Capuz Vermelho #65: "Lembre de mim"
Área florestal de Raizenbool
Era um daqueles dias atípicos nos quais a campainha tocava cedo da manhã. A última vez que Rosie lembrava disso ter ocorrido foi com a visita de Derek para informar sobre o caso do Barghest. O coração palpitava do mesmo jeito como se fosse a primeira vez. Ela abrira a porta cuidadosamente.
- Adam?! - disse ela, imensamente surpresa. Já estava trajada com suas vestes habituais. Ela recuou uns dois passos ao olhar o caçador parado na soleira com uma expressão calma demais para ela acreditar num encontro pacífico - O que tá fazendo aqui? O Derek surtou e te deu o trabalho pra acabar com a minha vida sem aviso prévio? Se for o caso, escolheu o dia errado pra tentarem.
- Eu preciso que mantenha a calma. - disse ele, contido - Não sou o mesmo daquele dia... Aconteceu inúmeras coisas, minha mente foi torcida, virada ao avesso e modificada. Foi um inferno, Rosie.
- Sei disso. Você atentou contra minha vida e a do Hector como uma máquina de matar fora de controle. Eu não vou cair nesse jogo. Pra mim aquele Adam... que considerei um amigo fiel, bravo e corajoso, o líder da Legião dos Caçadores, está morto e enterrado. Pra sempre nessa sua mente.
Adam a fitou com uma tristeza gritante. Cerrou os punhos, não conseguindo aguentar a pressão.
- Por falar no Hector, onde ele está?
- Veio aqui destilar seu ciúme motivado por vingança pela verdade que ele ocultou por anos? Ah, por favor. - disse Rosie, virando o rosto - Supera isso e segue em frente. Não é fácil, mas não impossível. Sou uma prova viva. Consegui a proeza de perdoa-lo, não me arrependo disso. A Êmina e o Lester também. Só você que ficou de birra e não deu o braço a torcer.
- Ele está ou não? - sua pergunta saiu num tom quase ríspido.
- Foi pra uma caçada ontem à noite, até agora não voltou. Pra quê veio? O que ainda quer de mim?
- Podemos conversar lá fora? - sugeriu ele, mais sereno - Sabe.. o contato com a natureza talvez esfrie nossas cabeças. O que acha? Vou te esclarecer absolutamente tudo, eu prometo.
Na floresta, ambos caminhavam lado à lado a passos lentos, saboreando a brisa fresca e o sol das 7 horas que passava por entre as folhagens das árvores. Adam cogitou tocar na mão de Rosie, mas desistira ao relembrar os fatos recentes.
- Bem, aqui estamos. - disse Rosie, parando - O que quer dizer tem a ver com o controle da sua mente? Conseguiu reverte-lo? Não que ainda me pareça o mesmo Adam que eu gostava... que eu amava. - ela virou de costas à ele, sorrindo para si - É uma ideia precipitada, mas... gostaria de reviver aquela noite, darmos uma segunda chance um pro outro. O Hector e eu já estamos quase no fim.
- Ah, pra dizer a verdade, você também não é a mesma de antes. - disse Adam, encarando-a.
- Sim, eu tive minha alma roubada e repartida para demônios asquerosos que querem o caos reinando na Terra. Estamos na luta para derrotar cada um deles e recompor minha alma.
- Rosie, se tiver que confessar algo, ao menos o faça olhando nos meus olhos. - pediu Adam.
- Então não se lembra? - indagou ela, suspeitosa, logo voltando-se para ele - O que foi? - lançou um olhar de pura estranheza - Se lembrasse da noite maravilhosa que tivemos ano passado não perguntaria dessa forma.
- E qual é o problema?
- Deu a entender que está tudo bem com sua mente, eu só quis saber como fez pra se livrar da manipulação que fizeram em você, parece que está fugindo deles. Do contrário, não teria vindo me procurar. - disse ela, convicta.
O meneio de cabeça do caçador apertando os lábios num olhar distante indicavam toda a insegurança que o torturava.
- É, dá pra ver que a convivência com o Hector aguçou o seu cérebro. - afirmou ele. Subitamente, numa agilidade quase sobrenatural, pegara Rosie pelos ombros e a virou, envolvendo o pescoço dela com seu forte braço esquerdo para apertar o máximo que podia. Ela lutava debatendo o corpo, mas o antebraço do caçador parecia uma viga de metal retorcendo-se para esmagar suas artérias carótidas - Não ter lembranças do seu passado é o mesmo que ter perdido a própria alma.
A jovem cedeu à inconsciência total em poucos segundos. Adam calmamente deixara-a no solo e deu uns passos para trás olhando-a com atenção para ver se seu movimento fora eficaz. Rosie estava completamente apagada, para o seu alívio. O caçador correra de volta ao Casarão. Entrara na sala de estar, tirando um papel dobrado ao meio do bolso do casaco preto e depositando na mesinha. "Só tem um jeito disso acabar. Mas não farei por ela... muito menos por você, Hector.", pensou.
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CAPÍTULO 65: LEMBRE DE MIM
O caçador-detetive detectou algo suspeito ao olhar para o piso em frente à porta assim que retornara da sua investigação não tão produtiva. Hector fixou a visão nas pegadas e agachou-se para analisar com minúcia. Mesmo com os rastros de areia lamaçada não muito expressivos, era possível divisar a forma. As linhas horizontais indicavam ser uma bota. A última pegada estava pela metade entre a soleira. "Não tem erro, alguém invadiu. Essas pegadas não são de Rosie!", pensou ele.
Abrira a porta apressadamente, já imaginando o pior. O silêncio que reinava absoluto acelerou seu coração movido ao desespero. Chamou por Rosie várias vezes e nada de resposta. Subira a escada para verificar o andar superior, sem encontrar nem mesmo uma respiração. Ao voltar para a sala, deparou-se com o bilhete na mesinha e o desdobrou. A mensagem continha os seguintes dizeres:
"O chefe lhe deu 24 horas para achar o paradeiro de Pandora. A traga viva e então Rosie será devolvida ilesa. Passando desse período e não tiver progresso, Rosie será reprogramada... assim como eu fui. Soube que está bem ocupado atrás dos principados de Belphegor e como Rosie no seu estado atual representa um perigo, deduzimos que ficaria fora de casa por um bom tempo e me vi com sorte quando fizeram o feitiço localizador. De toda forma, é melhor agir rápido."
Hector amassou o papel, controlando sua fúria ao mesmo tempo que sabia da necessidade de traçar um plano urgente. A ideia que nasceu parecia boa demais para descartar, apesar do risco enorme. O QG britânico estar tomado pela Caosfera não significava tanto problema do que confiar forçadamente num aliado útil para sua busca.
A aposta era alta para negociar com Mollock a ajuda necessária para encontrar Pandora. O caçador saíra de imediato.
***
A renovação que Derek planejou à sua vida estava dando um novo ar para que ele pudesse respirar, menos impuro e carregado. O ex-mago do caos dirigia-se a um balcão de um restaurante para pegar a comida embrulhada após ser chamado pela atendente.
- Muito obrigado. Fique com o troco. - disse ele, expressando uma gentileza sincera como nunca.
Mas aquilo não significava que o sossego não poderia ser desfeito. Assim que virou-se para ir embora, cerca de três homens levantaram-se de mesas próximas umas das outras e o encararam ameaçadoramente. Derek parou olhando-os e deu uma risada leve de tom debochado.
Os demais clientes apenas observavam, mas seus semblantes eram mecânicos e desinteressados.
- Hoje não é meu aniversário. - disse Derek - Ah, é verdade, o papai nunca lembrou a data. E envia vocês para matarem as saudades. Ele os escolheu a dedo ou foram sorteados? Se é que ele sabe o nome de todos os membros da fraternidade...
O mago que estava entre os outros dois sacou uma adaga de repente e aproximou a lâmina na garganta de Derek.
- O presente quem ganha é o chefe. No caso, a sua cabeça. Ele acredita piamente que você anda conspirando com exonerados algum tipo de tramoia sorrateira e a menos que haja um infiltrado obediente e leal a você até mais do que todos os outros juntos é melhor que nos dê o nome.
- Estão insanos? Pois bem, o papai está e confundiu desacato com traição ao movimento. Eu sinto informa-los, mas de todos os 120 magos desse continente eu fui o mais diligente da história. Honra ao mérito, amigos. Agora me deixem passar, essas pessoas hipnotizadas me olhando é desconfortável.
A porta do estabelecimento sofreu um baque com o arrombamento que assustou o trio de magos.
Pandora surgia e logo ergueu suas mãos para incutir hemorragia intensa neles. Os magos caíram em agonia tendo seus olhos jorrando sangue em profusão. A bruxa logo cansou de atormenta-los com dor e deu fim logo ao sofrimento cortando suas gargantas com uma faca que trouxera. O último tentou agarra-la, mas recebeu o mesmo golpe e morrera na hora.
- Por pouco não respinga na comida. - disse Derek - É melhor nós irmos antes que o pessoal saia do transe, não vai querer tomar café da manhã numa delegacia.
- Posso saber porque da demora? - indagou Pandora, passando pelos corpos. O beijou na boca demoradamente - Eu fiquei vigiando seus passos e percebi que o perigo rondava perto. Não tive outra escolha. Está tudo bem mesmo?
- Sim, não foi nada, os rapazes... só vieram fazer o que meu infame pai não teve coragem. - disse ele, andando até a porta - Mas agradeço o apoio. Você vem ou quer recolher os cadáveres?
- Seu idiota, claro que não, meu estômago tá gritando. - disse a bruxa, acompanhando-o - Mas queria ficar pra bisbilhotar a reação dessa gente, coitados, vão ficar horrorizados.
***
QG do Exército Britânico
Hector estava acostumado com o revirar das entranhas toda vez que olhava para a figura daquele monstro licantrópico robusto, desagradável e feral. Era um contentamento ao híbrido entender pela expressão do caçador que um problema o atormentava para força-lo a pedir um favor.
- As coisas mudaram por aqui recentemente. - disse Mollock bem perto do vidro reforçado, suas narinas expelindo bafo que embaçava - Eu não acho que você sairia intocado para acessar minha cela.
- Conheço um atalho. Minhas mãos estão limpas, ao menos por enquanto. - respondeu Hector, seco - E sei exatamente do quanto esse lugar foi distorcido, virado de ponta à cabeça. Mas não vim para averiguar a situação daqui, por mais que eu deteste, com todas as minhas forças, admitir... vim por você.
Um sorriso largo e fechado desenhou-se na face de Mollock, para a irritação contida de Hector.
- O que foi? Vamos, diga qual é o problema, posso ajuda-lo já que agora é um caçador livre.
- A mesma mulher que você hipnotizou para ter posse do cetro alquímico precisa ser detectada antes do fim do dia, ela tinha ligações íntimas com a Caosfera e seu nome real é Pandora.
- Pandora... Soa um pouco familiar. - falou o híbrido, pensativo - Sabe como é torturante viver sem livros? - perguntou furioso, batendo no vidro - Se ninguém antes me trazia regalias, agora que não será possível mesmo! Essa miserável... Onde ela se meteu? Por que a quer?
- A Caosfera deseja que eu a traga viva para entrega-la em troca de Rosie que foi raptada. Infelizmente o único a quem posso recorrer é você, então é bom que sua cooperação faça valer o risco que tomei entrando sem ser visto. E então, o que acha? Sairá ganhando bastante com isso...
- Vai me tirar dessa masmorra?! - disse ele, empolgando-se de repente - Se estiver blefando...
- Não sou como você. Realmente vou liberta-lo, Mollock. Mas preciso da total garantia de lealdade. - disse Hector, logo virando-se para o painel mecânico que funcionava para abrir e fechar a cela. Transformou-se em licantropo e com as garras trucidou o mecanismo que disparou várias faíscas.
A tranca da porta de vidro impenetrável fragilizou-se, tornando-se frouxa, sendo aberta depois por Mollock que puxou-a para o lado e finalmente pôde pisar num outro solo após tanto tempo.
- Será um prazer trabalhar com você. - disse o híbrido, exibindo uma satisfação desconfiante.
Pelos corredores, Mollock realizava um verdadeiro espetáculo sanguinolento, rasgando os corpos dos magos do caos que apareciam para impedi-los. Pegara o remanescente que tentou escapar, mas tropeçou e suas pernas foram agarradas pelo híbrido que em seguida esmagou sua cabeça num pisão que tremeu o chão. O sangue, bem como pedaços de massa encefálica, esparramou-se largamente.
- Odeio vítimas barulhentas. - reclamou Mollock, desdenhoso. Hector não tinha mais paciência.
- Depressa, antes que venha a cavalaria. - disse Hector passando pelos corpos.
Para a surpresa de ambos, um grupo de soldados do Exército apareceu mirando armas contra eles.
- É estranho terem trocado o fardamento por esses trapos. - disse Mollock - Acho que pintar de vermelho dará um ótimo acabamento.
- Não, espere! - exclamou Hector, erguendo a mão direita para barra-lo - Você já fez o bastante, por ora. - voltou-se aos soldados - Não é o que estão pensando. É uma questão de vida ou morte.
- Você soltar esse monstro é o que consideramos questão de vida ou morte. Pagará caro, Crannon.
- Isso mesmo. Ousa trair o general que tanto se empenhou pra que tivesse importância e acima disso a confiança dele! - criticou o outro, portando um rifle - Podemos ser reféns de malucos egomaníacos vestidos de preto, mas ainda exercemos autoridade sobre vocês, especialmente a besta infernal.
Mollock rosnara feito um cão prestes a atacar, seus olhos lupinos pulsando de ódio.
- Já basta! - gritou uma voz poderosa.
- Por favor, entendam. Preciso dele livre para salvar Rosie. A Caosfera exige que eu negocie. - disse Hector que logo surpreendeu ao ver o general Holt surgir trajando vestes não-oficiais da corporação. O caçador tinha que reconhecer que ele ficava bem de regata branca - General Holt... É você mesmo?
- Fique tranquilo, Crannon. Minha mente não foi comprometida. Não me lobotomizaram.
- Mas e o resto dos soldados?
- Honestamente, não sei. Esses rapazes são tudo que me sobrou. É uma decadência sem precedentes.
- Ainda há esperança, confie e acredite. - afirmou Hector, consciente - Esse mal será extinto, se depender de mim e toda a Legião. É uma promessa. Mas agora preciso que abra passagem.
- Está bem. - disse Holt, espantando os soldados - Sei que não tem escolha para lutar por uma boa causa. Vá e faça o que é certo. Mesmo que haja risco de se arrepender depois. - olhou para Mollock.
O caçador agradeceu a compreensividade do militar, respirando aliviado.
***
As cordas postas por Adam para imobilizar Rosie, o antigo troféu descartável da Caosfera, pareciam feitas de um material que causava ardor e sensação de espetamentos que ficava maior quando forçava para afrouxar os nós na cadeira. O caçador preparava seu arsenal, de costas à ela e ignorando cada palavra de aconselhamento que pudesse esclarecer sua visão ou tentasse reverte-la ao estado anterior.
A maior parte do espaço da sala era escuro, contendo apenas uma luz verde iluminando perto de onde Rosie estava. Dos cantos escuros parecia que alguém entraria de surpresa para vigia-la.
- Pode considerar idiotice o que vou dizer agora, mas... O Hector, como seu melhor amigo, reconhece a sua força melhor do que eu ou qualquer outro caçador que já tenha conhecido. - disse ela, não parando de fita-lo - Vamos lá, Adam. Ainda quero te ajudar, daria minha vida por isso.
- Eu não estava morto e enterrado? Me poupe dessa choradeira. - disparou ele, voltando-se à ela segurando uma pistola descarregada - O que acha que está fazendo? Agora quer me convencer de que ainda existe o homem com o qual se importavam, o bondoso caçador que lutava para salvar vidas a troco de nada. Mais cedo estava toda desinibida afim de recomeçar uma relação que sempre esteve fadada ao fracasso.
- Foi passageiro, mas acreditei, eu juro. - retrucou ela - É a verdade, naquela época... o que sentia pelo Hector era uma faísca comparado a tudo que senti no pouco tempo que convivi com você antes do coma. Mas isso não importa, nesse momento só quero meu amigo de volta.
- Está tentando falar como a Rosie que as lembranças - tocou na sua têmpora suavemente -, mesmo nebulosas ainda, querem que eu saiba e tenha certeza de um dia ter batalhado pra salvar. Mas você não é ela.
- Tocou no assunto do nosso caso, o que indica um bom sinal. O controle está perdendo o efeito.
- Logo mais volto a estaca zero. Não tem escapatória pra mim. - disse ele, guardando suas coisas. Pegara um arquivo que despertou atenção de Rosie - Chega de perder tempo ouvindo baboseira sentimental. Tenho um demônio pra caçar.
- O quê?! Um demônio... Aonde? Adam, me fala! Que demônio é esse? - questionou Rosie, inquieta.
- Será uma longa viagem até Croydon. - disse ele, saindo - Quando voltar, Hector precisa estar aqui com Pandora e negociar sua liberdade.
- Ou...
O caçador parou antes de definitivamente cruzar a porta, logo virando-se para Rosie numa expressão inclemente.
- Ou terá o mesmo destino que o meu. Se for isso, poderemos recomeçar... ou começar de verdade.
Enquanto andava pelo corredor rumo à sua missão, uma recordação recente tomou seu pensamento.
***
Três dias antes
A imagem dantesca dos dois corpos caídos muito próximos um do outro e ensopados de sangue permanecia automática toda vez que Adam desviava os olhos para a sala. Parecia estar constantemente encarando a cena, exatamente quando se deparou na infância, mesmo que não houvesse nada ali. No chão de madeira ainda haviam rastros de sangue, bem secos.
Entrara e o cheio da morte torturou seu olfato. Tudo fedia a morte e carne estripada. Adam não entendia muito bem porque resolveu fazer uma visita a um lugar cuja lembrança mais expressiva era a da tragédia que levou ao abandono daquele lar. Os bons momentos teriam perdido significado? Ele esquadrinhou e pisou em cada cômodo, silencioso e respirando calmamente. Mas se pudesse descrever a forma que sentia-se por dentro diria que o coração sangrava de dor lutuosa.
A aparição de um certo alguém o pegou mais desprevenido do que nunca.
- Olá, meu caro mercenário. - disse Derek sentado à mesa da cozinha - Não tem café sobrando?
- O que faz aqui, seu desgraçado? - indagou Adam, aproximando-se dele na intenção de agredi-lo. Mas nada agarrara quando tentou pegar. O mago surgiu atrás dele, cutucando-o no ombro.
- Estou bem aqui, parceiro. Permita-me lhe apresentar um novo truque: eu estou e não estou aqui. Não é a projeção astral comum, na verdade só foquei minha mente para acha-lo.
- Do que tá falando? Ninguém pediu pra você espionar tudo que faço. O que você quer?
- Cometeu o erro de esquecer seu transmissor. Nunca mais saia de casa sem ele.
- Claro, e eu como seu cãozinho adestrado volto pro QG, você acorda, me chama pelo rádio e libera aquele maldito som... - expressou desconforto na face apertando os olhos para representar a dor dos seus tímpanos sempre ao escutar o ruído agudo - Porque sabe que um resquício no meu subconsciente vai me fazer atender seu chamado na hora.
- Oh, estou impressionado com a perspicácia. - provocou Derek com seu cinismo barato - Mas discordo da parte do cãozinho. Você é meu melhor soldado, longe de mim trata-lo como um animal.
- Eu exijo retomar minha liberdade. - retrucou Adam, andando devagar para próximo dele.
- E estamos no lugar errado para revermos esse acordo. Olha pra isso aqui. - destacou o interior da casa - Olhe pra você. Parece angustiado e deprimido, achei que uma companhia o fizesse feliz.
- Nesse momento eu queria esfolar sua cara nesse chão cheio de farpas, mas é uma pena que esteja como... uma assombração. Para de bancar o desentendido, sabe que estou quase voltando a ser eu.
- Eu temi isso o dia inteiro. Por isso resolvi segui-lo até o lago, pensei em detê-lo antes que jogasse o comunicador na água. Mas veja a prova da minha generosidade: O deixei seguir adiante.
O caçador afastava-se de Derek, querendo o menor contato possível com a presença tóxica do mago.
- O que faria? Me matar?
- Não. - disse ele, sorrindo sacana - Pensei em testar um outro truque sensacional. Eu não preciso necessariamente usar o comunicador como ponte para restabelecer a subserviência completa.
- Fica longe de mim. - disse Adam, temeroso - Já não basta vir até aqui, justo aqui, pra relembrar quem sou. A força do seu controle é incapaz contra minha mente. Desista de mim enquanto é tempo!
Numa fração de segundos, Derek surgira por trás do caçador num falso teleporte fantasmagórico.
- Não acha que é um pouco cedo? - disse ele, logo tocando forte nas têmporas de Adam que soltou um grunhido alto com os olhos fechados e os dentes cerrados num semblante de dor. Derek fisicamente estaria em qualquer lugar, exceto no QG.
***
Restavam somente dois itens essenciais para a caçada: duas lâminas de irídio novinhas em folha achadas num velho armário coberto de ferrugem. Adam as olhou como joias preciosas. Mas a dúvida quanto ao significado da atitude pairava.
***
No quarto de hotel, Derek escrevia algo num caderno pequeno sentado na lateral na cama. Curiosamente fechou-o ao ver Pandora entrar de repente, retornando com passagens de trem.
- Irlanda, aqui vamos nós. - disse ela, exibindo os tickets - Foi uma tremenda sorte, o estoque já ia esgotar. Tem certeza de que isso é mesmo uma ideia segura? Tô questionando, mesmo sabendo que gastei 80 euros.
- É nossa paz que está em jogo. - argumentou Derek - Não vou permitir que nada a ameace.
- E feitiço de teleporte é extremamente chamativo. Não podemos nos deslocar sendo um ponto de luz piscando no radar daqueles desgraçados. É, isso faz sentido, eu demoro a largar de ser teimosa...
- Não, está tudo bem. - disse Derek, aproximando-se dela carinhosamente - Uma nova vida nos espera e mal posso aguentar a ansiedade de... recomeçar. Mas não vou me colocar em prioridade.
- Assim que gosto de ver. Humanidade. - disse a bruxa, encarando-o feliz - Já era tempo da maçã cair longe da árvore. - de um segundo pra outro, Pandora foi acometida por uma intensa dor de cabeça.
- Ah não, o que está havendo? Pandora! - desesperou-se Derek, ajudando-a - O que foi? Diz pra mim!
A bruxa continuava sofrendo com as pontadas que sentia. Efeito colateral da ligação psíquica feita por Mollock que naquele instante encontrava-se numa floresta ao lado de Hector.
- Repasse logo a mensagem, a qualquer momento podem nos flagrar. - disse Hector, meio pessimista, vigilante a cada direção que observava - Será que é possível ela responder durante a conexão?
- Creio que não. - disse Mollock, abrindo os olhos - Gritando de dor é impossível. - riu malicioso.
- Funcionou ou não? - indagou Hector, soando aborrecido - É bom não ter aprontado nenhuma...
Cerca de quatro magos do caos apareceram de cantos meio distantes da mata. Um círculo de luz escarlate formou-se ao redor de Mollock desenhando-se na terra. Hector afastou-se imediatamente, perplexo com as aparições súbitas dos ocultistas que recitavam um feitiço.
- Carcere, distitutor repulsione. - repetiam e elevavam o tom conforme minimizavam a distância.
O círculo diminuía à medida que chegavam perto e a luz vermelha refulgia pulsante. Mollock tinha a sensação de paredes querendo imprensa-lo.
- Mas o que significa isso? - questionou o híbrido, louco de raiva - Hector! É parte dessa armadilha?
O caçador só andava para trás e fez que não com a cabeça. Um mago escondia-se num arbusto e disparou pelo canudo um pequeno dardo contendo uma gota da toxina neutralizadora de licantropia.
Hector caiu sentindo a picada no pescoço e logo viu o dardo que removeu. "Não pode ser, de novo..."
- Não! - vociferava Mollock, cada vez mais apertado pela força do feitiço. Assim que os magos alcançaram o ponto, o híbrido foi tragado por um vórtice que o fez desaparecer.
O mago responsável por dopar o caçador saiu da moita.
- Então o alvo na verdade era Mollock? - perguntou Hector, enfraquecido.
- Não exatamente. Mas agradecemos pela ideia de torna-lo seu parceiro, nós estávamos interessados nele faz tempo e agarramos a oportunidade perfeita. Se ele tivesse fatiado a todos lá no QG, jamais conseguiríamos pega-lo sem informações cruciais. O general tapa-olho continua de mãos atadas. - disse ele, dando uma risadinha escarnecedora.
Enquanto isso, Pandora rapidamente esvaziava o roupeiro para encher a mala.
- Hector não devia ter pedido ajuda a Mollock, ainda que ele não estragasse tudo.
- O que é isso? Agindo impulsivamente porque Crannon falhou?
- Mudança de plano. - disse ela, olhando-o - Vamos pra casa de Hector, é protegida com uma barreira que criei quando Rosie esteve apagada pelo meu feitiço do sono. Daí vamos discutir como vai ser.
- Ma-mas... Ele me odeia, não quero ser mordido por um licantropo logo agora que estou vivendo a humanidade sem magia do caos interferindo nas minhas emoções. Quem vai estragar tudo é você.
- Nada disso. Ele vai nos dar abrigo, quer ele goste ou não. - declarou Pandora, firmemente.
***
Croydon
A fila que Adam havia pego estava quilométrica inicialmente. Abastecido de informações que obteve com o arquivo registrado para apuração de pistas e evidências, o caçador se dirigiu ao centro de consulta para realização de desejos organizado por um homem que muitos consideravam uma espécie de "deus" graças ao seu fascinante poder de concessão ilimitada a qualquer anseio humano.
Todos os indícios levavam a crer que o "sagrado homem" não passava de um disfarce humano para o demônio da Inveja que instalou-se na cidade para interferir psiquicamente nos habitantes, testando diferentes níveis de cobiça e ambições. A vez de Adam demorou cerca de duas horas e meia a chegar.
Uma sala revestida de preto iluminada somente por um abajur de luz branca na mesa do anfitrião. O demônio ergueu os olhos verdes para Adam com sua face quadrada e de boa aparência.
- Finalmente te encontrei. - disse o caçador, sério. Sacou a adaga - Vamos pular as formalidades.
- Então não veio ouvir meus conselhos e testemunhar minha dádiva? Nem ao menos vai sentar?
- Pouco me importa o que anda fazendo, isso acaba hoje. - rebateu ele, aproximando-se.
- Espera aí... - disse Inveja, levantando-se rápido - Se esfaquear meu corpo, todos os voluntários perderão seus lindos sonhos, eu não tirei nenhum centavo do bolso deles. Ganância faria isso.
- Então sabe onde ele está? Ou todos os outros demônios?
- Vá com calma, sei exatamente do seu desejo... - disse Inveja, erguendo as mãos num gesto pacificador - Sua mente está... desordenada, cheia de conflitos emocionais, é uma espiral de culpa.
- Não sinto culpa de nada. Responde logo! - disse Adam, destacando a adaga.
- Eu não sei! Combinamos de não revelar nossas localizações uns pros outros. Digo a verdade, mas você deve parar de mentir pra si mesmo.
- Como tem certeza dos meus sentimentos? É só uma aberração sobrenatural fingindo altruísmo... - derrubara a mesa com um chute - ... e satisfazendo o egoísmo de gente que dá pra tirar proveito.
- Investi tempo nisso aqui pra ajudar pessoas, não será diferente com você.
- Eu não quero nada vindo de você! - disse Adam, apontando a adaga, querendo desferir logo o golpe.
- Tem certeza? - indagou Inveja, estalando os dedos. A aparição de uma Rosie desnuda reduziu seu estresse, embora o distraía do seu objetivo - Veja como ela desfila na sua direção. Lide com isso, Adam: Você sempre invejou seu melhor amigo em relação à ela, até mesmo transou com ela e os dois mantiveram segredo dele. Além do mais, Hector nunca esteve tantos degraus abaixo na escada como você... que só foi alcunhado líder por causa da sua sede projetada nele e não por esforço próprio.
- Eu não mereci? - questionou ele, atordoado. O nevoeiro mental dissipava-se aos poucos. A falsa Rosie pousou delicadamente as doces brancas mãos nos ombros dele, o olhando sedutora.
- Posso desfazer o seu fracasso. - disse Inveja, tentando-o - Começando a torna-la sua, toda sua.
- Não... - disse Adam, ignorando as carícias da falsa Rosie - Está tentando distorcer minha mente.
- Pelo contrário, quero cura-la. Aceite os fatos: O seu ciúme é a consequência direta do ódio que você sente por Hector devido a traição dele. Ele foi desonesto. E você? Será também? O caminho da hipocrisia pode ser evitado assumindo que estou certo.
- Já chega! - exclamou Adam, logo enfiando a adaga no peito do demônio que estava à sua direita. A imagem de Rosie desapareceu completamente. O caçador, usufruindo da força que a experiência da Caosfera lhe conferiu, empurrara Inveja, já petrificado, que impactou forte na parede até que caiu desmanchando-se em cinzas.
- Se existe alguém que pode escolher como devo seguir em frente certamente não é ninguém além de mim. - declarou o caçador, sentindo-se vitorioso por romper a bolha que fechava sua mente.
No local de confinamento, Rosie era maltratada pela dor excruciante de receber mais um pedaço de sua alma.
***
O sol estava para se pôr quando Hector voltara ao casarão andando meio cambaleante nos últimos minutos do efeito da toxina anti-lobo no organismo. A surpresa quase lhe arrancou o ar na entrada.
- Adam? - indagou, descrente - Não pode ser... Eu não tô entendendo...
- Hector, por favor, me escuta. - pediu ele, triste - Eu lamento pelo que fiz. Isso é sobre Rosie. Não entre nós, que fique bem claro. Falhei com ela. Matei um dos sete pecados e vim direto pra cá. É a última vez que te peço desculpas. Por ser um amigo egoísta, mau perdedor e desonesto.
Hector não ligara para aquele desabafo, apenas encaminhou ao amigo e o abraço fortemente. Adam não correspondeu.
Distante de lá, numa área de difícil acesso na sede da Caosfera, Mollock estava em custódia, preso numa barreira mística sustentada por um círculo com velas. Tentava quebra-la insistentemente, mas nada fazia. Seus urros furiosos reverberavam. Todos ali presentes pareciam esperar alguma coisa com expectativa, algo vindo da escuridão de uma passagem.
- Vamos, não seja tímido. - disse um mago segurando e puxando a corrente ligada a uma coleira que prendia o pescoço de uma criatura. O mago olhou para Mollock - Trouxemos o seu colega de cela.
- Isso... é algum tipo de brincadeira? - perguntou Mollock, estupefato com o que vinha.
- Diga olá para nosso mascote. - disse o mago trazendo à luz um ser de envergadura igual à Mollock, mas de pele branca e usando uma focinheira metálica - Quem você é? - perguntou ele para a criatura.
A fera proferiu suas palavras que saíram altas de um jeito sinistro.
- Eu... sou... Mollock!
CONTINUA...
*A imagem acima é propriedade de seu respectivo autor e foi usada para ilustrar esta postagem sem fins lucrativos.
*Imagem retirada: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhGJnSGDOPhY711EcrlesqlUJ2NBBD0a1OZdte7_JRG28KumI4-3ZTBHMpkygQlmHEZcTpfmjPNVESNEf2iI9hogfkfv1ClM_SzqrnMqol_waSmigzx0k8O1cS4vw-q5lolXJFs7IMeHJQb/s1600/casafantasmal.jpg
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