Spock, um cão muito estranho
Se você está lendo esse diário e esperava que começasse com a famosa frase clichê "Querido diário", foi mal decepciona-lo. Eu odeio estar escrevendo isso. Por muito tempo comecei acreditando numa loucura da minha cabeça, mas depois as coisas foram vindo à tona e... eu fiquei sem saber se ria histericamente ou se surtava de ódio a ponto de cometer uma atrocidade.
Todos os eventos aqui listados resumem essa história em poucas linhas, não quero cansar ninguém. Espero que fique compreendido. Se quiser detalhes, te dou o endereço do hospital onde fica meu quarto na ala psiquiátrica.
Dia 1 - Spock é meu vira-lata com distúrbios alimentares.
Ele só farejava as rações e depois ignorava, como se nem fosse comida. Isto desde a adoção. Eu peguei ele na rua, só pra constar, a contragosto dos meus pais. Fizemos exame de calazar: Tudo OK. Vacina anti-rábica: Confere. Cadastro no pet-shop: Feito. Mandei gravar o nome dele num pingente de metal em formato de osso na coleira. Aquele cachorro era especial, podia sentir.
Dia 2 - Spock achou um rato morto.
Sabe como são essas coisas de cachorro né? Eles são meio estúpidos às vezes, mas tudo bem. Ele matou um ratão bem gordo e o flagrei comendo quase inteiro, até tive que arrancar da boca dele. Fiquei o dia inteiro no maior nervoso, pensando: "Já era, a merda do rato vem do esgoto, o Spock já era, vou perde-lo!". Queria muito bem à esse travesso. Tinha medo de perde-lo pra envenenamento. No dia seguinte, porém...
Dia 3 - Spock engordou.
Ele era um vira-lata que fazia brincadeiras e outras manias como qualquer outro cachorro, mas tinha lá suas peculiaridades. O bichinho não morreu, felizmente. Pelo contrário, ganhou uns quilinhos. Na hora da tosa, me falaram que o pelo mudou o tom um pouco nas pontas para um cinza (Spock era marrom escuro nas costas, na cauda e cabeça com bege na barriga e nas patas). Podia jurar que durante todo o resto do dia essa cor no pelo aumentava.
Dia 4 - Spock estreou um novo visual.
Mudança de pelo espontânea?! Como assim? De uma cor passou para outra da noite pro dia. Ele ainda rejeitava comida de cão, só pensava em comer carniça, não importava, ratos pequenos, pombos... sobre pombos, eu encontrei um morto na casinha dele que ficava em frente à varanda. Minha mãe deu uma bronca retumbante em mim reclamando das porcarias que ele trazia. Um pouco depois disso, notei penas no Spock. Sim, penas de pássaro entre os pelos. Que loucura...
Dia 5 - Spock deixava de ser Spock.
Não fazia a menor ideia. Queria achar uma resposta, até rezei pra Deus curar aquele animal seja lá qual fosse a condição rara dele. O organismo dele é tolerante à carne pútrida. Eu dei leite e ele vomitou na hora. Mas continuava firme e forte como se nem parecesse doente. O pelo cinza ia sumindo, dando lugar a um branco com amarelado nas patas e na cabeça. Os olhos dele mudaram de cor também. Nesse ponto eu já não ficaria tão à vontade com o Spock como antes. Senti medo.
Dia 6 - Spock desenterrou um "tesouro" no quintal.
Ouvi minha mãe gritar e saí correndo do meu quarto numa velocidade insana... tipo, num segundo já estava lá ao lado dela perguntando o que foi com o coração quase saindo pela garganta. Era o Spock, tinha que ser. O malandrinho cavou um buraco profundo e arrastava uma coisa que exalava odor carniceiro puro, usei minha camisa como "respirador" improvisado e fui até ele. Ele carregava dois cadáveres decompostos de filhotes e mastigava o que ainda sobrava de carne. Não para tira-lo, senão ia levar uma mordida das brabas. Por que minha mãe se desesperou tanto?
Dia 7 - Spock ficou agressivo.
Na hora do café, eu e minha mãe conversávamos sobre o cachorro esquisito que por minha culpa causava problemas para nós, tanto que recebemos queixas dos vizinhos pelo mau cheiro. Nem sei mais o que o Spock significava pra mim. Latia quando eu me aproximava dele e a pelagem ficou mais dura, não mais com aquela maciez que o tornava fofinho. De fofinho, ele não tinha mais era nada. Então... Minha mãe quando criança, ela sempre morou nessa casa, tinha o costume de enterrar os filhotinhos que morriam de vermes. Spock quebrou a "maldição" como o mais durável cão da casa. Ela criava gatos e cães de estimação e sepultava todos no quintal. Concordamos em não tocar no Spock pela agressividade dele quando tentávamos impedi-lo de violar os túmulos e comer.
Dia 8 - Spock não é um cão.
Pobre da minha mãe... apertava o peito vendo ela chorar com tanta nostalgia misturada a tristeza de ver aquilo, seus belos gatinhos retirados dos locais de descanso eterno por um cachorro malvado que nem podíamos sequer mais tocar pra fazer carinho. Liguei para o controle de zoonoses, o Spock mordeu o vizinho. Porém, quando chegaram, não entendi, fiquei confuso... Me disseram que não havia cão nenhum. Que diabos era isso? Perguntei exatamente isso aí. Minha mãe acariciava um gatinho com as mesmas cores alteradas do Spock. Duas horas passaram e um carro da ambulância veio socorrer o vizinho que morreu antes de receber atendimento. A mordida foi profunda, bem no ante-braço, mas a causa da morte foi paralisia súbita do coração. Cadê o Spock naquela hora? Depois tudo clareou. Os 19 gatos sumiram, suas sepulturas violadas... minha mãe com um gatinho da mesma cor do Spock... O que ela me disse enquanto brincava com ele gelou o meu sangue e me motivou a procurar a ajuda adequada pro que eu estava desenvolvendo.
"Desculpe falar uma coisa dessas só agora... mas os gatos não eram gatos e os cães não eram cães. Eram outra coisa... Por isso me livrei deles antes que crescessem e matassem seus avós."
Naquele instante, ela gostaria de esfolar o gato. Agora entendo porque ela se assustou com o Spock chafurdando nos buracos. Não era pelo desrespeito à memória dos gatinhos, como eu acreditava. Tinha pena... mas fazer o quê? O necessário ela fazia, por mais doloroso que seja.
Mamãe sabia o que realmente são essas criaturas disfarçadas de animais. Pedi pra ela desenhar e o Spock-gato correu direto para a rua, eu deveria ir atrás dele depois. Ela me mostrou e posso dizer que é uma coisa excelente para me manter acordado à noite. Por todas as noites.
*A imagem acima é propriedade de seu respectivo autor e foi usada para ilustrar esta postagem sem fins lucrativos.
*imagem retirada de: http://paranormal.lovetoknow.com/Is_the_Chupacabra_Real
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