Capuz Vermelho #59: "Estrada para o Inferno"
CAPÍTULO 59: ESTRADA PARA O INFERNO
A sensação de desolação era como uma faca presa no peito que afundava centímetro por centímetro a cada manifestação sentimental negativa. O desespero, a angústia e o terror eram onipresentes em todas as partes que se podia enxergar na vastidão tenebrosa do Tártaro. Lugar de maldição eterna onde a alma é açoitada tanto por dentro quanto por fora. Rosie se via perdidamente aflita com o que encarava ao seu redor, caminhando entre as almas que fizeram por merecer estarem ali.
Mas será que ela merecia? Seu ato foi executado por livre e espontânea vontade, não forçado. Rosie apressou seus passos naquele solo de areia podre, esbarrando em muitos andarilhos sombrios. Alguém na multidão a perseguia vorazmente. Ou era alucinação? Uma loucura influenciada?
Olhou para trás arriscadamente enquanto corria. Todos pareciam tão indistinguíveis.
- Preciso achar logo uma saída. - dizia, olhando para qualquer canto. Seu manto estava sujo.
Ela descera um barranco, quase deslizando. O céu estava revolto com relâmpagos e raios vermelhos e trovões retumbantes estremecendo a terra. Tropeçou, caindo de repente. Ao se reerguer ofegante, entreviu um ponto luminoso avistado do alto de uma montanha. Uma luz realmente atraente.
- Não tenho mais tempo a perder... Ainda posso... escolher o meu destino! - falou, determinada.
Se direcionou à montanha correndo a toda disposição. Escalou segurando firme, sempre cuidadosa.
- Só mais um pouco... - disse, segurando na última pedra. Inclinou seu corpo para o topo e finalmente estava de pé, sentindo-se vitoriosa. A luz parecia um tipo de portal no formato de linha vertical. - Muito bem... Aí vou eu. Pai, mãe... Eu estou indo. - correra, atravessando a luz que refulgiu intensa.
Subitamente, a jovem acordou com os olhos arregalados arquejando. Mas o Campo Elísios também não tinha terra negra, céu vermelho e tempestuoso como descrito nos livros. Sentada, Rosie fitou com uma expressão frustrada os familiares arredores do Tártaro. Voltara ao mesmo ponto que tinha chegado.
- OK, já entendi... que esse maldito lugar tem muitos truques. - disse ela, enraivecida, levantando-se.
Enquanto isso, na Terra, os membros da Caosfera ainda contemplavam deslumbrados a imponência de Belphegor perante à eles, seus "imaculados" súditos. O demônio sorria andando pelo solo de concreto do pátio cerimonial. Hector o olhava estarrecido, ainda sentindo-se incondicionado a reagir.
- Que tipo de soberano seria eu se não prestasse ao menos um agradecimento singelo? Obrigado, meus consagrados servos que persistiram até as últimas consequências. - disse Belphegor.
- Estamos encantados pela tua presença, grande mestre. - disse Derek, fazendo reverência - Perdoe meus modos. Somos humanos, é uma reação natural. Sou Derek Marshall, sempre ao seu dispor.
- Hum... Poderia me fazer um breve resumo do que são capacitados a fazer. Digamos que estou meio... apressado. Tantas ideias na cabeça formadas nas centenas de anos que fiquei encarcerado, é como uma represa a ser rompida. - olhou para todos - Não estranhem, sou um homem originalmente da antiguidade, mas lá embaixo... eu era constantemente abastecido por informações de meus servos demoníacos. As camadas jamais interferiram na ligação psíquica. Tão próximos e tão distantes.
- Então se permita a compartilhar conosco seus planos. - disse Derek, entusiasmado - Veja atrás do senhor, este é o corpo desperdiçado da jovem Rosie Campbell, escolhida como última chave.
O demônio pomposo visualizou com atenção e andara até o cadáver de Rosie.
- Não... Afaste-se dela. - disse Hector, querendo levantar-se. Um dos membros da Caosfera o socou.
- Fique onde está, Crannon. - disse ele - Não tem escapatória, sua morte é uma questão de tempo.
Derek o seguiu, logo arrancando o colar com o brasão de Yuga da jovem e o confiscando.
- Quanta coragem. Na minha antiga vida, só havia conhecido uma mulher... com esse espírito. - disse Belphegor, olhando-a. Pegara na adaga Órion fincada na barriga de Rosie e segurou firmemente. Fechara os olhos e comprimiu os lábios enquanto uma energia misteriosa e branca passava da adaga para as veias da sua mão. Logo removeu a adaga rapidamente - Me sinto renovado agora.
- Pode ser deselegante perguntar, mas... O que acabou de fazer? - perguntou Derek, intrigado.
- Um meio para um fim. - disse o demônio, estralando os ossos de pescoço num aquecimento - Futuramente irão saber, afinal somos sócios a partir de agora, juntos rumando para construir um novo mundo. Haverão obstáculos e certamente vou precisar deixa-los bem atarefados se quiserem mesmo sabotar meus planos.
- Os nossos planos, não se esqueça. - retrucou Derek que logo se retraiu - Me desculpe...
- Não vou repreende-lo por me corrigir às vezes. Talvez eu quem devo me desculpar. Estou muito... no ápice da emoção, acabei de retornar ao lugar onde pertenço. O mundo que me pertence. Digamos que seja normal olharmos mais pra si mesmos nessas horas de... felicidade própria. Uma emoção que não experiencio desde meus tempos humanos. - contemplou a Órion - É gratificante... voltar a sentir o vento no meu rosto e a terra sob meus pés. Os intolerantes se curvarão ao que desconhecem.
- Estamos às suas ordens. Somos o seu exército de peões. - disse Derek, fascinando-se por ele.
Hector aos poucos se reerguia, mas notou que a ferida na sua boca pelo soco levado havia desaparecido sobrando pouco sangue. O caçador deu um leve sorriso e alterou seus olhos ativando sua licantropia. De surpresa, disparou com sua supervelocidade indo até o corpo de Rosie.
- Crannon! - disse Derek, irritado - Não pode ser! Mas como você... Não se passaram 4 horas!
- Exatamente. - disse ele, pegando o corpo nos seus braços - Tive sorte em ser mordido por um licantropo enfeitiçado, acho que me ofereceu uma vantagem que até eu desconhecia. Adeus.
- Ah, mas não vai... - Derek quase sacava sua pistola, mas o caçador o derrubara supervelozmente e passando pelos outros magos da Caosfera saindo do pátio. O líder pegara seu comunicador - Adam, está na escuta? Hector acabou de escapar, não vai conseguir para-lo, ele reouve suas forças completamente e saiu correndo levando o corpo de Campbell. Quero que o cace e traga de volta o cadáver. De preferência, pegue mais doses da toxina e se divirta, faça o que quiser com ele, mas traga o maldito corpo e certifique-se de não ter empecilhos à espreita, Crannon pode não ter planejado vir sozinho. - desligara, bufando em ódio.
- Posso saber por que é tão importante manter o corpo da garota preservado? - questionou Belphegor - Me parece irrelevante, não imagino do que mais precisam a respeito dela.
- Temos que nos livrar dele para impedir que a ressuscitem. Iremos queima-lo.
- E se ele provavelmente não veio sozinho... há alguém capaz de ajuda-lo nesse objetivo.
- Meu senhor, por favor, nos permita seguir nossos protocolos pessoais. Acredite, ficaremos vigilantes a tudo que venha nos ameaçar. Mas não podemos permitir que Rosie retorne.
- Eu entendo. - disse o soberano infernal, aparentando uma certa relutância - Espero que não falhem.
- Obrigado, meu senhor. - falou Derek, reverenciando-o - Infelizmente a pessoa que Crannon pode confiar para traze-la de volta... é alguém que filou-se à nós. Mas se desconectou. Pandora.
Belphegor virara o rosto para o líder da Caosfera fitando-o com alta seriedade. O nome soou como um alerta para ele. Mas resolveu ignorar a sensação.
- O que estão esperando? Vamos, mexam-se! - ordenou Derek ao grupo.
Na floresta, Hector parara de uma vez, freando abruptamente. Depositou com cuidado o corpo da jovem perto de uma árvore. O céu clareava-se no horizonte. Sua ofegação se misturava ao desespero interminável de vê-la naquele estado. Passou sua mão pelo pálido rosto dela, acariciando-o.
- Vou enfrentar cada barreira... passar por cima de todo e qualquer obstáculo... pra te resgatar. - aproximou sua boca à dela, dando-lhe um beijo. Sua audição apurada captara sons suspeitos que o fizeram se atentar. Repentinamente, quatro demônios de pele vermelha surgiram de pontos próximos ao caçador, observando sua presa com malícia.
- O mestre enviou o chamado. - disse um deles - Mal chegamos e já recebemos um presente.
Hector os olhou com fúria e transformou-se em licantropo, avançando contra eles. Pegara um pelo pescoço jogando contra uma árvore, depois usara suas garras para arranhar outros dois que se esquivavam e logo desferiram seus golpes. Hector levara um chute na barriga seguido de um cruzado de gancho que o derrubou. Em seguida, um dos demônios visualizou o corpo de Rosie e se encaminhou até ele interessado em pega-lo.
- Não! - disse Hector, sendo chutado pelos demônios incapaz de se levantar. Conseguiu dar uma rasteira em um e logo que se reposicionou-se de pé quebrara o pescoço de um e arrancara o coração doutro. Mirou seu ataque no que ameaçava Rosie. No entanto, algo parou seu oponente.
- Subitaneus Ignis. - disse uma voz. O demônio entrou em combustão instantânea sendo consumido até explodir em cinzas e poeira. Hector direcionou o olhar para onde detectou a origem do som. Os outros três escaparam intimidados.
- Por acaso veio se redimir? Isso foi uma demonstração? - indagou Hector - Não seja tola. - atacara-a mantendo-se transformado.
Pandora ergueu sua mão direita na frente dele num formato agressivo.
- Transformatio Cancellatam.
Numa fração de segundos, o caçador voltara à sua forma normal.
- Esperava no mínimo uma tortura hemorrágica. - disse ele, surpreso - Não entendo...
- E nem tente. - respondeu Pandora - Rosie está morta por minha causa, ela é mais responsabilidade minha do que sua a partir de agora. Tiveram muitos movimentos imprevistos...
- Você ter caído na chantagem do Derek tão facilmente foi um deles. - rebateu Hector.
- Dessa vez precisa de mim. Sei que é ridículo, tô me sentindo patética em ter que vir à você provar que ainda posso ser de grande ajuda, mas com alguém paranoico e desconfiado... fica difícil.
O caçador ficara imerso em pensamentos por uns segundos. Ainda existiam riscos quanto aquilo?
- Primeiro me diga se realmente cortou ligações com a Caosfera.
- Ai, caramba! Eu devia ter pensado. - disse Pandora, dando um soquinho no peito de Hector - Você é um teimoso do tipo que não dá o braço a torcer. Tenho o Espiral comigo de volta, estou realizada e aqui disposta em prontidão para retribuir o favor. Dar segundas chances nunca é demais.
- Espero não ter que me arrepender.
- Então isso significa... um acordo? Hector, por favor. A coisa contra a qual estamos lutando e que ironicamente também está em mim é a mesma coisa de que precisamos para salvar Rosie. Obviamente ela está no Tártaro... perdida, desesperada e confusa.
- Ela cometeu suicídio... bem na minha frente. - disse Hector, rememorando angustiadamente - Pode mesmo traze-la sem danos colaterais?
- Estamos expostos aqui. - disse a bruxa, andando alguns passos - Derek na certa mandou seus capangas para vasculhar a floresta atrás de você. Fique perto de mim, pegue o corpo dela. - respirou fundo e concentrou-se ao fechar os olhos - Vamos a um lugar seguro. O único que resta.
- O que pretende fazer? - perguntou Hector carregando Rosie nos braços.
- Agora? Nos tirar daqui, é claro. - disse Pandora - Alibi Migrare. Alibi Migrare. Alibi Migrare...
Um círculo de luminosidade formava-se ao redor deles no símbolo do feitiço de teleporte no qual Rosie e Hector na noite anterior. A luz aumentara, ficando ofuscante. Enfim, desapareceram ali.
***
Rosie dava continuidade à sua exaustiva caminhada pelas terras inférteis do Tártaro sofrendo com o peso da condenação que foi obrigada a pagar. "Eu fui tão egoísta. Tudo se inverteu, é Hector quem justamente precisa desistir de mim... quando no passado tudo que eu mais queria era esquece-lo depois da maldita verdade vir à tona. Como eu queria meu diário aqui... Posso me abrigar numa caverna e me isolar, fingindo que estou tendo ideia do tempo passando...".
Ao desviar o olhar para sua esquerda, vira uma menina de vestes brancas e sujas de costas.
- Ei... Ei! - disse Rosie, se direcionando à ela - Será que pode me dar uma informação?
- Também foi vítima da miragem?
- Se refere à luz que pensei ser um portal ao Campo Elísios? Sim, foi isso. - agachou-se para falar mais intimamente - Olha, me mostra seu rosto... Não que isso seja importante, mas... eu tô acreditando que existem pessoas como eu pra confiar. Na verdade, nem sei direito porque estou aqui.
- Você cometeu um pecado grave. - disse a garotinha - Forçada ou não, a ação de um pecado conduz a uma punição severa. Se não caiu no fosso de excrementos, quer dizer que você é uma alma pura.
- A minha escolha determinou minha punição. Entendi. - disse Rosie, levantando-se e lembrando do momento em que fincou a adaga na sua barriga - Então a essência não importa.
- O Tártaro não é lugar apenas para almas que nasceram corruptas. O que quer que tenha feito... com certeza fez consciente. Decidiu sem querer voltar atrás. Posso sentir sua angústia e a sua frustração.
- Eu sei... ahn... Me diz uma coisa: Acha normal pensar que estou sendo perseguida mesmo acreditando que são ilusões? - a garotinha balançou a cabeça negando - São reais... OK. Adeus.
Assim que Rosie virou-se para retornar ao caminho, a menina agarrara seu braço. O rosto dela tinha um aspecto aracnídeo, como de uma viúva negra contendo pinças curvadas. A jovem largara-se, assustando-se, logo correndo. Olhou para trás e a garotinha aparentemente inocente deu lugar a uma aranha gigante e asquerosa. Acelerou sua corrida, sem se importar com tombos e tropeços.
Porém, isso teve um custo. Caiu num desfiladeiro ao escorregar para frente, rolando uns bons metros abaixo. Sua consciência estava ciente daquilo não representar problemas já que estava morta. Parou no ponto mais baixo, desorientada. A sombra de alguém surgira aproximando-se. Rosie olhara para trás, com dificuldades para levantar-se.
- Olá. - disse o rapaz gentilmente - Está perdida?
- E quem não está? - indagou Rosie, o rosto manchado de terra.
***
Capela de São Miguel
Em postura burmese, num quarto de freiras, Belphegor meditava profundamente imerso na sua mente ligando-se psiquicamente aos demônios para contabilizar todos que o acompanharam na ascensão.
Derek interrompeu seu superior sem bater na porta. Se retrair já o cansava e ter que pedir desculpas também.
- Ah, me perdoe, senhor... Não sabia que estava no meio de uma sessão meditativa. Volto mais tarde.
- Se quer me falar algo urgente, Derek, o faça neste instante. Não posso ter minha ligação cortada em intervalos muito curtos. - disse Belphegor, abrindo os olhos - Ao todo, até você chegar, rastreei 83 demônios. Como governante do submundo, me envergonha ser limitado nesse conhecimento.
- De forma alguma, senhor. Longe de mim ser um estorvo. Eu apenas vim sugerir um curso de plano.
- O que seus subordinados tem feito até agora? - questionou, levantando-se do chão.
- Traçando estratégias para sabotar a ressurreição de Rosie Campbell. Ainda que eu tenha pego o seu amuleto divino, ela representa um problema sério até mesmo desarmada. A minha ideia compreende uma farsa perfeita. Os parlamentares britânicos discutem a cogitação de eleger um novo prefeito de Londres. Sem resultados consensuais, estudam desistir da medida que serve para fazer da cidade um manancial de armamentos militares no investimento bélico voltado ao conflito armado atual.
- Essa informação dos humanos estarem vivendo um período menos pacífico me passou batida. Sobre a eleição, depende se... o voto é direto ou não. Estou gostando disso.
- Nunca ouviu falar em democracia? O povo é a engrenagem para fazer isso acontecer.
- Eleito por voto majoritário. Isso me interessa. - disse Belphegor, expressando contentamento.
- Bem, já que aceitou... - disse Derek, virando as costas - ... vou indo...
- Espere, Derek. - Assim que o líder virou-se novamente à ele, a surpresa foi imensa. Belphegor assumira a aparência humana de um homem de meia-idade com cabelo grisalho curto, mantendo o rosto quadrado e robusto - Decidi usar minha mente para planejar com criatividade. - olhou-se no espelho - O mundo conhecerá Ephram Lankester. - sorriu sacanamente ao reflexo.
- Senhor Marshall. - disse um dos magos do caos entrando - Adam já veio e encontrou marcas de um sigilo de teleporte na floresta. Crannon foi salvo por Pandora.
Aquilo soou como uma derrota para o líder do grupo. Derek apertou os lábios reprimindo a raiva.
- Vadia traiçoeira.
- E quem é esse? - perguntou o mago - Onde está o grande mestre?
- Está diante do próprio. - disse Belphegor - Sob uma pele perfeita para enganar humanos. Vou convocar minha equipe de campanha. - dera um fechado sorriso esperançoso.
***
A cabana que Pandora transformou em refúgio localizava-se num ponto não tão aberto na floresta.
Passando entre folhagens e galhos, a dupla se direcionava à casa de fachada pouco convidativa.
- Pelo visto, seu feitiço não conseguiu ser tão eficaz. - disse Hector.
- Pra sua informação, enchi a cabana de feitiços protetores desde o ano passado quando me instalei... e foi nessa época que conheci aquela aberração lunática.
- Mollock. Ele hipnotizou você para obter uma nova fonte de poder.
- Verdade, ele só não considerou que após o transe a pessoa retém suas lembranças de quando esteve durante ele. Deve ter sido a empolgação. - fez uma pausa, suspirando - E por falar em aberrações monstruosas... Como se sentiu... finalmente diante dele?
Hector deu um sorriso nervoso.
- Eu evitei contato visual no momento que peguei Rosie e escapei. Honestamente, nunca antes em toda minha vida me senti amedrontado por uma criatura sobrenatural.
- Mas você não enfrentou um deus prepotente e psicopata que queria destruir o mundo?
- A diferença é que a aparência de Rosie... me enviava forças necessárias para lidar com ele sem baixar a cabeça. Só assim foi possível encara-lo naturalmente. Mas com Belphegor... a sensação acabou sendo distinta de tudo que já me afetou. O que acontece quando se é destinado às trevas apesar de lutar contra elas o tempo todo.
Pandora franziu um pouco a testa por estar desconfiada do que o caçador disse.
Entraram na cabana e logo o caçador deitou Rosie sobre uma cama velha de colchão rasgado.
- Pode respirar aliviado, a gente tá em segurança, garanto. - disse Pandora, largando sua capa numa mesa - Não tem como Derek e os desgraçados nos rastrearem nem a curto ou longo alcance. Estamos sumidos do radar por um tempo. Mas já vou avisando que não será tão fácil.
- Eu retomei minha confiança para que fosse prática. - disse Hector, virando-se à ela.
- Sem desculpas, é sério. O único modo de a trazermos de volta é por dentro e não por fora. Em outras palavras, o suporte do meu feitiço só pode ser efetuado diretamente no Tártaro.
- Vamos cruzar a fronteira ao submundo... Não podia ficar mais esperançoso. Quais os riscos?
- Pra abrirmos a porta... quase nada. - disse ela, indo à dispensa pegando um frasco com uma água esverdeada e bebera todo - Acredite: Mais fácil entrar do que sair.
- O que é isso? Alguma poção de restabelecimento mágico? - perguntou Hector, curioso.
- O meu néctar de sobrevivência. Uma bruxa reclama da ardência na boca, mas não vive sem.
- Um tipo de... soro da juventude? - dera uma risadinha - Conheci alguém parecido. Espero que a história não se repita. A hora não é nada boa.
- Não sei a quem se refere, mas isto aqui é mais do que rejuvenescedor, é o meu elixir. Mas se estiver a fim de dividir histórias, sou todo ouvidos. Derek e eu praticamente avançamos. Você e essa bruxa também tiveram um lance? Tudo bem, pela sua cara não quer desviar do nosso principal assunto.
- Gostaria de tentar o Espiral. Medida extrema, mas importante. Ele retrocede o tempo, certo?
- Disse que ajuda a voltar no tempo e não o tempo em si. - explicou Pandora, retirando o objeto do bolso - O ponteiro giratório é a chave do uso. Só apertar o botão de acordo com o número que desejar. Um número de giros equivale ao número de anos que se volta ao passado ou vai ao futuro. - girou o ponteiro - Sentido horário: Futuro. Anti-horário: Passado.
- E por que quer nos mandar para o futuro? - questionou Hector, visualizando o movimento da bruxa com seu brinquedo - Depois que Rosie renasceu das cinzas, um arqueu chamado Údon...
- Conheceram um arqueu? - interrompeu ela, olhando-o espantada - Até agora eram lendas pra mim.
- Bom saber. - ironizou Hector - Ele nos alertou que interferir no tempo provoca consequências graves. Ramificações. Novas linhas alternativas coexistindo no espaço-tempo.
- Eis a grande vantagem que inseri: Isso é impossível pela magia do caos. - ela abrira-o e do mecanismo interno brotou uma luz branca cegante - Pronto pro passeio?
Enquanto isso, no QG Alternativo do Exército Britânico, General Holt via-se impotente e deplorável amarrado numa cadeira no meio de um quarto ubíquo iluminado por uma lâmpada defeituosa. O homem responsável por sua condição era Hamilton Marshall, pai de Derek e comandante do quadrante europeu da Caosfera. A dominação consistiria nos quatro principais continentes: Ásia, África, América e Europa. Os três primeiros ainda não passavam de células adormecidas.
- Acorde bem, General. - disse Hamilton, rodeando-o - Se não quiser que eu espete o olho direito.
- Como você ousa... profanar meu santuário com essas botas imundas? Vai pagar caro.
- Não vou comprar o que me apropriei à força. E a força, General... É o caminho sábio.
- Vamos, me fale. Sou seu escravo agora, mas não quer dizer que se apossou de tudo.
- Ah, você não faz ideia. - disse Hamilton, sorrindo presunçosamente - O poder que exercia foi reduzido a pó. Os subalternos do meu mestre cuidaram disso prontamente. A legislação foi unânime em exonera-lo. Toda a base de divisão está descomissionada. - mostrou um documento - Aprovado e irrevogável. O mundo se ajoelhará e os que pretendem obstruir a nova ordem... aniquilados.
Holt se inclinou de súbito querendo desamarrar-se para agredi-lo até não poder mais.
- Os meus soldados... Como isso aconteceu? Que tipo de poder vocês desfrutam pra agirem assim?
- Estamos mudando o mundo. E você vai acompanhar essa mudança dentro dos nossos protocolos.
- Não... - Holt balançava a cabeça afligido - Não pode ser verdadeiro. Juro... pelas almas dos meus homens... que vou resistir seja lá ao que estiver planejando fazer comigo.
- Resistência. - Hamilton curvou-se para se aproximar - Vou gostar de ver isso na primeira aplicação. Bem-vindo à nova era, General. - andara à porta para sair calmamente. Holt se debateu na cadeira rosnando furiosamente.
***
- Já pode abrir os olhos. - disse Pandora à Hector que relutava em enxergar onde tinham ido parar com o poder exercido pelo Espiral - Vem, temos que nos misturar.
- O quê?! Mas... - disse Hector, tendo sua mão puxada pela bruxa - Aonde estamos exatamente?
O espaço onde se encontravam dotava-se de uma movimentação barulhenta e extenuante, sendo certo definir que se tratava de um evento público massificador. Algo similar a um comício político dadas as faixas e placas levantadas por apoiadores clamantes à figura central.
- É difícil chamarmos atenção, mas todo cuidado é pouco. - disse Pandora - Aqui está bem melhor. Que tragédia. Eu vislumbrei futuros bem distantes com medo do que estivesse perto da data marcada para Belphegor ressurgir. Claro, minha situação não ajudava. Planejei minha traição o tempo todo.
- Sua entrada na Caosfera... foi motivada por pura ambição egoísta?
- Instinto humano. Buscar pertencimento. A desilusão veio e tive que sobreviver. Talvez descobriram minhas raízes e me puniram por omissão. É isso que está havendo aqui. Um regime perseguidor contra aqueles que seguem suas naturezas. A Caosfera instaurou seu reinado com Belphegor.
Hector a olhou apreensivo e logo depois avistou uma coia estarrecedora fazendo-o querer olhar mais de perto. Ao lado da multidão em polvorosa ovacionando o eloquente homem frente ao palanque, ocorria um desfile "patriótico" com soldados cujas fardas remetiam ligeiramente ao nazismo além de faixas vermelhas carregadas trazendo os símbolos da estrela do caos e a suástica.
- Não pode ser. - disse Hector, logo tendo a visão mais abominável. Atrás do homem, estava alguém preso à uma estrela do caos completamente nu e coberto de feridas e cortes sangrando - Isso é um pesadelo. Só pode ser um pesadelo. Aquele... não deve ser eu. Impossível.
- Queria também que fosse. - disse Pandora, tensa - Mas ali está você, Hector. Com certeza estamos em Londres e aquele homem... é ele. Belphegor está discursando pros seus seguidores disfarçado de político. Um discurso de ódio aos sobrenaturais. Querem implantar uma hegemonia demoníaca que extingua qualquer criatura sobrenatural diferente da face da Terra.
- A pior parte é não sabermos distinguir os demônios e humanos. Esse futuro... é provável caso não detenhamos a Caosfera e revivamos Rosie a tempo. O plano de Derek não era me matar logo, ele apenas ameaçou para me dar um motivo adicional em salvar Rosie. Aquele canalha...
Belphegor ergueu uma tocha e a levou ao seu prisioneiro. Hector inquietava-se por dentro.
- Não... - disse o caçador, querendo intervir. Pandora o repreendeu.
- Ei, não. Lembre-se que com o Espiral a regra é diferente. Mexendo no tempo aqui colocaremos em risco a nós mesmos no passado. - disse Pandora.
- Essa foi a visão de Alexia! - disse Hector, olhando-a - Uma amiga, ela é vidente. Nos mandou uma carta descrevendo precisamente todo esse inferno. Por que paramos justo aqui?
- O momento de maior destaque nesse futuro. Daqui à 3 anos. - disse Pandora. O fogo alastrou-se pelo corpo do outro Hector até cobri-lo inteiramente. Os gritos de ovação aumentaram de volume. Passaram a chamar um nome. O nome que pertencia à "identidade humana" do soberano do Tártaro.
- Que sirva de aviso aos impuros que ainda rastejam nesta terra! Apagaremos cada rastro, cada vestígio! O fogo simboliza a nossa revolução e com ele varreremos as cinzas do passado!
- Ephram! Ephram! Ephram! - bradava toda a multidão.
Pandora reativou o Espiral, retornando ao passado e à cabana. A luz não incomodou Hector de tanta atordoação que passou ao ver a si mesmo queimado em praça pública.
- É, eu sei, foi assustador. - disse Pandora - Pelo lado bom, isso me estimulou a agir rápido.
- Lado bom?! - retrucou Hector, aborrecido - E se nesse futuro maldito nem mesmo meus amigos caçadores estejam vivos? O único a restar foi Adam por ter sofrido controle mental, mas nada do que fizermos adiantará, nossos esforços pra alterar os resultados... farão que tudo chegue, no fim das contas, ao mesmo ponto.
- Concordo em discordar do seu pessimismo. - disse a bruxa - Já falei e repito: O único jeito confiável é irmos ao Tártaro. Abrindo uma fenda original.
- Todas as quatro foram trancadas. Derek e eu passamos três semanas nesse empenho.
- Sem problemas. Trunfo na manga é o que não falta. Há um feitiço de reabertura...
***
"... que eu poderia testar e não venha com suas réplicas pessimistas que não vai me convencer."
A dupla enfim chegara à caverna subterrânea na qual o Íncubo fora obrigado a fechar a porta antes de ser vaporizado pela energia parcial da fênix apoteótica. Pandora acendeu todas as tochas com um feitiço de combustão e desenhou a insígnia com seu sangue na parede onde a fenda se abria.
- Ubi confractus tactu victus est, iterum. Ubi confractus tactu victus est, iterum. Ubi confractus...
Não era preciso um olhar muito atento para notar que a bruxa mostrava-se estranha, embora de costas. Hector intrigou-se pela tremedeira de Pandora e o número de repetições do encantamento.
- Sua mão está... meio instável e tremendo. Pandora... - o caçador foi aproximando-se. A fenda estava abrindo-se aos poucos - Pandora, está me ouvindo? - a encontrou sangrando pelos olhos fechados e pelo nariz - Ah não. Pandora! - deu umas batidinhas no rosto dela - Acorde, vamos!
A bruxa interrompeu o recitamento ao se ajoelhar com fraqueza.
- Feitiço muito confiável. - disse ele, ajudando-a - Está tudo bem? Percebi algo estranho...
- Não, me sinto bem. Deixa comigo. - disse ela, levantando-se - Mas meu limite é de 40 segundos. O bom é que a fenda não ficará tão estreita. - limpou o sangue - Me permite outra tentativa?
- Eu pularei primeiro. Boa sorte. - falou Hector, ficando numa proximidade maior. Pandora estendeu a mão direita à fenda e recitou novamente. O caçador contava os segundos na mente, mas preocupava-se com a hemorragia crescente da aliada. A fenda se esticava e a luz laranja emanava forte.
- Agora! Vai! - gritou ela, aguentando ao máximo. Hector transformou-se em licantropo e usou supervelocidade para pular num milésimo de segundo. A bruxa do caos correu diretamente à fenda mantendo a repetição. Por fim, o portal fechou-se instantaneamente.
Já adentrados no Tártaro, o caçador a ajudou.
- A debilitação é temporária, agradeço o apoio. Vamos em frente. - disse Pandora, seguindo.
- Ao que parece, o feitiço exigiu muito da sua magia. - disse Hector, andando e visualizando a tenebrosa paisagem ao redor - Não precisava descarregar tanta energia, talvez o método mais arriscado não te prejudicasse tanto.
- Olha, dá pra parar de se preocupar a toa? Estou ótima, a magia do caos é mais facilmente regenerável do que a comum, daqui à pouco fico 100% de novo. Preocupe-se consigo mesmo.
- Eu apenas tentei demonstrar minha confiança renovada. Então esse é o Tártaro? Se difere pouco do que imaginei. Abafado como uma sauna e podre como um monturo de lixo.
- E aqui está o primeiro ponto turístico. - disse Pandora. Uma ponte meio quebradiça de pedra se alongava uns metros à outra parte - O cavalheiro segue na frente para que a dama o impeça de cair.
Hector deu um sorriso fraco achando idiota a piadinha da bruxa. Pisara na ponte com extremo cuidado. Na área abaixo existia um lago corrosivo e tóxico.
***
A notícia-relâmpago da nova eleição municipal espalhou-se como vírus por metade da cidade em poucas horas do anúncio oficial transmitido nas emissoras radiofônicas. Num café ao ar livre, um homem lia o jornal conferindo a manchete de última hora. Outro estava na sua companhia.
- Inacreditável. Assim tão de repente? Há coisas muito mais relevantes, não é o momento certo pra competição de engravatados demagogos. - tomou um gole ao rejeitar o jornal - Não é um mistério?
- Esta cidade precisou ser abalada por caos para lembrarem de restabelecer a ordem. - disse o outro... que não era ninguém menos que Belphegor na sua fachada humana com vestes elegantes e um chapéu - Sinceramente, não vejo outro momento mais oportuno. É pela democracia e a liberdade.
- Mas os miseráveis viraram as costas para seu povo. Não faz sentido que saíam dos seus esconderijos pra decretarem processo eleitoral logo que as coisas despencaram pro nosso lado na guerra. Por que não acha isso no mínimo suspeito?
- Sou um dos candidatos potenciais. - disse ele, orgulhoso - Ephram Lankester. Muito prazer. O que tenho em mente vai revolucionar esta cidade como nunca na história. - mordiscou uma rosquinha, sorrindo.
No Tártaro, Pandora e Hector terminavam de atravessar a perigosa ponte de pedra.
- Que exaustivo. - disse Pandora - Sorte que somos só nós dois, a capacidade total que a ponte suporta.
- Por acaso, já esteve aqui antes? - perguntou Hector.
- Trago lembranças amargas daqui, não ia ser conveniente gastar minha saliva contando.
O percurso seguinte se dava por uma caverna preenchida de breu. Pandora recuou ao escutar ruídos semelhantes aos de um animal selvagem. Hector, por sua vez, ficou inerte olhando para a caverna.
- Espere, por que se afastar? O que está vindo?
- O que houve com sua superaudição de lobisomem?
- Bloqueada. Me transformei para pular mais rápido na fenda, mas assim que entrei já tinha voltado ao normal. - disse Hector, tomando dimensão da ameaça vindoura - De quem vem esses barulhos?
- É ele. - disse Pandora - Sem dúvida alguma. O guardião da cidadela dos demônios.
Saindo das trevas de sua toca, o robusto cão Cérbero rosnava salivando em suas três cabeças.
CONTINUA...
*A imagem acima é propriedade de seu respectivo autor e foi usada para ilustrar esta postagem sem fins lucrativos.
*Imagem retirada de: http://paranormalhoje.blogspot.com/2015/10/ceu-vermelhoestranha-tempestade-causa.html
Comentários
Postar um comentário
Críticas? Elogios? Sugestões? Comente! Seu feedback é sempre bem-vindo, desde que tenha relação com a postagem e não possua ofensas, spams ou links que redirecionem a sites pornográficos. Construtividade é fundamental.