Capuz Vermelho #68: "Pandora"
Área florestal de Raizenbool
As mãos ensopadas de suor de Pandora apertaram o cobertor fechando-se e seu corpo remexia-se agitadamente como se ela quisesse desprender-se de algo que a envolvia e lhe causava dor. Ela virava a cabeça de um lado para o outro, seus dentes cerrando indicando claramente estar tendo um sonho desagradável. A janela se abriu de repente com a corrente de vento, acordando-a. A bruxa do caos logo levantou assustada sem saber direito pra onde olhar. Tudo que ainda passava na sua cabeça eram somente as imagens horripilantes do seu pesadelo. "Esse futuro... Um mundo assim não pode existir".
Ajeitou a camisola para ir fechar a janela. Seu ato seguinte foi executado de acordo com o que seu descompassado coração dizia. Pegara embaixo da cama o que parecia uma velha caixa de madeira para armazenar ferramentas que cabia numa das suas malas. Para ela não seria muito seguro traze-la exposta para Rosie ou Hector desconfiarem e lhe encherem de perguntas. Um risco que a atrasaria.
- Por que não pensei nisso antes? - disse para si mesma, abrindo a caixa. Retirou sua joia mais preciosa que levou anos para recuperar - Se as coisas continuarem como estão, nunca vou me perdoar. - apertou o botão do Espiral rapidamente e inúmeras vezes - É uma pena que vão se salvar disso sem saberem que foi uma quebra de confiança. Sinto muito, mas preciso fazer isso.
O artefato girou seu ponteiro na quantidade de apertos no botão. Seu compartimento externo abriu, refulgindo a luz branca ofuscante. Num instante se encontrava perto de uma rocha, no exato ponto que imaginou para dar sua partida. Nunca esqueceu daquela pesada pedra na qual rabiscava na infância. Escutou vozes atrás. Espiou com discrição. Um casal conversava em frente a uma humilde casa. A mulher segurava nos braços um bebê enrolado em panos. Assim que os dois entraram na residência celebrando a adoção da criança, Pandora aproveitou a deixa para caminhar na direção do bosque onde a luz da lua mal alcançava. Para evitar interferências no tempo, recitou um feitiço de metamorfose, transformando-se numa mulher de face jovial e diferente da dela. Puxou o capuz para cima sobre os cabelos castanhos.
- É, acho que cheguei um pouquinho mais cedo. - disse ela, andando por entre as árvores.
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CAPÍTULO 68: PANDORA
18 anos depois
Na sua época de pré-maioridade, Pandora dedicava-se ativamente para ajudar seus pais no cultivo de hortaliças para a feira onde conseguiam a renda necessária para manter o pleno sustento. Dois homens, também ligados à plantações, numa carroça puxada por um cavalo marrom passaram à alguns metros da horta, um deles acenando para a jovem, enquanto colhia alfaces, que retribuiu com um sorriso radiante, um aceno de entusiasmo somado a um "Bom dia" cheio de energia.
Estimulada a contribuir até onde desse, ela ficaria disposta a servir ao propósito dos pais independente dos rumos que seu futuro tomaria após seu aniversário de 18 anos. Pegou uma muda de roupas simples e saíra de casa carregando uma caixa de madeira com os legumes para envia-los à barraca dos pais. Andava com um sentimento de determinação que podia não chamar atenção em meio ao mutirão de pessoas que zanzavam por ali, mas lhe enchia de orgulho próprio, sem nenhuma vergonha de afirmar quem era e de onde pertencia originalmente. Só que a tranquilidade não durou o caminho inteiro.
Se Pandora tinha uma habilidade natural para agradecer aos deuses, certamente era sua percepção para distinguir uma atmosfera normal e estranha. E estranha para ela significava suspeita. Alguém a seguira desde que entrou na rua onde a feira estava instalada. Desviou para um atalho, mais para a sombra, querendo parecer fugir do sol ardente da manhã. Adentrou num beco, confiante de que despistou o perseguidor e diminuiu o ritmo. Olhar para trás e se "certificar" foi sua pior ideia. Assim que virou o rosto para a frente, seu susto saiu com um grito rápido, fazendo-a derrubar os legumes.
- Olha o que você fez! - reclamou, apanhando-os - Levei quase duas horas pra lavar. Melhor você ir, não tenho esmolas. Ou senão vou gritar, alguém vai vir e direi que fui abordada por um malfeitor. - olhou para ele, séria - O que é? O que você quer? Por que me seguiu? Não vê que me atrasou?
O homem coberto por um manto velho ergueu sua mão esquerda num sinal pacífico. Na outra segurava algo que escondia atrás. Pandora franziu o cenho, aborrecida e confusa.
- Sai da minha frente, não tenho tempo pra entretenimento barato. Se vai fazer algo que custe uma esmola, pode esquecer.
- Eu venho a mando do supremo rei de todos os deuses. Você é a sagrada primogênita.
- Do que você tá falando? Quem é você? Por que tenho a impressão... de que não é só um mendigo?
- Porque sua intuição é digna. Apesar disso, não reconhece a grandeza do seu destino. - revelou o que escondia - Zeus me incumbiu a agracia-la com isto. Vou ser breve: Seus pais a criaram como filha, embora não seja.
- Que eu não seja o quê? Tá dizendo que não são meus pais de verdade?! Que história é essa de Zeus?
- O seu pai. Seu real pai. Um deus que comete a infração de se conectar sentimentalmente e amorosamente a um mortal, carrega, à duras penas, o peso das consequências para sempre. Uma regra que não se aplica à ele. Eu sou Hefesto e você deve jurar à mim - deu a caixa cheia de detalhes sinistros direto às mãos dela - que nunca, em sua sã e absoluta consciência, abrirá esta caixa.
Pandora ficou muda por um instante. Era demais para absorver e processar tudo de uma vez.
- Hefesto... - disse ela, fechando e abrindo os olhos rapidamente - Sinto que tem boas intenções. Alguma coisa dentro de mim impede que eu duvide da sua palavra, era um mistério... pelo menos até você falar que não sou filha daquelas pessoas. Eles nunca me contaram a verdade e eu no fundo sempre... me afundava nas dúvidas, sem parar de desconfiar. Obrigada por vir. Mas não posso.
- Por qual motivo não pode selar juramento? - perguntou Hefesto, áspero.
- É simples: Não posso te garantir deixar a caixa fechada se não souber o que tem dentro. E se nem você sabe, as coisas ficam difíceis. Confiarei em você sobre isso, mas não espere que eu prometa.
- É mais que uma obrigação pessoal, é universal. Um mal mais antigo que o tempo está enclausurado e não pode escapar sob nenhuma hipótese e nenhuma circunstância. Sua maior responsabilidade.
O deus desapareça em nanosegundos diante de Pandora. A jovem analisou a caixa, bem temerosa.
***
Enquanto andava, Hefesto podia sentir uma presença à espreita. Parou e esquadrinhou ao redor.
- Videtur. - disse uma voz feminina. A mulher aparecera por trás dele como um fantasma, agarrando-o pelo braço direito para imobiliza-lo, pretendendo machuca-lo - Não faz ideia do erro que cometeu.
- Quem é você? - perguntou Hefesto que logo se desvencilhou e a empurrou com telecinesia contra a parede. Pandora caíra, mas logo mostrou resistência - Um simples mortal não possuiria toda essa força... muito menos uma magia assim.
- Pra sua informação e também azar... não sou qualquer mortal. - retrucou ela, o disfarce indo bem - Vou fazer pagar pelo que fez se não voltar lá e recupera-la. O que vai acontecer é terrível. Tem que pega-la de volta e rápido, confie em mim.
- Confiar em alguém que trata com repressão primeiro e com gentileza depois? Não é minha política. E a propósito... Se tem tanto interesse na caixa, por que você mesma não a rouba?
- Mesmo que pudesse, não iria. Engraçado... Me sugerindo roubar um objeto que você deu à alguém que Zeus confia, o mesmo Zeus para quem serve de bom grado. Mas parece que sua confiança nela não é tão alinhada à dele. Estou errada?
- Não lhe devo satisfações. - disparou Hefesto, desaparecendo logo em seguida.
Havia um motivo especial para que o maior deus olimpiano confiasse a posse da caixa. Algo que sem dúvidas estava além do objetivo de vingança contra Prometeu e seu ato de enorme condenação.
***
8 meses depois
Os olhos da Pandora do presente marejaram ao observar de uma distância segura, meio coberta por folhagens de um grande arbusto, a sua festa de casamento ocorrida numa casa cedida por um dos amigos da família adotiva da semideusa que ajudara nas decorações para o casal. O noivo era alto, de físico truculento e robusto, aparentando ser mais velho que sua esposa pelo cabelo meio grisalho. Aquele era ninguém menos que Epimeteu, irmão de Prometeu que o alertou do perigo de se relacionar com alguém que recebera um presente de Zeus sem imaginar que a existência de Pandora era tratada como alavanca para realizar a vingança de Zeus contra o titã que deu o conhecimento do fogo aos homens. "O titã que sucumbiu às trevas.", pensou Pandora, não conseguindo associar aquele gentil homem com o ser monstruoso e nefasto que veio a tornar-se. "Tudo por minha causa". As alianças eram trocadas e um clima de alegria tomou conta da casa.
A Pandora daquela época foi com júbilo até onde deixou a caixa para surpreender os convidados.
- Bem, ainda não acabou, hora de desembrulhar os presentes.
- Vamos mesmo pular a tradição do beijo após colocar as alianças? - perguntou Epimeteu, fazendo todos rirem - Achei que iríamos seguir tudo como mandam as regras.
- Ah desculpa. - disse ela, beijando-o rapidamente na boca e trazendo a caixa - Sem querer desconsiderar esse grande momento, mas eu tenho que mostrar e dizer o quanto isso é especial para representar nossa união. Alguém extremamente importante me deu essa caixa, muito valiosa por sinal. De agora em diante, será o símbolo do nosso amor. Nossa promessa inviolável. Pra sempre.
- Felicidades aos noivos. - disse um homem, erguendo um copo de barro cheio de bebida
Os dois entreolharam-se felizes e beijaram-se mais demoradamente naquela vez. Muitos aplausos seguiram-se, os pais adotivos da semideusa orgulhosos.
Ela saiu do arbusto fazendo um barulho que a contraparte do passado ouviu.
- O que foi? Algum problema? - perguntou Epimeteu, abraçando-a por trás.
- Nada. Eu... só pensei ter escutado algo se mexer nas plantas. Devem ser os coiotes caçando. - disse ela, convencendo-se logo - Preciso terminar de abrir o resto dos presentes, vem comigo.
Numa noite, alguns meses depois, a semideusa deitava-se sobre o peito de seu marido na cama com a luz da lua que atravessava a janela aberta banhando-os, logo começando a falar a respeito da caixa.
- Sabe... Eu ainda não contei aos meus pais que um enviado de Zeus me deu aquela caixa e ainda por cima revelou que sou filha legítima dele. Foi tão doloroso... assumir aquilo tudo de uma só vez. Parece que toda minha vida antes daquilo passou a não ter mais nenhum valor.
- O que você julga a coisa certa a fazer? - questionou Epimeteu, acariciando-a - Eu, no seu lugar, abriria meu coração. Contrariei o aviso do meu irmão para construir a vida que eu sempre quis. Mas iria até o fim para protege-lo, sem nada a esconder. Acho que você deve a verdade aos seus pais.
- Só que tem uma coisa... me inquietando dia e noite. - disse Pandora, levantando-se depressa - É aquela caixa, nosso presente de casamento mais precioso. Seu irmão fez um alerta, não foi?
- Prometeu está confuso, fora da realidade, não sabe usar sua intuição. - disse Epimeteu.
- Mas eu sei. - retrucou Pandora - E algo me diz que não posso nunca abrir a caixa.
- Então por que se levantou de repente? Aonde vai?
Um silêncio desconcertante se abateu sobre os dois, mas era Pandora que mais se afetava.
- Zeus pode estar equivocado. - disse ela, alterando seu semblante para um mais tranquilo.
- O que quer dizer? Agora há pouco falou que não abriria a caixa jamais. - disse Epimeteu, não entendendo a mudança de opinião.
Sem responder, a semideusa saíra do quarto indo direto para a sala e dirigiu-se à caixa posta sobre um móvel de madeira servindo para apoio. A contraparte do presente vigiava-a escondida na janela, mas parecia que a outra mal notaria sua presença caso aparecesse de corpo inteiro. "Era como um transe, uma atração poderosa que controlava minha autonomia de tomar decisões", pensou ela. "Tenho que agir".
- Pandora, você tem que voltar, já está tarde, melhor dormirmos. - disse Epimeteu, saindo da cama.
Mas o mundo ao redor da semideusa parecia desprovido de espaço e som. Apenas havia a caixa e nada mais além. Levou suas mãos para destrava-la. "Não!", pensou a contraparte do presente, cerrando os dentes, porém travada em cada membro "Por que? Por que estou hesitando?".
Assim que a tampa foi erguida, a caixa expeliu agressivamente uma matéria obscura parecendo um pilar de fumaça negra que atravessava o teto. Pandora encarava o fenômeno com perplexidade intensa, seu olhar de puro terror. A espinha gelou e o coração acelerou. Epimeteu veio correndo até ela, partilhando da mesma reação. A contraparte do presente chorava silenciosa arrastando suas costas na parede até sentar-se e lamentar sua falta de coragem.
- O que é isso? - perguntava-se Epimeteu, desesperado, o vento forte dificultando sua visão - Bem que Zeus tinha avisado! Não devia ter aberto a caixa! Por que fez isso?
- Eu fiquei fora de mim! Me perdoa, por favor!
O titã deu passos adiante para ir fechar a caixa, mas Pandora tentou segura-lo pelo braço. Antes que alcançasse a tampa, Epimeteu foi atingido por uma parte da matéria estranha, sendo arremessado como um boneco até o quarto. Pandora gritara apavorada e se pôs a fechar a maldita caixa. A última parte de trevas cor de ébano que saiu pegou diretamente na semideusa enquanto ela baixava a tampa com esforço quase hercúleo. A tampa fechou com um baque seco. Ela olhou para as mãos, sentindo uma energia percorrer suas veias. mas o tempo para questionamentos e recuperar o fôlego não existia. Correu para verificar o estado do marido, desacordado e sem sinal de vida. Pandora, aos prantos, tentou ressuscita-lo.
Ele tossiu uma boa quantidade de sangue e sua respiração estava pesada e irregular.
- Você foi atingido... Hefesto tinha razão, libertei um mal, uma praga que vai se espalhar por toda parte. Eu não sei mais o que faço. - ela pensou um pouco - Talvez haja uma saída. Minha mãe é uma serva da natureza, por isso a terra sempre foi fértil graças à ela. Ela curava minhas feridas, então acho que não há nada que ela não possa fazer para te deixar bem. Fica aqui, eu já volto. - disse ela, enxugando as lágrimas, decidida a recorrer à sua mãe adotiva.
Ao chegar na residência, ela bateu na porta chamando pela mãe aos gritos.
- Pandora? - indagou, coçando os olhos - O que faz aqui à essa hora? Pelos deuses... - estudou o rosto da filha - ... você está muito abatida, querida. O que houve? - a tocou nos ombros, preocupada.
- Mãe... Tem alguma coisa errada com o Epimeteu. Seu corpo está quente, uma temperatura alta demais que o fez ficar exausto, além disso tem expulsado sangue pela boca. Por favor, me ajuda.
- Lamento filha, está fora do meu alcance. Mas posso encontrar um curandeiro...
- A cura está na senhora! - agarrara as mãos dela - Eu sei, não adianta negar nem esconder. Nossa plantação é tão próspera por causa do que a senhora é capaz. E quero que me ensine a dominar esse poder desconhecido. Eu suplico.
A pobre mulher de cabelos desgrenhados não pôde resistir ao semblante aflito da semideusa.
- Se é urgente e ele corre grande risco... Acho que pode aprender o básico. Vou avisar o seu pai, passarei o resto da noite com vocês. - disse ela, aliviando Pandora que sentiu uma brisa gélida e arrepiante que logo transformou-se numa corrente de vento que esvoaçou seus cabelos.
- Que sensação... desesperadora é essa? - se perguntou, atravessada pelo frio - Zeus, me perdoe.
No decorrer dos dias, uma atmosfera de terror recaiu sobre a cidade e inúmeros fatos dantescos foram registrados e testemunhados como saqueamentos, roubos e assassinatos, uma verdadeira onda de medo alastrou-se como uma pandemia irrefreável. Pandora manobrou a magia mais rápido do que sua mãe antecipou, curando o amado da enfermidade. Porém, no final de um dos primeiros dias de horror que aquela localidade passava, a semideusa fora visitar seus pais para saber se estavam bem e seguros diante de tanta violência e sofrimento. Estranhou ver mais pessoas na casa.
- Quem são vocês? - perguntou ela, desconfiada. Reparou numa faca ensanguentada segurada por um dos homens e mais à frente... os corpos dos pais jazidos no chão com perfurações profundas.
- Olá, mocinha bonita. - veio um deles, galanteando-a - Conhece esses caloteiros miseráveis? Se quiser denunciar pros guardiões da cidade, vá em frente. Ou pode ficar e... se divertir conosco. Garotas como você são nossas preferidas, ainda mais com uma roupa de baixo tão curta - deu uma risada infame, levantando a saia de Pandora com a ponta da faca.
- Eram meus pais... - disse Pandora, a face travada de choque - Que motivo vocês tinham pra fazer isso?
- Somos mercadores da mesma feira, esses vermes nos deviam uma dívida enorme. - disse o que parecia ser o líder - É uma pena, mas eles nos provocavam com as mesmas desculpas ridículas.
O chão começara a tremer de repente. Os malfeitores entreolhavam-e assustados.
- Vocês... não tinham... esse direito! - esbravejou Pandora, convocando nuvens de tempestade que trovaram retumbantes. Ela ergueu suas mãos e as fechou, trazendo poderosos raios que atingiam cada um dos assassinos covardes. Todos eles caíram duros feito pedra e chamuscados. A magia aprendida a levou a níveis anteriormente inimagináveis.
Pandora não se permitiu derramar uma lágrima sequer. Cansou de fraquezas emocionais.
- Vou consertar o que eu fiz. Prometo. Eu amo vocês. - disse ela, segurando os impulsos emotivos.
Seguiu para sua casa, entrando com uma expressão neutra. Epimeteu virou-se à ela, fazendo várias perguntas. A resposta que a semideusa estava disposta a dar veio num beijo súbito que foi uma das etapas para o seguimento amoroso crescente. O titã e a semideusa deitaram na cama e entrelaçavam suas libidos até o ápice. Após três meses, Pandora veio a saber que carregava uma criança no ventre.
Os nove meses totais de gestação passaram. As contrações pioravam a cada minuto, o que acelerou o processo de preparação do parto solicitado por Epimeteu aos vizinhos. Nascia um lindo bebê que a semideusa nomeou de Laverna. Colocou a menina em seu colo, vivenciando uma felicidade que acreditou nunca mais desfrutar na vida. No período de resguardo, Pandora amamentava Laverna enquanto Epimeteu andava de um lado para o outro, despertando a curiosidade na esposa.
- O que foi? Parece bem ansioso. Não quer conversar sobre o que anda te perturbando?
- Eu esperava não ter que falar sobre isso com você, mas... Não tá me dando escolha.
- Falar sobre o quê? Ah sim... As suas saídas misteriosas nos últimos dois meses. Novos amigos... ou talvez amigas.
- Para com isso, está ficando afastada da realidade. - retrucou o titã - Existe um amigo e tenho de encontra-lo hoje, mas estou dividido. Não quero ficar longe de você agora que... nossa filha nasceu.
- Faz ideia de quantas vezes a segurou? - perguntou Pandora, irritada - Uma única vez. Sai por aí sem dizer pra onde e volta achando que não deve satisfação. O mundo está perigoso por minha causa e meu dever é não permitir que nada atrapalhe e arruíne nossa felicidade. Pessoas estão desaparecendo, já foram sete até agora. Pensa um pouco no medo que sinto de algo ruim acontecer com você.
- Nada vai acontecer comigo. Serei o escudo de vocês duas. - a beijou na testa - Preciso ir.
A Pandora do presente assistia pela cortina na janela, vendo-os como silhuetas. Avançou com o Espiral um mês depois ao exato dia em que fizera uma descoberta arrasadora. Sua contraparte do passado perseguiu Epimeteu à uma localização, uma espécie de templo religioso, na calada da noite. Escondeu-se numa pilastra, escutando vozes, ouvindo a conversa com intermitência de compreensão.
Aproximou-se um pouco mais e o viu praticamente dialogando com o escuro. Um nome citado a ouriçou. "Hades?!". Assim que percebera que a conversa havia encerrado, aproveitou para coloca-lo contra a parede. A aparição surpresa da esposa o estremeceu. Pandora o encarava com um misto de nojo, raiva e temor.
- Belo amigo você tem. Fazendo barganhas, prometendo uma vida melhor do que a nossa... Ele te pagou uma cerveja também?
- Laverna está sozinha? Como pôde larga-la só pra me espionar?
- Agora você se importa já que descobri seu plano de nos trocar por uma temporada no submundo!
- Eu sou um perigo pra você, pra Laverna e pra mim mesmo. Aquela doença que quase me levou à morte foi por sua culpa. Não teria sido assim se não tivesse aberto a droga da caixa!
- E o que você é? Escravo do Hades pela eternidade? Você está diferente desde que o curei...
- É justamente isso. Estou me tornando um monstro e continua piorando. Pescar no lago me alegrava, mas agora é um tormento. A água reflete um rosto feio, vermelho como sangue... E isso não tem cura.
- Vou achar um jeito de reverter isso. Posso usar magia, aprimorei minhas habilidades. Eu sou filha de Zeus, então...
Epimeteu a empurrou num acesso de fúria. A semideusa o olhou caída, os cabelo sobre o rosto.
- Você se gaba de ser filha de Zeus, mas não passa de uma ferramenta que ele criou para unir você à mim, que sou irmão do homem que mostrou o fogo aos mortais sem permissão. Não percebe, sua vadia fraca? Ele apenas a usou para te induzir a abrir a caixa. Sabia que você não resistiria.
- Então nós dois, aos nossos modos, destruímos nossas vidas. - argumentou Pandora, lacrimosa.
- Não. - disse Epimeteu, friamente - Eu aceitei a oferta de Hades pelo que você fez. Você é a única responsável disso, Pandora. E espero que pese na sua consciência até enlouquece-la. Isso é um adeus.
- Não! - gritava Pandora, agarrando uma das pernas dele, implorando para que desistisse - Não pode abandonar sua vida comigo desse jeito, por favor não! Vai sacrificar sua felicidade assim? Confia em mim, eu vou achar uma maneira de te salvar! Acredita!
O recém-oficializado soldado de Hades a chutou no rosto impiedosamente, não aguentando toda aquela lamúria.
***
22 anos depois
O bom pagamento oferecido ao explorador que acatou o pedido da semideusa de recolher a fonte integral de irídio não era nada mais que uma porção de moedas de ouro economizadas por Pandora ao longo de 4 anos, algo facilitado pela rentabilidade que se manteve quando prosseguiu com o negócio dos pais adotivos ao mesmo tempo que acompanhava o crescimento de sua bela filha Laverna.
Naquele mesmo dia, Pandora encaminhou-se a um poço profundo onde despejou litros e mais litros de sangue de demônios, após descobrir que a maior fraqueza dos monstros residia em maior quantidade na cidade onde viveu até a época de seu casamento e o pior castigo de sua vida.
Em seguida, os fragmentos de irídio caíram tilintantes até esvaziar o saco que a semideusa segurava. O próximo passo era um feitiço unicamente voltado para forjar um objeto. A - naquele tempo já tornada - bruxa do caos imergiu no seu estado de concentração. Na metade do procedimento, uma luz alaranjada despontou do fundo do poço e engrandeceu como se magma fervente emergisse de lá.
Quem estivesse por perto sem saber de nada, pensaria que um pilar de fogo explodiria até os céus. Pandora abriu os olhos, contemplando orgulhosa a flutuante espada de três pontas em brasas, como se tivesse saído de uma oficina para aquecimento de metais. Apontou o dedo indicador direito para desenhar inscrições, uma mensagem cifrada da qual apenas ela tinha a resposta. Ou outros seres atrelados a deuses, possivelmente. Gravou mais do outro lado e a arma voou às suas mãos ainda quente.
A volta para a casa não podia ser mais frustrante. Desoladora, com mais exatidão. Pandora havia comprado um vaso novo para enfeitar sua sala que achava ainda tão vazia. O deixou cair despedaçando completamente ao impactar no chão. Seus olhos dilatados de pavor ficaram estáticos.
- Não... - baixou o olhar chocado para o corpo estatelado e manchado de sangue aos pés do homicida troncudo e parado num canto semi-escuro - Quer dizer que realmente cedeu as exigências de Hades?
- Está enganada. - disse Epimeteu - Selei um contrato um tanto parcial com ele, me dando oportunidade de acabar com o que me prendia à este mundo. Agora é sua vez de ser julgada.
- Posso imaginar que tipo de monstro você escolheu por livre e espontânea se transformar. Porque eu tinha em mãos o essencial pra fazer nossa vida ser como antes. Hades ludibriou você tão fácil.
- O que é? Onde estão as lágrimas? Vamos! - vociferou - Não tem magia agora? Me enfrente!
- Não tenho necessidade e nem quero. Ter matado nossa filha brutalmente me arrasa, sangra meu coração, mas... é a magia que me concede forças para seguir em frente acreditando numa esperança.
- Você está patética. - disse ele, aproximando-se - Muito confiante, muito desumana... Seguimos caminhos opostos, mas no fim das contas... criamos boas semelhanças.- intencionou toca-la.
Antes que tentasse um movimento, um vento intenso fez a porta abrir e parecia arrastar Epimeteu para uma caverna próxima da casa. Suas mãos tentando aguentar deixavam rastros no solo.
- O que é isso? O que tá havendo? Pandora! Isso é coisa sua? Para!
- A única coisa que estou fazendo é sentir pena de você. Parece que Hades mentiu. Esse é o meu adeus, Epimeteu! Faça uma boa estadia no inferno, louco de arrependimento pela morte da nossa filha, um crime que estava no contrato como uma ação proibida! Eu acertei? Pela sua cara sim!
- Isso não acabou! Ele não tem mais autoridade de antes! Me prometeu soberania eterna!
- Então sinto muito. Pelo visto, Hades vai te condenar por quebrar uma regra.
- Não devia... matar Laverna ou qualquer outra vida humana sem completar... a transição!
Epimeteu sentiu o corpo ser atraído para o escuro da caverna sem nenhum controle de suas articulações, o seu grito ecoante sendo música aos ouvidos de Pandora. A contraparte do presente havia cansado de ser espectadora do próprio destino sofrido. Ajustou o Espiral para retornar ao exato momento em que estava a dar início à decadência do mundo. Finalmente de volta, ela desfez a aparência falsa e entrou pelos fundos da casa. Ouviu a voz de Epimeteu chamando-a e se deteve. Mas continuou sorrateira. Foi até a sala devagar, atrás de si mesma, pronta para o impedimento decisivo.
- Pare! - disse ela à sua "outra eu". Aparentemente ela tinha acatado o pedido além do esperado - Espera aí... - olhou com mais atenção, depois tocando-a - Não se mexe... - arriscou ficar de frente à ela, balançando a mão aos olhos dela para ver se ela respondia, só que não, parecia uma estátua realista, completamente imóvel. - O tempo parou de repente. Mas o que...
- Aí está. Bem no flagra. - disse um homem com cabelo branco vestido um terno cinzento - Não gostaria que me apresentasse formalmente nesse tipo de ocasião, mas... você me forçou a intervir.
Pandora não sabia o que dizer, porém compreendeu imediatamente de quem se tratava.
- Zeus. - disse ela, apreensiva - Por que? Esse é um dos muitos porquês que me atormentam desde essa maldita noite em que minha vida foi amaldiçoada e não foi voluntário, eu sei disso.
- Insinua que subestimei sua percepção. Errado, eu sempre soube que se daria conta mais cedo ou mais tarde. - disse Zeus numa expressão de cinismo - Chronos está trancafiado numa jaula bem apertada, peguei emprestado um dos seus truques e aqui estou tentando impedir minha amada primogênita a cometer uma verdadeira atrocidade.
- Amada? - indagou Pandora, furiosa - Eu não passei de um artifício, uma alavanca pra dar sentido aos seus caprichos egoístas. Por isso digo que não ocupa o trono que acha ser seu por direito! Não é digno.
- Esperar que suas reclamações me afetem tem o mesmo efeito que tentar usar esse objeto ridículo tentando escapar das minhas intervenções. Aqui é o fim da linha. É uma ordem... vinda de seu pai.
- Então não vai descongelar o tempo até eu dizer sim pro que quer e não ao meu desejo. Nesse caso, eu vou destruir o Espiral e nem você pode imaginar a reação em cadeia que isso pode causar.
- Eu admiro a sua garra, sua bravura e destreza. Mas não fiz mais que minha obrigação. Ao menos não como pai. Determinei cada papel a ser cumprido rigorosamente. E justo você quer destruir meu lindo castelo de cartas que deu tanto trabalho para erigir. O equilíbrio, Pandora. Essa é a resposta.
- Eu só queria uma chance. - disse ela, as lágrimas rolando - De reparar isso de uma vez por todas. Eu não mereço esse fardo. Como está tranquilo com o fato de não podermos ser livres para decidir?
A expressão do Rei dos Deuses tornara-se mais condescendente.
- Os planos divinos são assim. Jamais serão aceitos e entendidos. Que continue como está.
Zeus levou dois dedos à têmpora esquerda de Pandora e uma luz branca refulgiu por toda parte. A semideusa regressou para 1942, olhando nervosa para seu quarto de hóspedes no Casarão. Ao verificar o Espiral, ficou boquiaberta. O artefato estava em frangalhos, amassado e queimado.
- Não pode ser... Não pode ser... - disse ela, caindo de joelhos e chorando copiosamente até deitar-se no chão. Uma derrota que veio para ser tomada como lição exigiria muitos séculos a mais para ser finalmente aceita.
CONTINUA...
*A imagem acima é propriedade de seu respectivo autor e foi usada para ilsutrar esta postagem sem fins lucrativos.
*Imagem retirada de: http://broncsrgames.blogspot.com/
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