Capuz Vermelho #71: "Jogo dos Predadores"
Não parecia natural da conduta de um caçador de aluguel correr freneticamente de um monstro que atentasse contra sua vida em plena missão de caçada, ainda mais numa noite enluarada na fase predileta da realeza licantrópica. O astro brilhava fortemente sua luz pálida que banhava os cantos mais abertos daquela floresta cujo solo, numa determinada área, estava recebendo fundas pegadas do homem que fugia desesperado da coisa que o perseguia e o enxergava com olhos ferais.
Resolveu parar para recompor o fôlego, mas não sentiu a presença do ser monstruoso de quatro patas - mas que caminhava sobre duas - em parte alguma. Visualizou todas as direções e nada, absolutamente nada. O canto dos grilos o descontrolava quando deveria relaxa-lo. Porém, acreditava que estivesse por ali, nos arredores, só esperando uma oportunidade de atacar.
Andou mais uns passos, mas antes que desse outro para recomeçar a corrida, sua cabeça foi golpeada por um porrete grosso bem no meio de sua testa, o derrubando à inconsciência. Balançando a arma com sensação de vitória, estava outro caçador com vestes oficiais de agente da categoria - o colete de couro marrom com a insígnia do Colégio dos Caçadores.
- Que pena, amigo. Acho que você reprovou no exame. - disse ele, agachando-se para contemplar sua vítima desprotegida - Até você despertar da sua soneca, vamos decidir seu destino. Aliás, o patrão irá decidir. - sorriu perfidamente.
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CAPÍTULO 71: JOGO DOS PREDADORES
Área florestal de Raizenbool
Fora de hábito, Rosie escrevia calmamente em seu diário sentada no sofá com as pernas cruzadas, mas virada para a janela por onde atravessava uma boa porção de luz natural. Hector parara para espia-la, segurando uma xícara com café que fumaçava. A jovem reconheceu logo sua tentava mal-sucedida em fingir que estava sozinha.
- Até quando vai ficar aí parado me observando? No fim do dia de ontem, não se esforçou tanto pra chamar minha atenção.
- É que geralmente costuma escrever no seu quarto. Pensou que eu não acharia isso curioso?
- Bastava ter perguntado. Mas já que quer saber, tudo bem. - virou-se para ele - Eu não ligo mais de colocar meus pensamentos no papel enfurnada no meu santuário privado, afinal é só e eu você, não tem porque me preocupar com respeito ao meu espaço, respeito que você soube praticar graças aos meus puxões de orelha.
Hector deu um sorriso fechado com uma risadinha rápida, mas sua cabeça baixa não indicava felicidade.
- Vejo que funcionou. Está comprovado, você é incapaz de apagar minha presença da sua atenção. Eu parei, você resistiu olhar, mas acabou cedendo ao desejo inconsciente de resolver nossa situação B agora que estagnamos na situação A.
- Mas já resolvemos. - disse ela, firme - Acabou. E não consigo distinguir o que seria situação A e situação B. Não tô pedindo pra explicar. Eu só não esperava que o que tínhamos um pelo outro iria se desgastar tão cedo. Nós estragamos tudo.
- Eu não lembro de ter falado que gostaria de dividir a culpa. - retrucou Hector, tomando um gole do café.
- Não é isso, tá confundindo as coisas. - disse ela, levantando-se - Assumi que também fui parte desse erro, fomos responsáveis por esse erro e veja como estamos. Tem causas maiores que não podem mais esperar.
- Quais seriam? Não quero ter que refrescar sua memória.
- Há dias estamos sem notícias da Pandora, Belphegor continua subindo nas pesquisas eleitorais e sobram dois demônios, ou seja, dois pedaços da minha alma, que estão à solta e incrivelmente difíceis de localizar. Precisa saber que nunca deixei de me importar, mas tô quase abandonando a esperança.
- Aí está a situação A. E quando ao último caso, Adam concordou em investigar, é impossível que à essa altura dois principados estejam agindo nas sombras sem provocar danos mais chamativos.
- Isso mesmo, parabéns. Largar todo o trabalho em cima de um cara que acabou de se recuperar de uma lavagem cerebral através de uma outra lavagem cerebral. - contestou Rosie, não escondendo a preocupação com o estado de Adam.
- Uma lavagem que beneficiou sua consciência, só pra complementar. E sua reclamação é estranha pra alguém que desejava um dia de folga. - disse o caçador, logo virando-se para retornar à cozinha. Rosie bufou expressando incômodo com o tom de fala do parceiro, mas escolheu não revidar, apesar de saber que a inflexibilidade é um dos efeitos do rompimento amoroso.
O toque da campainha a tirou de seu mundo de reflexões, forçando-a a atender quem quer que fosse.
- Que seja o Adam com boas notícias... - disse ela, baixinho, um tanto nervosa, antes de levar sua mão à maçaneta.
A perplexidade tomara conta do seu rosto. A visita era um caçador caucasiano de rosto meio arrendondado e cabelo relativamente loiro com um topete não muito expressivo. A face evocou lembranças amargas em Rosie que a fizeram recuar, porém a surpresa e insegurança deram lugar à impulsividade violenta. A jovem pegara detrás de uma almofada do sofá uma adaga dourada escondida para em caso de sentinelas solares ou deuses associados à Yuga viessem arranjar problemas.
- Não se mova. - advertiu ela, apontando a adaga com as duas mãos - O passo que der pode ser seu último. Por que voltou?
- Eu sinceramente não faço ideia...
- Responda! Veio trazer notícias do Áker ou está apenas de passagem pra sua diversão carniceira?
- Você é louca? - indagou ele, não levando a sério - Quem pensa que sou? Eu vim pra notificar o ex-líder da Legião dos Caçadores, Hector Crannon. Ele é alguém a quem o diretor tem muita confiança.
- Não vou deixar me enganar... - disse ela, a lâmina tremendo - Eu cansei de mentiras!
Rosie ameaçou lançar a adaga como um bom atirador de facas circense na espera que o rapaz pudesse segura-la ou desviar supervelozmente. Mas quem prontamente foi Hector que segurou a mão dela antes que que arremessasse.
- Ufa, salvou minha vida. - disse o visitante - O que diabos é isso?
- Sou eu que pergunto. - disse Hector, olhando repreensivamente para Rosie. Ao ver o rapaz com vestes de caçador, o reconheceu instantaneamente - Rolland? É você mesmo?
- Quem é vivo sempre aparece. Eu posso entrar ou... vou ter que pedir permissão à sua dama fatal?
- Antes de mais nada, tenho que explicar... - disse Rosie, aproximando-se, mas Hector a barrou com uma mão.
- Não, espere... Pra trás. Primeiro vamos receber o Rolland como pessoas civilizadas. - voltou-se ao rapaz - Entre.
- Ele é seu amigo?! Achei que fosse Mihos, o filho de Yuga, que matou vários soldados da força-tarefa do Exército Britânico no ano passado e tinha uma relação complicada com a mamãezinha.
- Como tentei dizer, não faço a mínima ideia do quê ou de quem está falando. - disse Rolland.
- O que você lembra de 1941? - perguntou Hector - Mais precisamente entre março e abril.
- Minhas adoradas férias. Nada de se sujar com sangue de monstro, somente a paz e o amor no ar.
Hector assentiu fingidamente e inclinou-se para falar baixo com Rosie.
- Podemos considerar que Mihos plantou memórias falsas depois de sair do receptáculo.
- Muito provável. - disse ela, olhando-o com um pouco mais de serenidade. Os três conversavam sentados nos sofás. Rolland sentou-se no menor, ficando de frente à dupla que o ouvia atentamente.
- Bem que nos avisaram que o mundo dos caçadores de aluguel era cheio de controvérsias. - disse Rosie.
- Há quanto tempo estão desaparecidos? - questionou Hector.
- Cerca de quatro dias, aproximadamente. Temos que confirmar os nomes no Colégio de Caçadores, afinal muitos extrapolaram a alçada. - retirou algumas fotos do bolso e as pôs na mesinha - Eu mesmo fotografei ontem junto com um parceiro que decidiu fugir do país pra não ser abatido por essa criatura que estaria se retaliando contra a categoria. Vejam aí, pegadas, marcas de garras...
- Pode ser qualquer espécie de licantropo. - especulou Rosie, olhando as fotos.
- Talvez. - disse Rolland - Os dados ainda não são muito precisos, a equipe que organizei continua analisando as evidências, mas eles não tem muito a fazer com o limite de envolvimento. Essa coisa tá metendo um medo real em qualquer caçador de aluguel e a especialidade de um é fazer inimigos sejam humanos ou sobrenaturais. Hector foi o único a quem pude recorrer.
- Claro, ninguém seria louco de subestimar o favorito de Walter Vannoy. - disse Rosie atiçando uma dúvida em Hector sobre o sentido do seu comentário - Bem, você me parece ser um dos poucos dessa laia que não deixou o dinheiro subir à cabeça.
- Se pareço? Eu sou mais diferente do que pensa. - disse Rolland - Faria qualquer coisa que possibilitasse uma saída amigável dessa corja maldita, mas minha esposa e meus filhos precisam do pão de cada dia.
- Está certo, vamos ao Colégio de Caçadores. O Earl, supervisor-chefe, pode abrir uma exceção pra nos dar acesso ao gabinete dele. - disse Hector, reunindo as fotos organizadamente.
***
Colégio de Caçadores
Conhecido de longa data por Hector, o supervisor-chefe concedeu permissão ao trio para que entrassem na sua sala particular levando em conta a urgência do assunto que foi levantada discretamente de modo que não gerasse suspeitas a quem passasse por perto. Espalhar alarde entre os alunos era a última coisa que esperavam fazer sem querer.
- Ficamos gratos, Earl. - disse Hector, entrando na frente - De verdade. Sempre reconheci o senso afiado do mestre pra selecionar seus funcionários. É uma excelência que eu não teria se ocupasse o cargo de diretor.
- Já foi cotado pra substituir Walter Vannoy?! - disse Rolland, surpreso - Não brinca.
- Sim, é verdade, mas acabou recusando mesmo nós dois tendo passado num teste de supervisão com dois caçadores iniciantes que iria nos promover. - disse Rosie.
- Com todo o respeito, o mestre Vannoy é insubstituível. - declarou Hector - Agora podemos focar na problemática do dia?
- Aqui a lista. - disse Rolland, mostrando o papel com os nomes e o entregando à Earl - E aí? São familiares?
- Bem, não sou uma máquina de memorização tão boa quanto o Hector. Vou ter que consultar o arquivo secreto.
- Existe um lugar de acesso restrito onde todas as fichas são armazenadas né? Era quase uma lenda. - disse Rolland.
- Venham comigo, a chave nunca sai do meu bolso no horário de expediente. - disse Earl - É um dos maiores arquivos de registramento do mundo. Vannoy exigiu a construção pra garantir total segurança a cada informação de alunos.
Os quatro desceram uma escada em espiral até chegarem ao imenso complexo subterrâneo com lâmpadas de luz amarela e diversas estantes metálicas que guardavam bons volumes de pastas. Rosie não digeriu bem a extensão do lugar.
- O tempo que levamos pra achar os nomes é o mesmo que precisamos pra resgatar quem ainda estiver vivo. - disse ela.
- Dá pra esperarem uns quinze minutos? - perguntou Earl.
- Consegue achar 8 nomes nesse tempo? - indagou Rosie - Nessas montanhas cheias de papel empilhado?
- Confie nele, o Earl sabe muito bem como descobrir os nomes seguindo alguns macetes que aprendeu. - disse Hector - Cada estante representa uma letra, mas todas as pastas numa única estante contém letras iniciais do primeiro nome diferentes. Meu nome, por exemplo, está na estante H, mas em alguma pasta que possua somente nomes com HE.
- Eu me orgulharia de andar com um parceiro assim. - disse Rolland para Rosie.
- Pra cérebro da equipe, ele dá pro gasto. - disse ela, aparentando minimizar a importância que Hector tinha no que se referia à sua intelectualidade. Os quinze minutos passaram voando e Earl retornava numa postura confiante.
- Verifiquei todos os nomes, realmente são de veteranos que saíram daqui com a desvalorizada insígnia de prata. - disse o supervisor, devolvendo a lista para Rolland - Tinha algum contato minimamente próximo com algum deles?
- O aviso chegou de surpresa, o colega que me informou não citaria os nomes se eu não tivesse pedido, mas provavelmente ele era chegado num deles, não sei a que ponto. - revelou Rolland.
- Então vamos atrás dele. - idealizou Rosie - Ou também fugiu do país?
- Olha, não tenho amigos íntimos, pra dizer a verdade a classe é carregada de desconfiança entre os membros, ou seja, não podemos confiar uns nos outros tudo por causa da corrupção que tomou conta de uma maioria que arregimentou equipes pra tudo virar uma competição de egos. - desabafou Rolland, visivelmente chateado - Vocês não tem noção da vergonha que me consome todo dia.
- Sabemos perfeitamente como se sente, Rolland - disse Hector, empático - Mas o perdão nunca restaura a confiança, se é que os caçadores de aluguel, cegos pela ambição, sabem o que isso significa.
- As pistas estão bem óbvias, evidências no maior sentido da palavra. - disse Rosie, demonstrando sua habitual impaciência - Minha teoria é razoável: uma espécie de licantropo. Caçadores não são invencíveis, especialmente os que cobram pelo serviço. - olhou para Rolland - Sem ofensas.
Rolland não conteve sua réplica.
- Mas o X da questão é justamente um número como esse de caçadores atacados num mesmo território. Embora nossa experiência nem se compare à caçadores que passam das fases preliminares e todo o resto da aprendizagem se resuma à provas teóricas, podemos lidar facilmente com um Lycan isolado, no máximo. E a análise das marcas de garras nas árvores não provou nenhuma ligação com uma das três espécies licantrópicas. Podem parecer de um animal comum, mas é isso que me intriga. Na pior das hipóteses, talvez seja algo que nunca enfrentamos antes, não dá pra medir sua força pelas evidências.
- Armar uma emboscada funcionaria. - disse Earl - O difícil é achar um voluntário para ser a isca. Só tô tentando ajudar.
- Não, nada de iscas, nem armadilhas. - discordou Hector - O único jeito, infelizmente, é nos expondo ao perigo a todo custo.
- Estão ouvindo? Vem lá de cima... - disse Rosie, escutando sons abafados que davam impressão de vozes exasperadas.
Hector apurou sua super-audição e ouviu a cacofonia de vozes da superfície. Sem dizer nada, dirigiu-se à porta e subira a escada. Earl o seguiu rapidamente com Rosie e Rolland vindo logo atrás.
Um caçador exibindo feridas nos braços e rosto chamado Stuart - um homem de porte meio franzino, barba volumosa e cabelo preto um tanto desgrenhado - pedia por ajuda desesperadamente, chamando pelo vice-diretor que presidia interinamente na ausência de Vannoy, mas este havia ido a um compromisso de caráter pessoal. Alguns supervisores tentavam acalmar o caçador.
Hector veio quase correndo seguido dos outros três e se juntara aos supervisores que não conseguiam reduzir a aflição tremenda sofrida pelo homem. Hector o segurou nos ombros sem forçar.
- Me diga seu nome, por favor.
- Stuart... Me chamo Stuart. Se não estou enganado... você é o Hector, né? Liderou a Legião, não foi?
- Sim, exato. Stuart... - lembrou que o nome dele constava na lista - De onde você veio pra chegar até aqui nesse estado? Quem o feriu?
- Fui sequestrado... Era noite, fui pra me reunir com o pessoal, aceitei um convite e pensei que iríamos nos divertir caçando algum monstro insignificante. Mas... era uma diversão que só um lado aproveitava bem. Eu não sei o que fazer, escapei por sorte. Eles me apagaram, doparam, amarraram e soltaram na expectativa de que eu fizesse o que eles queriam. Nos trataram como gado a caminho do abate. Nunca senti tanto medo na minha vida.
- De misterioso isso passou pra loucura. - disse Rosie - Caçadores caçando outros. Quem imaginaria?
- Muito bem. - disse Hector, já decidido do que fazer - Earl, melhor levar o Stuart pra enfermaria, depois vamos precisar dele pra nos servir de guia pela área onde essa brincadeira de péssimo gosto acontece. Não iremos todos juntos.
- Como assim? - indagou Rolland.
- Você e Rosie podem seguir um atalho e encontrar o cativeiro, torcendo pra resgatarem caçadores vivos. Eu e Stuart vamos averiguar a zona mais crítica. - elaborou Hector para o desgosto de Rosie.
- Eu vou acompanha-lo? Desculpa, mas...
- Quer um conselho honesto? Supere as lembranças ruins com Mihos. - disse Hector, categórico - Não precisa projetar nele o que você encarou quando ele estava possuído.
- A voz da sabedoria quer tocar seu coração. - disse Rolland - Deixe o passado pra trás.
- OK. - disse ela, suspirando - Não vou bancar a adolescente mimada que nunca aceita "não" como resposta. - olhou para Rolland numa expressão mais amena - O maior dever de um caçador é salvar mais vidas do que tirar.
Ouvir aquilo falado da boca de uma jovem que estava com sua alma incompleta, cujo pior efeito se dava em comportamentos agressivos e indecorosos levou à um preenchimento de alívio para Hector.
***
A reserva florestal citada por Stuart ficava uns 25 quilômetros de distância e o mesmo fora conduzido por Hector no carro próprio do ex-líder da Legião dos Caçadores, ao passo que o supervisor-chefe levava Rosie e Rolland para estacionarem do outro lado para cruzarem o atalho, pois de acordo com Stuart o caminho mais longo para chegar à cabana de confinamento ficava ao norte partindo de uma placa pregada numa árvore que não demorava para ser encontrada logo quando adentrassem no território, portanto era conveniente seguirem "pelos fundos" da floresta e não pela abertura.
- Entendo que está hesitando, Stuart, mas preciso que me oriente pelos caminhos onde os caçadores que foram submetidos passaram. - disse Hector, incomodado com os receios do caçador - Passou por momentos terríveis, eu sei. Só que nesse momento não é minha experiência que deve valer.
- Eu sou útil pra ser guião... Mas e depois? Somos flagrados e sabe-se lá o que pode acontecer.
- Comigo por perto tenha certeza de que está seguro. O que não vou prometer é deixa-lo participar de um confronto. - disse Hector, dando um tapinha amigável no ombro do caçador. Ao virar-se e andar mais uns passos, encontrara a placa enferrujada com os dizeres "Bem-vindo ao teste". Ajustou sua visão alternando para o modo lupino sem que Stuart notasse a mudança em seus olhos, afinal estava atormentado demais com o que vivenciou para perceber detalhes. Hector achava pegadas de botas e outras que indicavam ser de caninos, mas não reforçava a tese de Rosie.
- As pegadas são bem fundas nesse ponto. - disse Hector, suas pupilas voltando ao normal - E há sinais de luta olhando pelas folhas espalhadas junto com a terra do solo bagunçada naquele outro. - apontou à sua esquerda, pouco mais à frente - Pode-se dizer que alcançamos a área do predador.
- Hector, pra mim chega. - disse Stuart - Não dá mais pra esconder, me perdoa. Eu sinto muito.
- Esconder o quê? Sente muito pelo quê? O que está havendo?
- Acho que já deve ter percebido, me falaram que você é intuitivo, inteligente e tudo mais. - disse Stuart, a expressão de nervosismo - O motivo pelo qual me soltaram... foi pra trazer o melhor de todos até a toca do leão. No caso, você. Bem-vindo ao teste. - deu de ombros - Boa sorte.
- Stuart... - disse Hector, os olhos estreitados e a face séria. Subitamente, uma flecha prateada atingira-o na barriga, a ponta fincando profunda na carne. Hector segurou o cabo para remove-la, mas já via suas forças reduzindo ao cair de joelhos. Stuart logo em seguida levara um tiro disparado por trás que acertou sua cabeça. A imagem do caçador caindo para frente embaçava-se na visão de Hector cada vez mais debilitado. A prata era a matéria-prima da flecha, mas havia um adicional que intensificava o enfraquecimento, bloqueando os sentidos, inclusive a consciência.
- Gratidão eterna, Stuart. Bom trabalho. Agora descanse. - disse um caçador afro-descendente, de pele um pouco mais clara e meio careca, aproximando-se de Hector - Te peguei, lobinho. - Hector fitou aquele rosto carrancudo antes de apagar.
Pelo atalho, Rosie e Rolland caminhavam num ritmo calmo, ambos mantendo-se alertados para qualquer amostra que sinalizasse risco. Desconfortado pelo silêncio, o caçador de aluguel tentou puxar uma conversa para sanar suas dúvidas.
- Vocês nem se deram ao trabalho de explicar quem foi esse tal de Mihos que se apoderou do meu corpo por dois meses. Olha, no meu entendimento só um deus existe e ele certamente não apoia assassinato em massa.
- Te apresento o mundo real: Vários deuses existem. - disse Rosie - Bons, maus, neutros, de todas as formas e personalidades. Joguei aquela adaga em você pra comprovar se Mihos tinha voltado.
- Comprovar? Podia ter me matado. Nunca aprendeu que não se deve tomar decisões por impulso?
- Estou tentando reaprender. Aliás, preciso reaprender. E sobre o jeito que o recebi... desculpa.
- Quê? Ouvi bem? - indagou Rolland, colocando a mão direita no ouvido para "ouvir melhor" - Fala mais devagar, não entendi.
- Tenho que soletrar? Admito que fui idiota, precipitada e desagradável. Não pensei na chance de Mihos estar fora do seu corpo e acabei te constrangendo e assustando. Tô desculpada?
- Melhorou agora. - disse Rolland, satisfeito - Só que tô assustado de novo. Mas estranhamente empolgado também. Deuses... É inacreditável. - de repente, o caçador avistou um corpo de bruços e correu para vistoriar - Caramba, não pode ser. - constatou ser Stuart, vendo o buraco de bala na testa.
- Esse não é o...
- Sim. - disse Rolland, olhando para ela - Levou um tiro na cabeça. E por trás. Quem seria tão covarde?
- Hector estava junto dele. Será que fugiu? - especulou Rosie - Se for pra dar uma sugestão, prefiro nos separarmos. Conversamos e sem perceber desviamos do trajeto. Acho que vou por ali.
- Você acha o cativeiro e eu vou atrás do Hector. Tá bom assim?
- Faz diferença? - questionou ela - Tudo bem, não importa, desde que a gente consiga um dos dois.
- Um dos dois?! Se você descobrir que o Hector virou presunto, mesmo libertando caçadores vivos, tá tudo bem?
- Tô sendo realista. O que não podemos fazer é brincar com as possibilidades.
Correram pelas direções opostas ao mesmo tempo. Um outro caçador de aluguel vigiava escondido nos arbustos.
***
Hector acordou sentindo o ardor pungente dos grilhões que acorrentavam seus pulsos maltratados. Estava encostado numa parede suja, sentando num piso tão imundo quanto. Sua visão restabelecia-se à medida que esquadrinhava o local de cárcere. O último elemento que focalizou era o próprio caçador que o dopara com a flecha prateada banhada com algum líquido desconhecido.
- Estou diante do responsável por toda essa bizarrice... ou o que tinha naquela flecha está estimulando alucinações? - questionou Hector que forçou os grilhões, mas a firmeza das correntes aumentou sua dor - Me chamou de lobinho... Isso deu margem pra uma boa teoria.
- O que foi? Não gostou? - disse o caçador, preparando algo na sua mesa, de costas para seu cativo - Orientei o Stuart para que o mantivesse concentrado nele, fazendo eu ganhar tempo e ajustar a mira perfeita. - virou-se, trazendo uma seringa com um líquido esverdeado - Os caçadores molengas e fracotes que peguei não passaram de brinquedos descartáveis. Já você, é especial.
- Quem é você? Por que escolheu esse caminho? E justo esse caminho...
- Fala como se eu tivesse mil e umas opções. - disse ele, agachando-se - Não deve estar lembrado de mim, portanto vou me apresentar. Sou Darius. Grande amigo do seu falecido ex-amigo Edgar. Fui membro da equipe daquela força-tarefa.
- Ok, agora entendi. Não precisa explicar nada, está tão óbvio que é de dar sono.
- Preciso sim, porque não é só em relação ao Edgar que fiz isso pra te atrair. Sou um herói injustiçado buscando evoluir meus colegas, tira-los dessa humilhação lastimável que é essa categoria, fazendo eles seguirem normais muito melhores que as do seu amado diretorzinho de nariz empinado.
- Você distorceu tudo. O que chama de evoluir significa... escravizar caçadores, na ilusão de que vai torna-los fortes.
- Ilusão... É essa a palavra-chave. - disse Darius, destacando a seringa - Só é possível superar seus piores medos olhando bem no fundo dos olhos do monstro dos seus pesadelos. Qual será o seu, Hector? - perguntou, logo injetando a substância alucinógena no pescoço do caçador.
Paralelamente, Rolland vagava temendo deparar-se com mais corpos de caçadores, sobretudo em estágios avançados de putrefação. Sentira uma picada na lateral do pescoço e tateou logo retirado um dardo. Um caçador aliado à iniciativa de Darius veio aproximando-se. Rolland tivera sua visão sofrendo modificações, não mais vendo o caçador e sim... ele mesmo. Na verdade, Mihos.
- Olá, minha antiga armadura. - disse a alucinação, zombeteira - Não quer relembrar os momentos divertidos que passamos juntos? Ah sim, eu apaguei sua memória... digo, não literalmente.
- Você é ele... - disse Rolland, aterrorizado - Dá pra sentir, eu não sei porque, mas...
- Porque fomos um só, você ainda não consegue visualizar claramente. - disse ele, logo piscando um brilho amarelo em seus olhos - Suas memórias... minhas memórias... As guardei num canto mais escuro e empoeirado da sua consciência. Pra que no dia, hora e lugar corretos - estalou os dedos - o gatilho acionasse. Estamos nele agora. Sua cabeça vai explodir. Vamos, Rolland. Não reprima seus sentimentos, muito menos adianta negar que gostou de assistir o massacre daqueles soldados, seus membros e órgãos arrancados. A minha fome foi a sua também. Sente o gosto do sangue fervendo na boca, né?
Um filme de horror passara em imagens dantescas na mente de Rolland mostrando Mihos comendo um coração e cometendo várias outras barbaridades. O caçador pôs as mãos na cabeça, aturdido.
No cativeiro, o líquido tóxico corria nas veias de Hector que esboçava sintomas como a visão levemente trêmula.
- O que é isso? Meu corpo... está respondendo de um jeito estranho.
- É um bom sinal. - disse Darius, desacorrentando-o - Essa droga potencializa a liberação de adrenalina na corrente sanguínea, explicando o efeito imediato. Viu só? Nem todo caçador de aluguel é imbecil. Eu sou diferente e como tal farei uma diferença que mudará a forma como a instituição nos vê. Todos estão fartos dessa humilhação que já dura anos.
- Não fale por todos. Se espera melhorar a fama da categoria com isso... tenho péssimas notícias. - disse Hector, as mãos livres.
- Eu tenho uma boa: Em vez de fugir, como os idiotas que larguei no mato, você irá atacar o que mais odeia. Daqui à cinco minutos. - verificou o relógio de pulso - Mas vou solta-lo agora, não quero ficar esperando e ser a primeira vítima.
Durante a libertação de Hector, Rolland combatia as lembranças horrendas dos atos de seu parasita. A ilusão o enchia de palavras forçando-o a convencer-se de que eram iguais e de que o caçador no fundo apreciava as matanças pois partilhava do ódio estimulado pelo desprezo sofrido pela categoria.
- Eu... sou dono das minhas escolhas. Não sou como você! - disse Rolland, lentamente sacando uma faca. Abriu os olhos e virou-se, esfaqueando Mihos no peito. Na verdade, esfaqueando o caçador que o drogou. A ilusão se desfez e o capanga de Darius golfava sangue até que tombou morto - Não...
O caçador correra, abismado com o que fizera. Deixava lágrimas para trás pelo juramento que quebrou. Noutro lado da cabana, dois caçadores eram liberados como animais. O comparsa que cuidava da tarefa era um homem truculento usando casaco longo e boina. Os homens o fitaram parados, amedrontados. Irritado, o homenzarrão exibiu uma pistola e a destravou.
- Eu não vou pedir outra vez. - disse ele, ríspido - Corram! - atirou no chão, fazendo-os saírem em disparada. Rosie, que estava à alguns metros dali, ouvira o estampido e nessa hora desejou ter a super-audição de Hector. Mesmo assim, seguiu procurando a origem do pipoco, o que, dada a distância, não parecia difícil. Hector distanciava-se da cabana, andando meio trôpego, mas readquirindo a postura aos poucos. O seu faro de licantropo aflorou de repente. Transformou-se e partiu em supervelocidade floresta adentro para achar suas presas. Os caçadores libertados para o teste cruel de Darius se viam à mercê dos dentes pontudos que Hector mostrava ao salivar de fome.
Não deu tempo para reagirem. Hector avançara contra eles, trucidando-os com suas garras e lançando ao ar longos respingos de sangue. O que ele estava vendo, sob o efeito da droga, eram quimeras licantrópicas de Robert Loub, mais precisamente a que presenciou matando seu pai. Não muito longe dali, Rosie entrava pelos fundos da cabana, aproveitando a porta entreaberta. A semi-escuridão de onde parou foi uma deixa para Darius vir de ataque com um pé-de-cabra. Rosie abaixou-se agilmente e revidou com um chute que pegara forte na canela esquerda do caçador. A jovem tomou o ferro e desferiu um golpe no rosto de Darius que caiu mas rapidamente levantou-se. O caçador degenerado tocou no ferimento.
- Uma ajudante pro lobinho?! Parece dura na queda, mas não sou fácil de impressionar.
- Cadê o Hector? - perguntou Rosie, ameaçadora - Não vejo ele em parte alguma.
- Saiu pra dar uma voltinha. Dar cabo de alguns que ficaram perdidos e outros recém-liberados. Como chegou aqui sem um arranhãozinho?
- O seu exército tá meio fora de forma, sabia? Sorte que consegui impedir que injetassem em mim uma substância que sem dúvidas tá por trás dessa onda de caçadores medrosos que você tá usando como experiência sabe-se lá pra quê.
- Só quero recuperar neles o orgulho ferido de caçador. É só isso! A diferença pra Hector é que resolvi vingar Edgar e seus entes queridos. Medo ou raiva, não importa. A forma que um caçador reage é o que define se ele é ou não digno de ser valorizado entre nós, meros integrantes do baixo clero, antes de ganhar o devido valor dos mais capacitados.
- E o que acontece com os que não passam dessa prova mortal?
- Você vai querer me bater mais, porém... De que vale uma vida sem propósito... e sem coragem?
- Não tem direito de decidir o destino de ninguém. E sim, eu quero te bater mais, muito mais. - disse Rosie, logo pegando uma frigideira, um objeto bem menos letal. Darius se defendia e a fez largar a "arma", dando um chute na barriga que a derrubou sobre uma mesa de madeira. Rosie caiu para o outro lado. Ela se reergueu rápido, dando uma cotovelada para trás que acertou a palma da mão defensiva de Darius. Rosie recorreu a cabeçada e em seguida à vários socos, finalizando com um giro veloz precedido de um chute potente. Darius caiu sobre outra mesa, apoiando-se.
- Me fala onde está o antídoto!
- Vai ter que quebrar alguns ossos... se é que me entende. - disse Darius, sangrando na boca. Rosie sacara uma adaga e cravara no dorso da mão esquerda do caçador sobre a mesa. Darius conteve um grito de dor.
- Eu vou voltar. É pior se ficar forçando pra sair. Não perde tanto sangue, mas fica um belo buraco na sua mão.
Rosie saíra apressada recebendo um olhar colérico e vingativo de Darius que pegou firmemente no cabo da adaga independente de quanta dor sentiria. Hector percebera alguém vindo. Rosie, na sua visão, era a quimera. A atacou impiedosamente. Rosie esquivava-se das garras, mas fora pega pelo pescoço e jogada contra uma árvore. O caçador veio superveloz e a agarrou novamente levando-a à uma pedra média onde tentou estrangula-la. Os ilusórios olhos lupinos pulsavam de selvageria.
A jovem não resistiria o bastante para usar toda sua força e se desvencilhar, então viu a salvação num porrete largado à sua direita, o qual tentou alcança-lo esticando sua mão ao máximo.
O ar reduzia-se quando seus dedos tocaram no robusto bastão. Mas pôde pega-lo totalmente. Tacara no pescoço de Hector e um som de "crec" foi bem audível. O caçador caiu inconsciente e retornando ao normal. Mas faltava conferir se Darius permanecia neutralizado com a adaga fincada na mão. Para tanto, Rosie correu de volta à cabana, reentrando pelos fundos, porém encontrou a lâmina ensaguentada cravada na mesa indicando que Darius escapou suportando o grave ferimento.
- Merda. - disse Rosie, frustrada.
***
Rolland vinha ao encontro da dupla que estava preocupada com ele achando que o pior tinha acontecido. Hector alongava o pescoço como se quisesse certificar-se que os ossos estavam no lugar.
- Por um instante, pensei que a regeneração ia falhar considerando o impacto. Ainda bem, nenhum estralo fora do normal.
- Não tá exagerando? Bem, deu trabalho pra concentrar toda minha força naquele golpe pra ver se aquele desgraçado não mentiu sobre a cura. - disse Rosie - E finalmente ele apareceu... - voltou-se para Rolland e notou manchinhas de sangue na roupa dele - Ahn... Matou alguém?
- Me lançaram um dardo venenoso, quem dera fosse só uma abelha. E sim, eu acabei tirando uma vida, a vida de um caçador. O mandamento do "não matarás" era sagrado e eu descumpri. Isso vai além do sentido religioso.
- Nós compreendemos. - disse Hector - Além do mais, não deixei de reparar no crucifixo que usa...
- Sim, pois é, eu me agarrava à uma força maior, acreditando em anjos da guarda. Aí descubro que há muitas forças maiores. Como enfrentaram coisas tão poderosas? E sobreviveram pra contar!
- Por que tá dizendo isso? - perguntou Rosie - Até parece que ficou cara à cara com um deus de verdade.
- Não de verdade, mas uma ilusão dele que destrancou memórias adormecidas... Esse Mihos, o filho da mãe que profanou meu corpo, é o pior monstro que vi. Não é qualquer um que engole isso e continua são. Por esse motivo, faço outro juramento, dessa vez inquebrável: Sigilo absoluto.
- A gente agradece. - disse Rosie - Por nos avisar do caso também. A classe precisa de mais caçadores como você. - elogiou Rosie, o que alegrou Hector - Afinal, como se livrou da ilusão? Sua cabeça parece ilesa.
- Resisti mais do que eu gostaria. Voltei a si, mas era tarde. De certa forma, o chefe desse plano maligno venceu.
- O nome dele é Darius, tivemos uma luta, o prendi, mas ele fugiu. Se o capturarem, não deviam joga-lo numa masmorra policial, ele merece uma confortável cela num manicômio.
- O complexo de inferioridade adoeceu a mente dele. - declarou Hector, reflexivo - Ele não vai parar.
- Mas assim que eu tiver novas informações, não vou hesitar em chama-los. - disse Rolland - O último favor é uma carona.
- Pode ir na frente, te alcançamos depois. - disse Rosie. Hector não objetou. O caçador assentiu e seguiu para sair da reserva e espera-los no carro - Passou da hora do almoço, podíamos parar num restaurante.
- É um convite? Então aquele ultimato que você deu...
- De novo confundindo as coisas. Olha, não me leva a mal, mas... precisamos voltar a ser como éramos.
- Está bem. - concordou Hector, expressando tranquilidade - Uma vez parceiros de caçada, sempre parceiros de caçada.
- Eu ia dizer amigos. Tô mais disposta que nunca a acabar com o Belphegor de uma vez. - fez uma pausa - Você tá comigo?
Hector fizera um silêncio injustificado por uns segundos. Sorriu serenamente.
- Sempre.
CONTINUA...
*A imagem acima é propriedade de seu respectivo autor e foi usada para ilustrar esta postagem sem fins lucrativos.
*Imagem retirada de: http://m.diariocatarinense.com.br/galerias/1/g47550/8
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