Capuz Vermelho #42: "Não vale um pássaro na mão"
"Depois de Yuga e Abamanu, eu não espero mais nada que possa ser pior. Até que essa simplicidade toda está conseguindo apagar alguns traumas e frustrações. Vamos ver o quanto posso seguir."
Trecho do Segundo Diário de Rosie Campbell; Pág 04.
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Westdonver, Reserva Florestal
Os passos largos e desesperados daquele homem de terno preto ao mesmo tempo eram firmes e barulhentos. Seus olhos castanhos direcionados para trás a cada um minuto tinha um aspecto de verdadeiro pavor, realçado pelo rosto caucasiano molhado em suor. Algo à espreita o perseguia obstinadamente. A escuridão da floresta o fez tropeçar e, com urgência, levantar-se. O som de uma águia soou nos ouvidos que o arrepiou. Enfim, avistara uma casa localizada numa vizinhança modesta que era separada por um asfalto estreito da floresta. Gritou por socorro repetidamente.
A olhadela para trás que foi a sua última. As garras afiadas de um enorme pássaro caçador o alcançaram e seu grito ecoou em alerta.
Na cabana, um homem meio velho, munido de espingarda, saiu à procura.
Após seguir por uns minutos, não demorou a achar o que o deixou pálido até baixar a arma.
O corpo do homem largado, o terno rasgado e no rosto cortes profundos. Correu, afligido, acreditando que a coisa selvagem ainda estivesse por ali.
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CAPÍTULO 42: NÃO VALE UM PÁSSARO NA MÃO
Área floresta de Raizenbool
Aproveitando que Hector estava ao telefone, Rosie saiu discretamente para o corredor onde ficava o seu quarto sem que ele notasse, mesmo tendo certeza de que era uma ligação do DECASO.
Fechou a porta e dissera a palavra mágica do brasão de Yuga.
- Apotheosis.
Pela brecha inferior da porta, uma luz amarela irradiou forte e apagou-se. No seu recinto particular, a jovem, com as madeixas loiras, mexia nos ponteiros de um relógio de parede. Eram 08h15 da manhã. Voltou para 08h00. O pôs na cômoda, bem apoiado, ora encarando-o, ora tocando no amuleto. Aquilo nada mais era que um teste para saber a duração de seu estado divino, pois na batalha contra Mollock a percepção de tempo foi deixada em segundo plano.
Suspirou séria quando deu 08h05. Foi aí que a luz elevou-se novamente, fazendo-a voltar. E no mesmo instante em que Hector entrava. O caçador protegeu os olhos com as mãos, desconfortado com a claridade. Rosie levantou-se, preocupada.
- Caramba, desculpa, eu não te vi chegando. - o estudou - Consegue enxergar?
- Felizmente, só vejo uns pequenos pontos brancos que estão sumindo. - disse Hector, tranquilizado - Se cego eu ficasse, teria feito um escândalo, é um dos meus pesadelos.
- Eu não queria estar aqui pra ver isso. - disse Rosie, firme. - Olha, eu só... cedi à ansiedade e fui testar a duração do brasão. Há três dias, eu não prestei atenção, mas agora tenho um bom motivo pra não usar e abusar do poder.
- E esse motivo é...?
- Cinco minutos. - disse Rosie, conformada - Apenas cinco minutos. Só posso usar em situações extremas. Údon devia ter escrito uma bula disso aqui. Sou muito iniciante nesse coisa de sobrenatural nível épico.
- Ele gosta de surpreender como pudemos confirmar quando ele nos revelou ter matado sua cópia dessa linha temporal. - disse Hector, indo até o relógio para pô-lo de volta - E detesto falar, mas cinco minutos me faz lembrar as cinco piores horas da minha vida. Cortesia de ninguém menos que Yuga.
- É, o Lester me disse faz umas semanas. Espero que ele se saia bem na operação Caça-talentos dele.
- Não apenas dele, como da Legião inteira. - disse ele, tocando-a nos dois ombros - Bem, agora que descobriu como usar o brasão com responsabilidade... Podemos ir direto ao caso?
- Depende. Meu joelho ainda dói desde que chutei aquele dopplegânger. Aliás, não sabia que eram tão horrorosos no espelho.
- Aquela é a forma real deles. O caso que Derek me falou agora há pouco tem a ver com algo bem mais... carniceiro. - disse Hector, com seriedade.
***
Necrotério de Westdonver
O corpo do homem morto na floresta encontrava-se duro feito rocha e pálido como neve sobre a mesa de perícia. De frente para o legista, Hector corria os olhos pelos ferimentos característicos de um ataque perpetrado por aves de rapina.
- É isso que me encuca. Uma caçada noturna de uma águia ou falcão. Não muito comum.
- Sei lidar com coisas incomuns. - disse Hector, olhando-o.
- De fato, é bem estranho. - concordou o médico - Percebe que não falei sério sobre ataque animal, certo?
- Ahn, é claro. Desculpe, geralmente levo algumas coisas ao pé da letra.
- Então certamente conclui que essas marcas de garras não sejam obras de pessoas. Aves de rapina não caçam muito a noite e mesmo se fosse frequente não largariam suas presas. Só pra matar? Nenhum animal com esse padrão de cortes agiria assim. Vai ver um cara fantasiado de homem-águia possa ser o responsável. Segundo uma suposta testemunha, ele parecia um daqueles apostadores. Ele tem cara de um, afinal. Não tenho acesso a evidências preliminares.
- Uma testemunha? - indagou Hector, empertigando-se - Onde ela estaria agora?
- Talvez prestando um depoimento à polícia. Na reserva, eu diria, no meio da investigação. - disse o médico, fazendo Hector dirigir-se à saída. - Ei, entendeu que não falei sério sobre o homem-águia, né?
Hector expressou um sorriso forçado.
- Sim, doutor. Dessa vez eu entendi. Falei que lido com coisas incomuns, não quer dizer que eu acredite ou engula qualquer explicação sobrenatural.
- É bom que seja bem natural. Tenho sentido um clima estranho por essas bandas ultimamente. - disse ele, exalando bastante sisudez. - Tome cuidado com o que for encontrar.
***
Na reserva, Rosie, o guarda e o homem - um senhor de meia idade com uma volumosa barba grisalha e usando uma macacão jeans por cima de camisa xadrez - que foi dado como testemunha auricular andavam à procura de evidências consistentes. No meio do caminho, estava no limiar de uma discussão.
- É o que estou dizendo, a mais pura verdade. Não encontrei nada, nem sinal de bicho do mato.
- E como até agora sua esposa não esteve a par disso? - questionou o guarda, um jovem rapaz de cabelos negros penteados ao lado em gel. - Disse que estava sozinho. Por quanto tempo?
- Ela sempre sai pra jogatina uma vez por semana, os dias variam. Na hora eu estava sozinho sim, tem que acreditar em mim. - ele parou de andar, tocando o guarda. - Eu achei aquele homem morto.
- Isso não é o bastante. - disse o guarda, suspirando - Lamento, mas se tivermos que apurar uma quantidade considerável de pistas, é necessária uma averiguação na sua casa. Vou providenciar já.
- Mas o quê?! Insinua que sou culpado?! Quem pensa que é...
- Um agente da lei como qualquer outro. - retrucou o guarda, severo, contatando a polícia via rádio. Ouviu-se um chiado - Aqui é o membro 6221, patrulha noturna florestal, costa norte. Preciso de uma vasculha na residência do homem que descobriu a cena do crime, pode estar envolvido nela. - aquilo serviu para descontrolar o homem a ponto de querer esgana-lo.
- Tenha dó... Eu não matei ninguém, eu juro!
- Temos que considerar todas as possibilidades. - declarou o guarda, a expressão segura - Até que não surjam evidências de um autor original, o senhor está enquadrado como suspeito número um. O cara morto traçou um curso que veio direto do cassino que sua esposa frequenta, a aparência dele já é auto-explicativa. Esse é um caso de muitas lacunas, portanto é melhor se acalmar, por favor.
- Me acalmar o cacete! Estou sendo claramente acusado de algo que não cometi! - agarrou-o pela gola da jaqueta-farda. - Seu almofadinha sem vergonha, está fazendo um péssimo trabalho.
- Me solte ou eu faço sua situação piorar mais do que já está!
Rosie virou-se, aborrecida.
- Ei, vocês dois! Parem aí! Agora é hora de nos focarmos no caso, não levem pro pessoal. - eles a olharam, curiosos - Venham ver isso aqui. - disse, apontando o polegar para trás. A jovem havia encontrado penas grandes e marrons espalhadas em meio a rastros e pegadas. - Essas penas... são naturais de alguma espécie de ave por aqui? - olhou para o homem em seguida - O senhor mora nessa região há anos. E então? Já viu alguma coisa parecida?
Ele fez que não com a cabeça, ainda atordoado pela briga.
- Vou chamar minha equipe. - decidiu o guarda - Medir o comprimento dessas pegadas. Se baterem com o número que o sujeito calçava... Se bem que são disformes, não há tanto mistério nisso.
- Em todo caso, é melhor chamar. - aconselhou Rosie, novamente olhando para aquilo, intrigada, pegando uma das penas e analisando-as.
***
Numa rua meio deserta, em plena manhã, Hector atravessou uma rua acenando alto para Rosie que vinha ao seu encontro. O Sr. Dinkler sorriu bem-educado ao caçador.
- E então, Sherlock, conseguiu alguma coisa no mundo dos mortos? - perguntou Rosie, brincalhona.
- Não só a identidade da última vítima - ele mostrara uma ficha datilografada -, como também a sua vida desregrada e resumida a noitadas e apostas num cassino de quinta categoria. Ele se chama Noah Medrott, era sócio de uma companhia de bebidas alcoólicas. Os companheiros dele apostam forte em vingança, mas o laudo pericial leva a crer ataque de animal.
- Um animal bem grande, pelo visto. - disse Rosie, mostrando a pena - Nosso cara é um homem-águia mutante que mata apostadores?
- Basicamente é a mesma teoria do legista. - disse Hector, num sorriso leve. - E o senhor...?
- Ah, me chamo Bernard Dinkler - apertou a mão do caçador -, e-eu... - olhou de esguelha para Rosie, desconfortado. - Talvez seja melhor ficarem na minha casa até tudo terminar. Não há hotéis.
- Cidade pequena... Era de se esperar. - disse Rosie, compreendendo e concordando - Sim, nós vamos, se não for incômodo...
- Shaaron vai adorar conhece-los. - disse Dinkler, empolgado - Err... Shaaron é minha mulher. O quarto de hóspedes ficará brilhando de limpo quando ela souber que temos ocupantes. Venham comigo. - chamou ele, indo na frente.
Acompanhando-o à residência, Rosie e Hector discutiam os últimos detalhes. Dinkler bateu na porta com bom gosto. A atendente era uma moça de cabelos loiros amarrados com uma meia franja na testa. Ela usava um avental branco por cima de um vestido verde com mangas. Sorriu abertamente às visitas.
- Oh, trouxe visitas à essa hora? Quem são os jovens?
- O dia está tão estranho pra você quanto pra mim. Estes são os investigadores que cuidam do caso do cara que encontrei morto ontem à noite. Como não se resolve um mistério desses da noite pro dia, achei melhor acolhê-los.
Ambos se apresentaram, sorridentes.
- Espero que aproveitem a estadia. Já vou preparar o quarto. Não, primeiro farei um chá pra todos nós... - ela riu - Como são importantes eu nem sei o que faço primeiro.
- Decida o que achar melhor. - disse Rosie - Não temos pressa.
- OK. Podem entrar. - disse Shaaron abrindo mais a porta - Não reparem na fantasia de Papai Noel do Dinkler que estou costurando. Ah, que pena, já estão imaginando como você fica idêntico.
- Por favor, não me envergonhe na frente deles. - disse Dinkler, beijando-a na boca depois.
A dupla de caçadores manteve-se perto um do outro.
- Provavelmente não será tão ruim. - disse Hector, cochichando. - Sei que tem dificuldades em se acomodar, mesmo que por pouco tempo.
- Não, eu estou bem, só precisamos aguardar mais informações. O que será grande, feroz e estraçalha suas presas como uma ave selvagem?
- Mataremos essa charada em breve. - disse Hector, determinado - E a coisa por trás disso, é claro. - olhou sorrindo para o casal que lhe deu as boas-vindas.
***
Batidas na porta despertaram Dinkler de um bom cochilo na sua poltrona de couro com um livro virado sobre seu peito. Ele acordou sobressaltado, pondo os óculos desajeitadamente. As batidas fortaleceram-se. A visão cansada não ajudou a conferir a hora.
Ao abrir, deparou-se com a figura do guarda Stone com expressão alarmada.
- Você?! O que diabos quer aqui? Não me diga que veio me levar pro xadrez.
- Onde está sua esposa? - perguntou Stone.
- Não pense que vou dar satisfações pra alguém que me acusou injustamente. - disse Dinkler, rançoso.
- É urgente, senhor, acredite, não vim prende-lo, aconteceu...
- O que está havendo? A essa hora!? - reclamou Sharron vestida de camisola. - Dinkler, quem é esse cara?
Rosie já estava em posição para escutar, ficando atrás da parede do corredor.
- Ei... - chamou Hector que a assustou de modo a fazê-la tapar a boca com a mão direita.
- Não chega assim de fininho. - repreendeu ela, voltando a olhar para a sala - O guarda da reserva está aqui, o Sr. Stone, parece que veio com más notícias. Ele suspeitou do Dinkler.
Hector pensou um pouco a respeito e não gostara da teoria.
- Então não podemos, em hipótese alguma, sermos vistos nessa casa por ele. Dependendo do status do caso a partir de agora. Fôssemos flagrados, acabaríamos piorando a situação do Sr. Dinkler. Consegue ouvir o que estão dizendo?
- Desculpa, mas acho que o lance da superaudição veio no seu pacote, não?
- Tenho tanto controle que acabo esquecendo que sou sobrenatural. - disse Hector, numa justificativa que não a convenceu muito. Inclinou-se ao lado para apurar sua audição e sondara...
- O quê?! Mais uma morte?! - soltou Dinkler, surpreso.
- Com as mesmas características. Foram três vítimas dessa vez. A garota detetive do Exército encontrou penas de águia num ponto onde a primeira vítima esteve e coletaram esse mesmo material agora há pouco. Olha, não sei com que tipo de abutre estamos lidando, mas muita coisa nessa história não tá batendo, há muitos detalhes desconexos...
- E você acha que meu marido ou eu devemos alguma coisa pra esse caso? - perguntou Shaaron, incomodada. - Bateu na porta errada, senhor guarda. Eu estou aqui, ele está aqui... Quem está lá fora? Se continuar com essa má pontaria... é melhor pendurar essa jaqueta e deixar que os adultos tomem as decisões certas.
- Eu sei como fazer meu trabalho. - disse Stone - Passar bem. - saíra a passos largos, visivelmente irritado. Dinkler olhou com reprovação à esposa ao fechar a porta.
Rosie e Hector, àquela altura, traçavam um plano básico.
- Talvez uma passadinha no cassino nos faça mergulhar mais fundo. - sugeriu Rosie, falando baixo - Hector, não acredito, não é muito confiável que pessoas estejam morrendo por razões tão banais com jogos de caça-níquel. Esses homens podem ter sido uns trapaceiros, mas mortes com esse modo de assassinato em série... Parece muito pra pouca coisa, não acha?
- Façamos o seguinte: Amanhã mesmo agiremos separadamente. Você consulta alguém... especializado em aves predadoras levando as penas para ver se bate com algo conhecido. Enquanto isso...
***
"... eu vou tentar uma pesquisa na biblioteca, consegui o endereço antes de ir ao necrotério."
Naquele instante, próximo a um barranco na floresta, um homem aparentando ter em torno de 30 anos tentava escalar o terreno íngreme. Suas vestes denunciavam o comparecimento diário ao cassino que também era parte de uma casa noturna vizinha, ou podendo ser considerado também como um bordel de baixa classe. Suas mãos e pés escorregavam na terra e seus olhos apavorados relanceavam o perseguidor a todo momento. Ele balbuciava quase querendo gritar.
- Por favor... Não! Por favor, não! - disse ao ver um vulto assombroso ir de encontro à ele portando pés amarelos com garras de águia que o pegaram pelo paletó.
O grito da presa ressoou pela floresta enquanto era levada pelo enorme pássaro com asas que batiam tranquilas em meio ao céu pincelado de preto, adornado com estrelas e uma lua prateada e opulenta.
***
Na manhã seguinte, ambos seguiram seus rumos conforme o planejado.
Rosie fora a um centro de treinamento e adestração de animais domésticos e selvagens para obter um diagnóstico geral sobre as tais penas.
- Incrivelmente esplêndido... e um pouco assustador, eu diria. - disse o especialista, analisando cuidadosamente uma pena. O homem parecia ter em torno de 60 anos. Um falcão branco com os olhos vendados estava ao seu lado num apoio. - Não parece corresponder a fisionomia de uma ave saudável. Nunca vi nada parecido e veja só: - se inclinou à Rosie - A coloração é variada demais, o tamanho é desproporcional ao corpo normal... Afinal, essa águia tem algum distúrbio?
Rosie emudecera. "Que merda, Hector! Tinha que me deixar com a parte complicada!"
- Err... Acho que o senhor sanou todas as dúvidas. - sorriu forçado - Pode ser até falso. Um amigo me deu essas penas para enfeitar meu quarto e... acho melhor ir embora. - levantou-se.
- Espere. Corrigindo: Não são falsas. - disse o especialista - A textura é de uma ave real. Mas com esse tamanho? Como é verídico, então, minha cara, essa águia teoricamente data dos tempos pré-históricos. É isso que me assusta. Ainda assim não é fácil de acreditar.
"Um pássaro sobrenatural... Onde será que é seu ninho? Não, se fosse uma criatura irracional não deixaria corpos largados por aí. Como uma Watson, vou ter de esperar, de qualquer forma.", pensou Rosie, saindo de suas divagações em seguida e indo embora.
Na biblioteca, Hector preenchia um papel exclusivo para pesquisadores que possuía três quadrados onde se escreveria palavras-chave. Foi até o balcão para mostrar.
- Humm... Pássaro, Mitologia, Morte. - disse o recepcionista - Sei do que procura. - andou até a prateleira, pegando um livro de capa roxa. - Compilação única de pássaros mitológicos de várias crenças. Fênix, Thunderbird, Garuda, Harpias e etc, etc e etc. Devolva em trinta minutos. - deu um gole no seu café.
- Disse... Harpias? - perguntou Hector, o olhar estreitado.
- Sim. Se ficou interessado, olhe na página 18.
- Obrigado. - disse o caçador, pegando o exemplar e direcionando-se à uma das mesas compridas.
Ao abrir na página citada, o caçador passou o dedo verticalmente pela folha.
- Criaturas da mitologia grega apresentando uma natureza quimérica de humano e animal, no caso, especificamente, corpo de ave de rapina e rosto e seios de mulher. A lenda... - focou no tópico, em especial num símbolo na lateral do texto - Um sigilo utilizado por um antigo pastor de Creta que protegeu seu rebanho dos ataques furtivos das harpias. A insígnia tem origem na magia primitiva, mas só sendo realizada com o sangue de um deus. Para isso, o pastor invocara Ártemis, a deusa da caça, para que banisse as harpias permanentemente. Porém, esta exigiu que seu fiel lhe emprestasse o corpo de sua esposa para lhe oferecer o sangue. Ela avisou que os efeitos do sigilo nas harpias replicavam as chamas do inferno. - ele pensara um pouco com a mão na boca - Por que não imaginei isso antes? - fechou o livro - Bem. hora de improvisar.
***
Atrás do muro que dava para o quintal do casal Dinkler, Hector mostrara um pote de vidro para Rosie a fim de dar explicações apressadas.
- Vou precisar de uma coisinha importante sua pra derrotar as harpias. - disse Hector, confiante. - Digamos que... tecnicamente, você é o trunfo.
- Podia parar de enrolar e dizer logo como vamos fazer isso. - declarou Rosie.
- O sigilo para destruí-las é desenhado com o sangue divinizado. As fará sentir o ardor do inferno, segundo o livro. Mas funciona apenas com uma e temos duas a capturar. Então...
- Espera, o meu sangue? Mas eu prometi que...
- Não, não precisa se transformar. - atestou Hector, erguendo de leve uma mão - A energia corre nas suas veias, não necessariamente precisa estar acesa. - destacou o pote - Começamos?
A jovem suspirou lentamente, quase relutante ao triar uma adaga e cortar a palma esquerda.
- Hector, pode não funcionar. - o sangue derramava dentro do pote - E se Shaaron for mesmo uma delas, como vai achar uma deixa segura e acima de qualquer suspeita?
- Lembro que hoje cedo o Sr. Dinkler me pediu pra arrumar o papel de parede da cozinha.
- Melhor aproveitar. - disse Rosie, terminando - É o suficiente? Não vou fazer isso várias vezes se tiver mais delas por aí.
- Há uma tríade que foi morta pela esposa do pastor possuída por Ártemis. Aelo, Ocípete e Celeno. Há sucessoras que recebem esses nomes como títulos de honra. Shaaron estava em casa na noite de ontem, claro, o que significa que há uma outra, mas primeiro vou investigar melhor e ver se ela é o que pensamos. Depois do papel de parede...
***
"... seguirei até o quarto dela escondido e fazer a clássica averiguação não-autorizada."
Enquanto Dinkler estava fora trabalhando como lenhador e sua esposa lavando a roupa no quintal. Aparentemente o cenário estava propício.
O caçador seguiu silencioso pelo corredor até abrir a porta sem produzir rangidos.
Manteve-a fechada por via das dúvidas. As gavetas da cômoda possuíam fechaduras pequenas, o que o preocupou imediatamente. Apertou a maçaneta de uma aleatória e surpreendeu-se.
"Está aberta?!", pensou, logo vendo papéis similares a bilhetes e cupons. Hesitante, olhou para a porta, mas seguiu adiante mexendo no conteúdo olhando dois por vez. "Tudo isso... Não pode ser. Este é o quarto dos dois, como Dinkler nunca desconfiou desses recibos de motel? ", abriu uma gaveta abaixo. "As roupas de baixo dele ficam aqui! As trancas são gastas... Ele a respeita tanto a ponto de nunca dar uma bisbilhotada? Shaaron é perfeita demais... soube disfarçar muito bem.".
Fechou-as depressa. Na gaveta da Sra. Dinkler foram achados bilhetes inválidos do cassino e alguns ainda em validade e com textura mais nova do que outros. Saíra do quarto no mesmo ritmo que entrou.
Porém, assim que fechara sentiu a parte de trás cabeça ser machucada com extrema força. Vendo-o cair no chão inconsciente, Shaaron segurava um pé de cabra enferrujado.
- Nunca te ensinaram que não deve mexer no ninho dos pássaros?
***
Westdonver; 19h52
Rosie voltava à casa dos Dinkler após um longo dia fora procurando novas evidências e elementos que tornassem as coisas mais palpáveis. Para um primeiro dia, ela se julgou razoável.
Encontrou duas mulheres sentadas conversando e tomando chá. Ambas baixaram as xícaras ao vê-la.
- Olá, querida. Que cara é essa? - perguntou uma moça de elegantes cabelos pretos que caíam em cascata nos ombros - Você não entrou na casa errada.
- Quem são vocês? - perguntou Rosie, parada.
A outra levantou-se. Era mais nova e tinha madeixas curtas meio ruivas.
- Amigas da Shaaron. Sou Mabel. Ela é a Georgia. Por onde tem andado?
- Não acho que isso lhe diga respeito. - retrucou Rosie, séria - Ahn, desculpa, não quis ser grossa...
- Que nada. - disse Georgia, levantando-se - Está tudo bem. Shaaron nos confidenciou esse segredo e ele está seguro conosco, podemos garantir. Sabemos o quanto é importante mantê-lo. - foi até a porta... logo trancando-a.
- Mas era pra ser confidencial. - ressaltou Rosie - Shaaron não diria que os investigadores do caso em que seu marido foi autuado como suspeito estão hospedados na casa dela.
- Bem... eu acho que ela diria sim. - discordou Mabel, franzindo a testa - Para que servem as amigas, afinal?
- Por que não vem tomar chá conosco, Rosie? - sugeriu Georgia, voltando - Está uma delícia.
- Sabe, eu tenho a leve impressão de que eu não devia estar aqui. - disse a jovem, mantendo-se imóvel.
- Ora, por que não? - Mabel aproximou-se dela até demais, chegando a falar centímetros perto do pescoço - Há outro lugar melhor pra ir?
Um barulho abafado soou.
- Isso veio do...
- Porão? É o que parece. - disse Georgia.
- Cadê o Hector? - perguntou Rosie, assumindo severidade.
Num entreolhar malicioso, as duas convidadas sorriram.
***
O caçador despertou sobressaltante, olhando para os dois pulsos presos por algemas de ferro ligadas a correntes. As mexeu o que fizera barulho metálico típico. Estava sentado sobre um chão imundo em um porão emporcalhado que tinha no "teto" uma janela gradeada com dois ferros e que permitia a luz passar - naquele instante a da lua.
Ao voltar seus olhos para frente, encarou a figura de Shaaron em pé com mãos na cintura.
- O que está achando da estadia? Saiba que isto é um spa comparado ao que planejei pra você.
- Eu não estava errado, pelo visto. - disse Hector - Qual das três você é?
- A obscura. - respondeu ela, chegando perto.
- Celeno. - falou ele, fitando-a raivoso - A troco de quê matou aquelas pessoas? A primeira coisa que imaginei como motivação foi ter sido enganada num jogo. Estou errado?
- Meio à meio. Aliás, razões são irrelevantes para seguirmos nossa natureza carnívora. - se agachou bem próxima dele. Tocou-o no rosto e como reação ele tentara afastar - Você jovem, bonito, forte, é tanto o tipo bom de carne fresca quanto de boa companhia quando o perigo se aproxima. A garota tem sorte.
- Por falar nisso... Onde ela está?
- Ela já chegou. Pude ouvir tudo o que conversaram atrás do muro. Boa tentativa com o sigilo, mas não vai dar. - ela levantou-se, virando-se para trás - Em todos esses anos vivendo como desajustadas, nosso antigo lar oficial destruído, eu e minhas irmãs fizemos voto de abstinência como promessa de recomeço. - alterou seus olhos humanos para como os de uma águia, logo erguendo a mão transformada numa pata de ave. - Não íamos morrer de inanição, mas também não submeteríamos a uma vida de miséria. Por isso há 28 anos conheci o Dinkler. Mas fui eu quem caiu na vida que ele e muitos achavam errada. E então veio a epifania. - virou-se para ele - Passada pra trás por meras bolsas de carne. - inclinou-se pra ele com rapidez e violência - Faz ideia do quanto isso doeu?
- Foi isso, então? Na primeira desilusão como humanas, já desistiram?
- Eu me cansei rápido demais. Partilhei com elas minhas ideias e percebi que fui idiota. - passou sua garra pela camisa de Hector, rasgando-a faiclmente - Mas sabe qual foi a melhor parte? Chamar atenção de pessoas como você. Por isso escolhi Westdonver. O paraíso sem hotéis. A única casa ocupada próxima ao reduto de presas seria obviamente o ponto de hospedagem mais fácil. Quem suspeitaria de uma simples dona de casa?
- Tudo não passou de uma armadilha?! Já devia ter percebido... - Hector mantinha-se tenso.
- Vejamos a textura... - disse Celeno, rasgando o peito dele com sua garra em um "X". Hector só grunhiu um pouco. A ferida fechou-se regenerando. - Parece que a curiosidade matou... o cão.
- Como sabe que sou licantropo?
- Nossos sentidos se estendem além de cinco. - disse ela, levantando-se - Vou deixa-lo encoleirado enquanto confiro a situação lá em cima, ver se sua donzela não causou problemas...
- E o Dinkler?
- Ai, você faz tantas perguntas...
- É assim que caçadores trabalham! O que fez com o Sr. Dinkler? Vamos, fale!
- Ele é sobremesa pra mais tarde. - disse Celeno, dando de ombros, o que espantou Hector - Você me lembrou do que devo dizer ao meu filho quando ele voltar... espero que inteiro.
- Tiveram um filho!? Harpias por acaso acasalam?
- Sim. Faz dois anos que meu bebê vestiu a farda. Um híbrido das nossas raças lutando nas trincheiras. Já pensou? - deu um sorriso de canto, indo embora ao subir a escadinha.
Hector transformou-se para arrebentar as correntes com toda sua força, rugindo alto.
***
- Tudo bem, se me derem licença, eu vou verificar. - disse Rosie, sendo barrada por Mabel.
- Ou podemos esperar a Shaaron subir.
- Vocês começaram a festinha do chá sem ela. Me deixa passar.
Georgia demonstrou seriedade implacável ao observa-la.
No instante, Shaaron aparecera, altiva.
- Ah, ela vai passar. Dessa pra melhor. - o comentário fizera Rosie preparar-se.
- Ei, o que tá fazendo? - perguntou Georgia, desentendida.
- É o seu código de "Abortar Missão", por acaso? - questionou Mabel.
Shaaron sorriu fechado.
- Chegamos onde queríamos. Podem tirar as fantasias.
Rosie sacou duas adagas, logo sendo agarrada por trás por Georgia, em seguida dando uma cabeçada, libertando-se e atacando Mabel que esquivava-se habilmente com suas garras à mostra.
No porão, forçou ao limite máximo, quebrando as correntes que fez um estampido alto. Tirando as algemas que apertaram bastante, ele manteve-se lobo. "Aguente firme, Rosie. Estou chegando."
Em supervelocidade, ele subira a escada ao sair do porão.
O caçador chegara à sala com alarde.
- Rosie, são mesmo harpias!
Mabel o agarrou pela gola do sobretudo e o arremessou contra a estante. Rosie dava cotoveladas em Georgia, em seguida tentava chuta-la dando giros, mas a mesma conseguiu feri-la no braço com a garra. Seu rosto mudou para um aspecto lembrante de uma águia.
Hector levantou-se, as presas sangrando. Mabel lançara um grito que gerou uma onda pulsante contra ele que o jogou contra a janela que se estilhaçou-se. Bolando no gramado, Hector tomou ciência. Superveloz, arrombou a porta, destruindo-a, e pegara Mabel pelo pescoço levando-a à cozinha e colocando-a contra a parede. Ela cabeceou-o forte e desferiu um corte na barriga que o fez gritar rápido. Outro corte, sendo no torso.
- Você não sangra? Que tipo de ser estou enfrentando?
Antes que ela atacasse novamente, Hector segurou firme a cabeça dela para, enfim, quebrar-lhe o pescoço num só movimento.
- Ocípete! - gritou Georgia.
- Fica tranquila. Só está inconsciente. - disse Shaaron, calma.
- E como fica nossa vantagem, espertinha?
- Não são páreos pra nós mesmo assim.
Hector notou um facão de cabo preto com fio excelente e o pegou. Mabel/Ocípete reerguera-se como um fantasma e tentou revidar, mas o caçador fora mais ágil ao decapita-la. A cabeça bateu na parede com sangue espichando.
Em seguida, o caçador arremessou a faca contra Georgia que rapidamente perdeu a cabeça.
- Aelo... - disse Shaaron, enervando-se. Rosie se levantava após um golpe debilitante que a feriu. Shaaron vingativamente se voltou à Hector reproduzindo o grito estridente e sônico.
- Hector... - a jovem sangrava no nariz e na cabeça - O... O sigilo...
Tapando os ouvidos, Hector sentiu seus músculos paralisarem como se gravidade tivesse aumentado ao ser afetado pela intensa onda sonora.
Entreviu o ponto do papel de parede que arrumou, tentando alcança-lo. O mundo ao redor tremia distorcidamente. Não tardou a sentir sangue escorrendo dos ouvidos. ~
Celeno reforçou-se. Vendo que o caçador estava em plena dificuldade, Rosie idealizou usar o sangue do ferimento no braço para desenhar o sigilo numa parede e assim fez.
Bateu sua mão. O sigilo reluziu em laranja.
Ao sentir labaredas brotarem das mãos e se espalharem, Shaaron cessara o grito, desesperando-se.
- Não! Não! - olhou para trás - Impossível! Se fosse um deus eu teria sentido!
- O que acha de um mortal que recebe, ainda recém-nascido, o poder de um deus e tem isso por direito eternamente? - disse Rosie.
- Nããããooo!!! - vociferou a harpia, sendo consumida pelo fogo até a última brasa sumir. Hector estava sentado num canto protegendo os olhos da claridade. Foi ajudado por Rosie que estava preocupada com o sigilo que pulsava brilhante. Fogo começou a surgir em alguns pontos.
- Você está bem?
- Já estive melhor. Ela literalmente explodiu meus tímpanos, mas estão regenerando. - disse, olhando em volta da casa - Vamos, segure firme. - transformou-se, logo saindo da casa com Rosie supervelozmente. O sigilo irradiou intenso até provocar uma explosão devastadora.
Ambos pararam no outro lado da rua, observando a nuvem flamejante subir.
- Como sabia do sigilo? - perguntou Hector.
- Leitura é fundamental. - respondeu, sorrindo de leve.
Ele sorrira, agradecido.
- Obrigado.
- De nada. - de repente, viu alguém chegar - Quem é aquele vindo correndo?
Hector virou o olhar e soube na hora de quem se tratava.
- Guarda Stone. O que está fazendo aqui?
- Não ignoraria uma explosão dessas. O que diabos houve? O que fizeram?
- Pegamos o assassino. Era uma armadilha. A gente conta os detalhes noutra hora. - disse Rosie.
- Ótimo. Antes de chamar os bombeiros, quero avisar que um tal de Derek Marshall não parou de ligar nas últimas horas. Perguntou sobre vocês.
- Retorne. Diga que já encerramos o caso. - assegurou Hector.
- OK. - assentiu Stone, correndo de volta para acionar o corpo de bombeiros.
- Hector... O Sr. Dinkler... Não, pode falar, ele morreu, não tinha a menor chance...
- Infelizmente, sim. - respondeu ele, observando o incêndio - E deixaram um filho.
- Como é?! Repete. - espantou-se Rosie - Onde ele está?
- Combatendo as tropas alemãs e soviéticas. Se pensar bem, vai sabe o que significa pra nós...
- Mais problemas. - disparou ela - Acredita... que quando a guerra acabar, se ele voltar... voltará por vingança? Metade humano, metade harpia... O que sai disso pode ser pior.
- É verdade. Vamos deixar o tempo nos dizer. Ele ajuda a quem melhor espera. - disse Hector, tocando-a no ombro ao seu lado.
***
Algumas horas depois dos bombeiros terminarem o serviço, aproximava-se dali um luxuoso Chevrolet Master 1941 preto, estacionando em frente à fachada chamuscada.
Dele descera um homem em torno de 50 á 60 anos, cabelo grisalho calvo e face caucasiana com maxilar robusto, além do olho esquerdo substituído por um botão de ferro. Com sua bengala, similar a um cetro, caminhou à sala acompanhado de dois homens com vestes iguais as dele - sobretudo preto, abotoado e longo.
O velho chutara o cadáver carbonizado de uma harpia, mostrando algo que sobreviveu às chamas.
Ele sorriu.
- Ao que indica, a primeira ponta da estrela acendeu-se. - disse, enigmático.
O símbolo marcado em preto no piso resumia-se numa estrela com oito pontas em forma de seta.
CONTINUA...
*A imagem acima é propriedade de seu respectivo autor e foi usada para ilustrar esta postagem sem fins lucrativos.
*Imagem retirada de:http://informandoedetonando.com.br/2017/02/08/olhos-de-aguia-ataca-mais-uma-vez/
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