Contos do Corvo #34


"Como esta história começou e como ela deveria terminar... 

Foram tantas questões que ficaram e tão poucas respostas obtidas. Eu fui um idiota. Perdi alguém importante para o meu propósito de vida e agora estou para perder mais um... Hora de ser justo, cansei de evasivas, suspenses e joguinhos. Se é o fim da nossa estrada juntos, então devemos encerra-la em grande estilo, com dignidade em prol do significado da nossa amizade, antes de seguirmos pela bifurcação. Não posso dizer adeus sem contar a história mais importante. 

Ela merece saber. Aliás, todo ouvinte que se presta a me ouvir com sinceridade... merece."

- E então, o que você achou? - perguntou o corvo, a voz mais entusiasmada.

- Bem... diferente. Desculpa, achei sinistro, mas hoje eu não tô no clima pra avaliar bem suas histórias, você sabe... - a menina não conteve a emoção - ... não iremos mais nos ver.

- Eu voo até os Estados Unidos só por você. Tá, tem o Frank, eventualmente vou visita-lo, mas você está no meu primeiro plano. Basta me dizer o endereço da casa.

- Mas nós ainda nem acertamos direito como vai ser. Pra isso existem os hotéis até tudo ser resolvido. Não tem como, você nunca vai saber. Isso dói tanto... - ela virou o rosto, chorando.

O corvo não soube como conforta-la.

- Antes... antes de você ir, eu tenho duas obrigações. - disse ele, fazendo-a se virar, o rosto encharcado de lágrimas. - Por favor, eu odeio vê-la desse jeito. Até parece que morreu alguém.

- Morreu sim. Não alguém, mas algo... algo que vai deixar de existir aqui fora... mas que vou guardar pra sempre no fundo do meu coração. - disse ela, pondo as mãos juntas no peito, comovida.

- Eu agradeço. Vou levar uma parte de você comigo. Foram os melhores dois anos e meio da minha vida, tô falando sério. Mas chega de delongas, lágrimas e drama. Preciso te contar duas coisas.

- Uma última história, isso eu já sei. E a outra coisa?

- Esqueceu? Sobre o velhote. - disse o corvo, falando enfaticamente - Ele... ahn...

- Você tá me assustando. - disse a menina, pálida - O que houve? Me fala, por favor.

- Ele viajou. Foi visitar parentes distantes.

- Não, lembro que uma vez ele me disse que não tinha família. Que saudade dele...

- Ele se enganou. Recebeu uma carta sobre uma herança perdida e alguém informou sobre o detentor oficial dela. Nessa hora o velho deve estar nadando numa piscina de grana.

- Não pode ser verdade, ele nunca estaria errado sobre isso. - insistiu a menina, cada vez mais nervosa. - Por que tô com a sensação de que tá me escondendo algo?

- Mas é o que ele descobriu enquanto você esteve fora.

- É impossível, ele não seria tão egoísta assim. - disse a menina, exaltando o caráter do velho homem - Meus tios o conhecem desde o enterro dos meus pais, sempre foi um senhor honesto e íntegro. Você disse que o considerava um amigo e agora me fala que ele resolveu largar nós dois por causa de uma fortuna herdada sabe-se lá de quem? Você tá mentindo, ele nunca faria isso.

O corvo ficara silencioso por vários segundos, olhando para o vazio da escuridão noturna.

- Eu fui muito vago, né? A quem estou querendo enganar? - ele se voltou para a menina, olhando-a fixamente - Sou péssimo em guardar segredo, sempre fui.

- Ele... - a garota tentava conter mais um transbordo de lágrimas - ... está morto... não é?

Mais um instante de silêncio pesaroso.

- Eu sinto muito. - disse ele, o tom mais sério - Aconteceu enquanto te contava sobre o Pinóquio de voodoo. Acho que nesse momento ele já tinha sofrido o ataque fulminante.

- Ataque fulminante? - indagou a menina.

- Sim, ele tinha problemas cardíacos bem graves. Artérias entupidas, você sabe, essas doenças cardiovasculares... Foi tudo minha culpa, o deixei irritado, fiz a pressão dele explodir. Me perdoa.

- Calma. - disse a menina, resistindo à dor - Você nem sabia, né?

- Ignorância não quer dizer inocência. - retrucou o corvo. - O matei indiretamente, essa é a verdade e vou ter de viver com isso pra sempre. Encare a realidade, não sirvo para manter pessoas comigo por perto, todas vão embora de um jeito ou de outro. Todos que se aproximam de mim... se vão. Sou uma criatura amaldiçoada a vagar nessa existência sem propósito.

A menina debulhava-se com soluços baixos.

- Não quis te machucar dizendo isso, apenas fui honesto. Por favor, não me defenda. Se sair correndo agora sem nem querer ver mais essa minha cara horrorosa, tudo bem, vou entender, afinal será por justa causa, eu menti. O pedido de perdão foi no automático. Só há um jeito de sentir vergonha pelo que fiz e me arrepender. Eu tenho uma história, uma última história...

- Então me conta. - disse a menina, enxugando o rosto e fungando - Não odeio você. Pra mim você nunca soube do que ele tinha e isso não faz de você culpado, então é a minha palavra contra a sua. O meu voo... sai amanhã à noite, as nove. A que altura você voa?

- Na história anterior dei a entender que voei na mesma altitude que o helicóptero. Portanto, sim, é capaz de atingir a altura de 12.000 metros, talvez seja meu limite ou pouco menos, não sei...

- Por mim tá ótimo. - disse a menina, cortando-o - Cansei de chorar pelos mortos. O senhor coveiro foi um excelente amigo e vou fazer um túmulo em homenagem à ele no quintal da minha nova casa, só preciso perguntar aos meus pais qual era o nome dele, nunca lembrei disso.

- A propósito... você nunca disse o seu. Ele sabia?

- Acredite, ele também não. Eu me chamo...

A buzina de um carro preto estacionado em frente ao portão do cemitério reverberou alta.

- De onde veio essa merda de barulho? Que susto do cacete! - reclamou o corvo.

- Ah, essa não... - disse a menina, apreensiva, olhando na direção dos faróis ligados - Que droga, são os meus tios! - se virou para o corvo - Eles descobriram que venho aqui. Anda, me conta, depressa!

- Epa, vai com calma, não me pressione. A choradeira deu lugar ao desespero. Com todo o respeito ao velhote, é claro.

- Você já me convenceu do arrependimento. Agora vai, conta! - ela não sabia para onde focar sua atenção. - Antes que eles saiam e me arrastem daqui. Se eu não souber sua origem...

- Tá legal, se prepara. - disse o corvo - Vou ser bem breve. Por que logo essa agora? Justo porque a história é super longa, renderia um livro de 800 páginas. Muito bem... Eu não pertenço a este mundo. Também não sou um corvo desde o início. Vim de uma dimensão paralela...

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                                                                          MAL SUPREMO

Eu odeio resumir. Mas fazer o quê né? Estamos quase nos despedindo, então... Ah, não posso enrolar mais, já chega. Eu fui uma vítima brutal de uma cerimônia nefasta conduzida por membros de um clã de aldeia Seppan. Sou nativo da aldeia rival Colunium. Temos uma política separatista e dividimos o território numa linha traçada no solo após batalhas violentas e ideológicas sobre o direito de governar aquela terra esquecida pela força do bem em que acreditavam. Até nas crenças éramos divergentes.

Os colunianos foram segregados por décadas. Inclusive, nosso calendário funciona de maneira diferente ao desta dimensão. Por muito tempo fomos considerados impuros pelo nosso viés guerreiro e sempre com postura combativa. Ficavam de paranoia acreditando que nós rescindiríamos o acordo para uma invasão massacrante e tomar o poder geral na marra. Nunca houve eleições, pra ser preciso. Os seppanianos, segundo as lendas, possuíam uma sociedade secreta chamada Turian, cujas letras são iniciais dos nomes de seis filhos de antigos governantes do território que se reuniam para discutir medidas de deflagrar um golpe contra os colunianos e assumir um governo tirano.

De acordo com relatos, na profecia dos Turian uma criança de sangue impuro deveria ser sacrificada para o Grande Mal, uma entidade que diziam ser a encarnação do verdadeiro e mais absoluto mal que existe sendo responsável pela queda dos homens. O Grande Mal foi enclausurado numa ânfora pelos antigos magos sacerdotes e protetores do reino de Adestya, é como se fosse um país. Com o tempo enfraqueceram e morreram. Se os colunianos entregassem a ânfora, os seppanianos aceitariam  a oficialização de uma nova eleição democrática para Rei de Adestya. Das 28 cidades, haviam apenas duas aldeias brigando pela posse. Nós tínhamos a prisão do Grande Mal. Os meus pais não acreditavam na lenda e concordaram com os termos seppanianos, aqueles desgraçados...

O encontro foi uma distração para me sequestrarem. Eu só tinha 10 anos. Meu sangue foi usado para desenhar na ânfora um símbolo arcaico e místico que apenas os Turian conheciam. A essência do Grande Mal foi derramada sobre meu corpo. Parecia que a runa tinha o poder de manter a entidade sob controle de modo que ela não saísse por aí varrendo e destruindo cada ponto. O Grande Mal não era um ser físico, podia defini-lo como um vírus de consciência própria.

Eu adorava corvos e tinha uma identificação com eles: O fascínio pela morte. E então a maldição correspondeu à minha mente. No dia seguinte, voei até Coluniam e por telepatia provei aos meus pais e a todos que os Turian eram reais e me usaram como cobaia de experimento.

Com a ânfora marcada, os seppanianos tinham a arma indestrutível para massacrar nossa aldeia numa guerra que eles não mediram esforços em fazer acontecer. Nosso exército perdeu combatentes ao longo do tempo, mas nosso espírito de luta continuava fervendo.

Eu fugi quando meu pai não me aceitou de volta, pois eu estava corrompido.

Achei por acaso uma fenda e cheguei a este mundo... sem saber do resultado do confronto do meu povo contra a ameaça dos Turian e os seppanianos. Toda vez que eu durmo... vejo Adestya ardendo em chamas profusas e infernais... testemunhando um pesadelo sem ter vivido para encara-lo.

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- Uau... - disse a menina, a face estupefata. - Eu nem posso... imaginar o sofrimento.

- É como se o Grande Mal fosse um parasita onipresente querendo me mostrar o que eu perdi naquelas visões repugnantes. Mencionei apenas fogo porque temos pouco tempo e é o básico, porque o resto... é de arrepiar, nem o mais corajoso aguentaria dois minutos se lesse a minha mente.

- Se o Grande Mal está em você... então por que não te deu esse poder pra fazer outros sofrerem?

- A maldição não afeta para transformar em um servo. Não quando está sob controle. Ah, ia me esquecendo: De vez em quando, encontrávamos animais falantes nos bosques.

- Sério? - indagou a menina. A buzina soou novamente, desta vez seguido por uma voz chamando por Valerie.

- Valerie! - gritou uma voz feminina, depois outra voz, a de um homem, repetiu.

- De onde vem essas vozes? - perguntou o corvo - Quem é Valerie?

A menina o observou sorrindo.

- Espera aí... É você?! Seu nome é Valerie?!

Ela fez que sim com a cabeça.

- Adorei saber mais sobre você. Queria que ele estivesse aqui conosco.

- Eu também. Você é a primeira pessoa e talvez a última a ter conhecimento disso. Agora vai, seus tios estão preocupados mesmo eles sendo uns malas. - disse ele, fazendo-a rir. - Não é um adeus... por ora. Eu sei como quebrar a maldição. Só fui muito covarde pra nunca tentar.

- E por que não se livrou?

- Porque exige um sacrifício.

- Que tipo de sacrifício?

- Do tipo... que consiste em tirar a coisa mais preciosa que você tem e preserva.

Ela procurou entender, mas a pressa dificultava.

- Eu te mostro amanhã. Qual lado do avião? Esquerdo ou direito?

- Sempre preferi sentar no lado esquerdo. Agora fiquei morrendo de curiosidade...

- Não se afoba, garota. - disse o corvo, o tom tranquilizador - Prometo que vai entender.

                                                                            ***

No dia da viagem, o avião decolava no exato horário programado. O boing número 335 de fuselagem branca com listras vermelhas atravessava as nuvens preto-azuladas com seu robusto nariz em meio ao suntuoso luar. A menina lia uma revistinha em quadrinhos enquanto a tia dormia ao seu lado e o tio estava na poltrona à frente. Sua visão periférica a alertou sobre um vulto negro pairando no ar.

Seu rosto virou rapidamente para a janela, quase colando ao vidro. Um sorriso foi abrindo-se no seu branco rosto ao ver o corvo bater as asas numa lentidão graciosa.

- Sou um cara de palavra. - disse ele telepaticamente - Adeus.

A garota acenou para ele com os olhos marejando. "Adeus", ela pensou.

- Ouvi isso. - disse o corvo, parecendo espantado pelo seu tom - Incrível... Posso escutar sua voz mental. Nesse tempo todo que passamos juntos... podíamos conversar por telepatia.

"Eu acredito que não seja o fim. Mas agora me mostra... como irá quebrar sua maldição."

- Tudo bem. Melhor virar o rosto.

"O quê? Mas por quê? O que você vai fazer?"

- Por favor, Valerie. É altamente recomendável pra sua idade.

"Tá legal.", decidiu ela, preferindo fechar a cortininha da janela. "Se cuida!"

- Você também. Nada do que vivi com vocês dois foi em vão. - disse o corvo, voando mais devagar... reduzindo cada mais a velocidade... até o vento da turbina esvoaçar suas penas.

Por fim, ele parou. As hélices da turbina se aproximaram triturando a carne do corvo fazendo um longo jorro de sangue se lançar no ar gelado da noite.

                                                                                      ***

Num cemitério localizado nos estados Unidos a terra se remexia sob uma lápide de mármore com os dizeres "Aqui jaz Franz Haultbam-Bennet Filho amado".

Os relâmpagos piscavam agressivos, os trovões retumbavam e o vento soava revolto arrastando folhas secas sobre os túmulos.

Uma mão pálida e suja de terra emergiu rápido da sepultura. 

FIM(?)

*A imagem acima é propriedade de seu respectivo autor e foi usada para ilustrar esta postagem sem fins lucrativos.

*Imagem retirada de: http://portal-dos-mitos.blogspot.com.br/2016/04/corvo-escarnecedor.html

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