Frank - O Caçador #50: "Água Quente no Formigueiro"


O salão central da loja maçônica desativada por seus proprietários há não muito tempo concentrava um número relativamente grande de jovens de variadas aparências e modos de se portar, todos com foco de visualização num único indivíduo que bradava acima de uma estrutura elevada similar a um palco. Um infiltrado, andando pelo piso quadriculado preto e branco, se misturou na moderada aglomeração de espers que se atentavam às palavras carregadas do mais puro idealismo de seu líder eloquente. O intruso vestia um moletom azul-marinho com capuz que deixava uma sombra na metade de cima do seu rosto, mas para que ficasse o mais ocultado possível andava de cabeça baixa para enfim parar dentre os seguidores do culto e ergue-la. Os olhos de Frank, que resolveu disfarçar-se para averiguar de perto, fitaram Atticus seriamente. 

- O nosso lema tem de ser estabelecido. - disse Atticus, firme - Se não conquistarmos nossos direitos através da paz, a guerra torna-se uma opção, mas não por nossa causa. Não acham que à esta altura a humanidade está pronta para assimilar que nós estamos aqui, respirando o mesmo ar que eles, vivendo no mesmo mundo que eles e que fomos criados para coexistir mediante às diferenças por uma boa razão? Eles saberão que existimos. - seus nítidos olhos heterocrômicos, verde e azul, pulsavam de intensidade - Quer compreendam ou não, é inevitável. Basta que façamos acontecer. O preço para sermos tratados como queremos e devemos pode custar caro. Mas chegando à esse ponto, será difícil não enxergar a paz como uma demonstração de fraqueza. E não vamos fraquejar, jamais. 

Um salva de palmas calorosas teve início, mas Frank foi o único a não aplaudir pensando nas implicações que aquele discurso de tom radical previam. A preocupação dele piorou ao ouvir espers gritando "morte aos humanos". "Mas vocês são humanos.", pensou Frank. Atticus ergueu de leve as mãos pedindo que parassem.

- Esperem, esperem... Tenho que deixar clara uma ressalva: Somente pessoas que não se abrirem pacificamente a nossa existência é que sofrerão consequências. Gravem isso. Entenderam? 

"Pelo menos, ele não generaliza", pensou Frank, embora não aliviado. 

- Bem, pra descontrair a noite é hora de chamar alguém pra fazer uma demonstração. - disse Atticus, logo apontando para uma jovem de cabelos loiros com franja reta cobrindo a testa - Você, Magda. 

Os espers aplaudiram Magda. Alguns rapazes atrevidos a chamaram de gostosa em alto e bom som. 

Atticus pegou uma mesa leve com uma taça de vidro sobre ela. Dentro da taça havia um canudo de plástico. 

- Antes de mais nada, obrigada por me transformar no centro das atenções, nunca fiquei tão em destaque assim. - disse Magda - Acho melhor todos vocês taparem os ouvidos. Menos o Atticus, porque, vocês sabem... Ele é incrivelmente imbatível. - o encarou com semblante simpático. 

- Tomem cuidado, amigos. - disse Atticus, bem-humorado - Magda possui um alter-ego sombrio tão poderoso quanto ela. - entregou óculos de proteção para a esper - Faça o seu melhor. 

Magda pigarreou um pouco e exprimiu um som pela boca que começou baixinho até gradualmente ficar agudo e mais intenso. O canudinho na taça tremia vibrando e conforme a progressão do som a taça começava a vibrar. Magda intensificou a frequência e a taça espatifou-se completamente. Maravilhado, o público aplaudiu. Frank não diminuía seu temor em relação àqueles seres extraordinários. 

"Caramba, se a Terceira Guerra Mundial pode acontecer, já temos um possível estopim.", pensou ele. 

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CAPÍTULO 50: ÁGUA QUENTE NO FORMIGUEIRO

Departamento Policial de Danverous City

Na sala de Frank, Carrie se inquietava com a possibilidade ao longo da discussão a respeito do arrebanhamento de espers conduzido por Atticus a fim de deflagrar uma guerra civil. 

- Frank, não tem o menor cabimento você se meter nessa encrenca. Eu te emprestei o moletom do meu sobrinho pra você dar uma espiadinha com um disfarce que passaria tranquilo, não pra se engajar numa luta que não necessariamente tem que travar pra proteger a cidade. Você não tem superpoderes pra lidar com uma calamidade que esses espers podem causar a qualquer momento, estourando uma guerra liderada por um psicopata com poderes dimensionais. 

- E qual sua melhor ideia pra colocar um freio nisso antes de sair a mil por hora? - perguntou Frank, sentado na sua cadeira, meio irritado com a contrariedade - Pra mim vai resolvendo na base da conversa.

- Mas você acabou de falar que o Atticus não tá muito aberto ao diálogo. 

- Ele foi bem enfático quando disse que vai poupar quem levar numa boa a existência dos espers, isso inclui a mim e portanto tô na obrigação de tentar uma abordagem pacífica com ele, como caçador. 

- Ah, vai sugerir o quê? Fundar uma escola para jovens superdotados? Vai ser o mentor deles? 

- Quero que eles trilhem um caminho que não os transformem em vândalos e terroristas. 

- Meio tarde pra reverter o estrago, esse Atticus deve ter um poder de persuasão além do normal. - disse Carrie, afobada. 

- Se bem que desconfio do quanto de poder ele realmente tem. - afirmou Frank - Essa seita não pode seguir em frente um dia mais, eu tenho que convencer o Atticus do contrário hoje à noite. 

- Pirou de vez mesmo. - retrucou Carrie, desaprovando veementemente a ideia - O Atticus não está com a sanidade totalmente restituída, é muita coragem e insanidade sua querer ir pra lá bater um papo amigável com um doente mental diagnosticado. Odeio admitir, mas... Deixa a ESP assumir as rédeas.

- Eu sei que eles vão assumir, não quer dizer que eu não meter a colher. 

- Chega, desisto. Carrie perdeu de 10 a 0 pra Frank Montgrow e sua teimosia. 

- Não podemos mencionar a fundação do Hoeckler aqui, nem esculachar ele por trás. Ele implantou escutas em qualquer canto que a gente passe. 

Carrie pegou um papel e uma caneta e escreveu algo. Mostrou para Frank. 

"Não lê em voz alta! Podemos nos comunicar por escrito."

A assistente arqueou as sobrancelhas para ele esperando uma resposta. 

- Sem chance. Se ele não escutar nada, suspeita e manda instalar câmeras. 

- Verdade... - disse Carrie, desanimando - Nem por mensagens?

- O miserável grampeou nossos celulares. Acho que ele tá ouvindo isso, mas dane-se. 

- Não podemos mais nos comunicar com segurança. 

- Podemos sim. - disse Frank, pegando seu celular novo - O meu celular é novo, mas creio que já puseram um grampo nele. Mesmo assim, vou chamar o diretor pra ir na minha casa. - ligara para Ernest - Alô, diretor. Tá muito ocupado hoje? É que tava pensando se o senhor podia dar uma passadinha na minha casa pra discutirmos um assunto de extrema importância que o senhor conhece bem qual. Beleza, na hora do meu intervalo. OK, um abraço. Valeu, até mais. - desligou - Ele topou, tem um espaço livre na agenda. Enfim uma alternativa. A ESP acha que tem olhos e ouvidos em todo canto, só que não. 

- Ainda apoio que você deva entregar o problema dos espers à eles. - insistiu Carrie. 

- Essa nossa discussão não chega a lugar nenhum. - disse Frank, cansado - Minha palavra contra a sua, não posso fazer nada. A gente pode ficar o dia inteiro nesse bate e rebate que continua na mesma.

Carrie bufou e saiu da sala a passos largos, fechando a porta com força. Frank sentia a irritação dela emanar. O detetive ficou a pensar quantos limites Atticus estaria disposto a romper para construir seu mundo ideal. 

                                                                           ***

O período de intervalo de Frank encontrava-se na quase na metade, mas o detetive sabia que o tempo de sua conversa com Ernest seria breve o suficiente para voltar ao DPDC antes do término do "recreio". 

Frank parou o carro na calçada e saíra, direcionando-se à porta da frente da sua residência. Mas ao entrar, tivera uma surpresa mista: Ernest o aguardava sentado no sofá como se tivesse chegado faz horas. 

- Di-diretor?! Como chegou tão rápido? - perguntou, fechando a porta. 

- Eu vim do diretório do meu partido, deixei o carro com o manobrista e peguei um táxi. 

- Podia ter avisado que veio primeiro, né? A amizade permite muitas coisas, menos invasão domiciliar não consentida. 

- Ah, me poupe Frank. - disse Ernest, levantando-se - Podemos partir direto pro assunto de extrema importância que me trouxe aqui? Você tá ciente de que nossas ligações podem ser interceptadas, não?

- É mesmo, mas uma ligadinha pra confirmar que chegou antes não seria perigoso. 

- Frank, o perigo que o superintendente está representando nos rodeia, estamos no olho do tornado de fogo. - reclamou Ernest - Não tem retorno pra esse caminho, não enquanto ele estiver no cargo. 

- Chamei o senhor pra falar de outra coisa, não exatamente do Hoeckler. Tem uma relação com ele de certa forma, mas não é sobre ele em si. O senhor deve ter se informado de uma loja maçônica que foi reaberta por uns jovens que tem frequentado pra se reunirem e eu descobri o motivo deles estarem lá. 

- A Carrie me disse algo a respeito ontem, mas não prestei atenção. 

- Os jovens que vão nesse templo são espers. Sabe do que tô falando? Os humanos paranormais que os anjos batizaram com a água sagrada do mundo celestial... 

- Sim, sim, já me disse o que são. Agora isso... Isso sim é uma tremenda novidade. 

- Pois é, estão se agrupando numa espécie de seita ideológica. Estão armando um protesto por direitos civis quando a sociedade se der conta de que eles existem. - contou Frank. 

- Carrie falou que eles seguem um líder... 

- Sim, o Atticus, é um esper com poderes sinistros... É ele quem encabeça a facção. 

- Chamando-os de facção dá a entender que os vê como criminosos. 

- Criminosos em potencial pelo fato de estarem sendo usados como massa de manobra do Atticus. São uma dúzia de gatos pingados se julgar pela quantidade, mas se essa dúzia de gatos pingados sai pelas ruas praticando atos terroristas, a coisa vai ficar feia, bem feia. Se o senhor for eleito nesse primeiro turno, não podia incluir na sua proposta, caso eles venham fazer manifestação, um decreto de direitos iguais? 

A boca de Ernest tremulava num sorriso desajeitado. O diretor desatou a rir zombeteiramente. 

- Ué, qual é a graça? 

- É que... - disse Ernest, recompondo-se - ... você falando assim faz parece tão simples. Ai, ai, Frank... A sua ignorância quanto às estruturas políticas é... um ótimo gatilho pra destravar o maxilar. 

- A primeira vez que vejo o senhor rir tanto é me chamando de ignorante, um belo começo. 

- Bem que podia ser nós dois rindo de uma piada suja na taverna que costumávamos ir. - disse Ernest, retomando a seriedade - Sobre essa sugestão de proposta... Impossível, Frank. Diante da possibilidade desses indivíduos colocarem Danverous City de ponta à cabeça, a magnitude desse cenário requereria uma sanção presidencial, depois governamental e por fim municipal. 

- Mas tanto o governo quanto o prefeito tem autonomia, o presidente não pode interferir. 

- Não é assim que funciona, Frank. - retrucou Ernest, irritado - O presidente bate o martelo, o resto acata e faz sua parte, não tem objeção que impetre numa mudança. E se eu subir no palanque no dia D, meu discurso será a realização de uma ideia que pode abalar nossa amizade. Não pergunte porque. 

-  OK, eu assumo minha humilhante ignorância, sou um analfabeto político, não sabia nada disso aí. 

- Oh, bem-vindo à América. - redarguiu Ernest, sarcástico. 

- E essa ideia que o senhor planeja pro discurso da vitória? Abalar nossa amizade? Que papo é esse? 

- É segredo, por ora. Vai ser mais impactante pra você se eu vencer do que se eu perder. 

A vibração no celular de Frank quebrou completamente o clima. 

- Mensagem da Carrie. Eu tinha alertado que conversar por mensagens, SMS ou aplicativo, era arriscado. - disse ele, tocando na tela para ler a mensagem - Ela pesquisou o nome de uma esper que foi visa numa das fotos da reportagem, o nome dela é Magda e foi vista exatamente com o Atticus. É isso que ele quer. chamar a atenção pra mídia bolar teorias da piração, até porque a classe dos jornalistas tem noção de que os fenômenos estranhos que acontecem na cidade são frequentes. 

- Agradeça aos céticos de plantão pelos conspiracionistas nunca vencerem. - disse Ernest. 

- Com certeza. - disse Frank, guardando o celular no bolso do sobretudo - Essa Magda eu conheço, é uma esper com um poder de dar gritos de uns 120 decibéis pra cima. Carrie deu o endereço do trabalho dela pra extrair alguma coisa que ela desembuche. O expediente dela acaba daqui à uma hora. 

- O seu intervalo também. Onde fica o emprego dela? 

- Uma lojinha de conveniência à três quarteirões. Se quiser pode ficar, ver TV, fazer uma pipoquinha...

- Não, eu vou com você. Uma carona de volta pro diretório? 

- Vamos nessa. - disse Frank, saindo na frente e abrindo a porta. 

                                                                             ***

Magda saía da loja de conveniência com seu uniforme branco - uma camisa branca com mangas - e subiu um pouco sua calça jeans e em seguida mexera na sua bolsa. Ergueu o olhar avistando um táxi parando no outro lado da rua e apertou o passo. Porém, um sedã prata interrompeu-a parando bem perto da calçada. arruinando uma chance de conseguir aquele táxi tão rápido para retornar à sua casa. 

- Merda. - disse ela, vendo o detetive sair do carro e dirigir-se ao seu encontro - Desculpa, eu tenho que ir... 

- Epa, vem cá que eu quero trocar uma ideia contigo. - disse Frank, pegando suavemente pelo braço. 

- Me larga. - disse Magda, friamente - Senão eu grito. E pode apostar que eu grito super-alto. 

- É, tô sabendo. - falou Frank, deixando-a intrigada.

- O quê? Aí, quem é você? - perguntou, dando uma olhadela para trás e vendo que o táxi ainda estava no mesmo ponto - Tá por dentro do que acontece na reunião com meus amigos? O que você quer?

- Só quero respostas, Magda. Eu estive lá ontem à noite, marquei presença muito bem disfarçado. 

- Se o Atticus souber... 

- Bom que você falou "se" e não "quando". Ouvi que ele mencionou um alter-ego sombrio seu... 

- Não é nada, foi brincadeira dele, agora me deixa ir. - disse Magda, tensa, dando outra visualizada no táxi que continuava parado. 

- Espera aí, garota. Me explica esse lance de alter-ego. Eu vou acreditar em cada palavrar que disser.

- Quer a resposta verdadeira pra parar de encher meu saco e não estragar minha condução mais próxima? Eu me liguei a uma entidade ou espírito das sombras, é chamada de Banshee. Ela assume o controle do meu corpo e da minha alma toda vez que me estresso. O Atticus quer que eu seja a vice-líder do time, colocar nós duas na linha de frente quando formos ameaçados de ir pro fuzilamento ou campo de concentração. 

- O Atticus tá delirando com essa história de segregação. - disse Frank - Tá desviando você e todos os outros pra um caminho errado. Tem que se distanciar dele e da ideologia extremista que ele prega. 

- Deve ter escutado que ele falou sobre excluir da lista negra as pessoas que nos aceitarem. 

- Sim, mas punir as que não aceitarem com atos de guerra não vai torna-lo um herói. 

- Chega, eu vou indo. - disse Magda, fechada para qualquer pensamento contrário que a convencesse. 

Frank voltou pro seu carro e Ernest estava no banco do carona. 

- Sucesso? - indagou ele. 

- Em botar juízo na cabeça da guria? Que nada. Pelo menos tenho um plano pra hoje à noite. 

                                                                            ***

No mesmo horário em que passou dos portões da loja maçônica, Frank retornara à ela, porém adentrando pelos fundos após pular o muro. Seguiu por um corredor escuro com paredes de tijolos retangulares que mais parecia um túnel como via alternativa para acessar o salão cerimonial. Contudo, travou no meio do caminho ao ouvir barulhos lá fora.

Para se certificar de que não um ou mais intrusos além dele, deu meia-volta. Ao voltar para o ar livre, não escutou nada que não fosse o cricrilar dos grilos e os ronronares de gatos de rua. A luz da lua lhe salvou naquele momento projetando uma segunda sombra humana no chão próxima de Frank. 

A percepção do detetive foi estimulada ao máximo, fazendo-o virar-se quando a coronha de uma metralhadora estava prestes a golpeia-lo na cabeça. Frank dera um soco no homem todo trajado de preto que revidou com o cano da arma desferindo no rosto do detetive que caiu ao chão dada força do golpe.

- Fique onde está, não se mexa. - disse o agressor. 

- Às suas ordens. - disse Frank, levantando-se e dando mais um soco que atingiu em cheio o oponente - Peraí... Você é da ESP?! 

- Quem achou que fosse? O Papai Noel? - perguntou o agente, limpando sangue da boca. 

- O que vieram fazer aqui? - questionou Frank, agarrando-o pelo colete. 

- Me solte, Montgrow, minha primeira missão era apaga-lo pra tira-lo de cena, admito minha falha. 

- A gente não tá aqui pelo mesmo objetivo que eu sei. - disse Frank, largando-o. 

- O conselheiro Hoeckler sabe que deseja virar amiguinho do esper-X. Daí eles nos autorizou a intervir.

- Não é querer amizade, é endireitar a cabeça alucinada dele. E vou ter uma conversa com ele de homem pra homem. Se me der licença... - andou para o túnel. 

- Meus colegas se espalharam pelos arredores implantando explosivos. Quer mesmo entrar? 

- Vocês o quê? Estão malucos? Vão mandar o lugar inteiro pros ares com pessoas dentro?! 

- Pessoas? Aberrações da natureza! Se quiser jogar sua vida fora numa tentativa em vão, siga em frente.

- Falou e disse. - redarguiu Frank, inalterando sua posição.

Um estímulo extrassensorial aguçou a mente de Atticus levando-o a interromper seu discurso. Todos os espers estranharam a súbita parada, muitos acreditando que Atticus estaria com algum mal-estar. 

- Atticus, tá tudo bem? - perguntou Magda na primeira fileira do grupo, aproximando-se do palco. 

- Não se preocupem, foi... Um mau pressentimento. Eu estou perfeitamente bem, problema não é comigo e sim lá fora. 

- O que tem lá fora? - perguntou uma esper de cabelo moicano preto e platinado nos dois lados.

- Intrusos. - disse ele, tenso - Posso senti-los se movimentando ao redor. Escondam-se, podem ser aqueles homens que trabalham pra uma organização anti-paranormal. Vão pras salas de reunião, já! 

Os espers se dispersaram captando a dimensão do alerta, refugiando em salas e saletas adjacentes no templo. Magda foi a única a não correr para os abrigos, subindo no palco para falar com Atticus. 

- Quem são esses intrusos? 

- Provavelmente o grupo de onde vieram os homens que apagaram as memórias do meus pais adotivos. - disse Atticus, sua raiva em ebulição - Os humanos já montaram uma operação contra nós.

- Não é mais seguro mandar todos nós pra algum dos seus... mundos? - perguntou Magda. 

- Por enquanto, prefiro que os inimigos entrem para que sintam na pele a dor mais excruciante de todas. - afirmou ele, a face de fúria - E é você, Magda, quem terá a chance de representar a nossa força. 

Uma expressão de temerosidade estampou-se no rosto de Magda que tomou ciência do que Atticus estava propondo que ela fizesse. Em paralelo, o agente, chamado Dakota, que tentara golpear Frank por trás, olhava no seu iPad um esquema gráfico mostrando a quantidade de explosivos disponíveis e quantos estavam implantados. Frank ficou parado olhando-o, ainda insistente em entrar no templo. 

- Não é possível. - disse Dakota. 

- O que foi? - indagou Frank, curioso - Deu ruim com as bombas? 

- Pior do que isso. Menos de 50 % dos explosivos estão programados para detonar. O tempo de implantação teria que estar completo. 

- E significa o quê? 

- Estão sendo atalhados. - respondeu Dakota, suando de nervosismo - Alguém está obstruindo a missão.

- Que se dane, vocês que se virem com os seus problemas que eu me viro com os meus. - disse Frank, dando as costas para o agente e retornando para o túnel - Nem pensa em me seguir! - falou, categórico.

Enquanto isso, Atticus levava Magda para um banheiro e a colocou de frente para o espelho. 

- Essa é uma ocasião oportuna pra que ela seja útil. Desperte o potencial máximo, Magda. - disse, tocando nos ombros dela. Magda derramava lágrimas, seu pranto não causando o menor remorso em Atticus que entregou-lhe uma navalha que ela pegara com a mão direita trêmula - Liberte a outra metade.

- Eu tenho medo, Atticus. - disse ela, chorando - Medo de nunca mais voltar ao controle. 

- Seus instintos são os dela também. São dependentes uma da outra. Fique nervosa, fique irritada... 

Magda chorava copiosamente ao cortar seus pulsos com a navalha fazendo cortes profundos. O sangue descia na pia e escorria para o buraco abundante. Nas suas lembranças, um homem abusivo a maltratava das piores formas que ela podia sofrer. O rosto da esper se acinzentava e os olhos avermelhavam. 

                                                                           ***

Frank perambulava pelo salão cerimonial à procura de algum vestígio quando de repente as luzes apagaram-se. Alguns espers que ainda passavam por um corredor pararam com o apagar brusco. 

- Galera, me dá só um minuto pra vasculhar a área. - disse um esper de cabelo ruivo, acendendo a lanterna do celular. 

- Espera Cristhie... - disse uma garota com cabelo meio curto colorido de verde - A gente se separou em dois grupos, até aí tudo bem. Mas os grupos se fragmentarem não é nada conveniente. 

- A Zoe tem razão, a gente tem que ficar junto como se fosse um só. - concordou Tate, um rapaz forte que tinha capacidade de absorver qualquer matéria-prima e aderir as células do seu corpo ao material assimilado. Tocou na parede de tijolos retangulares e sua pele ganhou a mesma composição atômica. 

- Calma gente, é rapidinho, por favor. Fiquem bem aí, não demoro. - disse Cristhie, seguindo para dobrar a um corredor. Porém, em vez de avisar seus amigos que parecia seguro, ela deu mais passos adiante. A lanterna do celular enfraqueceu até apagar-se - Droga. - o celular não funcionava. 

Assim que Cristhie desviou o foco do celular para olhar à sua frente, vislumbrou um par de olhos brilhando uma luz branca na escuridão. Os amigos ouviram seu grito estridente estremeceram. 

Correndo para verem, depararam-se com o corpo de Cristhie ensanguentado jazido no chão. Na barriga dela via-se uma perfuração profunda. Tate se enfureceu e Zoe estava em choque pela morte da amiga. 

- A Cristhie... 

Ao virar-se, Zoe testemunhou Tate sendo atravessado por uma mão que o destroçou em pedaços com um luz fulminante que cegara os olhos da jovem. Zoe gritou com o clarão que queimava literalmente seus olhos. Sem poder ver nada, Zoa apenas sentiu a ponta de uma espada transpassar sua barriga e a última coisa que ouviu foi o som da mesma saindo da carne. 

Não muito distante, Frank apontava sua arma para algo que emitiu ruído e destravou-a. 

O agente Dakota saía da escuridão indo para onde a luz da lua banhava.

- Ei, o que pensa que tá fazendo? - perguntou ele, erguendo as mãos. 

- Essa pergunta é minha. Não pedi pra que não me seguisse? Eu quase meti bala em você. 

- E realmente acreditei que o faria. 

- Ergueu as mãos porquê? Tá de colete com umas 100 camadas. 

- Você mirou no peito, mas podia acertar a cabeça. Vocês nos odeia, Montgrow. Não subestimo esse ódio. 

- Ódio... Essa é uma palavra muito cabível pra esse momento. - disse Atticus com Magda ao lado. A esper apresentava uma aparência tenebrosamente modificada: o loiro dos seus cabelos deu lugar a um branco pálido, sua pele se acinzentou tal como seus lábios e os olhos vermelhos e sem pupilas eram contornados por manchas pretas que não pareciam maquiagem exagerada - Tenho a fonte perfeita.

- Atticus... Não me diga que essa é a... 

- Magda está fora do radar. - disse a Banshee com sua voz monstruosa. 

- Eu sei que é a Magda, ia dizer... Banshee. Ouvi falar de você. Gosta de resolver as coisas na base do grito. - disse Frank - Mas o meu papo não é com você e sim com seu supremo líder. 

- Não temos nada pra falar, Frank. - disse Atticus, secamente - Se não está aqui pra me matar, fuja. 

- Mas eu estou. - disse Dakota, sacando uma arma e apontando-a para Atticus. Porém, a Banshee agiu prontamente emitindo seu grito hipersônico e arrasador. Dakota tapou os ouvidos, mas sangraram bastante tal como seus olhos e o nariz. O agente caiu duro como rocha no chão, os olhos abertos. 

- É isso que acontece com quem brande uma arma contra qualquer um de nós. - disse Atticus - Vai se atrever, Frank? Com o amor que tem pela sua vida, é óbvio que não. Até mais. - pegou na mão esquerda de Magda. 

- Atticus, espera... - disse Frank, interrompendo-se ao ver que o esper e sua donzela desapareceram num piscar de olhos. O detetive sentiu outra presença e apontou sua arma. Uma não, três presenças. Ficou boquiaberto ao reconhecer o indivíduo do meio - Não pode ser... Vocês!? - abaixou o revólver, pasmo. 

O trio de centuriões com seus olhos brancos e brilhantes encarava Frank soberbadamente. 

- Adrael. - disse Frank - Pensei que você e seus irmãos tinham ido embora por mais alguns milênios. 

- Estes são Fraziel e Gartan. - disse Adrael, o brilho nos olhos reduzindo - Sua energia estava muito forte e decidimos acompanha-la. O que está fazendo? Mais uma das suas investigações? 

- Basicamente. E vocês... - lembrou do que Dakota havia constatado - Peraí, foram vocês que impediram os agentes de armar os explosivos? Querem proteger os espers? 

- Não. - respondeu Adrael - Não desta vez. Acatamos ordens de Raguel para eliminar um à um, sem clemência. - disse o centurião aproximando-se do detetive - Nos damos conta de que estão perturbando a ordem cósmica natural. Os outros humanos que tem os mesmos propósitos não foram mortos, somente afastados. Não podemos permitir que nada interferia. Estou captando energia... 

- Adrael, não precisam chegar nesse extremo. - disse Frank - Os espers são humanos, pessoas que rezariam por vocês se pedissem por ajuda! Se mereço ser morto por não concordar, então arregaça! 

- Não quero matar você. - disse Adrael - Estava conversando com o esper mais perigoso, né? Sinto a energia dele... Não dele apenas, tem outra, menor e mais estável. Fraziel, Gartan, vão, assumo daqui. 

- Ah não, eu também assumo. - disse Frank tocando no braço esquerdo do anjo logo no instante em que ele se teletransportara para o local onde rastreou Atticus e Magda. Ambos estavam numa sala de reuniões e foram surpreendidos com a chegada de Frank e Adrael que sacou sua lâmina - Não, não... 

Frank pegara-o pelo braço direito e o anjo o jogou telecineticamente contra a parede. 

Teleportando na velocidade de um pensamento, Adrael fincou sua lâmina em Magda já de volta ao controle. Atticus ficou boquiaberto ao vê-la cair ao chão soluçando e sangrando. 

- Não, Magda! - disse ele, desesperado. Adrael recuou, guardando a espada - Fica comigo... 

- A-Atticus... Faz o seguinte: Usa aquele poder que você me contou uma vez que tem... - esforçava-se para proferir suas últimas palavras - Não vou te culpar por não fazer nada, esse cara... foi bem rápido. 

- Vou vinga-la... Por todos os espers que escolheram lutar ao meu lado. Prometo. 

- O que tá esperando? A Banshee... Pegue ela pra você. É o último favor que te peço. 

Adrael manifestava suas asas brilhantes, criando um leve tremor de terra e uma ventania que balançou as cortinas da janela. Atticus sabia o que significava o último pedido de Magda e tocou na mão dela. 

- Adrael, pára! - gritava Frank, encostado na parede, a ventania bagunçando seu cabelo. 

A luz branca que refulgia das asas do anjo intensificava-se mais. Ele esticou sua mão direita. 

- É o fim dele. Não posso manda-lo pra fora porque vou pulveriza-los, então saia daqui, Frank! 

- Deixa ele em paz, Adrael, é sério... - alertava Frank, exasperado. 

- Levante-se daí e me encare. - disse Adrael para Atticus - Esta luz... será a última coisa que verá. 

- E eu farei... com que nunca se esqueça dessa voz. - disse Atticus, virando-se à ele com uma aparência bastante similar a de como Magda estivera possuída pela Banshee. Dotado do poder da entidade inteiramente absorvido ou a própria entidade absorvida, o esper soltou o grito avassalador que quebrou as vidraças das janelas num instante. Frank tapou fortemente os ouvidos sentindo a onda sonora penetrar agressiva nos seus tímpanos, embora em menor proporção comparada a que atingiu Adrael. 

A postura impávida do anjo se desfez num segundo quando a onda reverberou, gerando hemorragias pelo nariz e ouvidos. Adrael cambaleou quase caindo e foi segurado por Frank imediatamente. 

Frank olhou para Atticus cujo rosto voltava a aparência normal. 

- A Banshee te possuiu também? 

- Não. Eu a tomei da Magda. Ela ia odiar se a outra metade saísse com o corpo dela por aí. Pensando nisso, se um dia ela acabasse morrendo na minha frente, eu absorveria a Banshee... Promessa é dívida e acabei de cumpri-la. A Magda foi a única até então que soube dessa minha habilidade. 

- O que mais você pode fazer? 

- Não é da sua conta. - rebateu Atticus, ríspido - Por acaso, é amigo desse... O que ele é? Um anjo? 

- Vocês espers... - disse Adrael, ainda fraco e sangrando - ... não podem continuar existindo... 

- Sua guerra é com os humanos, não é, Atticus? Então já deu por hoje. Te garanto que os anjos não vão mais causar uma matança de espers onde quer que estejam. Só estavam executando ordens. E eu lamento por sua perda. - olhou para Magda. 

- Frank, vai embora. - disse Atticus, desolado com a morte da amiga - Preciso me despedir da Magda. 

- Mas tenta ver por outro lado... 

- Sai daqui! - vociferou Atticus, fazendo a lâmpada de um abajur estourar - Antes que eu mate você. 

Atendendo à solicitação, Frank carregara Adrael saindo da sala, entristecido por Magda e por Atticus que se negava a escutar qualquer contraponto ao seus ideais que tentassem "virar sua mente do avesso".

                                                                              ***

Um parque gramado ficava nas proximidades do templo maçônico. Lá, Frank e Adrael conversavam antes de despedirem-se. Os agentes da ESP se retiraram após a ordem de cancelamento da força-tarefa intitulada "Água Quente no Formigueiro". O detetive e o centurião foram para uma área mais discreta.

- A boa notícia é que esse auê todo não terminou com mais mortes. - disse Frank - E a ruim... é que o Atticus tem vocês na mira. Fiquei me perguntando como um esper foi capaz de superar um anjo? 

- Eu não fui superado. - disse Adrael - O seu garoto pródigo tem um poder excepcional, mas é dependente de uma força ainda maior, por isso se sobressaiu. Ele é um receptor, não a fonte. 

- O que você tá querendo dizer com isso? 

- Nós centuriões captamos energias de diversos tipos. O que senti naquele momento em que ele se levantou totalmente mudado foi uma força externa agindo sobre ele, não a entidade que o possuiu. 

- Ele não foi possuído, absorveu a Banshee. Achava que ele só distorcia o espaço-tempo e criava mundos de ilusão, igual o irmão dele, o Roman. O que explica ele ganhar novos poderes como criança que ganha doce de algum velhinho todo dia? 

- Eu não entendi bem a analogia, mas... O Atticus não está desenvolvendo naturalmente esses poderes. Seu corpo é uma ponte pela qual age a força, uma saída. É uma energia singular, não sei dizer o que é.

- Então ele tá sob as rédeas de uma coisa que tá potencializando a natureza dele... - disse Frank, refletindo - Se bem que ele saiu do coma de uma hora pra outra em pouco tempo no hospital... 

- Mas fique tranquilo. Raguel pode não nos punir, mas vai revogar a decisão de extermínio. 

- Ahn... Tem algo sobre o Fred que eu queria te falar... Eu tentei arrancar ele do submundo fazendo um pacto com a Lilith... que, pra você se aliviar, se deu mal lidando com a mãe do Fred que tá viva... 

- Encontraram Kezabel?! - disse Adrael, tocando os ombros do detetive que se desconfortou. 

- Sim... Ela matou a Lilith depois que uma cópia do Fred foi feita pra tapear a regra do tridente que, por sinal, você, malandramente, escondeu de mim, mas eu entendo, não ia dar conta de ser paparicado por um bando demônios. No fim das contas, o Fred resolveu ir com a mãe dele e eu salvei o Isaac. 

- Isaac, o sacerdote? Ele está bem? 

- De volta pros braços da esposa dele. Não quer visita-lo pra pedir desculpar pelos olhos da Bertha?

- Eu posso restituir a visão dela. Na verdade, posso fazer isso agora... - disse o anjo, enchido de remorso - Vai amenizar a frustração da missão falha. Foi bom reencontra-lo, Frank. - estendeu a mão direita.

Frank e Adrael deram um aperto de mãos longo. 

Fora do espaço-tempo comum, Atticus reunia-se com os seguidores remanescentes, todos pesarosos com os últimos e brutais acontecimentos. O esper fitava-os seriamente com seus olhos heterocrômicos.

- Eu me compadeço pelo que estão sentindo. Somos um só coração enlutado e sangrando. 

- Temos que nos tornar maioria quando marcarmos o dia do nosso advento. - disse um esper com um terceiro olho na testa que ocultava perfeitamente para ninguém notasse de primeira. 

- Primeiramente faremos algo em memória da Magda e dos demais. - determinou Atticus andando pela sala luxuosa que nada mais era que uma criação do espaço dimensional oriundo dos seus poderes - E só depois... - virou-se para os discípulos, a expressão de raiva controlada - ... avançaremos com tudo. 

                                                                                 -x-

*A imagem acima é propriedade de seu respectivo autor e foi usada ilustrar esta postagem sem fins lucrativos.

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