Frank - O Caçador #71: "Coração de Pedra"
INÍCIO 6ª TEMPORADA
Aqueles olhos vermelhos inumanos fitavam Frank com certa aspereza por algum instante bem breve para depois modificarem-se numa serenidade que logo soou incompreensível. O homem robusto de corpo pedregoso, cujas vestes se limitavam a um trapo velho e marrom amarrado com uma faixa de pano na cintura para cobrir suas áreas íntimas, aproximou-se do detetive que estava sendo agarrado por dois seres de aparência relativamente igual, certamente agindo como soldados daquele que parecia uma estátua viva com alguns traços demoníacos - como chifres discretos virados para trás.
- Eu não sou... um invasor que veio aqui pra causar problemas pra você e sua gangue de... - disse Frank cortando a frase para olhar com estranhamento os homens de pele negra como ébano e rochosa na textura.
- Gárgulas. - disse o líder sem soar rude no tom.
Frank voltou o olhar para ele esboçando um contido assombro.
- Eu mandei que o soltassem, não mandei? O que estão esperando? - perguntou o líder, autoritário.
As mãos rígidas e duras soltaram o corpo que bateu as mãos levemente no sobretudo como se estivesse se limpando.
- Por que a hospitalidade de repente? Armados com essas lanças, pensei que eu ia virar o jantar.
- Tivemos mudanças de perspectiva sobre a humanidade com o passar dos tempos. - disse o líder focando unicamente em Frank - Não estamos aqui por vontade. Estamos porque fomos compelidos.
- Pelo quê? - indagou Frank encarando-o desconfiado e alerta quanto a movimentos bruscos.
- Eu esperava contar essa história demasiada longa pra um forasteiro algum dia.
- Então faz um resumo pra mim porque... - apontou para trás - ... eu vou meter o pé daqui subindo de volta nem que meus dedos sangrem e fiquem calejados. Tá achando que eu vou confiar fácil nessa pose de líder sereno e benevolente?
Os lacaios desataram a rir em gargalhadas escandalosas.
- Chega! - ordenou o líder, a voz assumindo austeridade. As risadas cessaram imediatamente - Não temos intenção de prende-lo, muito menos tortura-lo, seja lá quem você for.
- Frank Montgrow, prazer. - disse Frank de má vontade - Lá em cima o meu trabalho é bater em coisas não-humanas, vocês se incluem na lista, mas como não estão dispostos a conflitos, então...
- Você decide permanecer e me ouvir? Ou realmente quer tentar escalar e talvez morrer tentando?
Frank fez que sim com a cabeça, ainda muito desconfortável.
- Que escolha tenho, né? Maldita hora que foi acontecer um terremoto pra eu acidentalmente cair no território de monstros de pedra. Tô preso aqui com vocês, mas por enquanto hein. Vou ser tirado por uma equipe de resgate.
- E como espera fazer um chamado? - questionou o líder.
- Com isso. - disse Frank, retirando seu celular e logo fazendo uma ligação - Atende... - no entanto, uma mensagem de voz lhe dizia que o sinal estava indisponível - Merda, sem sinal.
- O que é essa coisa que ele tem na mão? - perguntou um dos soldados.
- Ele está cheirando a fumaça... - disse um outro apurando seu olfato próximo ao detetive.
- Ei, sai fora. - disse Frank, afastando-se - Tinha acabado de voltar de um prédio em chamas, mas... não consegui salvar ninguém. - recordou-se da fatídica hora em que Phil Baxton foi impossibilitado de seguir em frente ao lado dele para escapar vivo e recomeçar sua vida. Frank fechou os olhos como se quisesse dissipar a memória e voltou-se para o líder - Olha, tô curioso pra saber o que explica uma civilização de gárgulas vivas habitando no subterrâneo da cidade.
- Ao contrário do que pode estar pensando, não éramos estátuas. - informou o líder, andando devagar - Vivíamos em Danverous City como uma irmandade seguindo um líder em quem confiávamos estritamente. Mas aí veio a maldição que nos obrigou a buscar refúgio debaixo da terra como nossa opção se quiséssemos ainda mover nossas pernas para caminharmos livres. Essa maldição certamente recaiu sobre um dos nossos. Na verdade, você, Frank, seria a pessoa mais indicada pra encontra-lo.
- O quê? Tá me pedindo pra achar um amigo de vocês? Por que um de vocês não toma iniciativa?
- A maldição simplesmente impede que saiamos a luz do dia. - disse o líder seu rosto cada vez mais sombrio com os contornos preto-azulados do seu rosto devido à ínfima incidência de luz no ambiente.
- E à noite? - indagou Frank, impaciente.
- Não deixamos a cidade vulnerável. - respondeu um lacaio rapidamente sendo repreendido pelo líder.
- Eu não lhe dei a palavra, Herman. - falou o líder, depois voltando-se para Frank.
- Peraí, como assim? Que cidade? - questionava Frank.
- A nossa cidade. - disse o líder - O nosso lar subterrâneo. Venha comigo.
Frank seguira os passos do comandante daquele vasto exército com um pouco de relutância. Após caminhar por uma curva de paredes rochosas e altas, deparou-se com algo espantoso.
- Bem-vindo à Gargóvia. - falou o líder, apresentando orgulhoso a cidade que ajudou a construir.
- Caramba... - disse ele, olhando para baixo e ficando lado à lado com o líder - Construíram uma sociedade inteira aqui?
- Levou muitos anos, mas o povo que arrebanhamos sobreviveu à demora.
- E sobre o cara que você quer que eu ache...
- Axel foi afetado pelo feitiço amaldiçoador que ativa um selo místico que o prende numa forma de estátua. O selo foi rompido, posso sentir. Axel está se movendo em algum lugar. Precisamos dele urgentemente.
- O que faz dele tão importante?
- Ele é o único a saber o feitiço correto para subjugar Behemoth, uma besta ancestral que reside nas profundezas do subterrâneo há milênios. A força do tremor foi tamanha que a despertou de um longo sono.
Aquela última informação havia conseguido brotar uma preocupação real em Frank.
- Uma besta subterrânea? De que tipo?
- Do tipo que arrasa com tudo o que sua boca gigantesca encosta. Passeia na terra como toupeira, mas seu tamanho equivale à sua força e poder. Nos traga Axel de volta, do resto cuidamos nós.
- E por que eu devia confiar em você? Ou mesmo obedecer? O Axel é um monstro, se acredita que ele tenha voltado a se mover, eu vou caça-lo e provavelmente encontrar um jeito de acabar com ele se ferir pessoas inocentes. - declarou Frank.
- Então nossos mundos estarão condenados. - disse o líder, lamentoso.
- O que quer dizer? O Behemoth também vai minar a superfície?
- E tudo o que estiver sobre ela será destruído por sua fúria, inclusive Danverous City, como nos antigos tempos. Apenas queremos domestica-lo até o período de hibernação dele recomeçar. Mas a menos que haja um outro sismo de tal magnitude como hoje ou maior, nossa batalha se prolongará. Minha esperança está depositada em você, Frank. Você foi um milagre.
O detetive sentia-se com um fardo insuportável jogado nas suas costas. Crendo numa possível catástrofe de proporções nunca antes vistas, Frank fez que sim com a cabeça para o líder das gárgulas, sendo assim acatando a missão.
- Assim que eu voltar lá pra cima... e eu vou voltar... - disse enfaticamente - ... vou fazer o que tiver no meu alcance.
- Seria injusto pedir que prometesse. - disse o líder olhando Frank com seus intensos olhos vermelhos.
Frank virou-se para contemplar à sua frente e o que estava alguns metros abaixo. Vários prédios de rochas em formato praticamente cilíndrico se estendiam em meio a altas tochas de fogo que funcionavam como fontes de luz.
***
20 minutos antes
Numa lanchonete, Dave e Josie eram um casal de namorados aguardando o momento ideal para realizarem-se.
- Não trancou a faculdade por minha causa, né? Diz que não... - disse Dave com ar preocupado.
- Você vai se mudar de estado. - disse Josie após tomar um gole de café - Mas calma, ainda não fiz.
- E não precisa. Eu vou fazer um último esforço pros meus pais voltarem atrás. OK?
- É um sacrifício necessário, Dave. - retrucou Josie, pondo a xícara na mesa - Longe de você...
Impedindo que Josie completasse a frase, o terremoto se iniciaria alvoroçando as pessoas ali presentes que gritavam desesperadas. As xícaras na mesa balançavam agitadamente.
- Aqui embaixo! - disse Dave abaixando para ficar sob a mesa junto dela.
A vidraça da janela ao lado da mesa em que estavam trincava-se com a potência do tremor, bem como pedaços do teto do estabelecimento caíam se partindo e espatifando no chão.
- Dave... - disse Josie, tremendo de nervosismo.
- Calma... Já vai passar. - disse ele segurando na mão direita dela - Respira fundo, sem pânico...
Uma lâmpada fluorescente caiu sobre a mesa do casal estilhaçando-se. Josie dera um grito rápido.
Alguns segundos depois, o sismo parara. Aos poucos, os clientes iam se levantando, recuperando-se do abalo.
- Nossa, esse deve ter sido o mais brabo de todos. - disse Dave.
- Vamos nessa. - disse Josie, pegando na mão dele.
- |Ué, pra onde?
- Não tive tempo de falar... - ela esboçou um sorriso leve - Eu... quero que seja hoje.
Um semblante de felicidade formou-se no rosto de Dave lentamente.
Passada a aflição com o terremoto que havia ocorrido há pouco, Dave e Josie passeavam perto de um museu arqueológico num caminho ladeado por arbustos cheios e um tanto altos.
- Acho que esse motel é pitoresco demais pra uma primeira vez. - disse Dave, um rapaz caucasiano de cabelo castanho e bem curto, olhando para o museu - Esperava algo mais modesto, de preferência que coubesse no meu bolso.
- Idiota, por aqui é só um atalho. - disse Josie, uma jovem de rosto corado e cabelos pretos meio ondulados prendidos com um prendedor bico de pato - Vamos apressar o passo senão as reservas esgotam.
Os dois seguiram pelo caminho num ritmo mais acelerado. Mas Dave desacelerou ao reparar numa estátua localizada ao fim do trajeto.
- Olha só, que irado. - disse ele, aproximando-se.
- O que tem de irado numa estátua sinistra? - indagou Josie olhando torto para a gárgula que assemelhava-se a um homem de porte bastante atlético - Vambora, Dave. Ou vou ter que me satisfazer sozinha?
- Espera aí, tem uma coisa aqui... - disse Dave notando algo atrás nas costas da gárgula - O desenho... de uma cobra. - tocou na figura de uma cobra mordendo sua própria cauda - É sangue.
- O quê? Tá viajando? Deixa eu ver... - disse Josie, repentinamente curiosa.
- Não é tinta, claramente é sangue, pega aí.
Josie fizera mais do que pegar. Arranhou o desenho com suas unhas grandes.
- Agora a cobra não tem mais cabeça. - disse Josie - Argh, sujei minha unha...
Tornaram a caminhar, porém às costas deles a gárgula piscara os olhos cujas íris tingiram-se de vermelho vivo. A estátua se movia e soltou um urro gutural que estremeceu os dois. Erguendo-se, a gárgula virou a cabeça para Dave e Josie que bastante amedrontados e correram ao máximo. A gárgula saiu da base de granito onde estava e os perseguiu furiosamente, seus pés batendo no solo com barulho.
Dave e Josie ultrapassaram o atalho que percorreriam para o motel, ambos não percebendo que estavam adentrando nas proximidades de um bosque. Dave apontou para uma casa de concreto e julgou que fosse um abrigo seguro contra o perseguidor incansável. Josie dava olhadelas para trás e via os olhos vermelhos da gárgula brilhando no escuro.
Com muita força, mais do que pensava que teria, Dave abrira a porta entrando na frente de Josie. A fechou quando a gárgula se encontrava poucos metros dali.
- E agora? - perguntou Josie.
- E agora o quê?
- O que fazemos? - perguntou alarmada.
- A gente espera!
- O quê? A morte?
Um baque estrondoso na porta assustou ambos. Josie deu um gritinho recuando.
- Ele não vai desistir. - disse ela, temerosa - Me desculpa, Dave...
- Não, tá tudo bem, você foi... só inocente, assim como eu. - disse Dave, abraçando-a.
Os golpes que a gárgula desferia na porta pareciam se intensificar à medida que prosseguiam.
- A gente vai sair dessa. - disse Dave. Ambos fitavam a porta resistente que começava a rachar-se no meio.
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CAPÍTULO 71: CORAÇÃO DE PEDRA
Departamento Policial de Danverous City
Carrie visivelmente não exibia um bom estado emocional pelos corredores. Fora até a sala de Hoeckler relatar o acidente de Frank consequente do terremoto.
- Aqui, tome. - disse Hoeckler oferecendo um copo d'água para a assistente que estava sentada numa cadeira inclinada para frente com a cabeça baixa em sinal de aflição extrema. Ela ergueu a cabeça, mas olhou indiferente para a água.
- Qual é a dessa pose agora? - perguntou ela - Dizer que é um homem transformado não convence.
- Não é uma pose, estou me preocupando com você. - disse o superintendente.
- Preocupe-se com o Frank! - vociferou Carrie, levantando-se depressa - Eu vi ele caindo naquele abismo e não me passa pela cabeça nada que seja uma possibilidade dele ter sobrevivido.
- É o Frank, ele sempre sobrevive. Você é a melhor amiga dele, portanto tenha um pouco mais de fé.
- Se acredita que ele tá vivo, então manda uma equipe de resgate descer lá.
- Todas as vezes em que o Frank não deu sinal de vida depois de um problema, e quanto a isso me refiro às duas vezes que ele desertou... você insistia em acreditar na sobrevivência dele.
- Aquela fenda deve ter uma profundidade absurda. - disse Carrie, andando de um lado para o outro - Os geofísicos que deram entrevista coletiva há meia hora disseram que foi o tremor de maior magnitude até agora, três pontos na escala acima do anterior que foi... eu nem lembro mais. Vou passar a noite em claro só pensando em como ele está. E você?
- O que tem eu? - perguntou Hoeckler, franzindo o cenho.
- Quero saber se foi mesmo o fato do presidente da ESP ter exonerado você que te mudou tanto.
- Pra te atualizar, sou o presidente interino, mas a maioria vota a favor pela minha readmissão e nesse caso o conselho de mentores ganha total autoridade pra dar o veredito. - disse Hoeckler colocando uísque num copo - Além disso, se eu me tornar presidente oficial, vou estabelecer uma nova regra.
- Qual? - indagou Carrie - Boa, ruim ou péssima?
- Excelente. - respondeu Hoeckler, dando um gole - Sem mais interferências nos assuntos dos caçadores. Em outras palavras, o pessoal da fundação se encarregará apenas de fenômenos mais complexos e difíceis de interpretar e conter enquanto os caçadores... agem livremente dentro dos seus parâmetros pessoais.
Carrie não continha sua surpresa ao ouvir a proposta.
- Tá falando sério? Vai dar um basta naquela insistência toda que você fazia com o Frank pra força-lo a entrar na fundação?
- No caso de Frank eu estava propondo integra-lo mais pela ameaça do Esper-X, eu queria abrir os olhos dele com relação à índole daquele paranormal rebelde sem causa, mas... no fundo era apenas uma tentativa de atingir Frank devido a ele contrariar o argumento de que o Esper-X era um sociopata impiedoso e não um pobre garoto confuso que não batia bem das ideias. - disse o superintendente, em seguida terminando de beber numa virada. Fizera cara feia pela ardência do uísque queimando na garganta e expirou pela boca - Ele se importava com aquele rapaz como se fosse uma vítima de si mesmo.
- Sim... - disse Carrie, um tanto pensativa - Por mais turrão e cabeça dura que ele fosse, ainda se esforçava em ver o lado positivo das pessoas. E ele tratava os espers como humanos pois ele acreditava que a própria natureza humana tinha uma parte verdadeiramente boa. O Atticus, segundo o que ele me disse, minutos antes dele partir, estava tendo a sensação de que iria escravizar seus seguidores. No fim das contas, ele sentiu medo de se tornar um monstro e não suportava estar vivo com tanto poder pra fazer praticamente o que quisesse e no limite ele criou um paraíso para seus irmãos de espécie.
- Foi por isso que os agentes me reportaram de espers brutalmente mortos na sede. - disse Hoeckler, finalmente compreendendo lucidamente, embora a bebida tivesse fortes teores de álcool - Ele permitiu que... o ESP-47 os matasse... pra levar suas almas até esse mundo novo onde descasariam em paz. Do contrário, teria feito qualquer coisa pra impedir.
- Frank estava certo o tempo todo. O poder subiu à cabeça de Atticus, mas justo no auge dessa loucura ele reencontrou a sanidade pra entender que iria chegar a um colapso. Acho que os contrapontos do Frank sobre a ideologia dele tiveram algum efeito pra faze-lo cair em si. E quanto à você? O que o Frank fez hoje pra você enxergar o lado bom dele?
Em silêncio, Hoeckler se direcionou à ampla janela para ver o mar de pontos luminosos da cidade.
- Ele foi um herói, mesmo que tenha falhado. Tentou salvar um agente corrompido da fundação após cura-lo da aberração que o presidente permitiu que o transformassem. Vou retribuir o favor sem falhar, eu juro.
Um sorriso trêmulo de emoção formava-se no rosto de Carrie na compreensão de que a traição de Maximilian Foster serviu de alavanca para a mudança radical de caráter do superintendente. A assistente pegara seu celular rapidamente.
- Pra quem está ligando? - perguntou Hoeckler ao virar-se.
- Digamos que... seu otimismo me encorajou. - disse Carrie com o aparelho colado ao ouvido - Ah não... - baixou um pouco a cabeça em desânimo - Fora de área. Mas não vou deixar a esperança acabar tão cedo.
- Espere até amanhã. - sugeriu Hoeckler, os olhos fixos nela - Frank está bem... Eu acredito piamente.
***
Já fazia mais de uma hora que a porta daquele abrigo feito de puro concreto sofria baques que geravam estrondos assustadores. Dave e Josie recuavam abraçados a cada vez que a rachadura se agravava.
- Deve ter uma saída ali atrás. - disse Josie, pensando em correr para mais além.
- Tenho uma ideia melhor. - disse Dave tirando o celular do bolso da calça jeans e indo para um canto se agachar.
- Essa é sua brilhante ideia? Gravar um vídeo?! - reclamou Josie.
- Alguém vai ter que tirar a gente daqui, eu fechei a porta com muita força!
- Não custa nada a gente explorar esse lugar e procurar uma saída, Dave!
Dave deu uma olhada de relance para o corredor largo, mas a escuridão determinou seu julgamento.
- Melhor esperarmos amanhecer. Confia em mim, Josie. - disse ele olhando-a profundamente - Se você me ama de verdade.
Josie ficou parada em silêncio, apesar de continuar um pilha de nervos, já nem mais dando atenção às batidas violentas que a gárgula aplicava na porta pesada de concreto.
- E se ele destruir a porta? Olha como já está...
- Ele tá apenas danificando, mas não acho que chega ao ponto de destroçar ela inteira. Se você reparar bem, apesar de não ter muita luz... - disse Dave apontando para a porta - ... vai ver que até agora ele só conseguiu empurrar uns dois centímetros, talvez menos. Ele pode ser grandão, feito de pedra, mas acho difícil arrombar antes do sol nascer.
Preparando a câmera do celular, Dave começara a falar ao início da gravação.
- Oi, pessoal, sou eu, o Dave... Tô aqui com a Josie, minha namorada, presos num abrigo nos protegendo de um perseguidor que veio correndo atrás da gente nos atacar... Acabei trancando nós dois sem querer. Pra quem quiser enviar resgate, só resgate, não precisa chamar a polícia... Enfim, estamos próximos do bosque Humpshire.
Finalizou o vídeo, enviando para diversas pessoas que os conheciam nas redes sociais.
- Tem certeza de que a única forma de sairmos daqui é por onde entramos? - perguntou Josie.
- Eu não sei o que é esse lugar exatamente, mas... - disse Dave ficando de pé - ... algo me diz que sim.
Para o espanto deles, as batidas cessaram poucos antes que percebessem.
- Parece que estátuas vivas e assustadoras também se cansam. - disse Josie, aliviada.
- Vamos tentar dormir... - disse Dave olhando para o chão nada convidativo para deitar-se.
- Mandou pra todo mundo? - perguntou Josie.
- Até pra quem sacaneia a gente. - respondeu ele - E aí, o que acha?
- Bom, podemos dormir um pouco aqui, no mínimo, já que nossa noite de amor virou de terror.
O casal dormira sentado e encostado numa parede. Ao amanhecer, Dave despertou pensando estar ouvindo uma voz sussurrante. Abrindo os olhos vagarosamente, coçou-os e depois olhou em volta. A luz natural entrava por fissuras no teto que esclarecia mais a sujeira do piso. Josie estava à sua esquerda deitada sobre um monte de pedras como um "travesseiro". Quando escutou novamente os sussurros, sua mente não assimilou com engano. Era real e muito audível.
Dave levantou-se e estava certo de que a voz incompreensível vinha do corredor largo. Andou lento para não acordar Josie e seguiu adiante rumo à escuridão do corredor. Utilizou a lanterna do celular enquanto andava até o final. O recinto à frente também possuía um teto com brechas através das quais a luz passava, muito mais que o primeiro. Desligando a lanterna, Dave viu fileiras de jazigos de concreto com nomes dos ocupantes gravados. "Um mausoléu, eu devia ter percebido na entrada", pensou ele.
Os sussurros estavam mais próximos... parecendo vir detrás. Dave virou-se para ficar diante da passagem, mas ela estava barrada por um ser vestindo uma túnica marrom com um capuz cobrindo metade de seu rosto pálido cuja boca tinha lábios avantajados e exageradamente carnudos. Ele sorriu mostrando dentes pontudos ao passo que esticava seu braço direito e abria a mão. Numa velocidade sobrenatural, o indivíduo estranho avançou contra Dave que soltara um grito de pavor o mais alto que pôde.
Josie acordara ouvindo Dave gritar e correu para socorrê-lo. Dave vinha do corredor suando frio, tremendo e arquejando.
- Dave, o que foi? - perguntou ela, alarmada - Você tá pálido! O que você viu lá?
- Jo-Josie... E-eu vi... Ele tocou em mim e eu senti... como se eu fosse morrer. - Dave iniciou uma crise de choro.
- Calma, já passou... - disse Josie, abraçando-o forte. Ela observou o corredor escuro com os olhos semicerrados.
***
Frank sofria para aguentar a demora de alguma equipe de resgate vir tira-lo ainda naquela manhã.
- Cacete, será que os bombeiros andam tão ocupados assim? - perguntou olhando para cima, vendo o céu azul tão distante.
Uma ideia repentina veio à mente. Frank respirou fundo e fechara os olhos.
- Adrael, eu sei que infelizmente não dá pra se invocar anjos, mas a prece que faço agora é pedindo por um favor que eu sei que você nunca recusaria fazer. Eu preciso de ajuda. Posso não ter demonstrado, mas te vejo como um dos melhores amigos que já tive. Não tô bravo contigo por você ter me deixado na mão naquele dia da fonte dos desejos... você tinha suas convicções, eu tinha as minhas, a gente não tava em harmonia... E no final eu realmente não precisei de você. Mas dessa vez é diferente, cara. Vem me tirar daqui, sou o único caçador da cidade, ela precisa de mim tanto quanto preciso dela.
Ao abrir os olhos, o detetive aguardou um instante, porém ninguém veio. Passou mais uma hora, duas, depois três horas chutando pedras, sentando, levantando, jogando pedras nas paredes... Até que escutou alguém lhe chamar bem alto.
- Detetive Montgrow! Detetive Montgrow!
- Ei, aqui! - disse Frank correndo para o ponto onde havia mais luminosidade. Balançou os braços para o bombeiro que viria ao seu resgate e descia com o auxílio de uma corda resistente presa a um gancho.
O salvador do detetive pisara no solo subterrâneo firmemente fazendo uma nuvem pequena de poeira se erguer.
- E aí? Qual a primeira coisa que pensa em fazer quando voltar pra superfície? - perguntou o bombeiro, sorridente.
- Tirar a barriga da miséria. - respondeu Frank que deu risada junto ao bombeiro.
Escondido nas sombras, o líder da civilização gárgula observava a saída do detetive com expectativa.
Algum tempo depois, no DPDC, Carrie foi á sala de Giuseppe justificar o desaparecimento de Frank.
- Caiu numa fenda?! - disse o diretor, levantando-se da cadeira pasmado - Mas o que diabos ele estava fazendo nas fronteiras da cidade?
- Tínhamos... marcado um encontro. Lembra que o superintendente pediu pra sairmos mais cedo ontem? - perguntou Carrie meio nervosa diante do chefe - Frank e eu até chegamos a ver o fenômeno celestial estranho que acabou sendo ofuscado pelo terremoto mais forte...
- Sra. Wood, não desvie o assunto. - pediu Giuseppe - Sim, Hoeckler autorizou uma redução no expediente. Mas falemos de Frank. Devo dizer, por sinal, que marcar um encontro de amigos num lugar deserto soa um pouco estranho, a menos que fossem assistir uma chuva de meteoros ou um eclipse. Mas o que aconteceu ontem nos céus de Danverous City não foi previsto. O que tinham pra conversar que não podia ser discutido na sua casa ou na dele?
- É que... ficou meio monótono a gente se encontrar um na casa do outro. Ele me visita, eu visito ele. Quisemos variar, só isso. Mas acho que quanto ao assunto não cabe a mim dar satisfações, me desculpe.
- Era tão particular assim? - questionou Giuseppe, incisivo. As pernas de Carrie bambearam.
- Coisa que se divide entre amigos.
- Como um segredo?
Batidas na porta quebraram a tensão da conversa e serviram como um bálsamo para Carrie.
A assistente foi atender rápido e tomara um baita susto. Giuseppe também reagiu com perplexidade.
- Bom dia, tripulação. - disse Frank, bem-humorado.
- Me segura que eu vou desmaiar... - disse Carrie, abismada - Ah, brincadeira, é só meu olho que tá lacrimejando...
Os dois deram um longo abraço longo e apertado.
- Sem drama, pelo menos não foram meses de ausência. - disse Frank, logo voltando-se para Giuseppe - Diretor.
- Olá, Frank. Eu tinha acabado de saber que você caiu numa fenda nas fronteiras...
- Pois é, mas agora o pior passou, voltei inteiro. Tá tudo bem comigo.
- O Hoeckler havia entrado em contato com uma equipe dos bombeiros. - disse Carrie para Giuseppe.
- Que bom terem resgatado você são e salvo, fico feliz. E é impressionante porque... a fenda deve se estender a muitos metros abaixo...
- Diretor, se eu sobrevivi, foi por uma razão. Vamos tocar o barco pra frente.
- Ahn... Frank, eu gostaria de... - Giuseppe se interrompeu para a estranheza de Frank e Carrie - Não, deixe pra lá. Vou ao banheiro. Podem ficar e conversar à vontade enquanto eu não volto.
- Obrigada. - disse Carrie tentando manter segurança na postura. O diretor saíra de sua sala deixando o detetive e a assistente a sós - Frank, suspeita no ar: o diretor tá desconfiando da nossa intimidade.
- Ah não, tá especulando que você é a minha ficante? Que nem o Ernest no meu começo por aqui?
- Não, é pior: Com intimidade eu quis dizer... nossa relação mais estreita que permite conversas mais profundas sobre segredos cabeludos que compartilhamos. Falei do seu acidente, acabei tendo que inventar uma desculpa pra estarmos perto da fenda na fronteira, disse que marcamos um encontro. Mas parece que ele tem uma base de suspeita com relação à você e o seu principal trabalho. E por falar nele... - pegou seu celular e mostrara um vídeo - Viralizou desde a meia-noite de ontem. O vídeo mostrava um rapaz relatando estar preso com a namorada num abrigo e fugindo de um perseguidor - Mas tem um segundo. - clicou no segundo vídeo que foi enviado há poucos minutos. Nessa nova gravação, Dave mostra a marca de uma mão roxa na sua barriga e conta desesperado o que viu - Reconhece pela descrição? Um cara encapuzado do nada aparece e começa a prensar a mão na barriga do rapaz.
- Essa marca de mão pra mim é o bastante. - disse Frank analítico - Esse cara foi vítima de um Marcador. Uma entidade tóxica em todos os sentidos. Meu pai o chamava de Toque Mortal. Ele pressiona a mão que paralisa o infeliz que tem o azar de topar com ele, ainda mais num ambiente fechado. Aperta bem forte até injetar o veneno.
- E existe um antídoto? - perguntou Carrie.
- Aí é que tá... - disse Frank, sério - Olha, eu já sofri por não conseguir salvar o Baxton do incêndio... Mas sobre esse cara que foi infectado pelo Marcador... Parte de mim lamenta, a outra se sente bem porque não preciso me culpar de uma pessoa morrer se não tenho como evitar. Ele disse o quê mesmo? Bosque... Humpshire, né? OK, vou pra lá.
- Não esquece de dar uma ligadinha pra me contar no caminho o que você passou no subterrâneo.
- Então vai se preparando que o babado é quente. - disse Frank, logo puxando a maçaneta da porta.
***
No mausoléu, Dave respirava com dificuldade deitado no chão sujo. Josie limpava o suor frio do namorado com uma toalhinha branca, cuidando dele da forma que podia.
- Fica comigo, Josie. Fica comigo... - disse Dave olhando várias vezes para a mancha roxa - Essa não... Tá se espalhando. Aquele canalha me envenenou... Era um fantasma ou...
- Shhh, para de falar, não se desgasta. - disse Josie com os joelhos dobrados - Vai ficar tudo bem.
Naquele momento, Frank chegara ao bosque, estacionando o sedã prata perto de algumas árvores de copas robustas que faziam boas sombras naquela tarde ensolarada. Sacou seu medidor de EMF e caminhou pela trilha até a leitura se fortalecer mais perto do bosque. Enfiando-se na floresta, o detetive guiava-se pelo aparelho. Ao desviar para uma árvore maior, deparou-se com algo que o fez estacar.
- Finalmente te achei, pedregulho. - disse ele desligando o aparelho que indicou pico de leitura - Cê tá de estátua... - falou, rondando-o - Ah, peraí, tô lembrando de uma coisa... - recordou-se do que o líder da civilização gárgula havia lhe confidenciado em relação ao selo - Ah é, rasurar. - viu o símbolo de ouroboros nas costas da gárgula e pegou uma caneta pra borrar a cobra mordendo a própria cauda. Mas ele notara algo que o trouxe a uma elucidação ao olhar para a cabeça da serpente em falta - Despertou do sono de gárgula porque rasuraram o símbolo... e você parou bem aqui depois que amanheceu por causa do feitiço... justo aqui... - pensou no casal trancado no mausoléu.
Axel moveu-se revolto e se ergueu para uma postura ereta. Virou a cara enrugada e de poucos amigos para Frank cujo único instinto foi correr pela floresta quando a gárgula fez menção de ataca-lo.
A corrida frenética entre as árvores não durou muito pois Frank soube despista-lo habilmente. Axel ficou sem rumo procurando pelo detetive rosnando como um cão furioso. Frank correu para voltar e ir direto ao mausoléu após conferir que a barra estava limpa. No mausoléu, Dave arfava enquanto Josie se afligia não sabendo mais como lidar com a situação.
- Josie... Faz o seguinte: Liga pros meus pais. Dá a má notícia de antecipado.
A garota levou ao mão ao bolso para tirar o celular. Dave a fitava desesperadamente. Porém, Josie afastou a mão.
- Não. - disse ela, mudando drasticamente sua face de perturbação para uma tranquilidade fria.
- Como assim... não? Eu tô morrendo, Josie. Você tem que contar, são os meus pais...
- Eles ficarão sabendo sim, mas ainda tá meio cedo.
- O que deu em você? - perguntou Dave lutando contra a dispneia crítica.
- Por um minuto pensou que eu seria a última a saber de como você andava se divertindo com suas amigas? Não, pensou o tempo todo. Quantas delas por aí tem filhos que você não quer assumir? Eu não ia desistir da minha faculdade, do meu sonho de vida, por um crápula que arrasta asa pra primeira vadia que se oferece! Agora fica aí e apodreça no Inferno!
- Sua... cadela. - disse Dave, sentindo que a raiva piorava seu quadro.
- Se eu sou cadela, as suas amantes são o quê? Donzelas inocentes que não sabiam do erro que estavam cometendo? Até que foi fácil, sabia? Você dormindo que nem um bebê enquanto eu fui invocar um amigo pro meu plano.
A porta de concreto voltou a sofrer baques. Josie afastou-se com medo de que pudesse ser a gárgula.
Fez-se uma pausa até que a porta se despedaçou com um impacto explosivo. Uma onda de poeira invadiu o interior do mausoléu e Frank saía dela triunfante portando um lança-granadas.
- Por favor, me ajuda, ele tá passando mal! - disse Josie, tossindo e correndo para o detetive.
Frank examinou a progressão da mancha tóxica.
- Tá começando a se alastrar pelo pescoço, nos braços, já deve ter preenchido as pernas. - disse ele, logo voltando-se para Josie com pesar no tom - Eu sinto muito, mas... O seu namorado vai morrer.
Josie simulou um choro copioso ao ouvir aquilo. Dave, que mal conseguia falar, apenas grunhia de raiva.
- Se acalma, não sai daqui, vou dar um jeito na porcaria que intoxicou ele. - disse Frank, agachando-se e pegando uma faca e um frasco do seu sobretudo - O grandalhão de pedra tá lá fora, mas talvez se perdeu no bosque.
- O quê? Por acaso você... faz ideia do que atacou o Dave? Sabe dessas coisas... assustadoras?
- Mais do que você pode imaginar. - disse Frank cortando a palma da mão direita e derramando sangue no frasco típico de hemograma. Após encher o frasco com uma quantidade necessária, tampou-o e enfaixou a mão com gaze estéril.
- O que vai fazer... usando o próprio sangue?
- É a fraqueza dele. Geralmente os caras como eu usam bexigas, mas não tenho nenhuma em casa. - disse ele, ficando de pé - Aviso de novo: Não saia, espera eu voltar. - em seguida, partiu para o corredor escuro.
- Josie... Não pode fazer isso comigo... - disse Dave, sua voz ainda mais rouca.
A garota aproximou-se dele com uma expressão de raiva contida e o chutou fortemente nos testículos.
- Adeus, Dave. - disse ela, em seguida o cuspindo no rosto e saindo em disparada para fora.
Munido de uma lanterna, Frank andou pelo corredor até que o facho iluminou a entrada para o recinto onde ficavam os jazigos. Ao adentrar, vira as sepulturas e o celular de Dave caído no chão. Desligou a lanterna por ainda haver um pouco de luz pelas fissuras já que o sol estava se pondo. Sua percepção captou algo num canto e constatou ser um desenho feito a giz no chão. Não teve dúvidas.
- O sigilo de invocação do Marcador... - disse Frank que escutou repentinamente sussurros atrás dele.
Ao virar-se, o Marcador estava parado numa proximidade perigosa o suficiente para toca-lo.
- A pergunta de um milhão: Como é que se luta contra uma coisa que você não pode deixar te pegar?
O Marcador avançou correndo sorrindo com sua bocarra cheia de presas e as mãos para frente. Frank desviou veloz e o chutou nas costas, depois sacando uma arma e atirando várias vezes no corpo da entidade. No entanto, o Marcador levantava-se indiferente aos disparos que apenas deixavam buracos na sua túnica esfarrapada que exalava um cheiro intenso de mofo. Usando sua telecinesia, o Marcador jogou Frank contra as duas paredes aos lados e por último de volta ao chão. O detetive tateou o bolso externo do sobretudo para conferir se o frasco com sangue estava inteiro.
"Ufa, não quebrou.", pensou ele, fingindo estar debilitado pelo ataque telecinético mantendo-se de quatro e de costas para o Marcador que aproximava-se ávido para pressionar sua mão contra ele. "Vem, chega mais perto, seu fedorento". Frank lentamente retirava o frasco do bolso e comemorava internamente pela deixa proposital estar funcionando. Antes que os dedos venenosos da entidade encostassem no sobretudo, o detetive, virou-se bruscamente quebrando o frasco contra o rosto dele. O Marcador recuava exprimindo ruídos grotescos aturdido com o sangue na sua face junto aos cacos do frasco.
- O que foi? Não gostou do creme hidratante? Tá ardendo? - perguntava Frank, zombando.
O corpo da entidade se esfarelava numa espécie de fumaça de baixo para cima até desaparecer completamente como se algo o tragasse para baixo. A última parte da missão seria verificar se Josie seguiu a recomendação. Mas voltando para o primeiro recinto, Frank não a vira mais lá, somente Dave com o corpo inteiramente tingido de roxo, os olhos esbugalhados e a boca entreaberta, sinalizando que a intoxicação causou uma falência nos órgãos. O detetive agachou-se fechando os olhos dele. Josie corria pelo bosque e topou com Axel. Gritando de pavor, deu meia-volta correndo e a gárgula rugiu a perseguindo.
Frank embrenhou-se na floresta que começava a ser tomada pelo breu da noite. Ouviu os gritos de Josie e seguiu numa rota onde tentou detectar de onde vinha precisamente. A corrida desesperada de Josie foi sabotada por uma pedra no caminho na qual tropeçou e caiu. Axel pisava fundo no solo deixando pegadas significativas. A garota recuava sentada.
- Por favor, eu não fiz por mal... - disse ela em prantos - Foi um acidente! Eu não quero morrer!
O choro de Josie aumentou consideravelmente e ela estava quase se ajoelhando para implorar por sua vida. Num dado instante, os passos de Axel ficaram mais leves e a fúria no seu olhar se atenuava.
- Josie! - disse Frank que logo deu um tiro nas costas pedregosas de Axel - Calma aí, foi só um tiro de advertência, não faz nada com ela... se é que você tá entendendo o que falo. - o detetive colocou-se de frente à ela - Fica... bem aí... parado... - guardou a arma. Virou-se para Josie que ainda chorava - Ei, tá bom, chega de lágrimas.
- Foi tudo culpa minha! O Dave morreu por minha causa... O ódio por ter sido traída tomou conta de mim e me vinguei de um jeito que... pensando agora, eu jamais vou me perdoar.
- Agora é tarde pra se arrepender. Por mais fria e calculista que você tenha sido a ponto dar o troco por uma traição barganhando com uma coisa maligna, você vai ter que refletir sobre o que fez e se permitir melhorar como pessoa. Desculpa se foi meio clichê, não sou psicólogo pra dar discurso motivacional.
- Você vai me prender?
- Sim, direi à polícia que uma jovem se vingou de uma traição invocando uma entidade sobrenatural pra se livrar do namorado. Certamente que vão acreditar e te colocar você no xadrez.
Ao voltar-se para Axel, o detetive levara um susto, olhando-o de cima à baixo. Ao invés de uma gárgula viva e de porte robusto, via-se um homem meio gordo e meio forte parado com uma expressão que denotava estar ou com medo ou perdido.
- O que eu tô fazendo aqui? Quem são vocês? - perguntou ele.
***
O carro fúnebre chegara cerca de vinte minutos depois de acionado. O corpo totalmente intoxicado e inchado de Dave entrou coberto por um lençol branco no veículo. Josie assistia com os olhos lacrimosos ainda.
- Se arrependimento não basta, vou até os pais dele contar. - disse ela para Frank - É o mínimo que posso fazer.
- Cuidado, não vai se deixar levar pela emoção e revelar a parte sombria da história. - disse Frank.
- Relaxa. Sou impulsiva, mas não insana. - disse Josie, logo começando a andar para ir embora.
- Ei, espera, não quer uma carona?
- Vou pedir um táxi. - disse ela olhando por cima do ombro direito - Cuida bem do seu novo amigo.
Axel, usando uma camisa branca, saía de um arbusto fechando o zíper de uma calça jeans ou pelo menos tentando. Frank pôs a mão na testa com o rosto virado, constrangido.
- Eu... queria agradece-lo pelas vestes. - disse o ex-gárgula.
- Emprestadas, só pra reforçar. Vamos, entra aí - abriu a porta do carro no lado do carona.
- Um automóvel modernizado? - perguntou Axel passando suavemente a mão no teto do sedã.
- Uma hora você se adapta às modernidades dessa época. Entra logo.
Axel entrou no carro pouco à vontade e puxara a porta fechando-a com força.
- O líder das gárgulas me designou pra missão de te encontrar e levar pra cidade subterrânea que ele fundou e governa. Você sabe o resto da história que ele não me contou ou não quis me contar?
- Não, por tudo que é mais sagrado, não me leve pra lá. - disse Axel, o rosto meio gorducho tomado de tensão - Nero esconde intenções duvidosas, não sei quais, mas tenho certeza.
- Ah, esse é o nome dele?! Nome de imperador. Será que tem sede de poder? Falou pra mim que precisa do seu conhecimento em magia pra que aprendam um feitiço que vai ajuda-los a domar uma fera chamada Behemoth, que, diga-se de passagem, é uma das bestas bíblicas mais ferozes. Se existe o Behemoth, então o Leviatã também e todas as outras. Se o Nero não é tão bonzinho quanto pareceu, isso quer dizer que ele apenas me usou como uma ferramenta já que eles não são capazes de procurarem você por causa do feitiço. Você lembra ou sabe quem lançou essa maldição?
- Fomos pegos desprevenidos na época. - disse Axel, rememorando - Lembro do horror de ver minha pele petrificando até cair num sono estranho. Voltar a mover meus braços e minhas pernas foi como... renascer. - olhou para o detetive - Frank, siga meu conselho: Não confie nele. A única explicação pra minha humanidade voltar foi aquela menina.
- Significa então que ver a Josie caindo no choro... desempedrou seu coração. - disse Frank, encarando-o - Bem, Axel, só me resta ter você como um hóspede lá em casa até a gente resolver essa parada.
- Mas ele te forçou a cumprir uma promessa.
- E não vou cumprir porque acredito na sua palavra. Sou daqueles que confia desconfiando, mas em relação à você eu dou um voto sem duvidar. A gente vai descobrir junto as respostas, custe o que custar.
Frank ligara o carro. Axel tomou um pequeno susto com o barulho do motor, mas logo tranquilizou-se.
- Frank...
- O que é?
- Você foi a melhor coisa que já me aconteceu em muito tempo. - disse Axel, emocionado, dando um sorriso fraco - Obrigado.
O detetive acenou com a cabeça positivamente.
- Disponha. - disse ele, dando a partida. O sedã prata saiu pela trilha se distanciando do bosque.
***
Departamento Policial de Danverous City
Frank batera com dois dedos na porta da sala de Giuseppe após ser chamado.
- Diretor, é o Frank? Permissão pra entrar?
Giuseppe abrira a porta com uma expressão neutra.
- Permissão concedida. Bom dia, Frank.
- Ah, bom dia. Ontem o senhor parecia querer uma palavrinha comigo, talvez em particular, mas depois mudou de ideia...
- Não era o momento mais adequado. - disse o diretor, fechando a porta - E sim, gostaríamos que ficássemos a sós.
- Que CD é esse? - perguntou Frank apontando para um disco na mesa.
Giuseppe o pegara e o colocou para rodar no laptop.
- Quero que ouça. - falou o diretor, apertando o play do executor de áudio.
A gravação que se escutava fazia o detetive sentir um frio na espinha. Enquanto rolava o áudio da entrevista de Frank para Ernest, Giuseppe o fitava com uma seriedade acusadora. Um trecho em específico deixara Frank sem chão, fazendo-o olhar para o laptop com certo horror.
O trecho em questão consistia em Frank respondendo uma pergunta extremamente incisiva de Ernest sobre eventos paranormais que acabou pegando o detetive na mentira graças ao polígrafo.
- Sabe aquela viagem que fizemos ao Brasil? Quando fui atacado por aquele lobo-guará que sabe-se lá como virou uma monstruosidade que quase me levou à morte?
- Senhor, é difícil de...
- Sim, eu sei, confessar um segredo dessa proporção não é nada simples. Você lembra, Frank, quando estávamos caminhando, saindo daquela aldeia... Pedi que fosse integralmente honesto quando perguntei se acreditava em forças sobrenaturais. Você disse sim. Falou que não pode provar que não existem. Eu precisei que fôssemos mais além nessa conversa, principalmente sobre como aquela fera foi derrotada. E agora estamos aqui, diante de uma prova incontestável, sem mais saídas pra que você fuja da verdade. Eu não vou interrogar você. Mas me responda uma coisa: Se o Ernest e eu trocássemos de lugar, se eu tivesse morrido no lugar dele naquele palanque... Você esconderia dele como escondeu de mim?
- O motivo de eu não revelar pra qualquer um a minha vida oculta é pela proteção. O Ernest levou aquele tiro por causa de alguém que queria ir até as últimas consequências pra impedir que a verdade fosse a público. Mas eu não vou defender o assassino do meu melhor amigo. O senhor e ele são dois casos diferentes. Eu conheci ele quando tava pra ser contratado e criamos um vínculo. O teste do polígrafo foi o ponto de partida pra que eu me abrisse mais com ele. Foi mal, mas não sinto a mesma coisa pelo senhor. Muita gente fala que um segredo deixa de ser segredo quando uma terceira pessoa fica sabendo. Como eu disse, são casos diferentes, o senhor e ele. Não tem como ser a mesma coisa entre o senhor e eu.
Giuseppe comprimiu os lábios fazendo que sim com a cabeça, parecendo desapontado.
- Saiba que lhe dei uma chance pra que fosse. Agora tenho um pedido a fazer.
- O quê? - indagou Frank, desconfortado.
- Vá trabalhar. - disse Giuseppe ainda mais sério - Faça o que sabe fazer de melhor nesta cidade. Combata esse mal.
- Sim, senhor. - disse Frank que logo virou-se para a porta a fim de sair da sala. No corredor, o detetive tentava segurar seu incômodo com a descoberta, mas não era pior do que se lembrar de Ernest e da cena trágica de sua morte voltando à sua mente como um flashback que não parava de se repetir.
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*A imagem acima é propriedade de seu respectivo autor e foi usada para ilustrar esta postagem sem fins lucrativos.
*Imagem retirada de: https://www.mdig.com.br/index.php?itemid=34970
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