Frank - O Caçador #88: "Selva de Pedra"

A luz que tanto ansiavam novamente ver e sentir penetrando em seus corpos encontrava-se à uma ínfima distância. Os soldados gárgulas, munidos de suas lanças, subiam os degraus da escada em direção ao fim do exílio forçado e duradouro. À frente deles estava Nero, imperturbável e de semblante austero, contemplando aquela luz atraente do sol que brilhava como se fosse um belo dia normal. A tropa composta de 95 soldados marchava pela cidade em meio às estátuas que antes eram caminhantes livres e donos de seus destinos. Nero caminhava para saborear do gosto da vanglória em tornar-se o senhor de todos os destinos terrenos. Guiava seus bravos soldados à uma localização sugestiva para deflagrar o início de seu domínio.

A suntuosa mansão do fundador de Danverous City fora avistada como o recinto apropriado para chamar de palácio. Mas os olhos de todos voltaram-se interessados para a estátua em frente ao grande portão em arco. Resumia-se a um homem forte com características relativamente inumanas na cabeça e na face, facilmente associáveis a algo de caráter visualmente demoníaco, agachado com as mãos na base que o sustentava. Possuía asas similares as de um morcego. De concreto forte e de altíssima durabilidade, a estátua tinha uma boca aberta com dentes afiados, reforçando o aspecto monstruoso.

O fundador da cidade nunca escondeu do seu meio social a preferência por estilos góticos de arquitetura, incluindo nessa predileção as gárgulas. Solicitou que esculpissem uma que soasse agressiva e ao mesmo representasse uma figura protetiva à sua residência, não como um mero "espantalho", mas como um guarda imóvel que avisasse ao seus muitos detratores a pensarem duas vezes antes de confronta-lo. Nero parou diante dela apreciando a beleza notavelmente sombria.

- Devemos iniciar a transferência, senhor? - perguntou um guarda bem atrás dele. 

- Temos o dia inteiro para nos planejar sobre os dias que virão. - disse Nero - Mas não quero fingir que nossos obstáculos foram removidos. Nesse caso é bom fortalecer sem esperar que eles voltem a atacar. Tragam o sangue da górgona. 

Dois guardas levavam potes enchidos pela metade com o sangue de Lucy. Usaram-no para desenhar símbolos místicos nos membros superiores e inferiores da estátua, finalizando com um em especial na testa. Um deles recitava a mágica em latim arcaico. Nero tocara no peito da estátua com os olhos fechados aguardando o procedimento se encerrar. A estátua repentinamente moveu seus braços, retirando as mãos da base e adquirindo os olhos de gárgula viva. Ergueu-se um novo Nero mais fisicamente forte e potencialmente mais ameaçador para forças humanas. O corpo abandonado caía. 

- Segurem! - ordenou Nero. Os dois guardas pegaram a carcaça de pedra antes que tocasse o chão.

Nero pulara da base pisando com um leve tremor, podendo mover suas asas prateadas. Os soldados o ovacionaram maravilhados com a pompa que ele exibia em sua nova aparência. O governante de Gargóvia voltou-se para a mansão. 

- Vamos marchar ao palácio e tomar o que é nosso! Gargóvia renascerá! - bradou Nero apontando com a mão direita para a mansão. Dera um chute bruto no portão como demonstração de seu imparável poder invasivo.

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CAPÍTULO 88: SELVA DE PEDRA

Axel não continha sua angústia pela situação atual de Frank e Nathan vulneráveis à propagação massiva do feitiço petrificador. Andava de um lado para o outro, suando de nervosismo, o coração acelerado e as mãos geladas. Virou o rosto para a porta de ferro oxidado logo que escutou um barulhinho. A porta abriu-se e revelou ser Frank ao lado de Nathan. 

- Surpresa. Nos safamos. - disse Frank para o hóspede - Promessa é dívida. 

- Ah, graças a Deus, vocês estão bem. - disse Axel tendo uma sensação de refrigério imensa. Saíra da cela e deu as mãos a ambos em gesto amigável - Não fazem ideia do quanto foi sofrível ficar preso aqui sem saber se voltariam ou não. 

- Pra nós também. - disse Nathan lembrando-se do homem que se engajou em salvar, mas que para proteger-se acabou deixando-o sofrer o fatídico destino - Passamos pelos principais bairros, ao que parece o feitiço cobriu 100% do território.

- Mas tem uma coisa me encucando: Como as górgonas, no passado, sabiam que o feitiço se espalharia pelo vilarejo todo? Como elas tinham certeza que estavam afetando a área delimitada?

- Quando entrei na casa do Nero naquela noite... - disse Axel rememorando - ... fiquei escondido e flagrei olhando pela brecha da porta as três reunidas em torno do busto de pedra. Na execução final do feitiço, Medusa disse o nome do vilarejo. É isso, o nome do território. Nero provavelmente soube o nome atual da cidade pelos lacaios que saíam à noite. 

- Bem, vamos preparar mais uma vez o arsenal pra gente chegar com uma voadora de dois pés pra cima do Nero. - disse Frank socando a palma da mão esquerda, mostrando disposição para o combate. 

- Só que pra banhar a munição inteira com o sangue da Euríale vai levar até o final da tarde. - disse Nathan. 

- Você não vai fazer isso sozinho. O Axel tá aqui, ele dá uma força. À medida que forem terminando, me passam os lotes que eu vou carregando as armas. Seremos uma trinca imbatível, armados até os dentes pra cuspir fogo nos pedregulhos.

- Pai, essa sua empolgação súbito tá meio que me assustando. - disse Nathan levantando uma sobrancelha.

Axel repentinamente os fez estremecerem com a sensação brusca de peso na mente que o atormentava sempre que Nero entrava sem pedir licença na sua mente. 

 - Axel! - disse Frank desesperando-se. Porém, os olhos que viu não eram os de Axel.

- Axel está fora de contato, por enquanto. - disse Nero sorrindo cinicamente - Ele sabe que não pode se forçar a resistir arriscando danos cerebrais.

- O que você quer conosco? - perguntou Nathan, enfezado. 

- Não pensa que desistimos, o que é seu tá muito bem guardado. - disse Frank, encarando-o. 

- Eu pretendia usar Axel pra enfrenta-los e sair em direção ao meu mais novo palácio. 

- Peraí, que estranho, os gárgulas não podiam se expor ao sol? - questionou Frank. 

- Ele tinha um trunfo na manga. - disse Nathan - Senão de que valeria o feitiço de petrificar todos? 

Frank teve um lampejo de compreensão olhando para Nero e seu sorriso de infâmia. 

- O Behemoth. Ele é agora seu bichinho de estimação. Que bagulho mandou ele fazer pra que pudessem sair à luz do dia?

- Meu eficiente mascote está, cavando alguns túneis, mas de forma coordenada. Sendo mais preciso, cruzando linhas que constroem um sigilo que cancela os efeitos da maldição. Cortesia da minha amada Medusa. 

- Então você e a vadia peçonhenta tramaram contra o vilarejo, não foi? - especulou Frank o olhar acusador.

- Está muito enganado, Frank. Medusa me persuadiu a correr atrás de minhas ambições, nunca selamos um acordo que me prejudicaria. No momento da petrificação, senti um ódio queimar dentro de mim. Mas após o êxodo, a maldição virou uma bênção. A perdoei pela traição. Eu me dei conta das possibilidades ao meu favor de buscar o que eu almejava. Axel era um dos meus homens mais engajados, vivia de cara nos livros em pesquisas exaustivas para somar ao nosso conhecimento. Mas ele esqueceu de dividir uma pequena parte com o grupo. Escolheu se afastar, até quis nos alertar da traiçoeira armadilha das górgonas. Mas agora ele novamente está ao meu alcance. 

- O que quer dizer? O que vai fazer com o Axel, seu desgraçado? - perguntou Frank. 

- O matarei aqui mesmo, a menos que o traga até a mansão do fundador da cidade. Ele irá, querendo ou não, se juntar ao exército, pois é a nós, seu povo, que ele pertence. 

- Isso é ele quem tem que decidir. - retrucou Nathan. 

- Beleza, o Axel é todo seu. - cedeu Frank. 

- O quê? Pai, fazer as exigências dele...

- Nathan, é melhor não subestimar. Não tá com cara de blefe, à essa altura. O maldito partiu pro tudo ou nada. OK, Nero. Levamos o Axel inteirinho pra você fazer dele seu brinquedo. 

- Demorem até o fim do dia... e digam adeus à ele. - disse Nero num tom soturno. Axel retornava a si - Frank... - pôs a mão direita na cabeça, reorientando-se - Devia ter recusado a chantagem dele.

- Fui forçado a concordar pra não te ver morrendo na minha frente. 

- Vocês tem que me matar... - disse Axel - Uma cabeça humana, é disso que precisam pra reverter o feitiço. 

- Não vem com esse papo de novo, infelizmente o Nero não tá pra brincadeira. - disse Nathan. 

- Por que tá dizendo isso, Nathan? - indagou Axel - Logo você que disse com todas as letras que eu deveria ter sido morto pelo Frank.

- Águas passadas. - ressaltou Nathan - Seria útil, mas não tem que ser você. 

- Que tal agilizarmos o carregamento do arsenal e depois partirmos pra dar uma olhadinha no DPDC? - sugeriu Frank - De lá a gente segue até a mansão e... damos ao Nero o troféu dele. - olhou para Axel com certo dó pela tarefa difícil de lidar. 

                                                                                ***

Departamento Policial de Danverous City 

O trio explorava os corredores do prédio vendo diversos funcionários petrificados. Num dado momento, Frank separou-se de Nathan e Axel para verificar a sala de Hoeckler. Abriu mais a porta do gabinete que estava entreaberta. Hoeckler encontrava-se em forma de estátua olhando as mãos numa expressão de intenso horror. O detetive adentrou na sala olhando-o. 

Parou à esquerda dele, fitando-o de modo sério. Algo dentro de sua alma o fez compadecer-se dele. 

- Você pode até ser um babaca de marca maior, mas não merecia isso. 

Nathan e Axel entravam na sala de Carrie. A assistente estava sentada encostada na sua mesa com uma expressão congelada de medo elevado. Axel, que vinha bem atrás de Nathan, sentiu uma sensação de mal-estar na mente. 

- Nero vai se arrepender disso. - falou Nathan inflando sua confiança de travar a batalha pensando mais nos ganhos que nos custos. 

- Coitada. - disse Axel lamentando ver Carrie naquele estado - Vambora, o Frank não tem que ver isso... 

Mas era tarde pra que saíssem. O detetive veio entrando e logo deparando-se com a assistente petrificada. 

- Eu sei que parece estúpido perguntar, mas... Como estão os que viu? - perguntou Nathan. 

- Na mesma, claro. - respondeu Frank - Não escapou ninguém além de nós três. 

- Na maioria dos canais, as câmeras continuam ligadas mostrando pessoas como estátuas. - disse Nathan. 

- Esse vai ficar conhecido como o dia em que Danverous City parou. - disse Frank - Literalmente.

- Se animem, não é o fim do mundo, por mais que pareça. - disse Axel. 

- É porque você não sabe o que se torna o domínio do Nero daqui pra frente. - disse Nathan disposto a revelar detalhes do futuro - Pra que tenham uma noção do quão assustador é, pensem numa estátua gigantesca, aproximadamente do tamanho da de Nova York, senão maior, mas viva, mandando e desmandando nos seus servos, colocando de joelhos governos que se julgavam poderosos. Marinha, Exército e Aeronáutica completamente neutralizados. É só uma fração do pesadelo que vivi.

- Hitler ficaria orgulhoso. - disse Frank - Com toda essa neurose de raça superior dele... 

- Mas como Nero evoluiu a esse ponto? - questionou Axel. 

- É possível que ele tenha transferido sua alma. Levaram 5 anos pra construir a última fase dele. 

- O colosso de Nero... é o próprio Nero. - disse Frank imaginando - Caramba, nem consigo imaginar o terror que você e a Lucy passaram mesmo morando noutra cidade. 

- Pode apostar que eu vi o mundo inteiro se curvando a esse terror. Mas eu não me dobrei lá e não será ser agora que vou baixar minha cabeça pra aquele maldito. Quero seguir em frente lutando pra impedir que esse desastre de futuro se concretize de um jeito até pior que no meu futuro. 

- Assim que se fala. - disse Axel tocando os ombros de ambos - Juntos até o fim? 

Axel esticou sua mão direita para que Frank e Nathan colocassem as suas uma sobre e a outra.

- Até o fim. - disse Nathan pondo sua mão sobre a de Axel. 

- Até o fim. - disse Frank colocando a sua em cima da de Nathan. - Pra cima deles. - Os três juntos levantaram as mãos num movimento de união fazendo a força - Acho que tô velho demais pra isso... 

- Ah, bobagem, vamos nessa. - disse Nathan sorrindo fracamente. O trio saíra da sala, mas Frank parou para uma última observada em Carrie.

- Pai, vamos. - disse Nathan - Ela só está dormindo como todos os outros. 

Frank resolveu ir com eles para voltarem à caminhonete. Chegando no estacionamento, surgiu uma dúvida em Nathan.

- Axel que tipo de função você tinha quando trabalhava com o Nero? 

- Eu trabalhava mais pra ele do que com. - salientou Axel - Geralmente eu ficava de cara enfiada nos livros pra pesquisar lendas e mitologias, quase um trabalho de consultoria. Inclusive, foi lendo bastante uma boa parte da biblioteca do sobrenatural que descobri o feitiço pra controlar bestas primordiais. Eu fiquei de compartilhar isso com o Nero um dia antes da viagem pra Vanderville, mas... o resto vocês sabem. 

- O Behemoth já foi o primeiro, faltam Leviatã e Ziz. - disse Frank - Ele chegou a domar as outras duas?

- Eu disse que todos os ramos das forças armadas estavam neutralizados e impotentes. 

Para a surpresa deles, um seleto grupo de soldados de Nero aparecia, todos revelando-se escondidos atrás dos carros. 

- Vão, vão, eu atraso eles! - disse Frank sacando sua pistola que continha balas embebidas com sangue de górgona. O detetive disparou contra alguns deles enquanto recuava. Dois soldados vieram por trás para agarra-lo, mas Frank desvencilhou-se e virou-se para atirar na dupla mirando suas cabeças. Os soldados caíram enfraquecidos com os tiros. Nathan e Axel depararam-se com um dos soldados intencionando atear fogo na caminhonete com a ponta de sua lança em chamas. Frank avistou e correu sendo seguido por mais três soldados. Deu um tiro de advertência para o alto. Nathan avançou contra socando-o fortemente e tentando faze-lo largar a arma. O soldado quase empalou-o, mas o híbrido desviou e dera uma joelhada no peito conseguindo derruba-lo. Axel entrou às pressas na caminhonete ficando nos bancos de trás. 

Frank alcançara-os disparando duas vezes contra o soldado que incendiaria o veículo e logo entrou nele junto com Nathan que permitiu o pai dirigi-lo novamente. Os três soldados que perseguiam Frank agora se viam no encalço da caminhonete que saiu numa arrancada veloz para fora do prédio. Nathan pegara uma submetralhadora que pediu a Axel e cuspiu uma saraivada implacável de balas contra mais soldados que vinham do estacionamento. Uma lança arremessada por um dos perseguidores acertou o vidro traseiro estilhaçando-o. Axel afastou a lança fora do buraco deixando-a cair na pista.

- Cuidado aí, Axel! - avisou Frank que dobrou para uma rua. O sol estava se pondo quase que totalmente, a claridade do dia se esvaindo cada vez mais - Como foi que nos acharam, cacete? 

- Acho que sei porque. - disse Axel, a tensão estampada na face - O Nero pôs um rastreador na minha mente da última vez que me possuiu. 

- É praticamente como telepatia. - disse Nathan - Nos desviamos da rota, faz sentido ele mandar os minions. 

- Quantos truques na manga esse desgraçado tem pra sair por cima? - perguntou Frank. 

O detetive acelerava com a camionete pela rua extensiva de mão dupla. De repente, um soldado gárgula encapuzado pulou de um prédio para pousar no teto do carro. Um baque estrondoso vibrou sobre as cabeças dos três. Frank manejava o volante de forma que o carro seguisse desajeitadamente para tirar o soldado de cima. Porém, o mesmo arrancava o teto com a facilidade de se rasgar um papel. Em seguida o soldado pulou sobre o capô arrancando-o e logo afundando sua mão direita no motor. Com a perda inevitável da direção, a caminhonete batera num poste cujo a impacto a tirou do chão por uns segundos, virando-a ao lado até capotar incontáveis vezes. Axel foi jogado para fora do veículo estando desacordado. O soldado aproximou-se pegando-o e colocando sobre seu ombro. Fora embora, certo de que Frank e Nathan não sobreviveram.

No entanto, o detetive chutara com grande força a porta da caminhonete virada de ponta à cabeça para poder sair. Arrastando-se para fora do veículo com certo esforço, Frank estava com feridas na testa e no lado esquerdo da cabeça, perto da têmpora, havia um ferimento do qual escorria sangue. Para seu alívio, Nathan saía sem quase nenhuma escoriação. 

- Pai! - disse ele vindo até Frank - Você tá bem? - perguntou ajudando-o a levantar.

- Já estive pior. - disse ele tocando na ferida sangrando - Cadê o Axel?

- Boa pergunta. - disse Nathan pondo as mãos na cabeça ao não vê-lo no banco de trás. 

- Ah não... - disse Frank com uma vontade de urrar bem alto tamanha sua fúria com Nero. 

                                                                                 ***

Um pouco de água jogada no rosto de Axel foi suficiente para desperta-lo da inconsciência provocada pelo acidente. Ele deu-se conta de estar amarrado numa cadeira numa sala que parecia um quarto vazio com janelas fechadas e iluminado por um candelabro dourado. Olhou para a figura truculenta e robusta à sua frente de braços cruzados sob um manto esfarrapado.

- Onde é que eu tô? - perguntou Axel visualizando o espaço ao redor - Na tal mansão?

- O que você quer? Boas-vindas nossas? Só ganhará se jurar sua lealdade à Nero. 

- Eu lá quero ser acolhido por um bando de... monstros assassinos feito vocês. Pegaram o Frank e o Nathan também, né?

- Não, você é o que nos interessa. Uma triste notícia: Talvez o seu amigo, Frank, esteja morto. 

- Ah é... O carro foi acidentado. - disse Axel lembrando-se do momento em que a camionete perdeu o controle. 

- O híbrido é bem provável que tenha saído vivo. O mesmo eu não posso dizer do... 

- Frank não morreu! - vociferou Axel - Cala essa boca e me tira daqui, seu crápula! 

- É desse ódio, é dessa raiva que preciso pra te colocar na linha. - disse o soldado, removendo seu manto. Ele estralou os dedos das mãos como uma preparação de combate. Mas ao invés de partir para agredir Axel, o desamarrou. 

- Muito bem, agora se me der licença... - disse Axel fazendo menção de ir embora. No entanto, o brutamontes pedregoso o barrou colocando sua mão esquerda no peito dele, logo dando um empurrão forte que o lançou ao chão. 

- Você sairá desta sala como um de nós, Axel. - disse o soldado robusto - Lute. 

Axel compreendia que aquilo não passava de uma suja estratégia de Nero em reativar sua maldição. O soldado veio o pegando pela gola da camisa e o esmurrou várias vezes para em seguida joga-lo contra a parede. Axel caiu de quatro limpando o sangue que escorria do nariz surrado. 

- Não percebe que o Nero quer cura-lo dessa doença... - disse o soldado grandalhão o agarrando pelo pescoço - ... chamada... humanidade? - perguntou ele aplicando um soco no estômago de Axel que o fez cair encolhido quase com ânsia de colocar seus bofes para fora - O que foi? Medo de revidar? 

O soldado o chutava incessantemente, mas Axel logo parou sua perna segurando-a com força. O hóspede de Frank dera uma rasteira no soldado e reergueu-se com os punhos cerrando-se. 

Enquanto isso, Frank e Nathan iniciavam uma séria e ferrenha discussão.

- Não! Mil vezes não, pai! - disse Nathan, esbaforido. 

- Se não for o Axel, tem que ser eu! - retrucou Frank aos gritos. A noite já iniciava-se, o céu num tom de azul-marinho escurecendo-se.

- É insanidade, eu não vou jogar sua vida no lixo te petrificando. Eu vim pra essa época impedir que você morresse!

- Quem decide isso sou eu. - rebateu Frank - Eu dediquei minha vida inteira a manter essa cidade segura das coisas que as pessoas normais acreditam existirem só nos livros e filmes de terror. É o princípio básico da minha missão de honrar o legado. E eu quero passar o bastão pra você, Nathan. Pra que você escreva um novo capítulo na história da família. A parte que me diz respeito tem que acabar aqui.

- Não... - disse Nathan indo às lágrimas - Isso seria fugir da luta contra o Nero. Logo você que tanto quis bater de frente com ele. E aí, prefere o caminho fácil de ser morto pelo próprio filho decapitado, petrificado e usado como objeto de magia? Eu sei, por um bem maior, mas... é só uma opção ruim.

- E que grande ideia você tem, afinal? Não sabemos onde o Nero pôs a cabeça da Lucy, muito menos se ainda tá inteira. 

Ambos sentiram um tremor de magnitude moderada, podendo significar uma coisa.

- Sentiu isso? Não é daqueles tremorzinhos de sempre. - disse Frank olhando para o filho, tenso. 

- É o Behemoth. - disse Nathan - Acho que... Nero tá fazendo com que ele venha pra superfície.

                                                                                    ***

A larga desvantagem de Axel crescia a cada vez que ele limitava-se a ficar na defensiva. Com os braços protegendo seu rosto, Axel sofria vários golpes potentes do adversário. Mas no fundo já podia sentir a fagulha da maldição reacendendo.

Ele revidara com um forte soco. Viu o punho petrificando-se, porém estava começando a aceitar a inevitabilidade de sair dali como uma gárgula viva para derrota-lo. Continuou golpeando-o com toda sua força e gradualmente seu corpo era preenchido por camadas de pedra dura. Rasgou a camisa e a calça. Seus pés cresceram de tamanho devido ao aumento da crosta de pedra que tomou sua pele e consequentemente o fez crescer de tamanho em alguns centímetros. Derrubara o oponente com um chute, seus olhos vermelhando e a crosta cobrindo sua cabeça. O soldado robusto ficara no chão deixando-se levar golpes violentos de Axel que estava cego de fúria. Os golpes contínuos destroçavam-no. 

- Já chega! - gritara uma voz grave na sua mente. Axel cessou com os socos pondo as mãos na cabeça, já com a maldição restabelecida em si - A primeira etapa foi completada.

- Sai da minha cabeça! - pedia Axel cambaleando com as mãos na cabeça sofrendo com a telepatia invasora do auto-proclamado imperador - O que você quer dizer com isso? 

- Eu preciso que faça somente uma coisinha antes de ajoelhar implorando meu perdão.

- Nunca! Perdoar a barbaridade que você fez... Isso não, jamais! Você não quer ser um rei, imperador ou coisa do tipo... É um déspota! 

- Eu não vou mais aturar seus insultos, Axel. A última coisa que desejo que faça... é matar Frank Montgrow. 

- Não! - disse Axel caindo de joelhos sendo submetido à possessão psicocinética que controlava apenas seus músculos. 

Enquanto isso, Frank e Nathan detonavam com alguns soldados nos arredores da mansão. Vieram num carro aleatoriamente roubado no qual colocaram o arsenal de que necessitavam. 

- Pai, vamos nos separar. - disse Nathan correndo até Frank após derrotar mais alguns soldados - Entro pelos fundos e você... 

- Pela porta da frente. - completou Frank recarregando sua submetralhadora com mais um pente cheinho - Cuida de resgatar o Axel. É bem capaz de eu trombar com o Nero pra um acerto de contas. 

- É, mas não sabemos a extensão de poder dele. Talvez essa munição nem baste. Ah, já sei, a bazuca... 

- Não, fica tranquilo, deixa comigo. Corre pra encontrar o Axel. Eu vou ficar bem. 

Nathan olhou tensamente nos olhos do pai procurando ver se ele tinha plena certeza disso. O jovem caçador se convenceu de que ele saberia se virar pra alguém que já enfrentou até mesmo o próprio diabo. Frank se direcionou para a entrada principal da mansão. Chutou a porta dupla pisando no chão de piso em granito preto e segurando firme sua arma. 

- Nero! - chamou ele em voz alta - Aparece, seu velhaco! - destravou a submetralhadora.

- A quem devo a honra dessa ilustre visita? - perguntou Nero em seu corpo original petrificado saindo de um corredor. 

- Você é arrogante até no jeito de falar. Um plebeu que se achava da realeza. Merecia virar estátua pra ser banheiro de pombo.

- Não veio junto de seu filho pra unir forças e caírem os dois em cima de mim como cães famintos?

- Ele tá ocupado no momento. A gente pipocou seus soldadinhos. Estão caídos e inutilizados. Quero ver como tentarão fazer pra removerem as balas. O negócio agora é só entre mim e você. Se prepara que essas balas tem um aditivo especial.

- Sim, o sangue de górgona. - disse Nero - Mas receio que não surtirá o efeito desejado. 

- Como não? Seus poderes te blindam, por acaso? 

- Não, Frank. A verdade... é que aquilo que não me mata... - subitamente uma figura mais alta e vigorosa surgiu das sombras atrás separando brutalmente a cabeça do corpo - ... só me torna mais forte. - disse Nero apresentando-se em sua atual forma na estátua de gárgula do fundador da cidade. 

Frank baixou a arma atemorizado. O corpo antigo de Nero tal qual a cabeça, largada por ele, caíram sendo desprezados como lixo. Enquanto isso, Nathan cruzava um corredor da mansão empunhando a submetralhadora crendo que teria de passar por mais soldados gárgulas para chegar até Axel. Mas foi justamente Axel quem surgira de outro corredor.

- Axel... - disse Nathan perplexo ao ver que ele sucumbiu a maldição - Por que tá me olhando assim?

O ex-amigo de Nero avançou contra ele desferindo socos, mas Nathan se esquivava. 

- É você, não é, Nero? 

Axel junto as mãos para golpeia-lo por cima, mas Nathan desviou largando sua arma preferindo resolver aquilo com seus punhos. As suas pupilas cresceram anormalmente quase preenchendo as íris. A pele do seu rosto mostrava escamas de serpente. Não teve alternativa senão combatê-lo punho contra punho. Conseguira desferir um soco em Axel que fez recuar uns passos, ainda que não causasse uma rachadura na pele de pedra escura. Axel revidou socando-o forte na face fazendo-o bater a cabeça na parede. Nathan contra-atacou com m chute na barriga que não pareceu muito danoso. 

- Conforme-se com o fato de que não pode vencer! - disse Nero falando com a boca de Axel. 

Nathan posicionou-se como um lutador de boxe pronto para mais um round. Paralelamente, Frank perdia muito de sua postura confiante perante à aparência parruda de Nero. 

- Bem que eu estranhei a falta da estátua perto do portão. - disse o detetive - Mas você pensa que me mete medo nesse corpo marombado aí? Tá redondamente enganado. 

- Não disse o que seu filho estava fazendo. - disse Nero aproximando-se. 

- O Axel, foi por ele que nós viemos. Inclusive, foi muita sujeira da sua parte mobilizar seus soldados pra nos atacar e ainda por cima colocar um rastreador psíquico na mente do Axel pra vigiar nossos passos.

- Medida de precaução. Eu estava com pressa, não deviam ter feito uma pausa pra olhar um monte de estátuas decrépitas.

- Estátua decrépita é o que você vai se tornar. 

- Tem certeza? - indagou Nero, soberbo, logo infligindo sobre Frank sua vibração óptica. O detetive acabou soltado a arma caindo de joelhos com a confusão mental que sofria parecendo que estava preso a uma bolha de sabão gigante que ondulava intensamente. Nero andou a passos largos e rápidos, desfazendo a vibração e o chutando forte no rosto. Depois, o pegara pela gola do sobretudo o esmurrando várias vezes. A face de Frank ficara um estrago com os hematomas e feridas. Nero finalizou sua sequência de golpes chutando-o no peito fazendo-o ir parar um pouco longe na espaçosa sala de estar da mansão. O detetive estava caído e imóvel dando uma impressão que animava Nero - Será que exagerei na força? 

O governante de Gargóvia aproximava-se dele com passos seguros. Frank aparentava tudo, menos estar vivo. Mas foi quando a aproximação se estreitou mais que o detetive agiu sabiamente rápido. Frank virou-se mostrando duas pistolas e disparou contra os olhos de Nero com as duas ao mesmo tempo. Nero recuou urrando em cólera pela cegueira.

- Ha-ha! - riu Frank, o rosto bastante machucado com hematomas inchados. 

Um outro tremor de terra ocorrera, desta vez numa magnitude um pouco maior comparada ao anterior.

- Quem está rindo agora? - indagou Nero dando uma risada zombeteira apesar dos seus olhos destroçados pelos tiros - O Behemoth irá emergir dentro de uns 20 minutos na minha estimativa.

- Mas até lá você já vai ter virado uma pilha de escombros. - disse Frank levantando-se.

- Não estou mais cego que essa sua fé. Essa cidade está condenada! Não restará pedra sobre pedra. E vou reconstruir Gargóvia a partir das cinzas que o Behemoth deixará. A ordem a partir do caos! 

- Ensandeceu de vez. - disse Frank recuperando a submetralhadora - A maldição piorou esse seu complexo doentio de grandeza. Os amigos que tinha por perto só respeitavam você por medo, principalmente o Axel. - disparou uma pequena quantidade de balas que fizeram alguns buracos superficiais no corpo de concreto da estátua - Ou você é respeitado ou temido. Os dois não dá. É isso que você sempre sonhou, né? Ser temido e venerado como um deus. Medusa queria satisfazer seu ego esperando que você conquistasse o poder, mesmo te apunhalando pelas costas. Você e ela merecem um belo reencontro... no Inferno.

Frank disparou mais balas, atingindo o braço direito de Nero. 

- Eu estive controlando Axel e Behemoth até agora... Mas acho que terei de escolher. 

No corredor onde Nathan duelava com Axel, houve uma brusca surpresa. 

- Nathan... - disse Axel voltando a si. Viu o híbrido caído aos seus pés com o rosto machucado, porém as feridas se regeneravam instantaneamente. 

- Axel... Você voltou. - disse Nathan reerguendo-se - Ou quase. 

- Tem que ir ajudar o Frank... Nero vai acelerar o Behemoth pra que ele destrua a cidade. Me desculpa...

- Não tem nada pra se desculpar, Axel. Fica aqui, quando tivermos terminado... 

- Vocês cortarão minha cabeça pro feitiço de reversão. 

- Não. - respondeu Nathan, categórico - O papai se prestou a sacrifício também com o pretexto de morrer pela cidade honrando o legado da família, mas neguei isso com todas as minhas forças. 

- Eu não tenho mais salvação, Nathan. Olha pra mim! 

- Mas eu falei que não tem que ser você! - vociferou Nathan - Talvez deva ser eu. 

O jovem caçador não perdeu tempo com discussão e correra para auxiliar o pai. Frank esgotava a munição da metralhadora detonando aos poucos o corpo de Nero que mantinha sua confiança alta mesmo sem enxergar. 

Nathan correu saindo pelos fundos e seguiu para além do portão derrubado, ignorando os corpos de soldados gárgulas que liquidaram. Abriu o porta-malas e olhou para o lança-foguetes. Pegara-o e correu de volta à mansão. 

A munição da submetralhadora de Frank foi totalmente exaurida. 

- De qualquer forma, você não pode me pegar. A menos que tenha sentidos ampliados. E aí, consegue?

- Acha que há tempo pra brincar de esconde-esconde, seu idiota? O Behemoth está mais próximo. 

Axel surgira na sala avançando para atacar Nero. Pulou sobre ele o esmurrando afoitamente.

- Axel! - gritou Frank embasbacado ao revê-lo como gárgula. Nero e Axel se engalfinhavam no chão como dois leões selvagens brigando ferozmente. Nero deu um contra-ataque e levantou-se, porém Axel reerguia-se também e o agarrou por trás prendendo-o com máxima força. 

- Pai! - chamara Nathan entrando na mansão pela porta da frente - Pega! - jogou a bazuca ao chão, a arma deslizando no piso até chegar às mãos de Frank - Peraí, Axel!? Não pode ser...

- Atira! - pediu Axel desesperadamente - Atira, Frank! 

- Vou fazer com que se arrependa disso, seu herege! 

- Sua sede de poder te enlouqueceu, não percebe isso? Desde que romperam meu selo e eu voltei a caminhar como um ser humano, apesar de não ser mais humano, esperei por esse momento, o momento de te colocar no devido lugar que você merece! Ninguém tinha coragem de questionar suas ordens, nunca fomos seus amigos, mas seus empregados que diziam "sim, senhor" e "não, senhor". Agora é a hora de impedir que isso chegue num nível ainda mais insano... nem que seja levando você comigo! - disse Axel reforçando sua imobilização em Nero que lutava para se desprender.

Frank e Nathan entreolhavam num misto de angústia e frustração. 

- É o único jeito, pai. - disse Nathan, os olhos marejando - Sabíamos que no fim das contas era esse o caminho.

- Depressa, Frank! Atira! - gritava Axel num hercúleo esforço para manter Nero preso - Juntos até o fim!

Amarguradamente, Frank mirou a bazuca em Nero e Axel. 

Uma lágrima caiu de seu olho esquerdo. O direito olhava para a mira.

- Você foi incrível, Axel. Nathan e eu somos muito gratos, nunca vamos te esquecer, amigo. 

Apertou o gatilho lançando o míssil que saiu faiscante e veloz de encontro aos dois gárgulas. O tiro acertou-os em cheio e em peso, provocando uma explosão tremenda de fogo, fumaça e inúmeros pedaços de pedra subindo pelos ares e caindo aos montes no chão. Nathan baixou a cabeça, enxugando os olhos que pareciam não querer parar de lacrimejar. Frank estava ainda pior. Mas entendeu que o sacrifício inevitável fazia parte da missão desde o início de uma forma ou de outra. 

Frank largou a bazuca no chão reparando em algo. Caminhou para perto da entrada do corredor. 

- Olha só que hilário... - disse ele pegando a cabeça do corpo original de Nero - A esperança. - mostrou para Nathan que aliviou-se com a existência de um item essencial para reverterem a maldição.

                                                                               ***

Os dois foram para a sala de jantar e na longa mesa Nathan pusera a cabeça de Nero. O jovem sacou seu canivete fazendo um corte na palma da mão direita, o que ligeiramente chamou a atenção de Frank.

- O seu próprio sangue?! 

- Tudo o que restou do sangue da Euríale eu usei pra nossas munições. - disse ele pegando um pouco do sangue com a mão esquerda para desenhar o símbolo de ouroboros. Após terminado, pigarreou para começar a recitar o feitiço.

Frank aguardou pacientemente o término da declamação. Os olhos da cabeça de Nero brilharam intensamente em vermelho. A mesma simplesmente reduziu-se em pó de cima à baixo para a surpresa do detetive. 

- E acabou. - disse Nathan - Mamãe disse que no feitiço de reversão a cabeça, seja do humano ou da górgona, vira poeira. 

- Bem, agora vamos cuidar de limpar a bagunça lá fora... 

Um novo terremoto cortara a fala de Frank, este bem mais forte que todos os outros anteriormente. Dois lustres caíram sobre a mesa e se espatifaram. Nathan segurou-se na mesa e Frank na parede até o sismo cessar. 

- Que merda é essa? Cheguei a pensar que o controle do Nero sobre o Behemoth tinha sido desfeito assim que ele morreu. Se ele tá morto, como a desgraça ainda tá subindo pra cá?

- Enfeitiçar uma besta primordial é como pré-programar seu modo de agir do começo ao fim até uma nova ordem ser dada. - explicou Nathan - Não se apaga simplesmente com a morte de quem controla. Não até ele cumprir a ordem.

- E agora? Como vamos parar uma besta colossal de milhares de anos? - perguntou Frank aborrecido. 

- Não tem porque se preocupar. Axel, durante nossas conversas, me contou como se desfaz. Decorei o encantamento achando que viria a calhar numa hora dessas. Não foi difícil memorizar, sabe... ser meio sobrenatural tem dessas.

- Mais um motivo pra ter orgulho de você, deve ter tirado altas notas na escola - disse Frank dando um sorriso fraco, mas voltando à seriedade com seu luto por Axel - O que a gente tá esperando? Vambora. Você dirige.

Ambos pegaram o carro e partiram em disparada para um ponto fronteiriço em que a fenda externa se estendia. Ao longo do caminho viam as pessoas retornadas ao normal, as luzes dos postes acesas. Todos estavam confusos imaginando que o dia virou noite num piscar de olhos, mas logo se recordavam do fenômeno de petrificação. Chegaram para a área de solo meio rochoso e meio gramado. Saíram do carro correndo em direção à fenda. 

- Como sabe que é aqui onde ele vai emergir? - perguntou Frank ficando à poucos metros da rachadura na terra que se espaçava a cada tremor de alta magnitude.

- Eu tenho algum tipo de sensor que capta vibrações na terra... - disse Nathan. 

Os tremores recomeçaram e mais intensos. Nathan tentou manter-se equilibrado olhando o abismo. Recitou o feitiço em latim quando viu uma luz alaranjada despontar do escuro e crescer em ascensão. 

- O bicharoco tá vindo... - disse Frank temeroso, a luz começando a iluminar seu rosto. 

Nathan terminou de falar o encantamento que quebrava o controle de Nero. 

- Pai, se afasta! - disse ele recuando a largos passos quase aos pulos. 

O Behemoth emergiu sua cabeça para fora. Uma serpente robusta e gigantesca parecendo ser feita de aço com chifres nos dois lados da cabeça que possuíam linhas luminosas em laranja parecendo néon mas na verdade eram como ferros em brasa após forjados. Sua mandíbula era triangular que compreendia uma arcada dentária com múltiplas presas nas duas fileiras. A besta mergulhou de volta para o subterrâneo e o tremor diminuía conforme descia. Frank não ocultava seu estarrecimento. 

- O que foi, pai? - perguntou Nathan. 

- Nada demais, eu... só queria ter tirado uma foto pra guardar de lembrança.

Nathan deu uma risadinha e caminhou de volta ao carro ao lado de Frank que certamente nunca esqueceria do que acabara de ver.

                                                                            ***

Departamento Policial de Danverous City

Carrie via nos noticiários na sala de Giuseppe pela TV vários repórteres comentando o fenômeno estranho que abalou a cidade. 

- Essa calamidade sobrenatural pode ter durado um único dia... - disse Giuseppe ao lado da assistente de Frank - ... mas as consequências vão reverberar por muitas décadas. 

- Não se depender de mim. - disse Hoeckler entrando na sala.

- Superintendente?! - disse Carrie - O que faz aqui? 

- Espere, o que o senhor quis dizer com... "se depender de mim"? - questionou Giuseppe, intrigado. 

- Atuo como presidente oficial de uma organização paramilitar e científica ultrassecreta que tem como papel fundamental a manutenção da segurança nacional no que diz respeito a manifestações paranormais. - disse Hoeckler adentrando na sala e se aproximando - Defini bem? Não quero fornecer mais detalhes do que você precisa, Aristone. 

Giuseppe estava sem palavras com a revelação. 

- Ué, porque está contando isso à ele... assim tão... naturalmente? - perguntou Carrie. 

- Sabia disso o tempo todo, Sra. Wood?! - disse o diretor olhando-a com repreensão. 

- Está tudo bem, não há mais segredos entre nós. Quebrei essa corrente de ocultação, como seu chefe tenho o dever de não encobrir certos fatos... especialmente quando seu mais bem pago funcionário tem relações com o que a minha fundação é especializada, não com tamanho igual de conhecimento, mas ele dá pro gasto. A E.S.P. está vivendo uma nova era com minha gestão, mas os protocolos de contenção seguem os mesmos. 

Frank chegava de mansinho ouvindo o discurso de Hoeckler atentamente. 

- O Conselho de Segurança deveria ser notificado da existência dessa organização. - afirmou Giuseppe.

- Infelizmente nossos conselheiros de segurança pública não são confiáveis pra impedir que essa informação vaze ao público. Nem pense em contata-los, se não quiser ir pro olho da rua. Mas confio em você, Aristone. Pode-se até dizer que você, eu, Carrie... e o Frank... formamos uma equipe. 

O detetive parou bem atrás dele cruzando os braços sem que ele percebesse. Carrie reprimiu uma risada comprimindo os lábios.

- Sou parte da equipe como o único caçador independente da cidade... mas eu só dou pro gasto?

Hoeckler virou-se rapidamente surpreso com a vinda sorrateira do detetive. 

- Frank, que bom vê-lo depois do que aconteceu. Desculpe se ofendi com...

- Não, você foi sincero. Tentou me elogiar, não saiu como eu queria, mas pelo menos tentou. 

Carrie partiu para o abraço apertado com o detetive. 

- Como você e o Nathan contornaram essa loucura de hoje? - perguntou ela bastante curiosa. 

- Já já te conto tudinho. - disse Frank em voz baixa - Diretor, fico feliz que esteja bem. 

- Espere Frank, se irá contar para a Sra. Wood, então... terá que contar pra nós dois também. 

- Apoiado. - disse Hoeckler olhando para o detetive junto à Giuseppe. Frank deu um sorrisinho nervoso.

- Então sentem que lá vem história longa. 

- Conta só o básico, resume em 20 palavras ou menos. - disse Carrie entortando a boca para que apenas Frank ouvisse. 

- Somos todo ouvidos. - disse Hoeckler pegando uma cadeira giratória e sentando-se de frente para o encosto como se estivesse num bar com amigos.

Frank respirou fundo antes de começar a narrar a história que começou desde o ano anterior.

- Bem, do início mesmo, foi quando eu caí da fenda externa e... 

                                                                                      ***

Na manhã seguinte, Frank estava com Nathan em uma área deserta de um parque próximo do bosque. O jovem caçador fizera uma lápide de pedra escrevendo o nome de Axel e a frase "amigo guerreiro". 

- Tem certeza que não vão vandalizar ou remover? - perguntou Nathan. 

- Mais fácil ignorarem. - disse Frank - Ele vai fazer falta lá em casa. 

- Espero que tenha ido pra um lugar de paz infinita. O sacrifício dele não foi em vão, é isso que o torna valoroso pra nós. 

- Certo eu tô quanto a parte do sacrifício, mas... se ele partiu pra uma melhor, eu já duvido.

- Acha que... Axel caiu no Inferno? 

- Não. Mas deve estar por aí, seu espírito vagando, ainda tentando se desapegar desse mundo perdido. - Frank voltou-se para o filho - De mochila nas costas... É o que eu tô pensando que é?

- Desculpa, pai... Mas meu trabalho aqui acabou. 

- Corta essa, você pode... preencher lá em casa o vazio que o Axel deixou. 

- Não, é minha decisão definitiva. Eu não tô à altura do legado, se é que conseguiria alcançar um dia. Tem uma coisa pra dizer e não vai te deixar nem um pouco feliz. O lado bom ou nem tanto é que meu futuro continua existindo. Nero continua lá reinando em absoluto num governo mundial tirânico. É como se aqui fosse um outro mundo coexistindo com o meu. 

- Para com isso, não vem com essa conversinha de que esse novo mundo, esse novo futuro, não é seu lugar.

- E não é. Só que... - disse Nathan, seus olhos lacrimejando - ... eu não posso voltar.

- Como assim? Não tô entendendo... 

- Eu não quero e nem posso voltar. Mas não posso dar continuidade à minha vida nessa realidade em que eu me sinto um intruso e ainda correndo o risco de ser punido como o John foi. 

- Do que você tá falando, Nathan? Dá pra esclarecer? - perguntou Frank sendo acometido por um nervosismo.

- O Expresso Temporal foi criado sob regras por um grupo de bruxos que queriam transcender as leis da física muito antes de Einstein formular a teoria da relatividade. Uma dessas regras... - Nathan cerrou os dentes baixando a cabeça - ... restringe o viajante que volta ao passado pela primeira vez. Em outras palavras, simplificando, se um viajante vai para o passado ele deve continuar embarcando para o passado, impossibilitado de ir ao futuro. 

- Não... - disse Frank atônito, balançando lentamente a cabeça - É mentira. 

- É a mais pura verdade, pai. - disse Nathan, os olhos transbordando - John usou o que tinha de areia do tempo para ir a 1972 e depois voltar pra 2036. Mas ele foi perseguido por gente misteriosa e não mentalizou a época quando iria escapar pro futuro, acabando por chegar em 2001, ele diz na carta.

- Por isso mesmo que voltei pra época certa quando fui tragado pelo redemoinho de areia... Eu tive em mente o dia, o mês e o ano e até o momento. No caso do John ele tava tão desesperado que não pensou direito. E pensar que eu iria comprar aquela ampulheta com as areias do tempo no antiquário... 

- É, pai, não dá pra fugir dos nossos destinos. Me deixa ir, por favor. 

A expressão séria de Frank ganhava ares de tristeza. Contendo a emoção, o detetive optou por não repreende-lo mais.

- Você e a Lucy foram as melhores coisas que aconteceram na minha vida em anos. 

Ambos deram um abraço forte e longo. Frank perdeu seu controle das lágrimas e as enxugava.

- Tem mesmo absoluta certeza de que quer passar o resto da vida num trem indo pra lugar nenhum?

- Não há mais nada pra mim aqui, eu tô satisfeito em ter conhecido você... Você é meu herói, Frank. 

O detetive ao ouvir aquilo baixou a cabeça fechando os olhos na tentativa de suportar a dificuldade de superar aquela despedida após tantas aventuras lado à lado que pareceram apenas o começo do que gostaria de vivenciar com ele. 

- Segue em frente, Nathan. Tivemos uma bela jornada juntos. - disse Frank tocando-o no ombro.

Nathan, numa incontinência emocional, assentiu. Retirou algo do sobretudo. 

- Toma, guarda isso como recordação. - disse ele mostrando um colar com um pingente de prata que tinha um caduceu talhado em relevo - Era da mamãe. - entregou-o ao pai que pegou o colar olhando com os olhos encharcados. 

- Ainda resta uma coisa. - disse Frank relembrando uma dúvida pertinente - Não disse como eu morri no seu futuro. 

- Ah sim... Resumidamente, a mamãe foi forçada pelo Nero a te petrificar e você insistiu pra que ela lutasse pela própria vida e pela minha. Do Axel eu não sei, não tenho ideia do que aconteceu a ele, mamãe também não.

Frank se satisfez com a revelação, novamente olhando para o colar que serviria como um singelo presente à Lucy. 

- Vou guardar com todo o amor que eu senti por ela... e por você. Adeus, filho. 

Nathan fez um meneio positivo de cabeça, logo virando-se para tomar seu rumo... que não o levaria a destino algum. 

                                                                            ***

O jovem caçador havia tirado o resto do dia para se preparar para a viagem bem como pagar as reservas de hotel que devia. À noite foi à ferrovia para invocar o Expresso Temporal e partir para a penitência de envelhecer dentro de um vagão de trem até a morte natural leva-lo ou através da fome. Desenhou o sigilo invertido para ir a um futuro no qual jamais desembarcaria. Preencheu o símbolo com o resto da areia negra que John lhe dera. Acendeu o isqueiro e levou a chama ao sigilo que incendiou. Esperou a névoa se formar, porém, um vento forte soprara apagando o fogo no sigilo. 

- Mas o que... - disse Nathan estranhando. Sentiu o ar gelar drasticamente - O que é isso?

Subitamente quatro figuras sombrias pousaram no chão cercando-o. 

- Quem são vocês? - perguntou Nathan encarando-os. 

- É bom que mais de cem mil anos de espera tenham valido a pena para desencadearmos o nosso propósito. - disse um deles que parecia ser o líder.

- Do que está falando? - perguntou Nathan encarando-o raivoso. 

Os quatro trajavam armaduras velhas e enferrujadas com capas rasgadas e esburacadas. Usavam também elmos negros que ocultavam seus olhos, mas deixando à mostra bocas horrendas parecendo cadavéricas. O suposto líder veio aproximando-se de Nathan que se posicionou, tenso, para defender-se. No entanto, o indivíduo estranho e assustador se aproximou com uma velocidade sobrenatural. Atravessou sua mão direita enluvada no peito de Nathan que boquiabriu sentindo uma onda de toxicidade agressiva invadir seu organismo. Num ritmo acelerado, seu corpo apodrecia-se como um processo de decomposição instantâneo. Ele largara o corpo de Nathan cujas órbitas oculares estavam vazias.

- A contagem para o despertar do Grande se iniciou. - disse o cavaleiro sombrio numa tom de voz cavernoso.

                                                                                -x-

                                                               FIM DA 6ª TEMPORADA

*A imagem acima é propriedade de seu respectivo autor e foi usada para ilustrar esta postagem sem fins lucrativos.

*Imagem retirada de: http://tavernadoarcanum.blogspot.com/2016/06/estudo-de-criaturas-gargula-uma.html

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