Frank - O Caçador #48: "Som, Sombra e Fúria"
A porta da loja do antiquário foi aberta batendo no sino cujo barulho fizera o vendedor de meia-idade atrás do balcão se empertigar contente com a vinda de um cliente trazendo uma espada embainhada. O homem meio careca e de barba grisalha não muito volumosa ajeitou seu óculos e o recebeu educadamente.
- Bom dia. É o que imagino ser? Faz tempo que ninguém vem para fechar uma troca.
- Olá, bom dia. - disse Frank - Imaginou certinho, tô aqui pra isso mesmo. - colocou a espada sobre o balcão - Quero me desfazer dessa valiosa espada oriental ganhada num leilão da internet em troca de um artefato com valor compensador. Uma troca equivalente, melhor dizendo.
- Depende do que valor significa pra você. - disse o homem, de olho na espada.
Frank, a fim de provar que sua oferta valeria a pena, retirou a espada da bainha.
- Com essa lâmina dá pra aposentar as facas pra quando rolar aquele churrasquinho de domingo. - disse Frank - Só pra que o senhor tenha uma noção, ela pertenceu a um samurai mágico da época do Xogunato Edo que aprisionou as almas dos inimigos nela depois que os empalou. Acredita?
- Bem, você acreditaria que... - disse o homem pegando algo embaixo - ... nesta ampulheta estão as areias do tempo? - perguntou, pondo a grande ampulheta dourada no balcão que de cara fascinou o detetive.
- Areias do tempo? Olha, ela é lindona, sinceramente. Folheada à ouro?
- Banhada. - disse o vendedor, lacônico, arqueando as sobrancelhas - 800 dólares.
- Quê? Tudo isso? Que tal fazermos assim: Eu a levo para um especialista em autentificação, se ele disser que sim, o pagamento sai maior que a oferta.
- Está insinuando que a ampulheta é falsa?
- O senhor também desconfiou da minha espada, notei só de olhar.
O sino foi ouvido tocando, mas não eram clientes. O vendedor estremeceu e Frank virou-se. Um grupo de três assaltantes mascarados sacavam suas armas e apontaram para os dois.
- Tá legal, sem drama, podem ir passando seus pertences e o que tiver no caixa.
- A gente tá no meio de uma negociação aqui. Por que vocês não voltam outra hora? - perguntou Frank.
- Idiota, estão armados. - disse o vendedor, as mãos erguidas.
- É, já percebi. O que não me impede de chutar os traseiros desses arrombados.
Os bandidos riram da cara de Frank que não perdeu em investir contra o primeiro que apontava sua arma para ele. O detetive segurou o braço direito do criminoso, entortando-o dolorosamente. Os outros vieram sacando suas armas, mas Frank chutou um deles forte nas partes íntimas e o outro ameaçou atirar. Frank largou no chão o primeiro que sentia forte dor no braço e rapidamente agarrou o braço do último que estava prestes a derrotar. Porém, a arma disparou acidentalmente. O vendedor se abaixou para o balcão e o disparo atingiu o compartimento de vidro superior da ampulheta exatamente onde ficava armazenada a areia. Frank o socara duas vezes no rosto e o finalizou com um chute na barriga.
- Fuja daqui! - disse o vendedor para Frank. A areia pareceu criar vida própria ao se mover para fora do vidro e se amontoar densamente formando uma espécie de redemoinho que se direcionava até o detetive - Fuja! - gritou o vendedor - Viu como eu não estava mentindo? Não me deu tempo de explicar!
O redemoinho engoliu Frank e depois pareceu reduzir de tamanho como se os grãos desaparecessem até que não restasse mais nenhum. O vendedor, em choque, pensou para aonde detetive teria ido parar.
Frank foi cuspido pelo redemoinho que logo se desfez junto à areia quente do solo. O detetive levantou-se e pôs a mão direita na testa para ver melhor o que se estendia à frente no território. Aproximou-se e viu uma cidade poucos metros abaixo daquele morro. Olhou à sua direita uma placa com o nome da cidade, Stonkville, com o número estimado de sua população.
- O que ele disse sobre areias do tempo faz sentido agora. - disse Frank, pasmo - O melhor e pior da minha vida: Preso na versão raiz do Texas faroeste.
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CAPÍTULO 48: SOM, SOMBRA E FÚRIA
Caminhando por uma rua praticamente deserta de Stonkville, Frank atraía olhares atentos, desconfiados e estranhos dos poucos transitantes. Suando bastante, o detetive reduzia seu ritmo procurando uma sombra para se proteger do sol escaldante da região. Podia crer que era por volta das três da tarde. Um vendedor parara próximo à ele com uma caixa contendo leques e abanadores. Frank quis ignora-lo e seguir em frente, mas o comerciante se pôs diante dele.
- É época de seca e o calor está de matar. Se puder comprar um desses abanadores, ficaria agradecido em ajudar. - disse o jovem vendedor, mostrando com entusiasmo seus produtos.
- Desculpa amigo, acho que... - olhou para sua esquerda vendo um bar aberto - ... vou me refrescar molhando a garganta. - disse ele, dando uma batidinha no ombro esquerdo do rapaz - Boas vendas.
- O-obrigado. - disse o comerciante, estreitando os olhos ao analisar a aparência de Frank.
Frank adentrou no bar empurrando as duas portas e, diferente do que previa, não chamou tanta atenção dos homens de bota de couro e chapéu, a maioria deles se divertindo com cartas de baralho entre uns tragos de cigarro e goles de bebida. O barman, um homem elegante com um bigode enrolado e vestido colete preto pr cima de uma camisa branca de mangas longas, logo sorriu educado para Frank que sentou-se na cadeira alta perto do balcão.
- Percebo que é um forasteiro, reconheço sempre que vejo. - disse o barman, enchendo um copo - Assim como todos, não está acostumado com o clima infernal dessa cidade. Mas o calor é o menor dos problemas por aqui. - empurrou o copo para Frank - Não quer sair desidratado, né? Por conta da casa.
- Não, nada disso, é por minha. - disse Frank, quase tirando sua carteira, porém botou-a de volta ao lembrar que as notas de dólar do presente possuem diferenças visuais com as daquela época e preferiu aceitar a fortuita oportunidade de tomar um líquido de graça para amenizar a sensação escaldante - Pensando bem, vou aceitar sua gentileza, mas no momento não quero saber de álcool. Uma aguinha cairia bem agora, se não for pedir muito. - fez uma pausa enquanto o barman pegava a água - Não estranhe, sou um turista meio diferente.
- Tão diferente que recusou o melhor uísque de Stonkville no melhor bar da cidade. Ninguém faz isso mesmo debaixo de uma quentura horrível. Você é um xerife bem exótico. Tome.
- Xerife? - indagou Frank, pegando o copo e bebendo em seguida - Não, tá enganado. Se eu te contasse não acreditaria, se eu te explicasse não entenderia. Apesar da minha roupa, não sou xerife nenhum.
Um mensageiro da polícia entrou alardeado no bar, ofegando. Todos direcionaram suas atenções à ele parando tudo o que faziam. Frank deu uma olhadela pra trás e virou-se. O jovem de cabelos lisos que caíam em franja na testa estava pálido como se um desastre tivesse ocorrido ou estava prestes a ocorrer.
- Trago péssimas notícias... O xerife Ramón... desapareceu. Não foi visto desde a noite passada.
- É obra do El Sombrerón! - bradou um dos homens.
- Era questão de tempo esse miserável pegar o xerife. - disse outro, revoltado.
- Quem é o sujeito? - perguntou Frank - Parece um codinome de pistoleiro temido e respeitado.
- El Sombrerón é um fora da lei que pensa estar acima da lei. - disse o barman, limpando o balcão - Um metido a justiceiro que afugenta bêbados encrenqueiros, assaltantes, valentões e apostadores viciados e trapaceiros, os que ele mais costuma perseguir. Quando passa do limite, some com as vítimas fazendo sabe lá o quê. Ninguém o entende direito o que ele realmente tem feito pela cidade.
- Peraí, você tá defendendo um sequestrador? - perguntou Frank.
- Ele ao menos faz alguma coisa pra manter essa cidade segura em uma semana o que o xerife Ramón mal consegue num dia. Além do mais, o xerife se encaixava no perfil favorito das vítimas dele, ou seja, apostava alto nas jogatinas com métodos sujos, uma vergonha. Em tempos como esses, fazer justiça com as próprias mãos tem um valor incompreendido.
- Não, não. - discordou Frank - A lei tem que se aplicar a todos. A incompetência do xerife não justifica a conduta desse justiceiro sequestrador. - ouvindo o disse-me-disse elevado, ele resolver se intrometer na discussão - Calma aí, pessoal, fiquem tranquilos, a menos que vocês estejam na lista do bandido.
- Quem é você? - perguntou um homem grandão levantando-se - Não parece ser daqui.
- Pareço nada, eu não sou mesmo. Olha, sou detetive profissional, quero ajudar o povo dessa cidade a superar essa crise. Preciso que confiem em mim, começando por falar desse tal de El Sombrerón.
- Ele tem um chapéu mexicano enorme e sempre vem num cavalo preto tocando violão. - disse o mensageiro - Ninguém que tenha escapado viu o rosto dele, por isso nos cartazes não está tão fiel. - tirou do bolso da calça um papel enrolado e o entregou à Frank que analisou o cartaz de "Procurado".
- Tá de olho na recompensa, né? - indagou um dos frequentadores perto de Frank e olhando o desenho enquanto palitava os dentes - Com o xerife fora de cena, tem um monte de voluntários querendo entrar no páreo. - quebrou o palito e cuspiu uma parte no rosto de Frank que procurou não reagir agressivamente - Não vai pensando que é moleza.
- O que está dizendo? É uma competição que vocês preferem? Tudo bem, mas a cidade ainda necessita do xerife, ele é o pilar de toda a lei e a ordem aqui. - disse o mensageiro num tom firme - Como porta-voz do mais alto cargo de autoridade na segurança pública de Stonkville, eu declaro aberta a eleição para novo xerife! - decretou ele, empolgando-se - Eu sempre quis dizer isso. Quem se voluntaria pra começarmos agora mesmo?
Apenas três homens levantaram suas mãos, incluindo o que havia provocado Frank. O detetive pensara num modo da votação transcorrer sem truques ou trapaças e levantou hesitantemente seu braço direito.
- O cara novo também?! - reclamou um - Não falou que era só um detetive?
- Não um detetive qualquer, modéstia à parte. - respondeu Frank, dando um sorrisinho de canto.
- Quatro candidatos, ótimo. - disse o mensageiro - Alguém tem um papel pra fazermos o sorteio que não seja o cartaz? - perguntou, tomando-o das mãos de Frank - Não fiquem bravos pela forma de eleger o novo xerife, mas é que...
- Ei, dá um tempo aí. - disse Frank, aproximando-se do rapaz - O que acha de um jeito novo pra definir o eleito? Eu sei de um bem melhor que simplesmente sortear no papelzinho, mas que é igualmente simples. Na minha terra natal chamam de pedra, papel ou tesoura.
Os candidatos estanharam de imediato. O mensageiro também não teve uma impressão muito positiva.
- Isso é algum tipo de... jogo? - indagou ele - Não podemos decidir o novo xerife numa brincadeira.
- Vocês vão gostar, funciona assim: Duas ou mais pessoas precisam balançar seus punhos cerrados, desse jeito como tô fazendo... e depois fazer assim. - baixou o punho fechado - A mão fechada significa pedra. - abriu a mão direita - A aberta é papel. - depois mostrara os dedos indicador e médio esticados - E por último esse representa a tesoura. Agora vem a parte importante, prestem atenção: A tesoura vence o papel, porque obviamente o corta. A pedra vence a tesoura, a quebrando. O papel vence a pedra que a embrulha. Pegaram a visão? Pelas caras acho que sim. E você, mensageiro...
- Ewan, muito prazer. - disse ele, apertando a mão de Frank - Eu achei criativo, nunca tinha ouvido falar num jogo assim antes. Minhas raízes estão nessa cidade e não sei de nada do que existe fora dela.
- Eu tô pronto. - disse o homem que antes implicara com Frank - Vamos começar, eu e você.
- Esqueci de falar que sou péssimo nesse jogo, então vocês tem uma vantagem.
Iniciariam a partida. Frank jogou pedra e seu adversário papel.
- Pelo visto, ganhei. Você tá fora, amigo.
- Não, a ideia foi minha, então... me coloco na repescagem. - disse Frank, o espírito competitivo influenciando-o para cobrir o caso do perigoso El Sombrerón - Continuem. Se houver um empate na última partida, eu entro de novo pra um jogo de desempate. - ressaltou Frank, deixando-os à vontade para prosseguirem. O barman observava a competição bem interessado. O primeiro adversário de Frank perdera e os outros dois acabaram empatados - OK, mudando a regra: Se nessa revanche não empatar, eu, na repescagem, volto pro jogo pra encarar o finalista. E então? De acordo?
Eles franziram o cenho, mas entenderam o objetivo. Fizeram seus movimentos e o resultado foi... Pedra contra papel. Frank se lançou novamente no jogo para a partida decisiva e balançou firmemente seu punho fixando os olhos estreitados no adversário. Os movimentos foram feitos e...
- Quê? - disse Frank, assustado com o resultado.
- Parabéns, xerife. Não é tão ruim quanto disse. - disse o adversário, fazendo uma saudação à ele com seu chapéu e saindo. Frank ficou paralisado de surpresa e olhou para seus dedos indicador e médio formando a tesoura que venceu o papel.
***
Na delegacia, Frank saía do vestuário para a sala de espera na qual Ewan estava sentado. O colete marrom com o distintivo dourado em formato de estrela de seis pontas, a camisa xadrez azul e branca, o echarpe vermelho, as calças, o chapéu e as botas de couro caíram perfeitamente bem com o porte físico do detetive. O mensageiro levantou-se na hora, aprovando o visual na sua expressão maravilhada.
- É emocionante, um xerife substituto tão elegante quanto o oficial.
- Substituto no maior sentido da palavra, até porque vou resolver esse caso unicamente pra talvez resgatar o xerife. Cuida das minhas roupas formais de detetive, beleza?
- Tá certo. Eu nem sei o que dizer, você tá impecável. Mas quanto ao xerife Ramón... Eu creio que esteja morto como a maioria das vítimas desaparecidas. Sua missão cabe somente a dar uma boa lição no El Sombrerón, apesar dele supostamente ser um monstro ou um espírito maligno.
- A verdade vai aparecer. Sendo homem ou monstro, não importa, eu aceito o desafio. Podíamos dar uma voltinha por aí pra espairecer e, é claro, mostrar pra cidade que ela tem um novo xerife no pedaço. - disse Frank, andando em direção à porta para sair. Ewan não entendeu bem, mas abstraiu.
- No pedaço? Ah, deve ser linguagem da cidade dele. - disse ele, indo segui-lo.
Nas ruas, Frank recebia aplausos de pessoas que admiravam fortemente a figura do xerife.
- Um pouquinho de massagem no ego não faz mal a ninguém. - disse ele, satisfeito com a recepção dos habitantes de Stonkville - Mas não deixo subir pra cabeça, sabe
- O xerife Ramón também se preocupava em passar humildade. - disse Ewan.
Distraído com as reações das pessoas, Frank acabou esbarrando em alguém. Ao perceber, viu que havia derrubado cestas de compras de uma mulher usando um vestido branco com detalhes amarelos.
- Opa, desculpa. - disse Frank, rapidamente apanhando o que caiu - Tava com a mente desconcentrada.
- Não, estava muito bem concentrado. - disse a moça de cabelos ruivos encaracolados pegando algumas coisas e pondo na cesta - Na aclamação do povo. Nada que um xerife novato não possa reconhecer.
- Oh, ainda assim peço desculpas. - disse Frank, levantando-se segurando a outra cesta e entregando-a.
- Astrid. - disse ela, sorridente - Tem interesse em certos jogos proibidos?
- Prazer, me chamo Frank. Ahn... Depende do jogo, não exatamente do objeto de aposta.
- Sou dona de um clube de apostas aqui nas proximidades, é um ótimo lugar para comemorar a chegada do novo xerife. - disse Astrid - A menos que queira celebrar num bar, eu não vou insistir.
- De forma alguma ia recusar o convite de uma dama tão... gentil e educada. - disse Frank - Apareço por lá pra gente brindar e jogar.
- Obrigada, Frank. Ops, desculpe... Obrigada, xerife...
- Montgrow. - respondeu Frank, simpático - Nos vemos hoje a noite, sou presença confirmada.
- Confio que sim. - disse Astrid, dando um sorriso aberto para Frank e indo embora.
- Mal virou xerife e já arranjou uma companheira... Que sorte. - disse Ewan.
- Mais do que isso. Na verdade, Ewan, eu consegui um chamariz pro safado do El Sombrerón. Hoje promete. - disse Frank, despreocupado.
***
O Stonkville Cabaret abria sempre as nove da noite. Pouco mais de quarenta minutos após a placa de "fechado" ser virada para "aberto", o número de frequentadores estava quase encostando na capacidade máxima. Frank chegou um pouco mais tarde do que havia pensado. Entrou sem o broche de xerife, ainda que não fosse o centro das atenções devido ao público do local ser bastante restrito e talvez soubessem da existência de um novo xerife oficial embora não de sua identidade.
Frank passou entre várias pessoas, homens e mulheres bebendo e conversando e flagrou Ewan participando de uma jogatina de baralho. O mensageiro notou a presença do detetive numa olhadela, mas voltou seu foco para as cartas como se quisesse ignora-lo. Revirando os olhos, Frank andou mais passos adiante e o jovem senti-ase cada vez mais na obrigação de nota-lo até que não resistiu e fitou-o.
Num gesto com o dedo indicador dizendo "vem cá", Frank o chamara.
- Como ocupo o cargo de maior autoridade de segurança pública, acho que tá na minha alçada descontar uns centavos do teu salário. - disse Frank, falando com ele num ponto mais reservado.
- Não faz isso, por favor. Essa foi a última vez, hoje tive uma recaída. - disse Ewan, nervoso - Em minha defesa, foi o xerife Ramón quem me jogou nesse ramo de apostas. Tá no seu direito de me tirar.
- Xerife, boa noite. - disse Astrid, chegando nele - Fiquei o procurando há vários minutos, enfim achei. Se dispõe a uma jogada? - perguntou ela, apontando para uma mesa onde alguns rapazes divertiam-se com suas cartas.
- Olha, não sou de entrar nessas, geralmente me saio bem mal.
- A sorte geralmente ajuda quem se arrisca. - disse ela, lançando um sorriso simpático ao detetive. Ewan ficara um tanto sem jeito vendo o clima entre ambos - Cadê sua insígnia de xerife?
- Eu deixei em casa, não quis chamar muita atenção na minha primeira noite de patrulha, creio que o melhor é as pessoas irem sabendo aos poucos que a cidade está sob a proteção de um xerife novinho.
- Mas não pode nem por um minuto se servir de uma bebida e se juntar a nós? Por favorzinho. - disse Astrid forçando um semblante triste, mas com um sorriso de confiança.
Frank fez que sim, não vendo outra escolha senão ceder.
- Só uma rodada hein. - disse ele, pegando-a pelo braço. Ewan cruzou os braços, orgulhoso do chefe.
- Esse é o xerife que sempre sonhei em ter. - disse ele, suspirando.
Porém, antes que Frank sentasse à mesa para disputar um prêmio em dinheiro no jogo, uma corrente intensa de vento abriu as portas e janelas, apagando as velas e luminárias como um grande sopro. Atarantados, os clientes e funcionários olharam para quem se avizinhava. Surgia um homem inteiramente trajado de preto, das botas de couro ao chapéu que possuía detalhes bordados em vermelho. Mirou seus olhos escarlates em alguns pistoleiros que se agrupavam para intimida-lo.
O homem de enorme chapéu mexicano os enfrentou num confronto físico, desferindo socos e os jogando sobre mesas e cadeiras que eram quebradas. Outros sacaram suas armas e atiraram, mas as balas não penetravam no invasor com dano, parecia que seu corpo era indestrutível. As pessoas se escondiam debaixo de mesas em busca de se protegerem do tiroteio. Ewan tentava se reaproximar de Frank.
- Xerife! - gritou ele, tomando sustos com os disparos e correndo em meio aos gritos - É o El Sombrerón! Ele tá aqui! Seu plano deu certo!
- Que plano? - indagou Astrid, abaixada sobre a mesa com seus amigos e Frank.
El Sombrerón exibiu suas pistolas de cano longo e cuspiu balas para todos os lados nos quais os pistoleiros poderiam estar se esgueirando através do escuro para desviarem. O justiceiro pegara um que se expôs ao levantar e atirou na cabeça do mesmo. Os outros dois renderam-se largando suas armas, mas não receberam misericórdia do justiceiro que disparou com os braços formando um "x". Frank resolveu tomar a dianteira do embate, sacando sua pistola, mas Astrid tentou impedi-lo.
- Não, xerife, não vá! Sua vida é muito preciosa! - suplicou ela, segurando pelo braço direito.
- Minha missão é acabar com a raça desse miserável! Se não for eu, não vai ser mais ninguém!
El Sombrerón guardou suas pistolas e concentrou-se na figura de Astrid. Dera um tremendo soco no queixo de Frank que o fez voar até uma mesa e parti-la em duas com suas costas.
- Ai, ai... - disse Frank, queixando-se de dor - Por que não é de isopor como nos filmes?
- Não! Fique longe de mim... - disse Astrid, alvejada por El Sombrerón que agarrou o braço esquerdo, logo puxando-a como um troglodita - Me largue! Me largue! Socorro, xerife!
O justiceiro a levantou, colocando-a sobre seu ombro direito e saindo com ela que debatia suas pernas e braços aos berros.
- Me diz uma coisa, xerife: O plano consistia em deixar que sua bela dama fosse sequestrada? - perguntou Ewan, vindo ajudar Frank a levantar. O detetive virou o rosto e viu a sombra do justiceiro se distanciando com os gritos de Astrid.
Frank estremeceu ao saber que Astrid fora levada, correndo para fora do Stonkville Cabaret. Pôde ver o cavalo de El Sombrerón galopar à uns bons metros. Viu um cavalo branco amarrado e o libertou, subindo nele e disparando atrás do inimigo. O cavalo relinchou alto perseguindo o de El Sombrerón.
- Ei, xerife! Esse é meu cavalo! Mas sem problema, você é o xerife, então... pode pegar sem permissão. - disse Ewan, preocupado.
Ao longo do percurso, uma névoa gradualmente se formava nos arredores e tornava-se mais densa à medida que ambos avançavam na perseguição. Frank tentou cavalgar mais rápido, mas já pressentia que a névoa o deixaria inalcançável. E foi o que aconteceu: El Sombrerón desapareceu em meio à brancura gélida da noite. Frank parou o cavalo, xingando mentalmente após perde-lo de vista.
***
No dia seguinte, Frank chegou à delegacia e encontrou Ewan tomando um café.
- Bom dia, xerife. Servido? Tem rosquinhas amanteigadas. Aliás, só duas, pois comi quatro.
- O sequestro da Astrid tirou meu sono e a fome também. No meu primeiro dia de trabalho, falhei com a cidade. - disse Frank, realmente frustrado - Em compensação, quase ninguém me conhece, é o que segura minha reputação.
- O xerife Ramón saberia lidar com El Sombrerón numa corrida de cavalos. - disse Ewan, tomando um último gole - Do jeito original dele, é claro. Ele tinha... Como posso dizer? Ahn... Um afã por coisas além do nosso entendimento, coisa horríveis, assustadoras e arrepiantes. Soube que ele já enfrentou um monte dessas coisas. Mas não se pode ganhar todas.
Um estalo de percepção atingiu Frank.
- Tá querendo me dizer que... - levou Ewan para falar num ponto afastado - ... que ele era um caçador?
Ewan franziu a testa, não entendendo bem.
- Não, não eram animais selvagens.
- Tô me referindo à profissão de caçador que caça... monstros. Criaturas sobrenaturais. Era disso que ele vivia também?
O mensageiro assentiu.
- Basicamente isso. Por que tanta inquietação de repente?
- Fica só entre nós: Sou caçador como o xerife Ramón. - contou Frank no tom mais baixo que pôde emitir bem próximo de Ewan - Além disso, não faço parte dessa época, fui cuspido pra cá por um redemoinho de areia sobrenatural saído de uma ampulheta. Tá levando a sério o que tô dizendo? É verdade nua e crua, eu sou um forasteiro a um nível sem precedentes. Então, vê se colabora direito.
A face de Ewan se empalideceu tamanho o impacto daquela revelação. Digeri-la parecia complicado.
- O-olha, se o senhor quiser, posso indicar um médico de neuroses...
Frank agarrou-o pelas golas da camisa, impaciente.
- Já se passou um dia desde que cheguei e se eu não voltar logo pro meu tempo corro o sério risco de ser demitido pra sempre do lugar onde trabalho. Não sei como funcionam as regras e leias de viagem no tempo, mas prefiro considerar qualquer possibilidade. - fez uma pausa, fitando-o seriamente - Eu me sinto na obrigação de deter o El Sombrerón, não interpreta como se eu quisesse fugir com o rabo entre as pernas. Mas preciso voltar o quanto antes, Ewan. Deixei amigos, família... e monstros pra matar.
Engolindo a saliva, Ewan tentou processar com mais calma a verdade.
- Quer saber de um segredo confidenciado pelo próprio xerife Ramón a mim? - perguntou Ewan, ainda muito atordoado - Bem, deixou de ser segredo porque estou dividindo com a terceira pessoa que teoricamente não deveria saber. Eu nunca entrei na casa dele, por mais ligados que fôssemos no trabalho, ainda assim ele revelou pra um mero porta-voz que possui relíquias escondidas atrás da sua biblioteca onde podem ter centenas de livros sobre lendas e diversas fantasias do horror.
- Vou confiar que existe lá guardada uma ampulheta com as areias do tempo. - disse Frank.
- Não acha que tá exagerando um pouquinho no otimismo, não?
- Quer saber o que acho? Que a gente devia dar uma passada na casa dele pra checar o material.
- Entramos pela porta da frente, né? A esposa dele é meio ranzinza, vai ficar ofendida se souber que um novo xerife foi eleito, mas podemos passar por ela se você fingir que é um subalterno do xerife Ramón.
- Fechou. Mas não tô com tanta pressa, então à noite iremos, pois se caso descobrirmos algo do El Sombrerón registrado em algum diário...
- Ele tem um diário de anotações, já até me mostrou uma página arrancada, só que era uma receita pra invocar o fantasma de um ente querido e outra de torta de maçã no verso. - disse Ewan, empolgado - Agora essa fala é minha: Hoje promete.
***
Diferentemente de Frank Ewan mal se continha na espera pelo cair da noite. O mensageiro pouco entendia da paciência de alguém que havia vindo de outro tempo por acidente e necessitava de retornar mediante às incertezas de como se efetuavam possíveis leis irrevogáveis e particulares que regem sobre a viagem pelo continuum espaço-tempo.
- Geralmente o El Sombrerón vaga pela cidade por volta das dez horas. - disse Ewan ao lado de Frank em frente à casa de Ramón - Você bate, eu fico bem atrás.
- Vai amarelar pra esposa do teu chefe? Eu sou subalterno, lembra? O mensageiro é quem tem a palavra.
- Sim, mas não espere que ela faça as honras. - disse Ewan num crescente nervosismo.
Frank batera na porta e uma mulher de meia idade vestindo uma camisola de seda rosa atendeu.
- Conheço você, jovem. - disse ela numa expressão chorosa tomando forma - Por favor, não diga que...
- Não, acalme-se senhora, está enganada se tiver pensado que viemos informar a morte do xerife Ramón, nós... - pigarreou forte - ... queríamos catalogar alguns bens dele para doação. Ele me autorizou, pode acreditar. Esse aqui é um subalterno pra me ajudar no processo. Teria a gentileza de nos conceder entrada?
- Ramón continua desaparecido então. Mas por que razão ele decidiria abdicar da posse de coisas suas?
Frank deu uma olhada de soslaio um tanto quanto austera para Ewan que precisava caprichar no pretexto.
- Ahn... Ele não me especificou no dia que conversamos a respeito. Apenas disse que um dia teria que se desfazer de alguns livros que julgava desnecessários. Quero fazer isso por ele enquanto não volta.
- Tudo bem. É bom não fazerem nenhuma bagunça na biblioteca. - disse a esposa de Ramón.
Ambos caminharam pela casa orientados pela mulher que contrariava um pouco a opinião de Ewan.
- Façam bom proveito. De forma que não desorganizem nada. - disse ela, abrindo a porta da biblioteca.
- Obrigado, senhora. - disse Ewan. Frank acenou com a cabeça num tímido sorriso fechado sem dizer uma palavra. A porta fechou-se e o detetive finalmente pôde soltar-se mais. Ewan acendeu a luminária.
- Olha o tamanho dessas montanhas de livros. - disse Frank, atônito com a altura das estantes - Me pergunto se ele sabia por onde começar. Ah, tem uma escadinha aqui. - subiu na escada, tocando nos livros mas não os retirando totalmente do lugar.
- O que tá fazendo? Temos que começar pelos de baixo.
- Não temos a noite toda. Ramón pode ter usado o velho truque do livro falso que abre uma passagem secreta.
- Você tá atrás da ampulheta enquanto devíamos procurar o diário e colher mais informações sobre o inimigo. Diria que tá começando a me decepcionar como xerife. O xerife Ramón saberia priorizar...
- Eu não sou ele! - disse Frank, ríspido. Ewan pareceu surpreso com o tom de voz áspero - Foi mal, desculpa... Pelo menos me deixa ver se existe uma ampulheta das areias do tempo na coleção dele.
Frank seguiu pegando nos livros até onde pôde alcançar nos dois lados. O último que tocou no lado esquerdo não parecia composto de páginas. Ao baixa-lo, a parede da estante fez um estralo e iniciou um giro que derrubou Frank da escada e o fez correr para dentro da sala secreta. Ewan se enfurnou rápido antes que fechasse. O detetive acendeu um isqueiro e pegou uma luminária empoeirada sobre uma mesa para acende-la. Passeou pelo recinto levando a luminária como sua lanterna primitiva. A luz alaranjada iluminou o que parecia ser uma ampulheta dentre vários outros objetos enfileirados.
- Segura aqui. - disse Frank, entregando a luminária para Ewan - Achei minha passagem de volta.
- Tem certeza de que essa é a mesma ampulheta com a areia que te trouxe do futuro até aqui?
- Claro que sim. Os detalhes, a forma, tudo é idêntico. - disse Frank, logo sacando sua arma a fim de atirar no compartimento superior da ampulheta para liberar a ampulheta. Ewan sentiu-se consternado.
- Espera, xerife... - disse ele, meio triste - Quer voltar pra sua época sem nem lidar com o El Sombrerón pra tentar salvar o xerife Ramón? Ou a Astrid? Vai escolher a si mesmo? Justo quando a cidade mais precisa de um xerife valente e destemido pra mandar embora o maior pistoleiro que já pisou nela?
Um aperto no coração fizera o detetive baixar a arma e trava-la.
- Você errou feio, Ewan. - disse Frank - Não vou botar ele pra correr. - virou o rosto para o jovem - Vou acabar com os dias de justiceiro impiedoso dele... pra sempre. - determinou, recuperando a estima de Ewan.
A dupla foi para o quarto de Ramón procurar algum diário nas gavetas da cômodo aproveitando que a esposa dele fora dormir. Ewan remexia tudo nas gavetas de baixo, contrariando o aviso da esposa.
- Ei, Ewan, cuidado aí pra não bagunçar. - disse Frank, ficando com as gavetas de cima - A patroa vai ficar uma fera se pegar tudo isso aí espalhado.
As luzes do quarto piscaram tremeluzentes.
- Ah não. - disse Frank olhando para as luzes ligadas à energia elétrica - Ele tá na área.
- Isso parece um diário pra você? - perguntou Ewan mostrando uma caderneta de capa cinzenta. Frank pegou para conferir.
- Achamos. - disse ele, olhando as anotações e desenhos de seres paranormais - Igualzinho como meu pai fazia. O cara era mesmo um caçador que se preze. Se caça melhor que eu, não sei, mas no desenho...
- Anda logo. Tem alguma coisa sobre El Sombrerón aí?
- Tá aqui. É a última página, as outras estão em branco. El Sombrerón é, em essência, um espírito malévolo guiado por uma força oculta com a qual selou um pacto enquanto humano. A névoa que produz com o trote de seu cavalo amaldiçoado é uma porta para um mundo distinto e sombrio. E olha só... A fraqueza do desgraçado: Bala no coração. Vai ser moleza. Só não posso garantir nada quanto aos desaparecidos.
***
Andando pela cidade naquelas altas horas, Frank estava armado com duas pistolas nos dois coldres e ostentava seu distintivo dourado de xerife. O procurava com os olhos, preparado para movimentos abruptos que pudessem intencionalmente pega-lo de guarda baixa. O som de um violão tocando soou aos ouvidos do detetive.
El Sombrerón estava encostado na coluna de madeira de uma casa tocando seu instrumento, o chapéu enorme com ponta em forma de cone não deixando possível ver seu rosto. Até que ergueu sua cabeça e sua face se mostrou mais evidente com olhos vermelhos brilhantes num rosto preto e cadavérico.
- Não é serenata que eu quero, mas sim uma corrida de cavalos. Topa?
- Estou bem na sua frente, xerife. Tente me alcançar. - disse El Sombrerón, a voz inumana.
- Ah, você não fala espanhol. Que curioso. - disse Frank - Enfim, vejamos... - encontrou um cavalo amarrado e dirigiu-se até ele para retirar a corda, logo subindo. Porém, não viu El Sombrerón. Ao virar o rosto para sua esquerda, avistou o justiceiro cavalgando tomando boa distância - Ei, isso é trapaça!
O cavalo roubado por Frank partiu galopando com rapidez. Frank arriscou gastar umas balas para acerta-lo nas costas e talvez o tiro atingisse os pulmões e o coração, mas nenhum disparo se efetivou.
A névoa começava a ficar mais cheia e Frank deu continuidade, não importando se o alcançaria. Quando a brancura assumiu eu campo de visão, percebeu não estar mais no mesmo mundo. Atravessou a névoa vendo uma área pedregosa sob um céu escuro de uma noite sem estrelas nem lua. Gritos longínquos puderam ser audíveis para Frank.
- Astrid! - chamou ele em alto e bom som. Desceu do cavalo para encontra-la onde quer que estivesse naquela terra literalmente sem lei - Astrid! - chamou novamente, as mãos perto da boca. O cavalo de El Sombrerón veio avançando diretamente á Frank que pulou para o lado, por pouco não sendo atropelado.
- Vamos terminar isso depressa, xerife. - disse El Sombrerón - Mas não sem antes revelar minha jogada.
- Xerife! - disse Astrid, vindo correndo até ele. Porém, El Sombréron disparou com sua pistola no caminho dela fazendo-a cair no chão tamanho o susto como uma ordem para não dar mais nenhum passo.
Frank levantava-se, limpando suas calças e o colete. Olhou para sua direita, vendo Astrid caída.
- Astrid... Você tá bem?
- Sim... - respondeu ela - O xerife Ramón, por outro lado... - desviou lentamente os olhos para El Sombrerón e Frank não captou o significado da interrupção seguida daquele olhar temeroso.
- Seu maldito! Tinha que mata-lo, né? Apostadores compulsivos são mais perigosos que pistoleiros assassinos pra você, é isso? Eu quase cheguei perto da jogatina, então também sou um alvo pra eliminar. Pode vir!
Ao invés de partir para o confronto, El Sombrerón tocou no seu violão uma melodia que afetava Astrid de uma forma que a incapacitava como se estivesse sofrendo de uma asfixia. A mulher foi levada à inconsciência.
- Astrid! - disse Frank indo ajuda-la e verificando seu pulso - Ainda tá respirando... - notou os lábios dela ressecados e empalidecidos - O que você fez? Essa sua música enfraqueceu ela num instante.
Para o espato súbito do detetive, o rosto de El Sombrerón adquiria contornos mais humanos, uma pele bronzeada substituía a camada preta que se assemelhava à carvão. Aos poucos a face do justiceiro humanizava-se esteticamente, mas para um rosto que Frank facilmente identificava.
- Não pode ser verdade... - disse ele, perplexo - Vo-você é o...
- Sim, o xerife oficial, Diego Ramón Diaz. E você é o provisório que colocaram no meu lugar pra me servir de obstáculo. É de dar dó. Veja a sua dama, não pôde salva-la. E mesmo que salvasse, eu voltaria pra busca-la e você seria o covarde que apenas salvou a donzela não se livrando do seu raptor.
- Então fez o pacto com a coisa ruim que te transformou no El Sombrerón! Agora quero saber: Por que?
- Medidas extremas são requeridas quando tempos difíceis nos afligem. - disse Ramón - O exército de um homem só não suporta uma responsabilidade que foge ao seu controle. Portanto, tive de buscar um outro meio de aplacar a onda violenta que arrasava a cidade que eu ainda amo.
- Eu nunca me tornaria num monstro como se fosse o único jeito de salvar uma cidade pra proteger quem me importa. - argumentou Frank - Não tô nem aí pro seu desespero, você traiu a honra de um caçador, traiu a si mesmo! Eu sou caçador e posso falar com conhecimento de causa. Não dá pra salvar todo mundo, sozinho ninguém consegue. Você tinha seus homens, mas virou as costas pra eles e pro Ewan também, o seu mensageiro que te admirava tanto. Você escolheu lutar sozinho e perdeu, essa é a consequência de quem fica se vangloriando como o maioral.
- Em parte a maldição a que me entreguei fez com que eu passasse dos limites, roubando a vitalidade de cada delinquente que eu pegava, como fiz agora há pouco com sua princesa. Sempre estive sendo eu, mas o poder oculto da força que meus ancestrais guatemaltecas louvavam prevalecia sobre mim.
- Vai botar a culpa no El Sombrerón pra parecer que ele é um tipo de alter-ego seu?! Vai pro inferno com essa desculpa pra patinho cair. Entendi agora porque seu rosto voltou pra sua cara normal, foi a vitalidade da Astrid.
- Não apenas a vitalidade, como também a pureza. Essa dama intocada rendeu um ótimo néctar pra que finalmente pudesse voltar a me ver no espelho. - disse Ramón, fitando Astrid numa expressão maliciosa - Pena que é por tempo limitado.
- Assim como a sua vida. - disse Frank, sacando uma pistola. Atirou contra o peito de Ramón do qual gorgolejou sangue quente. O ex-xerife tocou na ferida, baqueado - Essa cidade é pequena pra nós dois. - afirmou Frank, soprando a fumaça que saía do cano da pistola - Você é a vergonha da profissão. Ou melhor, das profissões. Xerife e caçador de araque.
- Eu estive pensando... se podíamos continuar com a corrida. - disse Ramón, ajoelhando-se e arfando. O ex-xerife tombou com a morte fechando seus olhos. A névoa retornou aglomerando seu vapor ao redor de Frank e Astrid. O detetive a pegou para carrega-la nos braços e caminhou entre a brancura do nevoeiro logo constatando ter voltado à Stonkville após o dissipar da bruma tão rápido quanto a criação.
***
Na manhã seguinte, debaixo do sol agradável da manhã, Frank e Ewan aprontavam-se emocionalmente para a despedida.
- Bom, tá na hora do adeus. - disse Frank virando-se para ele - Ótima ideia escolher um lugarzinho bem distanciado pra gente se despedir numa boa. Ah, ia esquecendo. - retirou do bolso do sobretudo a insígnia de xerife.
- Adorei conhece-lo... Frank. - disse Ewan pegando o distintivo - Espera... Você ia leva-lo? Isso é roubo.
- Pois é... - disse Frank, envergonhado dando uma risadinha nervosa - Na verdade, eu pensei também em te devolver, como presente de gratidão, pra transferir meu cargo.
- Xerifes que renunciam são permitidos a passarem o manto. - disse Ewan, olhando para Frank e para o distintivo - Não... É um engano, você não pode estar achando que eu...
- Sim, Ewan, você mesmo. - disse Frank.
- E-eu... O novo xerife?! Que honra, que privilégio, que maravilha. Nem sei o que dizer... pra te agradecer.
- Obrigado pra mim já tá bom.
- Negativo, não é o suficiente. - disse Ewan, sacando sua pistola e mirando na ampulheta deixada bem no meio daquela área quente e arenosa. Apertou o gatilho no compartimento contendo a areia que escapou pelo buraco no vidro e os grãos se movimentaram pelo chão dando origem ao redemoinho que parecia um pequeno furacão. Frank abriu os braços com o redemoinho vindo diretamente à ele e deu um joinha para Ewan que pôs o distintivo no seu colete numa postura soberba. O mini-tornado de areia engoliu Frank e logo o regurgitou de volta para a loja de antiguidades cujo interior estava numa calmaria imensa, porém estranha para um local que havia sido invadido por assaltantes.
A areia do redemoinho se reduziu até desaparecer completamente não sobrando um grão sequer.
- Sr. Blanchet? - chamou Frank pelo vendedor. Viu a ampulheta em cima do balcão com o buraco de bala no vidro e em seguida olhou para o relógio de parede que marcava duas horas e vinte e oito minutos - Eu cheguei aqui mais ou menos umas duas e vinte e dois. Só se passaram minutos... Caramba.
- Ah, que bom vê-lo de volta. - disse o vendedor subindo uma escada que dava para um porão - Pra onde as areias do tempo levaram você?
- Pro Velho Oeste onde fui xerife por dois dias, sem mentira. É longa história, não tô com saco pra contar agora. E cadê os vagabundos? Foram direto pro camburão? Fiquei preocupado depois que voltei, não vi o senhor aqui, pensei que tinham o matado e escondido o corpo lá embaixo...
- Usei um talismã milenar que os sugou para dentro. Vai saber que outro mundo estão explorando.
- Tá, eu acredito. - disse Frank, meio cabreiro - Olha, não quero mais a ampulheta, acho que é mais justo pagar pelo dano. - disse ele, retirando um maço de notas da carteira e dando ao Sr. Blanchet.
- Fico imensamente agradecido.Só é uma pena que não terei sua espada.
- Ah é, ele tá bem ali, não tinha reparado. - disse Frank, indo pega-la - Até mais, Sr. Blanchet.
- Apareça pra fazermos uma negociação que dê certo. - disse ele, acenando com a mão - Tenha uma boa tarde. - seu sorriso simpático desfez-se assim que Frank saíra fechando a porta. O vendedor desceu a escada em direção ao porão. Abriu a porta do cômodo e ficou a observar três homens sentados no chão amarrados por cabos de aço que o encaravam apavorados - Meu cliente que dominou vocês reapareceu e agora se foi. Chegou o momento de pagarem por terem frustrado um negócio fantástico.
- Peraí... O que vai fazer com a gente, vovô? - perguntou o bandido do meio, tremendo e suando.
Blanchet sorriu misterioso. Mas tal mistério durou ínfimos segundos. O rosto do vendedor se transformou, ganhando uma cor cinzenta e escura, chifres pontudos parecendo espinhos grossos brotando das sua testa e sua barba grisalha enegrecendo e crescendo, além dos olhos avermelhando-se.
Os bandidos se inquietavam de medo. Blanchet mostrara a fileira de presas afiadas e avançou sua boca rapidamente para o do meio que soltou um berro gutural de dor.
*As imagens acima são propriedades de seu respectivo autor e foram usadas para ilustrar esta postagem sem fins lucrativos.
*Imagens retiradas de: https://lacasitadelhorror.com/leyendasdeterror/mexicanas/chiapas/elsombreron/
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