Capuz Vermelho #69: "Problemas egípcios"
Gizé, Egito
Um sítio arqueológico fora instalado sobre o que os exploradores designados e alguns voluntários acreditavam ser na verdade um templo egípcio milenar com datação desconhecida. O local estava afundado na terra, como se um terremoto de grande escala tivesse retirado-o parcialmente da superfície. Dentre os voluntários, estava o Dr. Lenox, sem memórias do que passou no ano anterior sobre sua temporada trabalhando numa pesquisa científica a serviço de um deus nefasto.
Todos os sete homens escavadores desceram pela abertura e exploraram livremente com lanternas. Lenox conseguiu entrever algo no formato de um caixão isolado num canto onde a luz natural mal alcançava. O cientista, que tinha criado um apreço repentino por arqueologia e mitos antigos, apontou o facho da lanterna na direção e conforme se aproximava o objeto tornava-se mais evidente.
Ajeitou seus óculos e estreitou os olhos. Limpou a poeira do seu colete marrom claro e voltou sua atenção à misteriosa tumba moldada à uma imagem familiar da mitologia.
- Pensou que ia apreciar esse achado sozinho, Lenox? - disse um dos colegas exploradores, assustando o cientista, um baixinho gorducho com pequenos óculos redondos - OK, não é grande coisa, estamos bem mais adiantados.
- Sabemos que é um templo de imenso valor. - disse Lenox - Provavelmente um faraó viveu aqui.
- O qual suspeitamos ser Akénaton. - complementou o outro - De nada vale sua utilidade se não tiver um cadáver de mais de mil anos aí. - fez uma pausa - Ou quem sabe hajam tesouros aí dentro. Faça bom proveito, não ficaremos interessados.
- Escute aqui, eu não suporto piadinhas idiotas sobre o que eu represento pra essa expedição. - retrucou Lenox, tocando-o forte no ombro como um sinal de repreensão - Não falo em nome da ciência, consensos são tão raros na minha área quanto as refutações ao meu trabalho. Então acho melhor você ter mais respeito pelo que eu posso acrescentar ao nosso passeio.
- Bem que me avisaram sobre você. - disse o homem, desprendendo o ombro da mão de Lenox grosseiramente - Deve estar muito grato à Willard Libby. Vou avisar os outros antes que acione uma armadilha. - saíra andando enquanto Lenox o observava com desprezo.
- Tentando me desmoralizar... Como se eu fosse uma criança brincando num parquinho pela primeira vez. - disse ele, chegando perto da tumba e analisando-a. Tocou na modelagem na forma da cabeça de um deus egípcio que ele não sabia exatamente - Anúbis? E que estranho, geralmente as tumbas ficavam na vertical. - sua mão passou pelo objeto em formato de escaravelho no centro da tumba. Percebeu que o mesmo estava preso e tinha propriedade giratória. O girou em sentido horário.
"Uma espécie de chave?", pensou ele, curioso. Quando completou o giro, o objeto travou e a tampa da tumba produziu um baque seco, abrindo-se devagar. O medonho corpo nela mumificado abriu os olhos e levantou-se subitamente pegando a cabeça de Lenox. Os exploradores sentiram um leve tremor enquanto percebiam uma luz vinda de onde o cientista estava.
- Eu tinha certeza que há armadilhas aqui e Lenox é o culpado. - disse o explorador que o insultou.
- Fiquem todos juntos. Vamos lá. - disse o líder da expedição, correndo na frente.
Ao chegarem, viram Lenox parado apoiando-se na tumba, aparentemente cansado.
- Você abriu a tumba?! E o que foi aquela luz? - questionou um deles.
- Está tudo bem, rapazes. - disse o cientista - Foi apenas um susto. - virou-se para eles - Ah é, ficaram aterrorizados com a luz. - aproximou-se deles - De qualquer forma, não estariam convencidos se o proprietário desse corpo inventasse uma desculpa rasa, ele daria uma explicação racional como um excelente cientista que é. Ele está agitado aqui dentro.
- O que deu em você, Lenox? - perguntou o baixinho - A múmia despertou, tocou em você e apodreceu seu cérebro?
- Não, Lenox está mais lúcido do que nunca. E me será de extrema importância - disse ele, dirigindo-se ao explorador, levantando suspeitas dos demais - Vocês o desdenhavam, não o levaram a sério.
- Quem é você? - disse um deles, apontando sua arma - De repente é uma alma perdida que o possuiu.
- Alma perdida, eu? - deu uma risadinha - Lenox é uma alma abençoada. Vocês que são os perdidos.
O explorador sentia sua mira voltar-se aos amigos sem controle da sua vontade. O resto sentiu-se induzido pelo olhar penetrante do cientista e sacaram suas próprias armas para aponta-las uns aos outros. Lenox afastou-se e parou, logo ouvindo os disparos ecoarem atrás dele. O cientista alongou o pescoço fazendo estralos. O brilho vermelho-alaranjado que piscou de seus olhos elucidava que Lenox fora possuído por uma divindade. Não era Anúbis, mas Set... o senhor do caos.
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CAPÍTULO 69: PROBLEMAS EGÍPCIOS
Área florestal de Raizenbool
Nem mesmo um único vestígio foi deixado no quarto de hóspedes. Hector esquadrinhava o recinto à sua volta, tendo a certeza de que Pandora, daquela vez, fugira sem explicações. No entanto, seu super-olfato apurou-se de instantâneo.
- De onde vem esse odor? - tentou procurar a origem, abaixando-se.
- Procurei do lado de fora, nada nos arredores. - disse Rosie entrando de repente - O que tá fazendo?
O caçador sentia o cheiro mais acentuado vindo de baixo da cama. Não demorou para que achasse. Pegou o Espiral retorcido e chamuscado e se reergueu para mostra-lo. Rosie expressou confusão.
- Espera... Essa não é a máquina do tempo portátil da Pandora?
- Sim, o Espiral. Agora não passa de lixo descartável que pelo visto sofreu combustão recentemente. - disse Hector, analítico.
- Defina recentemente. - pediu Rosie, andando até ele.
- Muito provavelmente ontem. - respondeu o caçador, ficando preocupado com as razões que levaram ao objeto ser destruído - Não tem sinal de luta, nem sangue, as janelas estão intactas, então sequestro está descartado. O Espiral era muito valioso.
- Ela é uma bruxa do caos. São milhares as possibilidades que não vou perder tempo tentando deduzir qual a mais certa. - disse Rosie, indiferente quanto ao sumiço da semideusa. Hector baixou a cabeça, incomodado.
- Ainda prefere viver com esse rancor? Ela removeu o controle mental do Adam. Pensei que...
- Pensou que com esse gesto prestativo seria o suficiente pra apagar os erros dela contra mim e à você. - retrucou Rosie, aborrecida - Pra ser franca, não tô satisfeita. Dá pra ver o quanto isso te fez bem e eu entendo. Mas você pediria pra ela apagar a lembrança de quando descobri que você é herdeiro de um Red Wolve? Não é uma ideia, só uma pergunta.
A questão emudeceu Hector por uns bons segundos. A face desconsolada do caçador a convenceu.
- Olha, que tal nos juntarmos ao Adam? - desconversou ele - Arejar um pouco a mente. Está precisando.
- Ele foi à um comício do Ephram Lankester sabe-se lá pra quê. E tem manifestantes nada pacíficos lá. Quer arejar a cabeça sendo apedrejado por um bando de extremistas? Pra deixar minha mente mais fluida, uma boa briga serve.
- Vamos manter uma boa distância assim que o encontrarmos. - disse Hector, saindo - E, por favor, não atraia encrenca.
- E quanto à Pandora? Achei que ia sugerir uma investigação. Isso é bom, não tá tão previsível.
- Uma hora ou outra, ela vai aparecer. Talvez ela precise de um pouco mais de espaço. - deu de ombros, sem certeza.
- Pra mim ela quer nos desligar dos problemas dela. - disse Rosie, seguindo-o pelo corredor.
O evento político de Ephram acontecia em Londres, numa das principais ruas movimentadas. Hector encostou seu Coupé Opera 1941 próximo a uma calçada e logo avistaram o aglomerado de pessoas à alguns metros à frente. Ao saírem do veículo, viram Adam caminhando. O caçador segurava um panfleto enorme e como estava de costas perceberam um adesivo colado na sua camisa branca.
- O candidato limpo e honesto está hipnotizando todos a votarem nele ou estou errada? - questionou Rosie.
Adam virou-se, um tanto surpreso ao vê-los, afinal Hector falara mais cedo que não o acompanharia.
- Como é? O que quer dizer?
- Tem uma coisinha grudada nas suas costas. - revelou ela. O caçador olhara atrás da camisa e enxergou o adesivo tentando tira-lo - Te sacanearam não foi? Isso me lembra o colegial quando a vadia da Tiffany mostrou quem era de verdade quando me abraçou e pôs chiclete no meu cabelo.
- Um cara incrivelmente educado me cumprimentou com muitos tapinhas nas costas. - disse Adam, tirando os pedaços do adesivo dos dedos - Por enquanto não notei nada do tipo... bizarro. Como um coro de vozes ovacionando o sujeito, mas pelo que vi do discurso... facilita ninguém se dar conta de que o cara é uma farsa. Notícias da Pandora?
- Pior que mal sabemos por onde começar a investigar. - disse Hector - Não tinha dito que veio por um motivo estratégico?
- E o que seria? - indagou Rosie.
- Mantenha seus amigos por perto - disse Adam - e seus inimigos mais perto ainda. Por isso me tornei voluntário desse projeto financiado pelo monstro na pele de político. - destacou o informe publicitário, entregando-o à Rosie.
- Capacitação de jovens soldados para o front de batalha britânico. - disse ela, lendo - Quer dividir trincheira com um bando de estranhos? É bom que isso seja apenas estratégia. - voltou à conferir - E... Espera aí. Uma organização de ciência tá envolvida nisso, fez parceria com Belphe... digo, Ephram Lankester, tudo para desenvolver um potencializador físico, basicamente prometendo transformar caras normais em super-humanos de alta resistência. Não vai acreditar nisso...
- O quê? - perguntou Hector, inclinando para ver. Rosie mostrara o principal nome do time composto para realizar testes da substância - Acho que algo se encaixa. - disse ele, pegando um jornal que guardou no sobretudo para terminar de ler depois.
- Do que estão falando? Eu estou bem aqui, não me tratem como uma das pessoas que interrogam durante os casos. - reclamou Adam.
- Eis o problema: Você é essa pessoa. - disse Rosie - Adam, se tem uma razão especial pra ter aceitado participar dessa seleção militar, melhor nos dizer agora. Colocou sua segurança em risco.
- O Dr. Lenox estampa uma manchete a respeito de mortes num sítio arqueológico há três dias. - disse Hector, abrindo o jornal na página - Ele ficaria encarregado da datação por carbono se descobrissem corpos mumificados num templo egípcio da realeza, obviamente de um faraó. Todos os exploradores, com exceção dele, foram assassinados. Na verdade, teriam atirado uns contra os outros, de acordo com o laudo datiloscópico.
- Tradução para os leigos? - exigiu Rosie, também indicando Adam.
- A análise das digitais. - explicou Hector - Além disso, os modelos das armas eram diferentes pra cada um, então as balas também não ficaram de fora da perícia. O intrigante é Lenox não saber da circunstância, só disse que estava distanciado dos companheiros e ouviu os tiros. A tumba foi aberta por ele, sugeriu que mandassem para o museu mitológico, enquanto o cadáver foi encaminhado direto para o centro científico por insistência do próprio Lenox.
- Me parece normal. - disse Rosie - Nossa única obrigação é avisa-lo de que está trabalhando com um demônio usando disfarce humano para usar a política como alavanca pro seu plano maligno.
- Não, tem uma inconsistência. - disse Hector, meio pensativo - Numa tragédia dessas é de muita frieza da parte do Dr. Lenox querer prosseguir com os estudos. A abertura da tumba foi um acidente... e posterior às mortes.
- Tá dizendo que alguma força sobrenatural... possuiu ele? Com essas evidências, eu não creio. - disse Rosie.
- Por via das dúvidas, investigar não custa. - disse Adam - Mas vou manter minha posição.
- Adam, o mais aconselhável é desistir. - afirmou Hector, sério - A ideia desse projeto partiu de Lenox e ratos estão dispensados dos testes. Definitivamente não é um risco que vale qualquer tática, não importa o quão eficaz.
Um estouro de bomba os deixou sobressaltados. Boa parte da multidão começava a dispersar-se mediante aos tiros de efeito moral da polícia britânica contra os manifestantes baderneiros.
- Começaram um tumulto. - disse Adam.
- Até que demorou. - falou Rosie, pouco impressionada.
- Vamos, antes que nos atinjam. - decidiu Hector, direcionando-se ao carro. Rosie e Adam o seguiram em passos acelerados.
***
Centro de ciências avançadas
Conseguir passar pela entrada sem ser barrado por um segurança troncudo havia sido um primeiro e grande triunfo para Hector que pegou um crachá de visitante numa caixa transparente sobre um púlpito de madeira. Passou por algumas pessoas, funcionários médios, sorrindo educadamente não aparentando instigar suspeita nelas pelo seu modo de vestir. Era o momento de pedir informação.
Paralelamente à furtividade de Hector, no carro estacionado em frente ao prédio estavam Rosie e Adam à espera do caçador retornar imediatamente. Rosie tocava nos dados peludos pendurados.
- O Hector tem um gosto questionável pra enfeites de carro. - comentou Adam.
- A ideia foi minha. - respondeu Rosie - Pra deixar nossos passeios menos entediantes, no mínimo.
- Ainda tá chateada por eu insistir em participar do batalhão de guerra?
- Entendo que quer lutar pelo seu país, isso é nobre, patriótico, digno de honra, mas... a porta de entrada pra essa oportunidade é um abismo que você não vai parar de cair. Lenox pode estar sendo feito de marionete do Belphegor, forçado a usar seu conhecimento em favor dos objetivos dele.
- Isso não te soa familiar demais? - perguntou Adam com um sorriso torto. Rosie pensou um pouco.
- Ah é. - disse ela, lembrando - Ele prestou serviços à Abamanu, criando aquela gosma preta horrível.
- É surreal como o passado pode nos alcançar e quando percebemos já é tarde. - disse Adam.
- Tem toda razão. - concordou Rosie, olhando-o - Me diz uma coisa: Teria coragem de apagar cada lembrança ruim se pudesse? A propósito, consegue lembrar de quando ou como seus pais morreram?
O caçador endureceu a face, não demonstrando vontade para enveredar por aquele assunto. Rosie recuou seu rosto e esboçou incômodo achando que perguntou inapropriadamente. Mas mesmo assim, Adam considerou responder.
- Não lembro porque não consigo. Apenas sei que se foram. Eu era muito novo, não é irrazoável que meu cérebro tenha espontaneamente apagado ou inconscientemente apaguei ao longo de algum período.
O clima foi interrompido com o punho de Hector batendo de leve no vidro direito do carro.
- A tumba descoberta por Lenox pertence ao Rei Ramsés II. Alguém está afim de ir à biblioteca?
Rosie desviou o olhar para Adam e arqueou rápido as sobrancelhas. Adam fez uma expressão de concordância. De uma janela, Lenox... ou Set... observava o carro azulado dar partida e seguir.
***
Dois dias depois
- Você testemunhou o mesmo que eu, não dá pra entender porque ainda se nega a acreditar. - disse Hector, adentrando no casarão com irritabilidade - As duas partes que restam da sua alma são bem importantes pra repor seu raciocínio lógico.
- Não me provoca, tá? Eu só cheguei a uma conclusão diferente, então pra mim o teste foi bem-sucedido, não vi nada incomum. - retrucou Rosie vindo logo atrás.
- Passou pela cabeça por um minuto que é precisamente isso que Belphegor quer que nós pensemos?
- Talvez sim, talvez não. Eles conseguiram ser discretos. Ou a droga está na fase inicial.
- É uma das suposições que eu esperei você fazer. - declarou Hector, mantendo a asperidade.
- O problema é você querer que olhemos um pra cara do outro dizendo "tá pensando o mesmo que eu?". Nos trabalhos em duplas da escola nunca soube lidar com uma visão diferente? Sempre quis impor a sua?
- Eu não quero te obrigar a pensar completamente como eu, apenas tentei abrir seus olhos, o que vimos lá não foi mera questão de perspectiva. Um homem deu uma chave de braço no oponente com bastante força, não pareceu uma simulação.
- OK. 80% simulação, 20% efeito real da droga. Tá bom pra você?
- Não me obriguem a faze-los parar sufocando-os. - disse uma extremamente conhecida voz. Rosie ficara imóvel, em choque, a boca semi-aberta tremendo e sem emitir um som. Hector estranhou a reação da parceira, virando-se imediatamente. Alguém saiu da cozinha e estava segurando um pedaço de torta. Este alguém era um mordomo de terno bem passado e gravata borboleta. Um homem afro-descendente de estatura mediana e careca lustrosa - Assim é melhor. - mordeu o pedaço.
- A... Áker?! - disse Hector, perplexo - Não pode ser possível. Vo-você...
- Tinha se sacrificado para salvar o mundo. - completou Rosie. Correu para abraça-lo. No entanto, o sentinela solar sentiu algo que o fez empurrar a jovem levemente - Áker, o que foi? Sou eu.
- Sim, eu sei. Mas espiritualmente não é a mesma. Rosie, o que aconteceu com você nesses últimos tempos?
- Ahn... - Hector vinha aproximando-se - É que...
- Óbvio que é uma longa história. - interrompeu Áker.
- Me enganei. Continua previsível. - disse Rosie, insultando o caçador que franziu o cenho para ela.
- Provavelmente não é mais longa do que a explicação do seu ressurgimento do pós-morte. - disse Hector - Eu realmente estou estarrecido. Você absorveu a supernova de Yuga e desapareceu. Acreditamos que não resistiu e explodiu em algum lugar do infinito.
- Atravessei a fronteira inter-dimensional tamanha a velocidade que alcancei. Em seguida, todas as minhas reservas de energia se exauriram e então... causei uma explosão devastadora. - contou ele, andando - Reconstituí esta casca átomo por átomo, foi terrivelmente difícil. Não me acostumei às roupas que ofereceram e troquei para a que Omar usava... quando vivo.
- Disse que atravessou uma fronteira inter-dimensional... - falou Rosie - ... Ficou preso noutro universo?
- Sim, o mundo onde estive não se comparava à este em nada. Voltei com a ajuda dos habitantes de lá, me desculpei pela destruição da minha chegada e arranjaram um modo de me fazer retornar.
- Devem ser muito avançados, tal como a humanidade daqui à 87 anos. - disse Hector.
- Nós já vimos o futuro de bem perto. - afirmou Rosie - Foi uma experiência... maluca.
- Nem imagino que circunstâncias levaram à isso. - disse Áker, dando um sorriso tímido - Bem, eu vim procura-los pois recebi um alerta. Há sentinelas escondidos, em menor número. Um velho conhecido meu despertou da tumba para continuar sua semeadura de caos, morte e violência. Não imaginam quem é?
- Que coincidência. - disse Hector, fitando-o - Estamos investigando um caso envolvendo justamente uma tumba há dois dias.
- Pesquisamos tudo na mitologia egípcia sobre o faraó Ramsés e nada correspondeu com as teorias. - disse Rosie.
- Isso porque a historiografia humana ocultou detalhes a respeito da vida desse perverso homem. Ramsés governou com mãos de ferro, mas foi vítima do seu ego frágil ao barganhar com Set, o deus que tentou assumir o trono de Yuga e lhe arrancou um olho. Sekhmet o odiava mais que tudo. Mas voltando à Ramsés... A promessa feita por Set dizia sobre um paraíso de riquezas no além. Ramsés trocou sua alma pela subida a um reino celestial que nunca existiu. Apunhalou a si mesmo, permitindo Set tomar de assalto o invólucro do espírito. Um caso irônico de mortal desejando ascender sua essência e o deus que era obcecado pelo plano carnal e materialista. No fim, se pareciam. E agora ele está apossado do Dr. Lenox
- Sobrenaturalmente feitos um para o outro. - disse Rosie, satisfeita.
O telefone tocara de inesperado. Hector resolvera atender. Pelo seu semblante, a ligação não foi das bem-vindas.
- Não encoste um dedo nele até chegarmos. - falou o caçador.
- Ah, então posso penetrar a agulha bem fundo assim que cruzarem a porta do laboratório. - disse Set olhando Adam amarrado numa mesa metálica de operações - Seu amigo está apressado, é um privilégio ser minha vigésima cobaia. Finalmente arranjei uma maneira não tão discricionária de governar.
- Menos tirânico não o faz menos que um monstro maníaco e psicopata com sede de destruição. Vamos acabar com você. - disse Hector, logo desligando. - Adam forneceu nosso número de telefone ao centro científico sem saber da cilada. Set o raptou, está prestes a injetar a droga nele. E puseram uma bomba no museu mitológico. Áker, pode nos teleportar pra lá?
- Mas e o Adam? - indagou Rosie em tom elevado.
- É mesmo, mas não podemos estar em dois lugares ao mesmo tempo. - disse Hector, fechando os olhos por preocupação.
- Acalmem-se, por favor. Toquem em mim. - eles pareciam indecisos - O que estão esperando? - questionou Áker, impaciente. Ambos o fizeram e foram parar diretamente na casa do responsável por eleger profetas. A residência de Údon tinha um interior tranquilo e organizado. O arqueu estava diante de um piano quando assustou-se com a repentina chegada do trio, quase caindo da cadeira.
- Mas o que é isso? - perguntou ele, o tom de exasperação - Não posso acreditar...
- Olá Údon. - disse Hector, sorrindo fracamente - Viemos... pedir um favor.
- Ah, é claro que sim, eu serei de extrema utilidade toda vez que um perigo de proporções extra-mundanas os atormentarem. - disse ele com reclamação.
Áker subitamente rendeu-se à um mal-estar que o derrubou ao chão, fazendo-o expelir sangue pela boca. Segurou-se numa mesa para levantar-se, mas Rosie e Hector o ajudaram prontamente.
- Áker, o que foi? - indagou Rosie, aflita - Você está bem?
- Desculpe parecer não ter notado sua presença, velho amigo alado. - disse Údon - Eu verdadeiramente sinto muito que esteja nessa condição degradante.
- Por acaso previu que ele voltaria? - questionou Hector.
- Esqueceu da função primordial de um arqueu? Passei todo esse tempo profetizando constantemente.
- Está tudo bem, não se preocupem. - disse Áker, recomposto - Ao menos temporariamente. O teleporte me desgasta, fragiliza a resistência do meu receptáculo. Preciso usar com moderação.
- Então vamos depressa elaborar um plano. - disse Rosie - Nós nem sabemos como é a bomba, se é dinamite ou de contagem regressiva. E tem o Adam. Vamos ter que nos dividir.
- Údon, leia minha mente para evitarmos perder tempo. - pediu Áker - Por favor.
- O que desejam que eu faça? Exorcizar um outro deus possessor?
- Acertou em cheio, até parece que leu nossa mente. - disse Rosie, dando um sorriso de canto.
O arqueu cedera ao pedido do sentinela efetivado e tocou na têmpora esquerda com dois dedos.
- Eu receio que não hajam muitas chances. - disse Údon após a leitura psíquica - Aproveitei as informações que Áker possui e criei uma rede de sondagem... e a bomba está dentro da tumba, faltando menos de 10 minutos para detonar. Mas lamento, não posso ajuda-los, vocês interromperam minha prática de piano, hoje era o dia da escala do dó maior, quase consegui.
- Vai colocar sua aprendizagem de piano acima da sua capacidade de evitar uma catástrofe? - perguntou Hector, revoltado com a posição covarde do arqueu.
- Salvando vidas estará salvando seu dia também. - argumentou Rosie.
- Foi salvando vidas fazendo o que estão me obrigando que fiquei próximo de ser capturado a julgamento por infração grave. Eu me arrisquei demais, se acontecer de novo será o meu fim.
O esgotamento de paciência por parte de Áker surpreendeu Rosie e Hector. O sentinela solar avançou superveloz contra Údon empurrando-o contra uma parede e segurando-o pela gola da camisa cinza.
- Lembre-se de quando nos conhecemos. Fui cordial e pacífico pedindo que salvasse Rosie, revertesse o estrago que causou. Agora você comete o mesmo erro, pensando em si mesmo!
- Áker, espera aí... - disse Rosie, pensando em acalma-lo.
- Ouçam, jovens. - disse Údon olhando para a dupla - Eu não quero ser fritado por um sujeito como ele, portanto... - engoliu em seco - ... podem contar comigo. - desviou o olhar temeroso para Áker.
***
Museu mitológico - Londres
A boca de um dos agentes de segurança aproximava-se do microfone torto naquela pequena sala.
- Quero informar que está proibida a saída de visitantes até que as autoridades competentes e especializadas no problema venham para resolver, elas já foram solicitadas. Não entrem em pânico.
O mutirão de pessoas na ala de egiptologia tornou-se mais desorganizado e o desespero contagiante espalhava-se à todos. Muitos gritos de protesto, brados de indignação e empurra-empurra frenético.
Rosie e Hector estavam por ali, perambulando na busca de avistar a tumba e escutaram o questionável aviso. A fim de poupar Áker, decidiram que Údon os teleportaria, assim como ele o mandaria direto ao laboratório no centro científico.
- Não seria mais inteligente evacuar todo o local? - perguntou Rosie.
- É um subordinado de Set, na certa. - disse Hector, acelerando o passo - Manter a concentração de pessoas e engana-las para levar à morte, além de nos encurralar também. Dá pra ver que ele supera Yuga em alguns pontos.
- Hector, vem cá. - disse Rosie, parando - E se ele tiver um poder de criar ilusões ou cópias, como o Áker fazia?
- É uma incerteza assustadora que não nos impede de arriscar. Concorda?
Um dos guardas dirigira-se à eles com ar de suspeita.
- Estão perdidos? Suponho que ouviram a recomendação da central de segurança.
- O que chama de recomendação nós chamamos de convite para a morte. - retrucou Rosie - Essas pessoas precisam ser retiradas daqui imediatamente.
- Além do mais, venho como representante da sessão de crimes especiais da polícia britânica. - mentiu Hector, engajando-se logo no desenrolar do plano de assumir o controle da situação ou de pelo menos parte dela.
- Desculpe. Sem credenciais, sem passe livre. - disse o agente, categórico - Terá de esperar.
- Infelizmente não podemos. - disse Rosie, logo em seguida sacando do seu cinto uma lâmina dourada e movimentando-se agilmente para se pôr detrás dele e o ameaça-lo com a adaga - Posso te garantir que meu parceiro é especialista no desarmamento de bombas, seja ela como for.
- Prometem não me matar... se eu contar tudo, certo? Eu nem acredito nas promessas desse cretino do Set, ele não passa de um pária obcecado por aprovação. Pra dizer a verdade... eu não tô nem aí.
Rosie e Hector entreolharam-se, naquele instante estabelecendo uma uniformidade de pensamento.
***
No laboratório, Adam tentava debater-se na gelada mesa de operações, mas as amarras de couro estavam firmemente prendidas. Set destacava a seringa contendo o líquido vermelho como se segurasse um poderoso elixir de fator universal.
- O que diabos você ganha com essa loucura? - perguntou Adam.
- Oh, meu caro experimento. Estou apenas na iniciação, há muito pela frente. - segurou o antebraço direito do caçador - O futuro dessa espécie é a mais sangrenta auto-exterminação desencadeada. Mata-los aos poucos para que cuidem do resto.
- Não respondeu minha pergunta.
- E você pensa que questionamentos como esse me deixam a duvidar do que pretendo? Maldita inocência...
Antes que agulha penetrasse fundo na veia mais saliente, Áker entrara na sala usando telecinesia para tirar a seringa das mãos de Set. O deus piscou o brilho vermelho-alaranjado dos olhos em sinal de cólera.
- O dia hoje está maravilhoso e só melhora. - disse Set, debochado - Há quanto tempo, traidor.
- Não quero falar do passado. - rebateu Áker que rapidamente quebrou as amarras de Adam com seu poder telecinético.
- Do nosso passado, aliás. - disse Set, expressando um sorriso que estimulava o ódio em Áker.
- O quê? Que história é essa? - perguntava Adam que olhou confuso para o sentinela - Eu sei quem você é, lembro perfeitamente, dizia ter a missão de proteger a Rosie... Eu sinceramente não estou entendendo nada aqui.
- É duro admitir, mas... O ser que o fez refém é Set, deus que propaga desordem e caos por onde quer que pise com suas patas imundas. E nós tivemos... um período de companheirismo antes da minha debandada. Foi por minha causa que ele perdeu tudo, até sua dignidade. Eu liderei o grupo de soldados para prende-lo na tumba com o feitiço do escaravelho.
- Está tentando repetir um dos seus piores erros, mas não vai conseguir. - disse Set, em seguida empurrando Áker com telecinesia. O sentinela bateu contra uma estante cheia de objetos médicos - Uma pena não estendermos o reencontro, eu gostaria de aproveitar, disseca-lo vivo até o âmago. Mas reservei uma companhia para mante-los bem ocupados. Adeus. - desaparecera em nanosegundos.
- Pra onde ele foi? - perguntou Adam, saindo da mesa para ajudar Áker - Devia detê-lo. Achei que fosse mais... imponente.
- Eu já não era páreo pra ele nos meus bons tempos, agora que não tenho a mínima chance mesmo.
Um som de grunhidos se fez audível para os dois. Adam prestou-se a verificar, sacando uma arma do bolso. Ao apontar para o corredor, deparou-se com uma criatura humanoide que parece ter emergido de uma sepultura lodacenta. Nada mais era que a múmia de Ramsés II viva e caminhando.
- Espere Adam, não atire! - ordenou Áker que segurara o braço do caçador fazendo-o errar o disparo que somente irritou a múmia e a incentivou a ataca-los - Não é um monstro criado pro Set. É o faraó mumificado. Especificamente, o Dr. Lenox.
- Como assim? O Dr. Lenox não está possuído por aquele deus lunático? Vai, me ajuda.
- Aquele maldito. Transferiu a alma de Lenox para a múmia. Quando Údon fizer o exorcismo, salvará apenas o corpo. Mas não posso deixa-lo sozinho. Lenox neste estado está com sede de força vital...
- Sem problemas, posso dar conta. Tem que avisa-los depressa. Vamos, vai, eu cuido disso.
- Confio em você. - disse Áker, assentindo. O sentinela teleportou-se diretamente ao museu. A múmia, repleta de bandagens e partes corporais pútridas de cor esverdeada à mostra, avançara contra o caçador feito um animal ensandecido ao vislumbrar a carne fresca. Outra escolha faltou para Adam a não ser disparar inúmeras vezes na múmia que não se abatia. Ela pulara sobre o caçador agressivamente, alongando a boca de hálito fétido para absorver a vitalidade.
- Dr. Lenox... Tente pensar, por favor! - dizia Adam, lutando para livrar-se da múmia.
Enquanto isso, Hector travava uma batalha para adivinhar corretamente o fio que desligava a bomba. O painel da bomba mostrava os segundos passando com os números descendo como se estivessem escritos em papéis cinzentos. O vermelho ou o azul? A dúvida o torturava a cada redução de tempo.
Hector cresceu a unha do indicador esquerdo, tornando-a uma garra de licantropo, para cortar. Údon reparecera ao lado de Rosie após invadir a mente do sentinela solar que determinou a permanência de todos os visitantes, o manipulando para dar o aviso contrário.
- E então, você foi visto por algum dos capangas do Set? - perguntou Rosie.
- Por sorte, não. O que importa é que funcionou de acordo, não sobrou nenhuma alma inocente. E não vou me responsabilizar pelo que pode acontecer caso Set nos pegue em flagrante...
- Vocês arqueus preveem o futuro incessantemente? - disse Set, surgindo das sombras no meio das pilastras - Meus parabéns, deve ter previsto também o que irei fazer a partir de agora com vocês.
- Hector, vai logo! - disse Rosie, apreensiva - Quanto tempo resta?
O fio se partira. Hector sentiu um arrepio na espinha ao fitar o contador... parado aos 13 segundos.
Ele se virou ofegante e suando para a parceira, mostrando o fio vermelho rompido. Rosie fechou os olhos rápido, sentindo-se aliviada. Áker chegara depois, limpando sangue da boca.
- Áker, não precisava vir. - disse Hector - Se ficar teleportando...
- Não finjam que estou ausente. - disse Set, erguendo as mãos e infligindo uma intensa pressão gravitacional sobre os três. A sensação parecia a de um terremoto sacudindo violentamente e o corpo adquirir a densidade de uma rocha pesando toneladas o que provocava uma dor latejante.
Áker sentiu pedaços da pele do receptáculo soltarem-se e forçou sua regeneração. Údon audaciosamente levantou-se e estendeu sua mão direita à Set, não demorando a recitar o exorcismo.
- Insolentes! - vociferou Set, tentando resistir ao máximo.
- Hector! - chamou Áker, indo até ele - Levante comigo a tampa da tumba, depressa.
- Apote... - Rosie se interrompeu, hesitando ativar o modo fênix apoteótica ao lembrar do conselho de Hector. O caçador percebeu que ela tentaria e fez que não com a cabeça. Rosie acenou positivamente em compreensão. A essência de Set, como um chacal de olhos vermelhos feito de fumaça negra, desprendia-se do corpo de Lenox. O deus berrava em agonia ao ser aprisionado direto na tumba.
Hector e Áker fecharam imediatamente. Údon por sua vez pediu uma adaga à Rosie para cortar sua mão e despejar sangue na tampa da tumba. O arqueu desenhou um sigilo de contenção nunca visto.
- O bastante para que o pessoal do museu não desconfie que vandalizaram a tumba. - disse Údon - Mas pensando bem... - estalou os dedos e o sigilo sumira num instante - ... melhor garantir a total segurança. Nunca se sabe.
- Você o apagou? - indagou Rosie, surpresa.
- Pelo contrário, o fortaleci. Ocultei para que nenhum mortal ou sentinela traiçoeiro visualize. O amuleto de escaravelho não era necessário. - o pegara, dando à Áker - Um item dispensável.
- Áker. - disse Rosie, segurando o brasão de Yuga - Tive uma ideia, só não sei se vai aceitar. Enfim, é importante que aceite. Quero te oferecer um pouco da energia do brasão, quem sabe possa manter suas forças por mais tempo. Ainda temos que resgatar Adam e precisaremos de mais poder de fogo.
- Ele ficou no laboratório enfrentando a múmia do faraó revivida.
- Lenox não está respirando. - disse Hector, inquieto. Inclinou o ouvido novamente para certificar-se - O coração não bate. Estranho, não tem ferimentos no corpo. Set talvez o mataria assim pra nos enganar.
- Em vez disso, transferiu a alma de Lenox para aquele corpo decadente. - informou o ex-soldado de Yuga - Precisamos ir logo antes que consuma a energia vital dele, mas... Onde está Údon?
- Estava aqui agorinha. - disse Rosie, estranhando. Sons de passos os deixaram alertados.
- Ele deve ter preferido continuar se escondendo, temendo que os enviados do Conselho Divino pudessem caça-lo novamente. - disse Hector - Acho que não é justo criticarmos ele agora.
- Vejam. - orientou Áker, observando cerca de 19 soldados do Exército Britânico uniformizados caminhando em direção à eles em posturas endurecidas e austeras. O tom ameaçador denotava-se.
- Reparem nos olhos... - disse Rosie, analítica e preparada para o combate. Os olhos estavam contornados com uma vermelhidão nítida, como se sofressem uma irritação severa. As expressões de raiva pura pareciam estáticas - Acho que são as vítimas dos experimentos de Set.
- Set administrou a tal substância que potencializaria o vigor físico humano, mas pelo visto transformou inocentes mortais em selvagens insanos. - disse Áker.
- Não temos outra saída senão lutarmos. - determinou Hector, transformando-se em licantropo - Rosie, procure não matar ninguém. - disparou em supervelocidade contra um deles. A jovem revirou os olhos, considerando inútil o caçador falar aquilo sabendo que boa parte de sua alma estava reposta o que promovia a recomposição de suas emoções. Os soldados infectados rosnavam feito cães perigosos e demonstravam uma força corporal acima do limite humano, logo nada estava fora do que Set, na pele de Lenox, havia anunciando publicamente em pleno teste aberto.
Hector duelava com um infectado bastante alto e parrudo, desviando dos velozes socos. Segurou o braço esquerdo do oponente, dando em seguida uma joelhada na barriga e depois um cruzado de direita. O derrubou usando supervelocidade e preparou-se para jogar outro no chão pelas costas, mas fora agarrado pelas fortes mãos que o arremessaram à uma proteção de vidro num artefato valioso. Rosie tentava ser comedida na fluidez dos golpes, mas não levava vantagem. Um infectado tentou dar-lhe um mata-leão. Para a sorte dela, uma adaga escorregou do cinto e aproveitou para pega-la e finca-la na coxa do agressor que exprimiu um mínimo grunhido de dor. Rosie, libertada, virou-se à ele, chutando no tórax. Outro viera ao seu encontro lhe desferindo um soco indesviável.
Áker estava deslocado no combate, deduzindo que os infectados foram orientados a pegarem alvos específicos, no caso Rosie e Hector, já que Set não imaginava que o ex-sentinela efetivado interviria.
Olhou para o amuleto de escaravelho e resolveu pega-lo, desencaixando do compartimento giratório no centro da tumba projetado exatamente para comporta-lo. Existia um certo detalhe que esquecera de revelar mais cedo. Údon havia repassado-lhe telepaticamente um feitiço próprio do amuleto para desfazer toda e qualquer maldição egípcia, afinal esta era a função primordial do objeto. Áker não participou ativamente da mumificação de Set no corpo de Ramsés II, apenas sabendo que o amuleto o trancaria no sarcófago por toda a eternidade. Atravessar aquele mar de riscos exigia prudência.
- Tapem os ouvidos! - exclamou Áker para Rosie e Hector, erguendo o besouro cascudo inanimado. Começou a recitar palavas em dialeto divino, andando adiante para o ponto de batalha. As asas do escaravelho vibraram reproduzindo uma frequência sonora similar a um zumbido de inseto. Os infectados gritavam agoniados, pondo as mãos na cabeça. A dupla, meio combalida, se atentou aos sinais que caracterizavam o efeito da droga e estavam desaparecendo numa rapidez absurda.
- Deu certo. - disse Rosie, levantando-se e destapando os ouvidos - Estão voltando ao normal...
- Áker, se sabia disso, por que não nos avisou? - perguntou Hector, intrigado.
- Údon contava que eu me limitasse ao resgate de Adam, nenhum de nós previu que Set mandaria seu exército de cobaias até o museu para nos atrasar. Eles logo vão acordar. Hector, apanhe o corpo do Dr. Lenox, vamos para onde Adam está.
- Mas Áker... - disse Rosie.
- Agora! A vida de um amigo em perigo não pode esperar! - disse ele, severamente.
No laboratório, Adam não sabia como proceder, se atirava ou fazia uma nova tentativa de convencer Lenox a se controlar. De uma hora para outra, a múmia desistiu de sugar sua vitalidade para de repente se desesperar e quebrar objetos na sala olhando horrorizado para seu corpo.
- Mas... O que aconteceu com ele? Parou de me atacar do nada...
O descontrole da múmia servia de distração para que um sentinela solar que teleportou-se até ali sorrateiramente viesse à Adam para enfiar a agulha com a seringa cheia da praga vermelha de Set.
Antes que o lacaio do deus descesse a agulha, a ponta de uma lâmina dourada atravessou sua garganta por trás e uma luz amarela refulgiu de seus olhos e boca. Adam encarou espantado, vendo que fora Rosie a mata-lo. A seringa caiu rachada.
- Bem na hora. - disse o caçador. A jovem lançou um sorriso rápido.
Áker segurou uma regurgitação hemorrágica. Hector deitou o corpo de Lenox na mesa de operações.
- Lenox, ouça... - disse Áker à múmia - Preciso da sua confiança pois não quero força-lo.
Tudo que o cientista respondeu foram resmungos ininteligíveis que indicavam rejeição.
- Talvez precise ser um pouco mais específico. - disse Hector.
- O que não entendi foi ele ter subitamente parado de atacar... ou querer sugar minha energia vital. - disse Adam.
- O controle de Set dissipou assim que usei o amuleto para erradicar a praga naqueles homens. Dr. Lenox, é melhor que coopere porque eu... posso leva-lo de volta ao seu corpo original. Garanto.
O sentinela estendeu a mão amigavelmente. Acatando, mesmo que hesitante, Lenox o acompanhou. Segurando o braço da múmia e tocando no corpo vazio de Lenox, Áker fechara os olhos canalizando a alma do cientista para seu recipiente apropriado. Uma luz branca transcorreu até atingir o ponto tocado como o fim da estrada. Lenox acordou como se tivesse se libertado de um pesadelo.
- Onde estou? Quem são vocês? E por que a existência de monstros, deuses e múmias amaldiçoadas jamais vieram à tona ao mundo? Alguém pode me esclarecer que confusão é essa?
- Agora tô lembrada. - disse Rosie - O Dr. Lenox teve suas memórias apagadas como todas as pessoas que testemunharam aquele sol devorador que Yuga criou e as que se informaram de longe, claro.
- Acalme-se. - disse Áker - Toda a angústia irá sumir quando sentir esses dois dedos tocarem suavemente sua cabeça... - Lenox tremera um pouco, os olhos fechando lentamente à inconsciência - Hora de irmos. - o silêncio de Rosie e Hector foi entendido como uma recusa velada - Eu insisto.
O teleporte foi quase bem-sucedido. Foram parar na floresta à alguns metros do Casarão, o sol do fim da tarde banhando a área com seus raios alaranjados. Áker não podia mais resistir ao efeito colateral e expulsou mais sangue daquela vulnerável cápsula de carne.
- Áker! - disse Hector, querendo ajuda-lo, mas o sentinela levantou-se erguendo uma mão como que sinalizando um "não". O caçador recuou, compreendendo e aceitando o que definitivamente significava aquele momento.
- O que ele tem? - perguntou Adam - Quando me falou sobre ele... o tratou como alguém poderoso.
- Ele é. - disse Rosie, fitando Áker com uma certa tristeza - Só não pode mais ficar preso nesse corpo.
- Eu sou... imensa e eternamente grato à confiança e à lealdade. - disse Áker, o cansaço no ápice - Pra ser honesto, não trocaria mais tempo ao lado de vocês por milênios de servidão ao meu imperador.
- A propósito, você está sabendo de quem assumiu o comando? - questionou Hector.
- Nem me fale. - disse ele, sorrindo fracamente - Foi a primeira má notícia que recebi ao voltar. Mas era inevitável. Mihos pertencia à linha de sucessão por legitimidade, não lutarei contra isso, embora não esteja otimista com o que ele fará.
- Aposto que você daria um imperador mil vezes superior à ele. - disse Rosie, descontraindo.
- De pleno acordo. - respondeu Áker, logo sentindo o forte desconforto - Chegou a hora. Adeus, meus nobres amigos. - olhou para cada um deles. Hector assentiu emocionado. Adam estava meio entristecido por não conhece-lo a fundo. E Rosie deu um suspiro longo pela boca, comovendo-se.
O receptáculo se desfazia em cinzas flutuantes conforme a luz resplandescente emergia formando uma dourada nuvem verticalizada que pairou no céu como um pequeno sol até desaparecer.
Hector olhou para Rosie à sua esquerda. A jovem derramava uma lágrima que escorria vagarosa. Um único indício que o encheu de alívio. A tocou no ombro amigavelmente.. lamentando a difícil partida de um amigo.
***
15 minutos antes
Údon mostrou sua adaga para matar sentinelas contra aquele que o sequestrou no museu.
- Eu não devo nada à vocês que sequer estão ligados à essa dimensão. Não é da alçada do seu mandante, seja lá ele quem for. Os únicos autorizados a me condenar pertencem ao jugo de Zeus.
- Eu prefiro descobrir como são as regras por aqui depois que entregar sua cabeça.
Um enfrentamento violento iniciara. O sentinela tomara a adaga com agilidade e tentou perfurar Údon que o barrou com as mãos. Uma medição de forças imprevisível. O arqueu teve de recorrer à telecinesia para a ponta da lâmina virar para o adversário, mas encontrou séria dificuldade.
Tanto arqueus como sentinelas solares possuíam um brilho de mesma cor. A luz dourada alcançou a soleira da porta. Um dos dois saiu fatalmente derrotado do embate.
CONTINUA...
*A imagem acima é propriedade de seu respectivo autor e foi usada para ilustrar esta postagem sem fins lucrativos.
*Imagem retirada de: https://www.ochamadodosmonstros.com/l/set-o-deus-da-violencia/
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