Espantalho (Remake)

Eu havia me planejado, desde o início daquele tortuoso ano, de forma que aquelas férias de julho fossem perfeitas ou memoráveis. Porém, o que se seguiu pouco depos da minha chegada ao que deveria ser um destino de diversão foi um mar de pesadelos. Ah, deixe-me me apresentar: me chamo Guilherme Santos, sou apenas um cara de anos que está ás portas de finalizar o ensino médio e ingressar pra minha tão sonhada faculdade. Psiquiatria talvez? Essa experiência que vivenciei me instigou a desvendar as profundezas mais sombrias da mente humana. 

O sítio do meu tio Cláudio se situava numa cidedezinha do interior não muito populosa. Era lá que eu pretendia passar essas benditas férias. Lembro bem de quando me despedi dos meus colegas fechando aquele semestre desgastante e da minha mãezinha que, previsivelmente, proferiu seus conselhos de segurança antes do meu embarque naquele ônibus de turismo lotado. Mas valeram a pena as horas gastas de viagem. Cheguei no sítio com minha mochila pesadona nas costas sendo recebido de braços abertos pelo meu tio que desde a última vez não tinha emagrecido um quilo a menos. Não que ele seja um obeso em condição alarmante, mas ele sempre foi um pouco acima do peso. Mais velho, obviamente, mas o coroa tá bem conservado até. Ele me abraçou forte como sempre quando nos encontrávamos. Pude rever meu primo Lucas, que correu pra me cumprimentar. Ele era cerca de dois anos mais novo que eu. Aquele lugar me remetia a muitas lembranças da infância, mal fazia ideia de quanto tempo não visitava. Lucas veio trazendo sua bola pra gente jogar um pouquinho enquanto o almoço não ficava pronto. Ah é, tinha também minha prima, a Mafalda. Era uma pirralha de 12 anos metida a inteligente, naquela hora estava estudando, nem se deu ao trabalho de pôr a cara pra fora pra dar um "olá". 

Pela força do hábito, o Lucas acabou chutando a bola para longe, fazendo ela cair no milharal. Pois é, tio Cláudio possuía uma rentável fonte de sustento com aquela plantação tão vasta. Sem aquilo, era falência decretada. No entanto, antes que eu me prestasse a pegar a bola de volta, ele percebeu bem na hora, enquanto cortava lenha, e tratou de dar um sério aviso a nós dois. Tio Claidio parecia ter ciúmes daquele milharal, mas na verdade apenas estava nos alertando por nossa segurança. Disse pra não irmos muito além. Ele até se ofereceu pra pegar a bola, mas eu, irredutível, mantive minha vontade e ele se rendeu, apesar de preocupado com o risco de me perder no meio daquele matagal aparentemente infinito. O cachorro dele, o Rex, me seguiu correndo enquanto o Lucas me esperava impaciente pra voltarmos a brincar. No fim das contas, acabei desacatando meu tio. Rex farejava sem parar. Encontrei a bola próxima a um achado que considerei bem medonho, por mais comum que fosse, afinal estávamos numa região campestre. Peguei a bola, mas não desgrudei os olhos daquele espantalho todo cheio de palha, trapos e usando um chapéu velho. Por que meu tio recorreria a um espantalho pra proteger a plantação?

Ok, minha pergunta soa um pouco idiota, eu sei pra que servem os espantalhos, mas convenhamos que isso tá bem fora de costume, pra mim é uma tradição que se perdeu, pelo menos em lógica. Sabia que meu tio era um ruralista à moda antiga, mas eu achava aquilo obsoleto demais. Até parece que os pássaros vão deixar de beslicar os milhos com medo de um boneco de palha que não parecia servir nem pra sábado de aleluia. Havia até um ninho feito num dos braços dele. Tirei minha atenção daquela coisa feia pra olhar o Rex farejando ainda o solo. Como um bom Pastor Alemão, ele sabia que tinha algo muito errado e suspeito no espantalho cujo rosto era de couro, usava um chapéu velho e mofado, tinha olhos vazios e uma boca costurada formando um sorriso. Cheguei mais perto só pra dar uns três passos pra trás. Senti um cheiro horrível de carne podre invadindo minhas narinas violentamente. O que meu tio tinha na cabeça pra deixar uma porcaria daquelas contaminando o ar? Aquilo não fazia mal pra qualidade dos milhos? Ouvi a voz distante do Lucas me chamando. Rex correu de volta e o segui. Não voltei a jogar com meu primo de tão atordoado que fiquei vendo aquele troço fedorento e assustador. Mas o tio Cláudio leu minha expressão, já desconfiava da minha imprudência. Na hora do almoço, hesitei em falar do espantalho pro meu tio quando ele perguntou da minha demora. Mas a Mafalda, encrenqueira que só ela, especulava que eu tivesse ido ver o espantalho. Discuti com ela e tio Cláudio mandou que nos calássemos. Ela prometeu que vigiaria cada passo meu a partir dali.

Foi durante a noite que meu segredo foi exposto. Aquela pentelha me dedurou pro tio Cláudio. Eu tinha voltado mesmo pro milharal no objetivo de investigar o espantalho horroroso e fedendo a cadáver. Só que o Lucas me viu saindo, resolveu me seguir e a Mafalda soube da minha ausência e foi direto pro milharal onde encontrou nós dois tentando remover o boneco daquele pau onde estava fixado com pregos nos braços e nas pernas. Essa delação custou caro pra gente. Tio Cláudio ficou uma fera, nos mandou ficar longe do espantalho. Fomos dormir cedo pois ficamos sem jantar devido ao surto de fúria do tio Cláudio como se tivéssemos cometido um crime. Nunca tinha visto ele irado daquele jeito, parecia que ia nos expulsar de casa. Antes dormir mais cedo de barriga vazia no nosso quarto do que de barriga vazia e no celeiro. Nem a Mafalda, a própria filha, escapou do sermão. 

Antes de dormir, Lucas e eu comentamos acerca do que havia por trás da criação do espantalho. Ele não sabia, mas tinha pego a arma do tio Cláudio na gaveta do criado-mudo enquanto fingi querer conversar com ele sobre a minha vida e aproveitar que ele não veria já que estava no computador. Não acho que ele verificaria a gaveta, até porque ele me falou claramente que só pega o revólver em casos de emergência, como uma invasão de domicílio, o que, segundo ele, já ocorreu uma vez com bandidos ameaçando mata-lo se ele recusasse entregar a quase fortuna que ele guardava no cofre. Tio Cláudio poderia estar nos ocultando algo tão sinistro assim sobre ele pra nós proibir de até se aproximar? Era só um boneco fedido, não imaginava o que existiria de macabro, além da aparência, que pudesse considera-lo taxativamente uma ameaça. Lucas ficou amedrontado e dei uma acalmada nele dizendo que o protegeria se essa história virasse um caso de vida ou morte, tipo... o espantalho criando vida e sair matando a torto e a direito pelo sítio. Parecia um cenário bizarro e sureal demais pra levar em conta. E se meu tio soubesse disso, ele certamente tomaria uma atitude heroica, não faria corpo mole pra salvar nossas vidas. Enfim, o sono veio, mas uns barulhos me acordaram de repente. Passei um tempinho apurando minha audição, mas não me segurei e saí do quarto  a ponta dos pés, tomando cautela pra não acordar o Lucas. Passei pelo corredor escutando sons que pareciam gemidos. Me encostei na parede nem pensando em dobrar pro outro corredor à direita. Apenas olhei discretamente e o que vi me intrigou: tio Cláudio entrando no seu porão segurando alguma coisa. Vi ele entrando já fechando a porta, mas captei de relance ele trazendo algo pra deixar lá no porão. Se ele já não deixava nós irmos ao milharal pelo espantalho, imagina naquele porão que parecia a descida pra uma masmorra. 

No dia seguinte, fiquei caladinho nem pensando em tocar no assunto proibido diante do tio Cláudio. Mas o Lucas se mantinha temeroso com o lance da teoria sobre o espantalho vir a adquirir consciência e vida pra nos matar descontando sua vingança. Naquela altura eu já não contava mais com isso. Aliás, com nada que sugerisse uma fantasia de terror. Aguentei por três dias sem dizer um "a" em relação ao espantalho. Mas foi no quarto dia que privar minha curiosidade chegou ao limite. Eu sou um ser humano, não ia negar meu instinto mais forte pra me silenciar com medo de um castigo do meu tio. Finalmente a noite decisiva havia chegado. Esperei dar duas da manhã, horário em que meu tio entrava no porão fazendo aqueles barulhos suspeitos. Quando o relógio marcou, saí do quarto do mesmo jeito que da premria vez. Mas não vi o tio Cláudio no corredor. Sinal de que a barra estava limpa. Redobrei o cuidsdo ao caminhar até a porta que levava à escada do porão. Eu já vinha com uma vela na mão confiando que chegaria ali e uma vez possível eu iria até o fim. Desci a escada segurando firme a vela. Já pisando no porão sujo e empoeirado, vi muita palha misturada com feno pelo chão. Sim, de fato existia um pouco de feno na composição do espantalho. Alem disso, notei uns ratos mortos. Será que o tio Cláudio matava os ratos pra depois colocar dentro do espantalho, explicando a podridão? Mais tarde descobri que não era nada disso. Meu reflexo de virar para trás por me sentir seguido veio com atraso. Deu nem tempo disso. Um sopro apagou a chama da vela e um segundo depois senti uma pancada forte na minha cabeça, acho que um porrete desceu com tudo em mim. Vim recobrar a consciência depois de horas, talvez. 

Me perguntei se já tinha amanhecido, mas a questão mais urgente era a identidade do infeliz que me golpeou na cabeça tão covardemente. Subi a escada tateando na escuridão. De volta ao corredor, ouvi um grito estridente da Malfada. Acho que não estive tanto tempo apagado. Corri pro quarto dela, mas cheguei tarde. Minha prima estava caída no chão em ferimentos profundos, acho que o miserável mutilou o corpo dela a golpes de faca. A janela estava aberta, obviamente ele pulou. Num impulso de caçar aquele desgraçado pra vingar a Mafalda, pensando no que poderia ter acontecido ao tio Cláudio e o Lucas, pulei a janela com meu sangue fervendo se ódio pelo sangue derramado da minha prima brutalmente assassinada. Vi uma fumaça subindo, vinha do outro lado do sítio. Vinha da direção do milharal, o que não me surpreendeu. Chegando lá, tive outra surpresa pra tornar aquela madrugada num pesadelo concreto que lá na frente se tornaria a pior e mais dolorosa de todas as memórias dessas férias frustradas. Dois corpos eram incendiados, ambos presos em colunas de madeira iguais a que o espantalho ficava. Sem a menor sombra de dúvida, aqueles corpos ardendo em chamas pertenciam ao meu tio Cláudio e o Lucas. Meu coração apertou, senti uma vontade imensa de chorar... Mas o choque deu lugar a mais intensa raiva que eu poderia conter no meu psicolgocio destroçado por aquelas perdas. Assim que eu vi aquele indivíduo usando uma roupa de espantalho se aproximando de mim com uma foice. Os olhos dele eram tão vibrantes que pareciam saltar daquela máscara tenebrosa. Tudo se esclareceu. Aquele cara estava sendo mantido em cárcere privado pelo meu tio pra mais tarde servir de espantalho no lugar do outro... que não passava de mais um cadáver conservado a base de formol. Meu tio podia ter sido um monstro psicopata, mas... sei lá, não merecia aquele fim. O crime do tio Cláudio não anulou minha sede de vingança... até porque Mafalda e Lucas estavam mortos também, eu teria que tomar uma iniciativa pra que não ficasse impune. Uma coragem praticamente suicida tomou conta do meu ser. 

Soltei um urro de fúria. Minhas pernas se moveram para correr diretamente a ele e nos engalfinhamos no solo. O soquei incontáveis vezes, mas ele era hábil com aquela foice média. Fez um corte no meu braço, se eu não tivesse desviado a tempo teria arrancado umas boas tiras da minha pele. Ele era ainda mais aterrorizante de perto, parecia um monstro se deteriorando de dentro pra fora. Durante o embate, constatei que o chapéu estava grudado na cabeça. O tio Cláudio pegou pesado... sequestrou e assassinou pessoas aleatórias pra transforma-las em meros bonecos pra espantar pássaros do milharal. Ou isso era só um pretexto pra ele saciar a sede por matança, esse lado sombrio que ele escondia extremamente bem de todos. Mas espera aí... Não, não tô sentindo empatia pelo assassino dos meus parentes, não tem mocinho nessa historia. Quis resolver logo aquilo, portanto peguei o revólver do tio Cláudio do bolso da bermuda do meu pijama e atirei umas três vezes no peito dele. O espantalho caiu, mas eu permaneci no chão, rastejando como se quisesse encontrar forças pra seguir em frente, era uma sensação de impotência depois de tanto ímpeto pra peitar o miserável e vingar tio Cláudio, Lucas e Mafalda. Porém, senti algo cravando profundamente na minha panturrilha direita. Gritei tão alto de dor que senti um gosto de sangue na minha garganta. O desgraçado me atingiu com a foice, rastejando que nem eu. Ele iria dar o próximo golpe, acho que seria na minhas costas. Tirei força não sei de onde pra me reerguer e sair mancando com a perna ensanguentad. Desapareci pelo milharal, somente pensando em escapar com vida.

Peguei a caminhonete do meu tio dirigindo com o básico que eu sabia. Percorri o labirinto do milharal porque eu sabia que no final dava pra uma estrada que levaria a cidade. Mas acho que cantei vitória cedo demais. O espantalho saiu do mato pro meio da pista. Se eu freei? O cacete que eu freei! Pisei fundo no acelerador pra transformar o corpo do desgraçado em uva passa. Mas no impacto, ele subiu pro capô e socou o para-brisa. O vidro estilhaçou inteiro no meu rosto e ele tentou me agarrar. Com o descontrole no volante, o carro desviou pra uma cerca que foi quebrada, depois caindo num lago fundo. Depois da colisão violenta entre o carro e a água, tudo foi escurecendo... à medida que eu submergia mais. Não lembro de mais nada após a queda do carro no penhasco até o lago. Acordei numa cama de hospital, tinha passado por uma sutura nos pontos onde ele me feriu. É simplesmente um milagre eu estar vivo. Fiquei sabendo no noticiário da noite, pela televisão acoplada na parede do quarto, que policiais averiguaram o sítio procurando o responsável pela chacina. Encontraram dois corpos, um sedado e outro já em estado de decomposição, ambos trajados como espantalhos. Eu bem que senti um odor de carniça no momento que fui explorar o porão e sabia que não vinha só dos ratos mortos. Pelo menos o Rex estava bem, foi adotado pela polícia. Desliguei a TV, apaguei a luz e me esforcei pra pregar os olhos, mas fecha-los me fazia ter flashbacks daquelas imagens pavorosas. Eu tive absoluta certeza que não teria uma noite tranquila assim que vi uma foice média bastante familiar entrando devagarinho pela porta do quarto.

Ninguém me avisou que ele também foi socorrido e levado pro hospital. 

*A imagem acima é propriedade de seu respectivo autor e foi usada para ilustrar esta postagem sem fins lucrativos. 

*Imagem retirada de: [1]

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