Capuz Vermelho #67: "Cruzando a linha de fogo"
CAPÍTULO 67: CRUZANDO A LINHA DE FOGO
A face congelada em puro horror fitava aquele corpo encharcado de sangue tombar ao chão de bruços. Derek não pôde olhar profundamente nos olhos de Pandora uma última vez, mesmo que durasse um segundo, sem dizer o quanto a amava - ou sempre amou, como nunca antes admitira. A poça de sangue escuro tomava forma, quase alcançando os bicos das botas da bruxa que jamais esqueceria aquela cena bárbara e os sons das garras desencravando da carne.
À medida que Mollock aproximava-se para fazer dela sua próxima vítima, ela sequer movia um músculo, seja dos braços, das pernas ou os faciais. O sangue gotejava das unhas afiadas da criatura.
- Essa impassividade toda aumenta meu apetite. - disse Mollock, a fusão entre o original e a cópia biologicamente evoluída - Fique bem aí, não sentirá nada mais que um estalo antes de partir ao além, no seu caso o Tártaro.
O intenso cerrar de punhos da bruxa foi como uma canalização de energia.
- Tempestas! - disse ela, disparando das duas mãos raios azulados que penetraram faiscantes em Mollock , mas não efetuavam nenhum dano. Pandora emitia um grito de extravasamento pela perda, toda sua fúria convergida naquelas descargas que emulavam a ira divina de Zeus, o pai verdadeiro da semideusa. Elevava a potência dos raios ao passo que lágrimas brotavam e escorriam. O golpe não perpetrou nada além de uma paralisação indolor para Mollock.
- Isso fez cócegas. - disse ele - Como esperado de uma praticante de magia meramente humana.
- Não... - lamentou Pandora, vendo a ineficácia de sua mágica, ainda mais usando uma herança genética - Agora consigo ver... Você é a fusão dos dois Mollocks... Derek tinha um pressentimento ruim e ele estava certo, era tarde demais!
- Guarde essas lágrimas para quando se reunir à ele no outro mundo. - disse Mollock, não tão paciente quanto o original para falatórios prolixos, avançando contra a bruxa, as garras em riste.
Pandora esticou novamente os braços, lançando uma onda pulsante para repeli-lo e mante-lo longe. O tri-híbrido foi afastado em uns centímetros, a cabeça inclinando para trás. Ele insistira, mas a bruxa repetiu o ataque enquanto recuava. "Hector, Adam... Venham logo, depressa!", pensou ela, certa de que não iria manter vigor contra aquele monstro sanguinário.
Simultaneamente, Rosie e Hector ainda estavam na sala onde, fora a bomba d'água e o caixão hermético, viram instrumentos cirúrgicos rudimentares e aparelhos de tortura nos armários e na mesa.
- Está tudo bem mesmo? - perguntou Hector.
- Sim, eu... só preciso de ar fresco. Considerando a chance bem remota de você não ter chegado até aqui sozinho, inteiro e vivo, eu quero saber... Quem está com você?
- Por mais inacreditável que pareça... Derek sugeriu que viéssemos hoje resgata-la. Mas calma, nada de histeria. - disse ele, antecipando-se à reação dela - É muito pra explicar, mas...
Adam surgira de repente portando seu rifle, o que causou estupefação imediata em Rosie.
- O que tá acontecendo? - indagou ela - Te mandaram retaliar não foi? Naquela sala não fico mais presa.
- Rosie... - disse Adam, vindo para abraça-la. A jovem não resistiu, tocando-o suavemente, embora confusa - Por um momento pensamos no pior, mas finalmente achamos você sã e salva.
- É o tipo de coisa que o antigo Adam diria... - falou ela, olhando em seguida para Hector que deu um sorriso discreto e uma piscadela. Rosie assentiu, convicta, voltando-se para Adam - Bom ver você de novo.
- Sinais de Pandora ou Derek? - perguntou Hector.
- Ela também?! - disse Rosie, surpresa - Vão me contar tudo no caminho de volta. É surreal... Como assim a Pandora entrou no nosso time? E o Derek? Dias atrás eram inimigos e de repente...
- É muito mais confortável te-la entre nós do que ele, apesar dele estar completamente esvaziado de magia, pelo menos em algo temos de agradecer à Hamilton Marshall, chefe-geral da Caosfera Britânica. - disse Hector. O pasmo de Rosie não parava de crescer.
- A gente pode deixar os detalhes pra quando estivermos em casa, eu acabei de sair de um caixão apertado e sufocante, não tô pronta pra encarar tantas reviravoltas assim. - disse Rosie, atordoada.
- Vou dar uma olhada no corredor. - disse Adam - Ah, e nenhum dos dois reapareceu. Será que foram emboscados?
- Lembrando que Derek avisou sobre as intenções da Caosfera com Mollock e o seu... irmão gêmeo.
- Falou que pensavam em fundi-los e que provavelmente já tenham feito. - disse Adam - Notei uma certeza na voz dele.
- Eu também. Mas particularmente não desconsidero que Derek se atreveu a nos trair pra conduzir Pandora à uma armadilha. Ele é dissimulado e manipulador. Sabia do nosso principal objetivo e nos dividiu mandando você e eu cuidarmos do resgate.
- Mollock esteve aqui... E tem uma espécie de irmão? Minha cabeça vai explodir. - disse Rosie.
- Alcançamos você depois. - disse Hector para Adam que rapidamente foi vistoriar o corredor.
- De que jeito a mente dele foi consertada? - questionou Rosie - Espera, já sei... A nossa santa milagreira deu o seu toque de mágica e você, tão confiante na generosidade humana, abriu espaço sem pensar nas consequências que toda magia traz.
- Se conhecêssemos uma outra bruxa do caos renegada que fosse digna da nosso apoio, você teria a mesma opinião? Seu problema não é com a magia. É com ela. - disse Hector, logo saindo da sala. Rosie suspirou longamente, refletindo a sua visão acerca da semideusa antes de sair por último.
No mais espaçoso local do subterrâneo, Pandora persistia nas ondas pulsantes contra Mollock que apenas excitava-se ainda mais por ver o medo estampado na cara de sua vítima. A bruxa ofegava pelo desgaste rápido frente a um ser que em sua versão híbrida e única demonstraria larga desvantagem perante a magia do caos.
- Agradeço pela brisa refrescante... - disse Mollock, incansável - ... e pelos arrepios, as cócegas e a total ausência de instinto auto-preservativo. - ergueu sua manzorra para estripa-la numa só vez.
Tiros dispararam contra seu corpo impenetrável. O monstro visualizou o atirador com sua visão ajustada à escuridão. Adam saía do breu atirando com seu rifle, atrás vindo Rosie e Hector.
- O corpo dele é invulnerável! - avisou Pandora. Adam cessou, espantado com a resistência física do tri-híbrido.
Ao escutar passos avizinhando-se diretamente até lá, Mollock prontificou-se para fugir, mas não sem antes despistar os inimigos do seu campo de visão. A boca do monstro fumegou e dela ele retirou uma esfera de fogo que jogara no chão como uma bola. Uma explosão de fumaça criou uma onda de choque que dispersou os quatro, derrubando-os. Hector ajudava Adam a levantar-se, tossindo.
- Estão todos bem? - perguntou ele, procurando por Rosie.
- Sim. - respondeu ela, aparecendo e tentando dissipar a fumaça com a mão - Pra mim aquele parecia o Mollock que conhecemos. Derek errou na teoria.
- Apenas parece. - disse Pandora, já de pé, abatida - Nesse ambiente escuro é possível confundir. - encaminhou-se até o corpo do namorado - O pior é que sua sede de sangue ficou mais incontrolável.
Hector acompanhou o olhar da semideusa e estarreceu-se.
- Derek... Não pode ser, ele... Está morto?
Pandora fez que sim com a cabeça, logo agachando-se para dar seu último adeus. As lágrimas voltaram mais profusas junto a ardência nos olhos. Percebeu uma ponta de papel no bolso do casaco preto que o ex-mago usava. Um papel dobrado que retirou e que continha uma mensagem enigmática.
- Que pena. - disse Adam, sensibilizado - Daria meu voto a favor pra ele ser membro honorário.
- Eu sinto muito. - disse Hector, atrás dela. Uma ponta de tristeza pela dor da bruxa foi sentida em Rosie, mas logo rejeitou.
- Dando as condolências pra alguém íntimo de uma pessoa que você jurou matar... Para com isso. - disse ela, guardando o papelzinho por baixo da sua roupa - Não é hora de parar pra remoer, lamentar e ficar deprimida. Vamos em frente, juntos pra acabarmos com ele. Belphegor é segundo plano. Temos que sair daqui, devem haver saídas alternativas.
- Foi estranho o jeito como ele hesitou nos atacar. - disse Adam.
- Não hesitou. - contrariou Pandora - Apurou sua audição, detectou presenças, provavelmente demônios. O que significa que Belphegor foi notificado sobre o que fizeram aqui.
- E o que estamos esperando? Onde fica essa outra saída? - perguntou Rosie.
- Me sigam, fiquem todos juntos. - disse Pandora.
- Hector não me disse que foi promovida a líder. - provocou Rosie.
- Não tô liderando - disse a bruxa, frígida no tom -, acontece que sou a única pessoa ao lado de vocês que pratica magia do caos a sobrar que conhece cada polegada dessa sede, inclusive essa área. Se não gosta do guia, não reclame do passeio.
Rosie expressou chateação, mas seguiu-a rumo à alguma outra passagem. Ao encontrarem, percorreram um corredor de paredes melhor lapidadas iluminado por pequenas lamparinas amarelas que terminava numa porta dupla de pedra, a qual Pandora empurrou devagar sem queixar-se do peso. A semideusa estacou e ficara boquiaberta com o que descobrira. Hector, Rosie e Adam levaram um susto. Em especial Rosie que fechou os olhos tentando afastar as lembranças do que tinha feito.
Inúmeros magos do caos estavam espalhados pelo salão, todos mortos e molhados de sangue fresco.
- Não olhem pra mim, eu não fiz isso. - disse Rosie, querendo evitar uma suspeita - Eu derrotei alguns quando me soltei, mas foi no primeiro andar, não pedi acesso até aqui, na verdade eu só interroguei um deles à força sobre o meu brasão. - verificou para ver se estava com o colar - Ah, aqui está, Leo certamente o pôs de volta enquanto fiquei apagada.
- Ninguém está a acusando. - salientou Hector - Obviamente que o responsável desse massacre foi Mollock.
- Sem dúvida alguma foi aquele Mollock ainda mais forte e sanguinário. Ele não parecia estar sob um encanto hipnótico, muito menos passou por engenharia cerebral, se é que dava tempo pra fazerem isso. - disse Pandora, a mão direita levemente erguida como se tentasse sentir algo - Há traços de magia vindo daquele altar. - passou por entre os cadáveres.
- Pelo que deu pra ver, e ainda tô tentando acreditar, aquele monstro tá fora de qualquer alcance do Colégio de Caçadores, talvez da Legião também. Carreguei a arma com balas de prata bem grandes esperando que uma hora ou outra íamos dar de cara com ele. - disse Adam - Acho que não restou um pra contar história. - visualizou abismado os corpos sangrentos.
Pandora, próxima ao altar, virou-se aos três.
- É, pessoal. Foi nesse exato ponto onde se fundiram. O original já tinha dificuldades de controlar sua fome e a soma dos dois gerou uma aberração ainda pior. - descera, voltando à eles - Ele não vai se satisfazer com uma matança só e os demônios podem não conseguir conte-lo. Você é o planejador, Hector. O que me diz pra impedir assassinatos em massa lá em cima?
- A pergunta que eu faria é: E a alma da Rosie? - disse a jovem, confrontando-a - Virei terceiro plano?
- Esperem aí... - disse Hector, concentrado. Sua superaudição captava sons aproximados - Ouço passos... meio intermitentes. Devem ser eles. A tropa de Belphegor está vindo diretamente pra cá.
- Intermitentes?! Podem estar se teleportando. - deduziu Pandora - OK, deem as mãos. Não conheço outro feitiço de teleporte que não chame atenção e nem deixe rastros, então usarei aquele.
Hector segurou a mão esquerda da semideusa e Rosie segurou a dele que segurou a direita de Adam. Porém, o caçador relutou dar sua mão à Pandora.
- Adam, sou uma profissional. - disse ela, esboçando um sorrisinho - Vou levar todos nós pra casa.
Ele desviou um olhar nervoso para Rosie e Hector que assentiram para convence-lo. Lentamente ele oferecia sua mão à dela. Pandora segurou-a firmemente. Adam sentiu gelidez na mão da semideusa, denotando que sua estabilidade emocional era falsa, afinal havia acabado de presenciar a morte cruel do homem que amava. Os demônios, sem disfarces humanos, dobraram para o corredor e viram fachos de luz vermelha atravessando a soleira da pedregosa porta. Todos correram até ela, mas a luminosidade apagou-se. Depararam-se com a marca do círculo mágico no chão repleta de brasas.
Vendo o numeroso grupo de mortos, um dos demônios voltou-se aos companheiros.
- Reportem ao grande mestre. A filha de Zeus acaba de nos declarar guerra. - disse ele, atribuindo a responsabilidade da carnificina com base no círculo pois mal sabiam que uma besta avassaladora fora a autora e que escapou despercebida.
***
Na sua sala particular, Leo apoiou os cotovelos na mesa de mogno, passando as mãos no rosto em sinal de cansaço. "Por que essa sensação de esgotamento? Nem troquei socos com aquele metido que veio interferir no processo de corrompimento que deveria ter surtido efeito rápido nela no Tártaro".
Alguém batera na porta.
- Não é necessário bater, seu idiota. Ande, entre!
Um dos magos do caos trazia um envelope branco e parecia surpreso.
- De quem é essa carta?
- É especialmente remetida ao senhor... pelo grande mestre. Se reuniu agora há pouco conosco.
- O quê?! Ele esteve aqui? Que sentido isso faz? Segundo o que papai falou, as relações entre a fraternidade e os demônios ficaram estremecidas recentemente. Selaram a paz?
- Paz é a última coisa que teremos daqui pra frente se persistirmos no nosso objetivo ambicioso, cada vez mais distante da realidade. O chefe quase perdeu a cabeça ao fim da reunião, contrariou a decisão do grande mestre.
- Que decisão foi essa? E você me chamou de senhor...
- Exatamente. Estou diante do sub-comandante do exército vermelho. Assinando a carta na linha que ele traçou, significa um "sim" à proposta. Até segunda ordem, estamos sem um líder, mas depende da sua vontade.
- Por que não me chamaram?
- Ele, o grande mestre, quis dar mais espaço à você em respeito à sua dor causada pela perda.
- Do que tá falando? - perguntou Leo, a paciência estourada, franzindo o cenho - Que perda? Minha magia? Tudo bem que magos do caos não recuperam seu chackra depois de ressuscitados, mas já resolvi isso. Ele deve saber que fui um profeta.
- Não, falo do seu irmão. - revelou o mago, direto - Derek foi morto por Mollock, falhamos em doma-lo e ele saiu descontrolado, matando vários outros. Talvez ainda esteja no prédio, fatiando sabe-se lá quantos dos nossos.
Uma expressão meio neutra se desenhou na face de Leo. A frieza provocou desconforto no mago.
- Não vai dizer nada, senhor?
- Sai daqui. - baixou a cabeça - Sai daqui! - assustado, o mago se retirara às pressas. Uma crise de tosse acometeu Leo. Cobriu a boca com a mão, mas ao olhar constatou gotículas de sangue e um medo arrepiante se desencadeou.
***
Foi preciso uma insistência corajosa e paciente da parte de Pandora para sugestionar Rosie acompanha-la numa viagem por Londres cujo fim nada mais era que obter respostas relacionadas à mensagem secreta que a bruxa descobrira no casaco de Derek, isto sem avisar exatamente por onde e por quem começariam a busca. O táxi amarelo parou numa esquina e ambas desceram. Rosie saiu primeiro, andando devagar ao esperar Pandora pagar a corrida.
- Fico feliz que não forçou a barra para que eu desembolsasse. - disse Rosie.
- Nada mais justo que ser por minha conta. Eu dei a ideia, afinal de contas. - declarou Pandora.
- Está bem, abre logo o jogo sobre quem vai nos ajudar a decifrar esse código.
- Não estou contando com uma só pessoa, pra dizer a verdade não é ninguém lá muito específico. - disse a semideusa, caminhando ao lado de Rosie por uma rua pouco movimentada - Só te aconselho a esfriar a cabeça, pensar positivo e controlar sua impulsividade porque eventualmente você recuperará mais pedaços da sua alma. O Hector tem um faro investigativo acima do normal.
- Sorte a nossa encontrar pistas logo de dois demônios. - disse Rosie, parecendo contente - E numa mesma cidade. Windsor ao menos não fica tão longe da capital. Foi por essa razão que me obriguei a vir com você, não ia ficar sozinha em casa o dia inteiro morgando sem informação de nada.
- Eu pedi incansavelmente porque necessitava de uma parceira. - disse Pandora, dobrando para outra rua - Sei que não vai facilitar pro meu lado pois devo ser um exemplo universal de altruísmo pra merecer seu perdão.
- Eu não quero falar sobre isso.
- Uma hora vamos conversar sobre isso. Sou sua hóspede, esqueceu? Tenho bastante tempo pra resolver essa desavença.
- Que eu espero não durar o suficiente pra minha situação complicar, porque... Já reparou que quase todo lugar por onde você passa alguém sempre se machuca, morre ou se afunda em problemas?
- Rosie, eu liberei o mal sobre a Terra, destruí a estação de paz da humanidade. O meu carma é mais do que qualquer um pode suportar. A metade divina ajuda de vez em quando mais do que atrapalha, é minha sustentação psicológica.
A dupla atravessou várias ruas e Rosie estranhava, vendo as residências, placas e estradas soarem familiares.
- Pandora... Pra onde exatamente você tá nos levando?
- Voilá. - disse ela, parando e fitando um complexo bem conhecido. Rosie franziu o cenho, irritada.
- É brincadeira, não é? - indagou ela - Por que voltamos pra cá? Não tá pensando em...
- Recorrer à possíveis sobreviventes que pude rastrear graças ao feitiço localizador avançado? Sim.
Rosie balançava a cabeça, reprovando veementemente a ideia.
- Entraremos pelos fundos. Vem, eu te protejo se fomos incomodadas. - disse a bruxa. A jovem baixou os ombros, rendida, e seguiu-a.
***
Windsor
Hector e Adam separaram-se para investigarem individualmente cada principado descoberto em atividade. O braço forte da Legião andarilhava pela famigerada ponte, mas tudo aparentava estar deserto até para um dia comum da semana e em pleno horário de alta concentração de pessoas. Avistou um homem deitado no chão, vestido com paletó cinza e com um chapéu de mesma cor tapando seu rosto. A maleta preta à uns metros de distância claramente lhe pertencia.
- Olá... - disse Adam, aproximando-se - O senhor está bem? - agachou-se e tirou o chapéu sobre a cara dele. O homem se encontrava num profundo sono - Bêbado? Dopado? Não... Só dormindo como um bebê.
O caçador o cutucou no ombro, mexendo mais forte para acorda-lo.
- Saia, não vê que estou descansando? - disse o homem, aborrecendo-se sem despregar os olhos.
- Olha, pela sua maleta que deixou caída ali é óbvio que o senhor estava a caminho do trabalho.
- E daí? - indagou ele, a voz exalando fadiga - Hoje não faço hora extra nem a pau.
Adam levantou-se e sua estranheza aumentava, logo prosseguindo e não importunando mais aquele trabalhador e sua soneca. Ao chegar no centro da cidade, um silêncio sinistro pairava em meio às desérticas ruas onde papéis e outros lixos eram arrastados pelo vento da manhã. Ele vira uma casa cuja janela estava descortinada, alguém o observava. Uma mulher de semblante tristonho e abatido.
- Ei! - chamou Adam - Espera, não fecha, só quero falar com você!
A mulher descabelada quase fechara a cortina, mas acatou o pedido. Ela abrira a janela na vagarosidade de uma lesma.
- Sabe me dizer que tipo de fenômeno aconteceu nessa cidade? As ruas estão vazias, até achei um homem dormindo na ponte, parece que estava indo ao trabalho e a senhora...
- Por que não está doente? - perguntou ela, a fala baixa e compassada.
- Doente? Não, eu... não sou residente daqui, estou numa missão. Sabe quando essa onda de preguiça começou?
- Eu... não sei, não lembro. Sinto como se horas passassem como dias e dias como anos. - a mulher demonstrava tontura, praticamente numa confusão mental - Falando... mais devagar... assim... é... mais fácil... de entender.
- Senhora... - Adam preocupou-se com o estado da mulher - Não durma agora... Precisa me informar mais, se esforce.
Repentinamente, a mulher combaliu sobre a janela entre o lado de dentro e o de fora, seus cabelos tocando o gramado do seu jardim. Adam verificou o pulso dela. Estava morta como se tivesse sofrido uma parada cardíaca.
Enquanto isso, Hector entrava num bar lotado de pessoas e embargado de odores alcoólicos. Passou por entre vários frequentadores, dirigindo-se à um rapaz sentado perto do balcão. Tocou-o no ombro e o mesmo virou-se de súbito. Encarou o caçador com intensa desconfiança em seus olhos verdes.
- Posso ajudar? - indagou ele - Você me pegou e pensei que fosse o cobrador do aluguel vindo arrancar minha cabeça.
- O que cobro são explicações a respeito de alguns eventos ocorridos aqui. - disse Hector, direto ao ponto - Brigas, arruaças, pancadarias... De 8 testemunhas que interroguei, 7 afirmaram que você foi o único a sair ileso. Uma delas me mostrou um desenho realista.
- Fizeram um retrato falado meu?! Eu não tive nada a ver com as confusões que fizeram, eu apenas fui cuidadoso e não me intrometi. É crime se proteger saindo de fininho pra não ser acertado por uma cadeira?
- Chamaria de crime incitar violência por meios... fáceis demais. - afirmou Hector, sorrindo de canto, auto-confiante. O demônio da Ira engoliu em seco, mas tentou hipnotiza-lo para despertar fúria nele. Porém, o caçador mantinha-se inatingido.
- Não fiz nada além de fugir, sou inocente. - disse ele, logo andando em direção a saída.
"Fugir? Como está fazendo agora?", pensou Hector, o seguindo.
***
QG Alternativo do Exército Britânico
Durante a passagem de Mollock que removia cada obstáculo da sua frente, todos os soldados que permaneceram fiéis ao general Holt refugiaram-se numa sala branca e ubíqua, mas que para o número do pelotão não oferecia desconforto. Lá puderam encontrar um armamento novo em folha guardado num armário projetado para ser aberto em casos de emergência.
- Um arsenal desse peso deve ter custado uma fortuna. - comentou um soldado - Pra manejar essas belezuras, é porque a coisa tá feia, alerta vermelho total. - Holt começava a dividir as armas de grosso calibre para seus homens.
- Aquele facínora... - disse o general referindo-se à Hamilton - Parece que desistiu do plano de programar minha mente por piedade. Nos tornamos párias, um bando de desclassificados.
- Não acho que seja esse o momento mais apropriado pra se maldizer, chefe. - disse um outro - Conseguimos escapar intactos de um monstro arrasa-quarteirão que está à solta por aí aumentando a pilha de cadáveres na sua conta. Eu tô cheio desse Mollock, quero explodi-lo em mil pedaços.
Os demais concordaram e se estimularam. Holt olhou para cada um deles, revendo sua perspectiva.
- Temos uma chance esta noite. Não digo apenas sobre a abominação, mas também ao nosso renascimento como homens de fibra que nunca se dobrarão ao inimigo e nem mostrar medo de derramar sangue por esse país. - levantou sua metralhadora - Hoje é o dia... que iremos recuperar toda nossa honra desmoralizada por usurpadores desgraçados!
Todos gritaram em coro de apoio, erguendo suas armas. A porta foi aberta e a visita pegara-os de surpresa. Hamilton adentrava sem pedir licença, focando-se em Holt que lançou um olhar furioso.
Os soldados apontaram as armas para ele rapidamente.
- Muita coragem sua de vir, miserável! Reavemos recursos e brevemente reconquistaremos a autonomia.
- Quero que use esse espírito de luta contra a besta que massacrou vários dos meus homens. Em outras palavras, sendo mais direto, estou propondo uma ação cooperativa entre nós e vocês.
Holt sentiu vontade de gargalhar alto naquele momento, mas conteve-se.
- Adoro reviravoltas. Experimentou a glória de triunfar com seu exército... agora sabe como é fracassar o vendo morrer diante dos seus olhos. Me recuso a unir forças com quem destruiu minhas esperanças. A captura dele é nossa e de mais ninguém.
- Então está certo. - disse Hamilton, conformado - Não esperava que fosse funcionar. - retirou-se da sala - Vou organizar o que ainda me resta e veremos quem é melhor.
***
No recinto privado onde Pandora havia combinado de encontrar aqueles que escaparam da morte pelas mãos implacáveis de Mollock, a semideusa entrara ao lado de Rosie. O cômodo estava de luz acesa e os três anfitriões levantaram-se assim que viram a "convidada de honra" chegar.
- Finalmente. - disse um deles, chamado Mark, rapaz de cabelo dourado - Sempre ouvi elogiarem sua pontualidade.
- Nunca falho nisso. - respondeu Pandora - Ainda mais agora que a situação urge para ficarmos com a custódia de uma fera assassina. Sem mais delongas, quero ir direto ao ponto.
- Vejo que trouxe uma amiga. - disse Mark olhando para Rosie. Deu uma piscadela maliciosa - Seja gentil e nos apresente-a.
- Em primeiro lugar, piscadinhas não bastam. Em segundo lugar, não creio que ela deva obedecer ordens suas. E em terceiro lugar: Não sou amiga coisa nenhuma.
- Oh, que pena. - disse Pandora, bem-humorada para fingir chateamento - Estava quase voltando a acreditar que estávamos acertadas antes desse frustrante terceiro lugar- voltou-se aos magos - Esta é a Rosie. Tentem abusar dela e adeus vida nova.
- É claro, inseriu uma barreira anti-magia quando ela era apenas uma casca putrefata. - disse outro.
- Não entenda mal, o que o Robbie quis dizer... - Mark estava visivelmente perdido - ... não é o que parece, ou seja, não somos mais lambe-botas do Derek.
Pandora baixou a cabeça, entristecendo-se ao rememorar a terrível cena. Robbie acendera as velas na mesa redonda passando a mão sobre elas.
- Ei, tem certeza disso? - perguntou Rosie à Pandora - Precisam de muito mais que só aceitar o trato pra convencer de que estão cansados da Caosfera.
- Ahn... - disse a bruxa, pigarreando - Estão de pleno acordo em darem-se como mortos para que o patriarca Marshall não saiba da nossa parceria? Que vão embora do país com identidades, convicções e metas de vida totalmente mudadas?
- Juramos solenemente... - disse Mark, fazendo suspense - ... que sim. Promessa é dívida.
- Muito bem. Vou me concentrar. - disse Pandora - Me deem as mãos. Primeiro rompemos a blindagem que torna Mollock indestrutível contra a magia. Depois botamos medo nele. Um medo que vai força-lo a seguir nossos termos.
- O que pretende? - perguntou Stephen, o menos comunicativo.
- Vou paralisar o coração dele. - disse Pandora com firmeza - Aliás, desacelerar gradualmente. Vamos lá. - fechara os olhos.
***
O demônio da Ira abrira a enferrujada porta dos fundos do bar como quem sai às pressas para resolver uma emergência. Arriscou uma olhadela para trás. Viu Hector no seu encalço e xingou mentalmente.
- O que tá querendo de mim? Não cisma comigo desse jeito, não fiz nada! Me deixa em paz!
- Pois bem, vou simplificar: As testemunhas afirmaram que o viram muito próximo de onde geralmente as brigas iniciavam, ou seja, você sempre esteve por perto daqueles que começavam as agressões. Chega de fingimento, seu demônio maldito. - disse Hector, mostrando sua adaga de irídio.
Ira respondeu com uma risadinha infame, sequer parecendo intimidado. O demônio subitamente abriu sua boca da qual saiu uma intensa onda supersônica, somado a um grito estridente e colérico, que fez o caçador flutuar imobilizado. Hector foi jogado contra uma parede, caindo sobre umas latas de lixo.
- Gostou de sentir a ausência de gravidade? Não ligo pra que tipo de monstrinho você é - pegara a lâmina com telecinesia, segurando o cabo -, mesmo que não possa ser afetado não pode me vencer. - virou as costas, vangloriado.
Hector enfezou-se e correu em supervelocidade para aborda-lo, tomando-lhe a adaga e empurrando-o sobre outras latas de lixo ao lado. Ira defendeu-se segurando o braço do caçador com a adaga mirada. Um duelo de forças descomunais.
- Escolhi deixa-lo vivo. Você tá me irritando de novo. - disse Ira, desnudando sua face vermelha.
- É a intenção. - disse Hector, perseverante na luta. O caçador conseguira baixar a ponta da adaga no peito do demônio que instantaneamente petrificou e desintegrou. Tivera a ideia de reencontrar Adam nas proximidades, pensando em ajuda-lo.
Naquele momento, o caçador corpulento adentrava uma propriedade aparentemente abandonada. Muniu-se da adaga de irídio, temendo achar o demônio responsável pelo surto de indisposição. A casa exalava odor de mofo e excrementos. Adam cobriu o nariz enquanto averiguava o bagunçado interior. O gramofone estava ligado, rodando um vinil em volume baixo.
- Não toque em nada. - disse um homem velho, magérrimo e trajado de roupão xadrez azul, segurando uma tigela de cereal - The Ink Spots é o máximo, não acha? - deu um sorriso amarelado.
Adam o fitou desconfiado.
- Estranho, o senhor parece que levantou da cama com mais disposição do que todos da cidade. Teve coragem de pegar algo pra comer, está de pé olhando pra mim sem sinal de fraqueza.
- Fraqueza como a que vocês... humanos deploráveis... demonstram incansavelmente.
O caçador logo foi acometido pelo enfraquecimento fadigante. Adam caiu de joelhos, mal se aguentando. Preguiça ria devagar, apreciando o sofrimento da presa que invadiu seu covil.
Enquanto isso, na sede, Pandora emitia seu aviso à Mollock, valendo-se da ligação psíquica que ainda mantinha desde o primeiro contato. Rosie observava o processo. A bruxa e os magos abriram os olhos em sobressalto ao mesmo tempo.
- Parabéns, foi um sucesso. - disse ela - Mollock está em nossas mãos, ele não vai resistir.
- O que fez? - indagou Rosie - Ameaçou ele caso recusasse?
- Marquei um encontro na rua 1254, fica perto do QG do exército, mas teremos que arriscar. Hamilton perdeu sua hegemonia sobre o pelotão do general Holt, temos um jogador bem duro no páreo.
- Mas ainda tem o Leo. - disse Robbie - O filhinho favorito do Hamilton foi promovido à sub-comandante da legião do grande me... digo, do Belphegor. Vai mandar uma horda de demônios pra retardar nosso plano.
- Não assumiu o lugar do irmão, já sei porque ganhou esse presente. - disse Pandora - Independente das probabilidades, teremos que ir com tudo, elevar nosso poder à escala máxima até sair sangue do nariz por sobrecarga.
Rosie sentira a dor lancinante que ocorria toda vez que um pedaço de sua alma era realocado. Pandora a levou para fora da sala. A intensidade da dor atenuava-se e a jovem recobrava a calma.
- Isso é ótimo. - disse Pandora - Me refiro ao fato de mais um principado ser morto. Aposto no Ira, pois Preguiça, embora não pareça, é um dos mais árduos, eles com certeza terão muito trabalho, talvez nem consigam derrota-lo.
- Essa é a melhor das hipóteses?
- A hipótese realista. Acho melhor te mandar de volta pra casa.
- Concordo. Sou um estorvo pra você e uma distração pra eles.
- Não, de jeito nenhum. Pra falar a verdade... foi bom ter sua companhia. Me trouxe segurança.
- Exagero seu. Você é uma bruxa imortal capaz de enfrentar praticamente qualquer coisa sobrenatural, exceto essa versão piorada do Mollock, só pra citar o exemplo mais óbvio. De qualquer forma, boa sorte.
- Obrigada, Rosie. - disse a bruxa, condescendente. Os magos vislumbraram a luz vermelha do feitiço teleportador passando pela soleira. Pandora retornou à sala - Enviei ela de volta pra casa. Bem, tenho que pedir outro favor.
- Estamos abertos. - disse Mark, flexível.
- Fale por si mesmo. - disse Stephen que recebeu um olhar repreensivo do colega.
- Você tem opções, mas entenda: Sobreviveu à uma experiência fracassada. Já viram o histórico de fiascos da Caosfera? Conseguem lembrar? E então, Stephen? Quer fugir da decadência ou se juntar à queda?
O mago se viu impotente ante ao questionamento. Permaneceu em silêncio numa postura distante.
- Preciso que decifre... - disse Pandora, retirando o papelzinho com o enigma - ... essa mensagem escrita pelo Derek, estava no bolso do casaco dele. - entregou à Mark - Ele me mostraria quando achasse mais oportuno.
Mark estudava os caracteres minuciosamente.
- São duas codificações diferentes. Vejamos no que dá. - falou, definindo sua prestatividade.
***
Em Windsor, o demônio da preguiça covardemente aproveitou-se do estado fraquejado de Adam e para o seu pecado correspondente estava bem eufórico em torturar o caçador com chutes na barriga.
- É inadmissível que um verme feito você se ache no direito de entrar na minha casa e tirar satisfações tentando sabotar minha missão! - esbravejava Preguiça, violentando-o incessantemente - O meu destino é unicamente esse! Definhar seus corpos ociosos e sedentários! Eles inventam desculpas, agem como tolos, acordam cedo para movimentar seus músculos e trabalhar em empregos que fingem que gostam buscando um significado para suas existências miseráveis sem perceberem o quão inútil isso é! Quando estão satisfeitos? Nunca! Nunca!
O demônio teve a fala cortada repentinamente, sua boca trêmula e aberta e os olhos esbugalhados. Seu corpo petrificou, logo desfazendo-se em cinzas. Uma adaga de irídio fora cravada em suas costas por ninguém menos que Hector que apanhou a arma logo depois levantando Adam.
- Por que demorou tanto? - perguntou Adam, sentindo o abdômen dolorido - Ira foi tão osso duro de roer assim?
- Mas não fez nem uma hora desde que estacionamos no centro. - respondeu Hector, confuso - O que ele fez com você?
- Além de me dar a maior surra que já levei nessa vida, acho que deixou tudo em mim mais lento, físico e mental, deve ser por isso que senti minha noção de tempo ficar tão devagar. Caí na ilusão de que ia ser fácil, mas não, você teve muita sorte. - disse ele, sorrindo fracamente para o amigo.
- Não se engane. Tive uma certa dificuldade contra Ira, mas pude vence-lo graças a...
- Ele não te atingiu com as habilidades dele? - questionou Adam para o nervosismo de Hector.
- Dei um jeito de pega-lo em guarda baixa. Praticamente como aconteceu agora com Preguiça.
O braço forte da Legião assentiu, convencido do relato.
- Quero que saiba que jamais duvidei da sua capacidade prodigiosa como caçador. Você é o melhor. E salvou minha vida. É sério, pensei que fosse morrer de fadiga extrema. De agora em diante, não faço mais corpo mole.
Dentro do carro, Hector pensou bem, segurando o volante, sobre contar a verdade que Pandora havia apagado das lembranças de Adam. Porém, afastou a ideia, girando a chave para ligar o veículo.
Infelizmente, o motor não roncava como regularmente. Após cinco tentativas, Hector concluíra.
- Caramba, a habilidade do Preguiça não poupou nem o motor. - disse Adam, desatando em risos. Hector não conteve-se e ambos riram juntos como há muito não faziam - OK, eu vou arranjar combustível. Vê se lembra de instalar um velocímetro enquanto não investe num zero quilômetro.
- Esqueceu da minha excelente memória? Meu problema é mais procrastinação... e um pouco de preguiça também. - disse Hector, fazendo o amigo rir novamente - Vou procurar uma cabine, ligar pra Rosie e avisar que voltaremos bem tarde.
***
Estrada do Rei - Londres
Pontualmente às onze horas, lá estava Mollock andando e esquadrinhando a rua para ver de que lado Pandora surgiria com sua generosidade em cura-lo da doença que ela mesma lhe infundiu.
A bruxa vinha calmamente, parando à alguns metros de distância que a conferisse cautela.
- Escolheu um péssimo horário. - disse Mollock.
- Melhor impossível, assim você não fisga uma presa na minha frente. Deve ter saboreado muitos gatos vira-latas antes de me esperar. - retrucou ela - Como se sente? Parece estar respirando forçado.
- É difícil comer com batimentos cardíacos irregulares. Mas se não me der o que prometeu, posso abatê-la como gado aqui mesmo e assunto encerrado, ao menos não morrerei de estômago vazio.
- Eu acendo a fogueira. - disse ela, esticando seu braço direito mirando no chão - Ignis Semita.
Uma trilha de fogo se desenvolveu em linha reta até Mollock em grande velocidade. O fogo se dispersou formando um círculo que cercara-o. As labaredas cresceram para efetivar o aprisionamento.
- Vou mata-la! - vociferou Mollock, se revoltando enfurecidamente. Mark, Robbie e Stephen apareceram logo em seguida, recitando o feitiço de desassimilação de corpos. O híbrido contorcia-se desesperadamente, soltando berros e rugidos histriônicos. Uma massa começava a desprender-se e avolumava-se. Pandora preferia não assistir todo aquele espetáculo bizarro, virando o rosto. Os dois híbridos foram desconectados, permanecendo na prisão flamejante. Porém, o fogo dissipou.
- Não! - disse Pandora, exasperada - Você não devia estar aqui!
Leo apagara as chamas, estando cara à cara com sua antiga assassina.
- Até que enfim te encontrei, vadia. - disse ele, possesso de ódio - Esteja pronta pro acerto de contas.
- Não quero medir forças com você e recomendo você não tentar. Veio sozinho, tô curiosa pra saber.
- Pois é, cadê os demônios? - perguntou Mark, intimidador. Os dois Mollocks se reorientavam.
- O grande mestre autorizou que eu viesse só, confiando no meu potencial. - disse Leo. Do seu nariz escorria um filete de sangue que limpou rápido para disfarçar, mas em vão.
- Que potencial é esse que causa hemorragia depois de uma mágica tão simples? - perguntou Pandora.
- Cala a boca! Não tem nada que saber. Por que não fazemos um acordo? Um Mollock pra cada time. Que tal?
- Passo. - disse Pandora, desinteressada na proposta - Ou você decide se vingar de mim ou tenta hipnotizar um deles e levar pra casa. Mas pela sua condição, vejo que não é tão extraordinário.
- Foi o papai! Eu sempre fui o caçula mimado, plantaram na minha cabeça a noção de que eu podia conquistar tudo o que quisesse. Quer saber porque te caçaram até o inferno? Porque uma testemunha identificou você quando me esfaqueou achando que eu não tinha associação com os Marshall porque meu pai me apresentou aos súditos de Daemong com o sobrenome da minha mãe, Straux. Essa testemunha é alguém do culto à Daemong que fugiu pensando que iria se complicar. Ele voltou contando toda a verdade no momento que julgou apropriado. Daí você desertou, piorando as coisas.
Mollock e V ainda recuperavam-se da reversão da fusão.
- Foi horrível. - disse V, ofegando.
- Nem me fale. - disse Mollock, concordando - Devia ter aceitado o que planejou.
Leo prosseguia finalizando o que tinha obrigação de revelar.
- Alguns magos foram antecipados da minha ressurreição, menos Derek e outros que papai sabia muito bem serem leais ao meu irmão. Ele removeu toda a magia em Derek para doa-la a mim. Derek era a falha e eu a benção. Só ficou no comando porque eu não estava vivo. Mas papai não previu consequências. O sentimentalismo não o deixou refletir.
- O que os pais não fazem por amor? Mesmo na ignorância. - disse Mark, lamentando.
- Então nunca foi sobre Derek insistir em queimar o corpo da Rosie, desacatando uma ordem, e sim um pretexto pra te ressuscitar e substituí-lo apenas porque você é um profeta. - disse Pandora - E eu achando que o chefão era inteligente.
Carros militares chegavam e soldados do pelotão do general Holt estavam neles. Uma pesada metralhadora acoplada na parte de cima do veículo cuspiu balas para cima dos híbridos. V correu buscando um abrigo ao contrário de Mollock que avançara contra o grupo não ligando para os tiros que penetravam na sua pele. Pulou sobre um soldado, esmagando-o e amassando o carro.
- Lança-foguetes! - ordenou Holt. O projétil foi disparado contra o híbrido original, mas Pandora o desviou com telecinesia, atingindo um carro que explodiu estrondosamente. A bruxa se dirigiu ao general a passos largos.
- Está o protegendo? - questionou Holt, irritado - Não sabe que interceptar ação militar é crime?
- Estou mais em posição de perguntar do que o senhor. - rebateu Pandora - Como descobriram?
- Detectores. - disse Holt, mostrando o aparelho que media atividade anômala - Sei que são desertores da Caosfera, mas fiquem fora disso.
- Aí vocês gastam munição contra dois monstros imunes à balas? Dá só uma olhada. - disse Pandora, virando-se para Mollock que comia pedaços do soldado que matara. A semideusa conjurou o feitiço de abertura do Tártaro que aprimorou há pouco tempo. O portal abrira como rachadura numa parede e o híbrido fora arrastado pela força de atração. V, por outro lado, ganhou escapatória, abandonando o gêmeo. Holt e os soldados ficaram impressionados com demonstração.
- Quem é essa garota? - perguntou um soldado.
- Algo me diz que o importante é não sabermos. - disse Holt - Vamos, sobrou uma aberração foragida.
- Cadê o Leo? - perguntou Pandora aos três magos.
- Se escafedeu. - disse Mark, dando de ombros.
Holt e seus homens saíram cantando pneus atrás de capturar V ainda naquela noite.
***
No Casarão, a campainha foi tocada e Rosie, vestida com sua camisola branca, levantou-se do sofá para atender. Não expressou contentamento ao ver que tratava-se de Pandora.
- Ah, é você. Entra. - ofereceu passagem - Os rapazes ainda não chegaram. Hector ligou dizendo que houve um imprevisto com o carro, parece que o motor morreu e tiveram que chamar um mecânico. Tiveram progresso pra decifrar a mensagem?
- Mark decodificou apenas metade, o Derek escreveu dois códigos, vou ver se consigo achar um criptógrafo pra desvendar a outra parte. - fez uma pausa, lembrando-se da missão de Adam e Hector - Os dois principados estão mortos, certo?
- Sim, mas o Adam não deu conta do demônio da Preguiça, Hector salvou a pele dele de última hora. E você? Chutou o Mollock direto pro Tártaro?
- O original sim. Conseguimos desfazer a fusão, mas o que a Caosfera criou acabou escapando. Além disso, o exército se intrometeu e nos atrapalhou, não espero que peguem o outro que diferente do original não reagiu violento contra eles, isso que me surpreendeu. - a bruxa sorriu leve olhando-a - Bom ver que tira seu manto pra dormir.
- Olha, isso não dá certo. - disse Rosie, amuada - Não consigo mudar a forma como penso de você, independente do bem que você faça... do seu esforço pra conquistar minha amizade. Muito menos me compadeço do seu luto.
- Rosie, só restam dois principados. A esperança que vive em mim dá certeza de que a Rosie que o Hector amava vai reviver melhor que antes, o bastante pra perceber a bondade em pessoas que se corrigem. Boa noite.
A semideusa virou as costas, subindo a escada para o seu quarto. Rosie pensou seriamente se valia a pena continuar duramente inflexível com Pandora após claras indicações de arrependimento e culpa.
CONTINUA...
*A imagem acima é propriedade de seu respectivo autor e foi usada para ilustrar esta postagem sem fins lucrativos.
*Imagem retirada de: https://imagens-de-fundo.blogspot.com/2011/08/imagem-de-fundo-bala-em-fundo-preto.html
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