Lester, reprovando o pessimismo do amigo. - Vamos ter que arriscar, de qualquer forma.

- E que maneira inteligente para arriscar está pensando? - perguntou Hector, não depositando tanta confiança que o amigo esperaria para sua saída.

- Darmos um lance lacrador na próxima arma que vier e a gente esperar terminar para assinarmos os papéis de confirmação da compra. Saímos com três armas imaginando que os outros conseguiram, no total, umas quatro.

- Não, isso já é demais. - rejeitou Hector, erguendo levemente uma mão em sinal de desaprovação da ideia proposta - Essa impressão que tenho deles estarem nos testando, colocando armas mais atraentes e mais valiosas como um padrão, só me diz que... suspeitam que estamos aqui e acreditam que não teremos cacife o bastante para darmos lances maiores a cada arma que surgir. Julgam os valores de acordo com seus gostos. E também não vamos esperar que os outros tenham conseguido mais do que nós, isso é abusar da pouca sorte que temos.

- Ah é? Então me diga sua grande melhor ideia senhor Plano B.

- Está mais para D, de desespero. - disse Hector, vendo mais uma pessoa conseguir uma arma não-olimpiana em um lance de dez milhões. - O fato de alternarem armas de deuses gregos com de outros panteões também reforça minha teoria. Falta apenas meia hora para acabar. À essa altura é quase impossível vencermos uma terceira vez. - olhou para Lester como quem pede para manter uma promessa - Vou confiar em você pra uma parte meio perigosa.

- Isso depende. Perigoso, nesse cenário, parece ter mais a ver com você. - disse ele, temendo a ideia.

Hector aproximou sua boca ao ouvido direito de Lester para contar sobre a medida extrema a ser tomada naquele estágio preocupante do plano.

O caçador-estrategista se levantou calmamente, indo em direção a um dos seguranças que faziam guarda nas entradas do corredores. Educadamente, ele, entrando no "personagem", foi sem levantar desconfiança por parte do truculento homem de terno.

- Err... Oi, eu... eu só queria saber onde fica o banheiro.

O segurança abrira a porta do corredor.

- Primeira porta, à esquerda. - disse ele, secamente.

- Ah, obrigado. - disse Lester, andando a passos desengonçados e tocando nas partes íntimas ao fingir estar apertado. O guarda o olhou estreitamente, achando estranho o jeito de andar.

Ao perceber a porta ter se fechado, o caçador olhou receosamente para trás, sentindo a liberdade lhe possuir de modo incontrolável. Desfez da postura desajeitada e caminhou na direção oposta a mostrada pelo guarda.

Arriscou na primeira porta do corredor á direita. "Deve estar por aqui". Antes disso olhou para trás, comprovando que o corredor apontado pelo segurança de fato continha banheiros, sendo mais curto.

No entanto, sua mão direita parou poucos centímetros da maçaneta... ao escutar uma voz autoritária que lhe provocou arrepios na espinha.

- Pelo visto, nossos contratados não sabem dar informações corretas. - disse um coletor parado atrás do caçador com um sorriso infame. Lester virou-se alarmado, mas não se intimidando tanto - Já eu, por outro lado, sou bom nisso. Aqui é o lugar onde lixos como você não entram. Agora é onde você morrerá. - fez crescer uma garra negra de seu dedo indicador esquerdo, apavorando o caçador que mal conseguia exprimir um grito por socorro.

                                                                                    ***
Hector conferiu no relógio o tempo passado entre os dois últimos lances e a falsa ida de Lester ao banheiro. "Essa não... Já faz oito minutos que ele saiu.", pensou ele, em seguida visualizando uma porta sem seguranças e aproveitando as atenções voltadas unicamente a um confronto intenso de lances pelo báculo de Atena envolvendo dez pessoas. O segurança que guardava a porta por onde Lester entrara havia sumido. Discretamente seguiu até a porta do lado direito, suas pupilas esquadrinhando cada ponto onde não pudesse haver nenhum sinal de alguém atencioso aos arredores.

Entrou, sem produzir um único barulho.

                                                                                     ***

Lester saiu em disparada para além do corredor, escapando da garra veloz do coletor que quase o atingiu no ombro.

- Hum, boa rapidez. - disse o coletor, falsamente surpreso, a garra diminuindo.

Teleportou-se em nanosegundos, barrando a passagem do caçador que assustou-se recuando vários passos depressa.

- Mas o que acha da minha? - disse o coletor, sorrindo de canto.

Lester encheu-se de coragem para, num ato ousado, tentar desferir um cruzado de direita, mas que fora que parado com a mão do coletor que começava a apertar seu punho fechado. De repente, soltou um gemido de dor, ao sentir os ossos da mão apertarem como se estivessem para quebrar.

- Tolo. - disse o coletor, balançando a cabeça negativamente, logo depois empurrando-o com telecinesia, fazendo-o cair de costas no chão com certo impacto e deslizar. Mantendo as mãos baixas, soltara uma garra de seu indicador direito que tocou o piso em cerâmica quadriculado e, enquanto andava até o caçador, passou arranhando-o, produzindo um som torturante como forma de intimidação. - Hora de termos uma conversinha entre ladrão profissional e amador.

                                                                                   ***

Hector deambulava com aflição pelo labirinto de corredores à procura do amigo. A cada entrada temia encontrar uma parte do corpo decepada do caçador como provocações, tendo em vista o nível de malevolência daquelas criaturas.

- Onde diabos você se meteu, Lester... - dizia ele, baixinho, adentrando em mais um corredor.

Fora surpreendido por dois homens de preto cujos olhares facilitavam um reconhecimento instantâneo e amedrontador. Ele escuta um pequeno alvoroço em um corredor próximo.

- Tudo bem, que se dane. - disse Hector, tirando o chapéu e os óculos, desvencilhando-se de parte do disfarce para enfrenta-los. - É lá que estão não é?

- Que tal negociarmos o seu amigo pelas armas? Estamos tentando valorizar nosso hábito de ostentação. - disse um deles, ameaçadoramente chegando perto.

- É mesmo. Tortura é bem estressante. - disse o outro, mostrando as enormes garras pretas e finas.

Repentinamente, ambos os coletores irradiaram luzes amareladas que queimavam seus olhos e bocas.

Hector entreviu, ao proteger o rosto da claridade com os braços, duas mãos familiares sobre os ombros dos malfeitores.

Ao caírem, a figura de Áker se mostrou visível e imponente.

- Você parecia ter medo deles, mas pode mata-los facilmente? Não entendo. - disse Hector, ora olhando para os corpos combalidos, ora olhando para o arauto de Yuga.

- Fazer isso em um coletor é o mesmo que deixar alguém inconsciente. - revelou Áker - Só deuses, com uma grande carga de energia, podem destruí-los.

Interrompendo, mais dois deles surgiram em aproximação agressiva.

- Rápido Hector, vá até Lester e salve-o. Cuido deles. - disse Áker, preparando-se.

- Se estes não morreram, vai ficar mais vulnerável. Não pode enfrentar quatro de uma vez. - disse Hector, discordante.

- Não se preocupe comigo, o tridente e Lester estão esperando, portanto vá, agora! - disse Áker, com aborrecimento, logo em seguida erguendo a mão direita e mandando o caçador ao exato corredor onde deveria estar, com a habilidade chamada de teleporte banidor.

                                                                                       ***

Arrebentado por uma sequência incontável de socos, Lester admitiu que nunca antes sentiu-se tão impotente e fraco mediante a um ser sobrenatural em toda a sua trajetória.

O coletor deliciava-se com cada ferida gerada pelos golpes, mantendo-o contra a parede como um aquecimento para um esquartejamento posterior. Suas mãos encontravam-se banhadas em sangue.

- Por que tá demorando, desgraçado? - indagou Lester, cuspindo um volume de sangue. Sua face estava marcada por hematomas e cortes - Põe suas garras de fora... Acaba comigo se você é tão implacável como me disseram que é.

- E nós somos. - respondeu o coletor, sibilante, pronto para o próximo soco - Mas às vezes preferimos uma diversão longa o bastante para que o alvo se dê conta de sua insignificância. - rira zombeteiramente - Então quer dizer que é um deles, não é? Achavam mesmo que com tamanha imprudência conseguiriam sair como entraram? Aposto que sabiam que isso ia acontecer para obterem uma informação sobre o plano-mestre. Se é assim, vou sanar suas dúvidas: O que nosso aliado tem em mente para esses vermes é...

A frase foi bruscamente cortada quando Hector, em supervelocidade, o pegara pelo pescoço, vindo de outro corredor, colocando-o contra a parede. O que Lester viu e sentiu ao ter seu corpo largado foi apenas um vulto super-rápido e uma fina corrente de vento, respectivamente.

Hector tivera de despertar sua licantropia controlada para ao menos fazer frente aos coletores por um tempo indeterminado, embora soubesse que era pouco.

- E veja só o que me aparece... - disse o coletor, sorrindo com canalhice, agarrado pelas mãos fortes do caçador possuído pela fúria lupina que rosnava com as presas à mostra e os olhos com pupilas reduzidas e sem íris. Lester tentava se recompor enquanto assistia ao embate, notando uma aura diferente no companheiro.

O caçador o jogara à uma distância considerável no corredor. Ao virar-se para Lester, sua face foi modificando aos poucos ao voltar ao normal, nem um pouco surpreso pela reação do amigo.

Sem espera, o pegou, transformando-se novamente, entrando em uma das escuras salas que serviam de depósitos para as armas. Pegara o tridente, porém, o coletor surgira na entrada fechando a porta telecineticamente.

- É seguro dizer que a brincadeira acabou.

- Ai caramba... E agora? - se perguntou Lester, olhando de soslaio para Hector licantropo com certo estranhamento. - Me dá isso aqui. - tomara o tridente das mãos de Hector, apontando-o para o coletor.

- É melhor cair fora senão vai virar poeira cósmica! - bradou ele, ameaçando. - Tô avisando! - segurou o mítico artefato com as duas mãos.

- Lester, o que pensa que está fazendo? - questionou Hector, puxando-o pelo braço. Mas o caçador resistiu e insistiu no ato, esperando algo impressionante acontecer.

O coletor, por sua vez, desatou a rir com escárnio por vários segundos.

- Estou segurando o vômito para não ter que sujar este lindo terno... mas está difícil. É... é simplesmente patético. - riu novamente - Apenas mortais sob influência divina podem usufruir do poder de qualquer arma. Um lixo como você por acaso foi tocado por um deus? Hipnotizado?

- Não, mas quase fui morto por um. - retrucou Lester. - Independente de ser ou não ligado, não vou desistir.

- Por misericórdia vou facilitar pra você: Largue o tridente e direi qual o plano. - chantageou o coletor. - Sinto que sou o único do meu bando que apela para isso, então considere-se um homem de sorte.

- Lester é melhor fazer o que ele diz. - aquiesceu Hector, voltando ao normal.

- Tá brincando?! Quero acreditar que a gente já venceu essa.

- Não teremos certeza disso se morrermos aqui! - disse o caçador, irritando-se. - Além do mais, Abamanu quer as armas leiloadas para alguma artimanha contra Yuga, isso envolve pessoas inocentes. Precisamos saber mesmo que só uma pequena parte dessa loucura tenha dado errado.

- Eu já disse que não vou ceder! - vociferou Lester, sentindo uma bravura inexplicável percorrer sua alma. Rastros fosforescentes de energia de cor azulada passeavam pelo tridente indicando algo extraordinário, o que, de repente, alterou a expressão do coletor de infâmia para descrença. A energia ficara mais realçada e intensa até ser rapidamente canalizada às três pontas.

Por fim, o produto final viera na forma de uma descarga elétrica disparada das pontas do tridente contra o coletor incrivelmente assustado com tal manifestação. O coletor fora pulverizado pelo raio devastador, suas cinzas esparramando-se pelo chão.

Lester encarou aquilo boquiaberto. Hector estava sem palavras. Como o tempo urgia, precisavam agir imediatamente para sair com os dois prêmios.

- Vamos. - disse Hector, pegando-o pelo braço - Áker vai cura-lo. Falta pegarmos o elmo.

- E fingir que isso não aconteceu? - contestou Lester, franzindo o cenho, sentindo-se por baixo diante de seu incrível feito.

- É, talvez. - respondeu Hector, transformando-se e saindo da sala em supervelocidade, arrastando Lester com ele para irem ao encontro de Áker.

                                                                                        ***

O leilão número dois em Londres terminara com a vitória de um homem que obteve o mjonir, o famigerado martelo do deus do trovão Thor. A dupla dinâmica conseguira somente três armas.

"Agora onde ele se enfiou para contar a novidade?", pensou Alexia, sentindo-se desleixada por não percebido a ausência de Údon antes. "Me deixou aqui achando que eu fosse dar conta sozinha...".

Levantou-se ao mesmo tempo em que as pessoas das fileiras próximas que estavam para saírem, passando por algumas delas pedindo licença.

"Não... Ele não está tentando isso agora, é loucura, é claro que não!", pensou ela, entrando escondida em dos corredores que levavam aos depósitos. A cada passo seu temor apenas elevava-se. Por um instante, cogitou chamar pelo nome do arqueu, mas desistiu por ser inconveniente.

Parou entre dois corredores, o espaço imerso em um silêncio pressionador. "Como oculta sua identidade, isso praticamente bloqueia nossa ligação. Nem consigo sentir sua energia... Caso ele estragasse o disfarce, sim. Será que...".

Cortando seu pensamento abruptamente, a vidente sentira algo atravessar seu corpo, mais precisamente na região da barriga. Baixando seus verdes olhos aflitos, viu uma ponta negra parecida como uma raiz de uma árvore apodrecida.

O coletor se revelara por detrás da jovem ao deixa-la cair retirando a garra.

- Bem que eu estava sentindo um odor fétido de intrusos. - disse ele, debochante ao caminhar na direção da vulnerabilizada profetisa.

Alexia tentou virar o rosto para vislumbrar o rosto do autor daquele cruel ataque, sentindo a mão que pressionava a ferida encher-se de sangue. Tentou rastejar demonstrando seu completo desespero e instinto de sobrevivência.

- Não... - balbuciava ela, o tom choroso e com uns fios dos cabelos ruivos alaranjados em sua face.

- Ah sim... Vamos nos divertir bastante. - disse o coletor, estralando os dedos em aquecimento. O som reproduzido era similar ao de galhos fragmentando.

Porém, outro som ainda mais potente ressoou de modo violento no recinto, afetando Alexia que tapou os ouvidos com os dentes cerrados e os olhos fechados sinalizando o quão insuportável era sentir aquela onda sonora extremamente aguda transpassar o canal auditivo.

O coletor caiu ajoelhando-se com as duas mãos na cabeça e gritando em dor.

Údon estava atrás dele com o braço direito esticado e a mão em forma de "garra", executando sua onda psíquica com toda a força que reuniu para salvar sua escolhida.

- Ora, seu... - dizia o coletor, sendo torturando pelo som bárbaro e de seus olhos saindo filetes de sangue que escorriam.

- Cadê as nossas armas? - perguntou Údon, severo, mantendo o nível.

- Vai se ferrar! - retrucou o coletor, ousadamente, mal aguentando-se.

- Você quem sabe. Ou nos diz onde...

- Údon! - chamou Alexia, o tom suplicante - Para! Chega!

- O quê?! - indagou ele, voltando sua atenção à vidente. - Alexia, o que você...

- Também estou sendo afetada! Por favor, pare! Não vai adiantar, ele não vai falar!

O arqueu cessou a onda psíquica rapidamente ao ouvir o apelo da jovem. O coletor, por outro lado, se recompunha com facilidade, ofegando intensamente.

- Oh, não... - disse Údon, após teleportar-se para perto de Alexia, percebendo o ferimento profundo ao ajuda-la se levantar. - Eu sinto muito...

- Não diga nada. Só me tira daqui, por favor. - pediu, aos prantos.

- Suas armas!? Não me faça rir... - disse o coletor, erguendo sua cabeça mostrando estar, literalmente, com sangue nos olhos na expressão colérica. - Tenho que admitir... são poucos os que conseguem a façanha de nos enganar assim... desses poucos nenhum sobreviveu para contar. Farei com que não seja diferente com vocês. - levantou-se por inteiro.

Para fugir de um inesperado ataque, Údon teleportou-se com Alexia a uma sala que, graças a quebra do véu, emanava energias significativamente conhecidas.

O arqueu entreviu na escuridão três armas. Fez com que Alexia  apoiasse-se na mesa pata pega-las.

- Logo isso vai passar. - disse ele, reunindo-as. - Aguente firme, por favor.

- Vai rápido... - disse Alexia, queixando-se da forte dor provocada pela lesão. - Estamos expostos... mais deles vão vir...

- Hora de irmos. - disse Údon, pegando no braço esquerdo dela.

Entretanto, o mesmo coletor aparecera no exato momento.

- Não vão escapar.

- Tarde demais, patife. - provocou Údon, teleportando-se no mesmo segundo que ele alongara uma de suas garras... que não fora rápida o bastante, assim penetrando na parede.

- Não! Droga!! - vociferou ele, esmorecido.

                                                                                         ***

Área florestal de Raizenbool 

A profetisa havia sido deitada bruscamente no sofá por Údon que, vendo-se numa situação desesperadamente aflitiva, fitava a eleita arquejar em dor profunda tocando em seu ferimento aberto na barriga que manchava seu vestido bege de seda com o sangue fresco. A sensação de não saber por onde começar o deixava mais irrequieto, suas pupilas frenéticas visualizando a ferida que não cessava sua hemorragia. "Aquele maldito coletor... Sabia que estava acontecendo algo, mas acabei forçando um lado guerreiro que não faz parte de mim e por causa disso ela está assim... esteve sozinha... eu não fui feito para o campo de batalha e neguei meu verdadeiro instinto. Se não fizer algo agora, vou me odiar para sempre!".

- Alexia, por favor, tente aguentar só um pouco mais...

- Não... - dizia ela, ofegando e gemendo - Não pode... Não pode me curar? - perguntou, olhando-o com semblante desconfortado - Olha... É melhor ir se acalmando. Já estive em situações piores...

- Pressione bem forte. - disse o arqueu, tocando na mão esquerda da jovem e levando-a à ferida para estancamento. - Não diga isso. Um mortal indefeso encontra sua sentença de morte certa diante de um coletor com as garras à mostra. Mas vendo pelo bom lado... fizemos o nosso melhor.

- Sim... é verdade. - disse ela, com os olhos fechados e sorrindo fracamente.

Áker, Hector e Lester surgiram repentinamente por teleporte do arauto.

- Alexia... - disse Hector, preocupando com o estado da vidente ao se aproximar. - O que aconteceu? - perguntou à Údon.

- O previsível. - respondeu o arqueu, mantendo o estancamento - Ela tentou obstruir minha parte.

- Você é ingrato, sabia? - disse Alexia, irritada, os dentes trincados devido a dor - Fala como se pudesse bater de frente com aqueles idiotas e eu fosse sua boneca que devia ficar quietinha no canto.

O telefone tocara nesse instante e Lester fora atender de imediato.

- Que esse tipo de teimosia não se repita. - orientou Údon. - Sei que foi intencionalmente altruísta, mas o fato é que estava além do que podia enfrentar. Meu medo de perde-la por aquelas aberrações quase pôs tudo a perder.

- Deixe comigo. - disse Áker, prestando-se a cura-la. Údon cedeu passagem, afastando-se enquanto o arauto direcionava sua mão direita à lesão grave. Uma luz amarelada emanou da palma, cauterizando todo o ferimento.

- Obrigada. - agradeceu Alexia, comovida, levantando-se com a ajuda de Údon.

Hector pusera as três armas sobre a mesa próxima da entrada da cozinha, contudo observava-as com suspiros de desalento. Sua atenção, aos poucos, desviava-se para o tom da conversa que Lester estava tendo e que, por sinal, aparentava ter um caráter de boas novas.

- Está ótimo, então. - disse o caçador - Pode ser hoje à noite, às dez, de preferência. OK. Até. - desligara, logo em seguida esboçando um semblante que forçava-se para soar misterioso. - Boa notícia: Os caras conseguiram três armas, virão à noite. - foi andando até o grupo - Má notícia: Dois desapareceram sem nenhum vestígio. O que falou comigo disse que fez o possível. - olhou para Hector - Até esqueci de perguntar: Que história você inventou pra convencer todos eles?

- Criaturas sobrenaturais não identificadas que esperam criar um exército de pessoas controladas mentalmente com posse de artefatos mágicos destrutivos. - respondeu Hector. - Não revelei fontes.

- Nem um pouco original, mas o que importa é que sobrevivemos. - disse Lester, demonstrando alívio. Andara até a escada - Bem, se me dão licença, vou indo tirar esse disfarce e voltar a ser o verdadeiro Lester.

- Acho que ele está certo. - aquiesceu Alexia, ao lado de Údon sentindo-se perfeitamente recuperada - O pior já passou. Mesmo aos trancos e barrancos, ficamos um passo à frente. Já temos as seis armas de que precisamos.

- Engano seu, Alexia. - disse Údon, voltando-se para Hector - A parte difícil ainda nem começou. E são sete armas , não seis.

- Ah, é verdade. Essa confusão toda me fez esquecer. - disse ela, pondo uma mão na cabeça.

- Eu poderia teleporta-lo agora mesmo - disse Áker - ao Palácio de Abamanu... por via das dúvidas.

- O que quer dizer? - perguntou Hector, franzindo a testa.

- Dois desaparecimentos transparece algo bem óbvio. - argumentou o arauto, andando vagarosamente pela sala - Esses caçadores podem não ser tão confiáveis quanto pensam. Lester fez parecer que agiriam em retaliação caso houvessem baixas nessa tarefa.

- Mas eles caíram no conto de Hector, o que torna improvável que vão culpa-lo por terem os colocado numa cilada. - disse Údon, contra-argumentando - Porque... venhamos e convenhamos, era mesmo uma cilada.

- O ponto em que quero chegar é: Se exigirem uma troca. Uma informação, sendo exato. - disse Áker - No nicho de caçadores deve haver bastante desconfiança.

- Tem razão, Áker. - disse Hector, o tom sério - Mas talvez não signifique que por causa de dois sumiços vão me caçar ou virão até aqui atrás de informações ou, pior, me sequestrar exigindo uma confissão em troca das armas. São caçadores honestos. Perderam companheiros, mas foram orientados a não irem fundo demais nisso tudo.

- Então garante que vão seguir seu conselho à risca? - questionou Áker, levantando uma sobrancelha.

- É o que espero. Por mais que me doa ter se aproveitado da inocência deles. - disse o caçador, ruminando o sentimento vergonhoso que se fez necessário lidar para seguirem em frente. Parecia que a sensação pérfida de traidor o perseguia recorrentemente. Rosie... A Legião... Caçadores inexperientes... Restava saber se a terceira proporcionaria consequências temidas por Áker.

- Lembre-se que é por um bem maior. - disse Údon. - De qualquer forma, você decide o momento em que deve se encontrar com Abamanu e negociar. A sua espada é o último item que falta.

- E se acontecer o que Áker supôs? - perguntou Alexia, temerosa. - Se assim for, toda a chance que temos vai por água abaixo.

- Não vai acontecer. - disse Hector, com firmeza. - Amanhã mesmo irei. - determinou, olhando para o arqueu e o arauto - Mas saibam que... ainda não estou plenamente confiante. "Desculpem-me não ser tão honesto, mas uma grande parte de mim acredita que Rosie pode ser chamada, que está lá dentro gritando por ajuda... e não há nada que me impeça de tentar.".

                                                                                          ***

Croydon 

Aquela correspondência não parecia estar largada próxima à porta há tanto tempo. Eleonor estacou quando passava para subir as escadas, visualizando, com suspicácia, o envelope retangular branco que obviamente fora passado pela soleira, um gesto atípico dos carteiros pois existia uma caixa apropriada para depositar, como todas as outras casas vizinhas.

Rendida à curiosidade, a bruxa, afastando uma mecha do seu cabelo castanho liso para atrás de sua orelha direita, caminhou para apanha-la. "Já é pouco comum eu receber cartas. Mais estranho ainda ser desse jeito.".

Abrira o envelope, tirando uma carta dobrada ao meio. Seus belos olhos verdes realçaram-se ao perceber a importância do conteúdo.

"Espero que ainda esteja viva para ler. Aqui é a Evelyn. Lembra de mim? Fomos colegas de quarto no convento... antes de sermos expulsas pelas nossas práticas indecentes. Não escrevi isso para te relembrar do passado, sei o quanto isso atormenta nós duas, mas para que vivamos um novo presente. Juntas. Deve se lembrar de Cassandra, certo? Pois bem... Tive a péssima sorte de esbarrar com ela há alguns dias. Eu não sabia que ela tinha descoberto que éramos cúmplices. Deve ter fontes, espiãs em toda parte, em cada esquina pode haver uma delas pronta para vigiar cada passo se nos reconhecerem. Portanto, quero lhe fazer um pedido sincero, velha amiga: Venha até mim. Cassandra só não me matou porque foi você quem cometeu o erro de tomar o soro por benefício próprio. Aliás, o erro foi meu. Aquela ideia idiota foi minha. O que faz de você um bode expiatório. Eu quis te retribuir com um presente que provasse minha gratidão eterna por você. Aquele frasco não apareceu magicamente debaixo do seu travesseiro. Digamos que... entrei sem autorização. Me desculpe. Desculpe ter ido embora sem me despedir, eu juro que foi com a melhor das intenções, nem passava pela cabeça a hipótese de você se deixar seduzir pelo poder. Mas não te culpo. Quem nunca tem seus momentos de fraqueza? Você é humana. Não posso julga-la, éramos bruxas egoístas e famintas por aprovação e poder. De fato, todas nós éramos iguais, traçando um só destino. É só o que peço a você. Me procure. Vivo em um refúgio subterrâneo que achei depois das ameaças de Cassandra. O endereço completo você pode ver abaixo: 

[...]

Espero revê-la em breve. 

Evelyn."

Eleonor terminara de ler a carta com olhos marejados e a mão tapando a boca em demonstração de pura perplexidade. Uma lágrima caíra sobre o papel.

"Evelyn... Por que? Por que tinha que fazer isso, sua grande estúpida! Mas está bem, não vou negar um reencontro. Eu vou... Eu entendo você. Foi inocente demais. Seu erro foi a causa do meu. Bem que eu já estava imaginando que meu dias nessa casa estariam contados...", pensou ela, olhando para a sala de estar ao seu redor. "Amanhã mesmo vou embora daqui. É, Alexia... Acho que aquela sua carta foi sim um adeus.".

                                                                                          ***

QG Alternativo do Exército Britânico

Apreciando a beleza do luar que transpassava a grande janela quadriculada de seu gabinete - localizada poucos metros atrás da mesa -, General Holt dava goles demorados em seu uísque de boa qualidade. Ao perceber que acabara, suspirou longamente como quem não consegue vencer o tédio, andando à sua mesa depois para saciar-se com mais um copo.

A conversa tida com Hector mais cedo ainda estava fresca na memória como se tivesse ocorrido há poucos minutos. Antes que inclinasse a garrafa à borda do copo, um de seus subordinados entrara trazendo um envelope de papelão.

- Com sua licença, senhor. - disse ele, logo ao entrar, fechando a porta em seguida. Encaminhou-se ao chefe militar em passos firmes, destacando a encomenda - O resultado do plebiscito.

Holt franziu o cenho de início, mas um lampejo na lembrança o fez recordar da ideia que tivera há dois anos quando os ataques de lobisomens à Raizenbool e Londres ganharam as páginas dos jornais, com boa parte dos veículos midiáticos amenizando o teor da noite sangrenta com títulos que tinha clara intenção de pôr os panos quentes fazendo parecer um simples confronto político sobre o barril de pólvora cujo pavio ficara bem menor no ano seguinte.

Querendo saber as opiniões da sociedade a respeito da iminência de uma verdade oculta estar para ser desvendada e sobre a forma como o Exército deve se portar diante da problemática, Holt emitiu ordem para uma votação geral que resultaria ou não na empreitada de renovar e aprimorar recursos que fizessem frente às tais ameaças anômalas.

Ao abrir o envelope, o General não esperava nenhum tipo de surpresa quanto à resposta. "Essa iniciativa teve sua validade anulada logo quando aquele ser extraordinário travestido de mordomo se colocou um passo à frente na tentativa de fazer as pessoas não lidarem com a verdade. Ele tinha razão. O foco das primeiras páginas continuou sendo a guerra entre nós, meros humanos. Uma prova cabal facilmente detectada.", pensou ele, subindo a folha, pulando a leitura de parágrafo em parágrafo até chegar no que interessava. "Eu sabia". Voltou seu único olho ao soldado, depois colocando o papel sobre a mesa.

- E então, senhor? Depois dos casos recentes, eu optaria por uma medida rigorosa contra esses... sobrenaturais que se veem acima de nós. - disse o soldado. - Se é que minha opinião vale alguma coisa.

- Não, está correto. - aquiesceu Holt, indo até um armário de madeira com várias gavetas. - Se eles possuem meios para destruir o mundo, nós podemos conseguir os nossos para mante-lo seguro. - passou o dedo indicador direito por entre as gavetas ao tentar lembrar onde havia guardado. Por fim, abriu a que estava bem diante dele, retirando do meio de uma papelada de arquivos uma espécie de dossiê com páginas meio amarelas. - Há exatamente dois anos, emiti esse compilado de propostas para uma futura organização que, a priori, tinha como meta recrutar especialistas do desconhecido. - olhou para o soldado mostrando o arquivo - Eu era um dos poucos que confiaria a minha boa vontade numa aliança com caçadores como uma saída menos estressante. Então, pensei em um projeto que uniria laços improváveis para um bem maior.

- E por que desistiu de tentar? - perguntou o soldado, curioso.

- Escolheu mal as palavras. - retrucou Holt, andando até a mesa para pôr o dossiê ao lado do envelope. - Não chamo isso de desistir. Cai melhor a palavra estratégia. Saber mostrar sua arma secreta no momento que realmente exigir o uso dela. E a hora, soldado, não podia ser mais propícia. - sentou-se na cadeira, entrelaçando os dedos abaixo do queixo - Estou cogitando reabrir a iniciativa de criar um Departamento de Controle de Ameaças Sobrenaturais. Acho que esse nome soa melhor abreviado. DECASO. O que acha, soldado? Geralmente a opinião de vocês não é mesmo muito relevante à mim em alguns casos, mas agora preciso dela.

- Eu acho que é a coisa certa a fazer. - disse ele, com toda a sinceridade. - Do fundo de minha alma, desejo o sucesso dessa ideia em todos os seguimentos.

- Muito bem, soldado. - elogiou Holt, sorrindo levemente de canto - Nosso trabalho não é espalhar a verdade ás massas, mas controla-la para não cair em mentes erradas. - fez uma pausa, levantando-se depressa - Portanto, eu quero que repasse aos correspondentes no Colégio de Caçadores. Avise que o projeto DECASO será reativado dentro de poucos dias. "Queria ser uma mosca só para ver a reação de Vannoy".

- Sim, senhor. - disse o soldado, reverenciando-o.

Ao virar-se em direção à porta, o soldado esboçara um sorriso satisfeito... e um brilho amarelado em suas pupilas.

                                                                                   ***

Um dos controladores da sala de contenção ficava a observar meio hipnotizado o imperturbável estado meditativo que Rosie Campbell imergira misteriosamente - para suas mentes desinformadas.

Yuga permanecia em sua posição de meia lótus, ainda envolto de sua aura dourada, naquele instante estando diante da vidraça e do controlador. Bocejando, o empregado, depois, lançou olhadelas suspeitas para o deus solar enquanto desligava os leitores.

- Seu soninho de beleza não vai durar muito. Mal posso esperar pra testar as placas elétricas. - disse ele ao andar para ir embora.

Desligou o interruptor por último, logo em seguida fechando a porta.

Não durou mais do que cinco segundos até que Yuga pudesse, subitamente, reabrir seus olhos preenchidos por uma luz amarela tão intensa quanto o sol.


                                                                               CONTINUA...




*A imagem acima e propriedade de seu respectivo autor e foi usada para ilustrar esta postagem sem fins lucrativos. 


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