Contos do Corvo #31
A postura do corvo mostrava-se atípica para a menina que o encarou com forte ar de curiosidade.
- E aí, você curtiu? - perguntou ele, sem agir muito naturalmente e olhando rápido para a sua direita a todo momento.
- O que tá havendo com você? Parece que vai ter um tique-nervoso. Além disso, a história foi muito curta e você... você não contou ela do jeitinho de sempre. Entende?
- Estou perfeitamente bem, fica relaxada. - disse o corvo.
- Não, não vou relaxar até você me dizer o que tá te deixando assim. - insistiu ela, chegando perto dele. - Foi o senhor coveiro? Olha, um dia ele volta. Suas histórias são irresistíveis até pra um velho ranzinza como ele.
- Não é bem esse o problema, é que... - ele se conteve, tentando voltar ao seu normal - Esquece. Quer ouvir outra? Pra encerrar sua noite com chave de ouro.
- Ótimo. Conta aí. - disse a menina, sentando-se no chão do cemitério. - E não vou bocejar, prometo.
- Uma das mais populares histórias infantis teve na nossa realidade um seguimento bem mais sombrio...
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PINÓQUIO VOODOO
O cara que me chamou a atenção naquele dia não era exatamente referido com um nome. Apenas o "velho dos bonecos". Eu não adotei esse apelido que as crianças deram. Como estava familiarizado com os contos de fadas, resolvi atribuir o nome que mais encaixava àquela situação: Gepeto.
Era um homem ignorado pela maioria dos adultos por ser dito como não confiável, além de viver numa casa de difícil localização pela fachada passar despercebida por qualquer um. Mesmo que alguém reparasse ninguém diria que uma pessoa habitava ali. Em resumo, ele era um hikikomori. O que é isso, afinal? Você se pergunta. É um terno em japonês que é designado à pessoas que se fecham em seus próprios lares passando dias ou a vida inteira sem sair de casa. Só tinha uma brecha na madeira da janela sempre fechada por onde observei o seu dia-dia~sempre solitário.
Estava ocupado colando olhos de plástico em um boneco de madeira do tamanho de uma criança de mais ou menos 6 anos. Normal... até o instante em que diz algumas palavras como se estivesse em uma conversa informal com sua criação. Falou de suas épocas de glória e de desespero. A pior coisa que segundo ele o ocorreu foi a perda de sua esposa que ainda estava grávida. Ele não disse a causa.
O desejo foi tamanho que certa vez o boneco criara vida. Porém, ele comportava-se de maneira estranha... não estranha do tipo violento ou bizarro, mas não em um comportamento que a gente espera de uma criança com a idade que o boneco parecia ter. Quando Gepeto o pôs para dar um passo sozinho, ele caíra. Ele chorou com a voz humana... de um bebê. Com apenas uma semana ele já balbuciava a palavra "papai". Nesse ritmo ele passou a crer que o poder da sua mente fizera o espírito do seu filho, morto ainda dentro do ventre, encarnar-se no boneco. Era inconcebível... mas essa era somente minha opinião, a opinião de um espião amador como eu.
Em pouco menos de duas semanas, já caminhava sem a ajuda de Gepeto e passava a maior parte do tempo assistindo o pai trabalhar em diversos modelos de bonecos para vender as crianças pobres em preços modestos, sendo quase as mesmas - acho que umas duas ou três.
Um mês passado, Pinóquio já falava. Ganhava um novo atributo a cada evolução. Uma boca, dedos melhores, roupas, sapatos.. Já tinha se tornando um menino que Gepeto sonhava como filho, apenas precisava trabalhar melhor sua linguagem por mais alguns dias.
Isso foi bem-sucedido até demais para Gepeto. Pelo menos até o dia em que seu peculiar filho notou uma caixa repleta de agulhas que ele teimava em alcançar. E Gepeto era categórico ao dizer para nunca tentar subir a estante para pegar a caixa. Mas o filho retrucava: "Eu quero ser como o senhor!"
Gepeto explicava que ele ainda era muito pequeno e blá-blá-blá, coisinhas clichês que os pais normalmente dizem pras crianças quando elas sonham com o futuro e já querem ser alguém na vida. Todo dia o garoto reclamava que gostaria de aprender costura. Queria ver até onde isso daria.
Com as contínuas repreensões e ordens do pai, Pinóquio começava a alterar gradativamente a sua forma de agir. Ele era um boneco de madeira com uma natural sede por mudança. Uma sede naturalmente... humana. Aprendeu emoções benéficas com o pai, como a alegria de ser uma criança nas vezes em que ambos brincavam de esconde-esconde pela apertada casa. Crescer por dentro não bastava. E então aquele era o início de uma confusa crise existencial. "Por que eu nasci assim?", ele se perguntava para o pai que toda vez que ouvi tal questão ficava no mais absoluto silêncio.
Chegou o dia em que Pinóquio bateu o pé chamando o pai... desbloqueando uma nova emoção. A raiva.
Gepeto o olhou surpreso, tirando os óculos. O primeiro abalo na relação familiar sempre é marcante.
No calor da discussão, com Pinóquio agindo feito um adolescente revoltado, ele derrubara a estante e pegou algumas das agulhas, guardando-as numa outra caixinha, depois saindo pela porta, pensando em nunca mais voltar após o pai ter dito que ele nunca nasceu. Gepeto não foi atrás. Ele só se deitou no chão, segurando os joelhos com as mãos e chorando aos soluços.
Segui Pinóquio até uma quadra de basquete, lutando para manter meu voo num tempo meio ruim. De início, não havia reparado num bonequinho de pano dentro da caixa. Pinóquio fitava um menino alegremente brincando com sua bola de basquete no meio daquela chuvinha. Outra emoção foi desencadeada.
Inveja.
Pinóquio sentiu necessidade de chorar mesmo sem ter olhos humanos. "Era assim que eu devia ser", ouvi ele falando isso. Abriu a caixinha e, escondido do vando de garotos que se aproximava da quadra para jogar, perfurou o boneco com as agulhas em toda a sua raiva.
Ao chegar em casa, Pinóquio lidou com o preço da ignorância.
Seu pai, Gepeto, jazia morto no chão do apertado e único cômodo daquele muquifo.
Em todo o corpo do velho haviam feridas profundas pelas quais escorria sangue puro.
Pinóquio deu uma olhada no bonequinho de pano furado com as agulhas... e compreendeu para quem de fato canalizou toda a sua raiva, a sua fúria e insatisfação com a condição de vida que era obrigado a aceitar sem questionar nada.
O desejo em ser humano não era maior que o de ser amado.
Ele olhou para um ninho de cupins em um cantinho da parede descascada. Os insetos subiam para o teto para comer os paus que sustentavam as telhas. Ao sentar apertando os joelhos, ele só teve olhos para o cadáver de Gepeto. Não deu nem dois minutos e os cupins correram para sua nova fonte de alimento.
Enquanto era devorado aos poucos, Pinóquio fez seu último pensamento em relação ao seu criador:
"Ainda vamos nos encontrar. Em um lugar pior do que esse, talvez." Foi a última coisa que viu antes dos cupins taparem seus olhos e apagarem Gepeto até restar a escuridão.
Ele disse isso pois tinha encontrado uma faca antiga e que estava largada no armário.
E como fantasmas podem ter acesso a visões do passado ao tocar em objetos que tiveram alguma utilidade em um caso trágico...
Ele tinha visto a faca entrando fundo na barriga de sete meses da sua mãe.
O portador era ninguém menos que um psicótico, drogado e bêbado Gepeto.
*As imagens acima são propriedades de seu respectivos autores e foram usadas para ilustrar esta postagem sem fins lucrativos.
*Imagens retiradas de: http://www.blogdacompanhia.com.br/conteudos/visualizar/Nada-e-tao-real-quanto-a-ficcao-policial-nordica2
https://oportaln10.com.br/conheca-a-historia-de-robert-o-verdadeiro-boneco-assassino-40090/
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