Frank - O Caçador #64: "Adivinha Quem Veio para a Festa"
Uma universitária chamada Ciara desembarcara no México para um trabalho de pesquisa de campo cujo intuito visava angariar dados para compor os preparativos de uma festa do Dia dos Mortos, mas na sua cidade natal, Santa Fé, no Novo México, ajudando seus pais a organizar um festival que emulasse a comemoração de acordo com a realizada no país de origem. A jovem de cabelos castanhos claros e ondulados adentrava no casarão velho e repleto de teias de aranha.
Sem o aval dos proprietários da mansão que apenas protegem a integridade da residência como um patrimônio sagrado, Ciara invadia no objetivo de libertar o espírito de Catrina Sanders cuja história inspirou a criação da caveira mexicana, uma tradição cultural enraizada na festividade fúnebre. Teoricamente o corpo dela estaria num caixão acima da mesa de jantar, curiosamente nunca enterrado, nem mesmo pelos que se comprometeram em se apropriar da mansão.
Ao entrar na sala onde a imensa família de Catrina reunia-se para as refeições, Ciara esquadrinhou o ambiente envelhecido e cinzento andando em passos vagarosas com sua bolsa de alça longa. Para quando os proprietários viessem à mansão novamente para guiar turistas, Ciara escreveu uma mensagem infame na mesa tomada por uma camada densa de poeira: "Aqui passou um visitante que entrou sem autorização. Conseguem adivinhar quem foi? E, por favor, menos turismo e mais limpeza nesse lugar." Deu um sorrisinho de canto e voltou os olhos para o caixão preto sobre a mesa. Observou os símbolos no caixão pintados com tinta branca, não os reconhecia, embora soubesse que transmitiam uma ideia mística pelas suas formas. Tirou uma caneta da bolsa e adulterou um dos símbolos da tampa raspando-o.
Em seguida, guardou a caneta e abrira o caixão com as duas mãos, levantando a tampa com expectativa. No entanto...
- O quê? - indagou ela, franzindo o cenho - Não é possível... Devia ter um cadáver ou restos dele aqui.
O inteiro do caixão estava completamente vazio, nem mesmo um resquício de pó havia.
Um frio de repente a tomou. Ciara expeliu um vapor gélido pela boca enquanto esfregava as mãos nos braços. Olhou para os lados, tendo a intuição de não estar sozinha. Ao virar-se para a parede atrás dela, Catrina Sanders, em pessoa e espírito, estava diante da jovem sorrindo sinistramente com seu rosto pálido e cadavérico, emoldurado por cabelos pretos, até que bem similar ao das pinturas faciais da festa pelos mortos. Os olhos arregalados de medo de Ciara encararam fixamente os de Catrina também do mesmo jeito, com contornos negros nas órbitas realçando o branco dos globos oculares, mas expressando uma emoção distinta. Repentinamente o fantasma avançou em Ciara, mas não a atacando e sim possuindo-a.
O corpo de Ciara foi preenchido pela alma corrupta de Catrina que, dominando-o, sorriu com malícia.
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CAPÍTULO 64: ADIVINHA QUEM VEIO PARA A FESTA
Santa Fé, Novo México
Dois dias depois
Frank nunca havia soltado informações acerca de seus familiares vivos para Carrie ou Ernest com exceção de sua mãe que estava para completar seus 70 anos. Lembrando de seu tio Steve há dois dias, resolveu encher o tanque do carro e cair na estrada rumo à cidade onde ele se instalara faz 15 anos levando uma vida de solteiro tranquila e sem cobranças. Frank estava de certa forma ansioso para revê-lo após os 20 anos que o viu pela última vez quando ele visitou sua irmã mais velha um ano antes de Klaus Montgrow partir em direção à Vanderville para nunca mais voltar. O sedã prata do detetive dobrava para uma rua na qual localizava-se a residência do tio, mas um clima excepcional pairava.
- O que é isso? O carnaval chegou antecipado por aqui? - perguntou, estranhando as decorações que enfeitavam a rua, decorações estas que ele só foi reconhecer depois - Ah não, isso é... - lembrou da data - Ah, lembrei agora: Hoje é 2 de novembro, dia dos mortos. Estão comemorando o dia dos mortos que nem fazem no México?!
Encostou o carro perto de uma calçada e desceu do veículo para andar até a multidão de pessoas, tanto visitantes quanto participantes vestidos à caráter para a festa, muitas com pinturas de caveiras nos rostos. De repente, uma figura muito familiar parou poucos metros à frente com olhos arregalados de imensa surpresa. Frank mal acreditava que o encontraria tão depressa no meio daquele povaréu.
- Sobrinho! - disse Steve, entusiasmado, abrindo os braços. O tio de Frank possuía 65 anos bem vividos e uma aparência não muito envelhecida para sua idade: caucasiano, cabelos meio grisalhos, bigode meio volumoso, porte físico um tanto obeso e vestindo camisa amarela clara com calças jeans.
- Tio Steve?! - disse Frank, sorrindo feliz ao reencontra-lo. Ambos colidiram-se num abraço apertado.
- Há quanto tempo! - disse Steve olhando-o de baixo para cima - Da última vez você... estava mais magrinho.
Frank que nunca soube muito bem os motivos que impediam o tio de visita-lo de tempos em tempos.
- Bem, é nisso que dá treinar pra ser policial. - disse Frank com bom humor referindo-se ao seu corpo - Caramba, tô perplexo que o senhor me reconheceu assim logo de cara...
- Frank, eu posso ter ficado tempo demais sem vê-lo, até me culpo por isso, mas sua mãe me mantinha bem informado. Quer um docinho de abóbora? - perguntou, mostrando um pote pela metade com a colher dentro.
- Não, obrigado. - recusou Frank olhando para a festa ocorrendo à sua volta - Desde quando se comemora o dia dos mortos desse jeito tão tradicional no Novo México?
- Uma família de mexicanos se mudou pra cá faz poucos meses e pediram autorização do novo vereador pra organizar um festão de dia dos mortos igualzinho feito no México. Não tá achando sensacional? Vai ter um concurso de fantasia pra escolher a melhor e mais produzida La Catrina, a maior atração.
- Pra sair um pouco da rotina de Halloween, vem a calhar. Até porque esse ano foi meio fraco por lá.
- Vem comigo, curtir as belezas decorativas e funestas. Foi uma ótima iniciativa do vereador Diggle. - disse Steve comendo o doce - Você não podia ter vindo numa hora melhor pra me visitar. Admiro essa sua consideração.
- Ahn, tio... Não queria tocar nesse assunto aqui e agora, mas... entrando no mérito, essa é a consideração que eu esperava que o senhor tivesse por mim. Olha, não vim soltar os cachorros pra cima do senhor por causa disso, só queria mesmo sanar as dúvidas. Mamãe também adoraria saber. O senhor, como irmão, não abriu o jogo nem mesmo pra ela? Eu sei que tardei pra visita-lo, mas era porque as minhas ocupações diárias não permitiam nem que eu ligasse pra ela e dizer um "oi" ou perguntar se está tudo bem, muito menos pegar estrada pra dar uma passadinha na casa dela ou aqui pra ver o senhor.
- É complicado, Frank. Também tive ocupações que me impediam.
- Então por que se nega a revelar o que fez da vida nesses 20 anos? Eu não queria estar aqui pra dizer "Olá sumido" ou "Há quanto tempo". - desabafou Frank, ansiando saber a verdade.
- Nós... podemos apenas aproveitar a festa? Desculpa, não fui justo com você e com a Heather.
- E quando finalmente vai ser? - perguntou Frank deixando o tio ainda mais tenso.
- A verdade vêm à tona sempre no momento mais oportuno. Nesse momento estamos aqui pra festejar e homenagear nossos entes que se foram pois acredito que eles foram para um lugar melhor. É uma forma de abrandar as dores da saudade. Entra nesse espírito, Frank. Deixemos o meu segredo cabeludo pra outra ocasião.
- Tá legal. Essa é uma visita importante demais pra gente ficar desperdiçando com essa discussão.
- Então seja bem-vindo à nossa celebração. Vem, tem um monte de coisa pra se contemplar aqui.
- Fazer o quê, né? Vamos nessa. - disse Frank acompanhando o tio para apreciar as belezas lúgubres da festança.
***
Na casa do comitê do vereador Calvin Diggle, as participantes do concurso de La Catrina se aprontavam numa sala especialmente reservada para os preparativos. As cinco competidoras terminavam suas pinturas faciais inspiradas na caveira mexicana de frente a espelhos ovais sobre algumas mesinhas altas. Uma delas já havia concluído sua pintura usando um vestido azul e amarelo. Ela saiu da sala sem que as demais notassem... exceto Ciara que pelo seu espelho a viu saindo.
Essa competidora passou por um corredor e dobrou para outro encontrando o vereador Diggle entrando banheiro masculino e seguiu diretamente para lá numa expressão dura. Enquanto o vereador se aliviava urinando, ela adentrava no banheiro cautelosamente para não emitir ruídos. Ao terminar, Calvin abrira a porta do box dando de cara com a participante do concurso olhando-o seriamente.
- Mas... O que está fazendo aqui? - perguntou ele, levantando uma sobrancelha, intrigado.
Ela ergueu sua mão direita e executou um golpe atingindo a garganta de Calvin que fez respingar sangue na parede e no seu rosto pintado de branco. O corpo do vereador caiu agonizante perto do vaso sanitário, o sangue saindo em cascata do gravíssimo corte. A garota o pegou levantando a tampa do vaso e mergulhou a cabeça dele na água que misturou-se ao sangue profuso, logo dando a descarga e por fim descendo a tampa sobre Calvin e pisando nela com o pé esquerdo para prende-lo. Calvin se debatia como um peixe fora d'água enquanto sua executora sorria maleficamente com o seu êxito.
Ciara terminara sua fantasia e rapidamente se moveu até a porta.
- Aonde vai? Não tínhamos que sair só depois que chamarem? - perguntou uma das competidoras.
- É a Jenna, saiu faz um tempinho daqui, vocês não viram. - disse Ciara abrindo a porta - Vou atrás dela.
Ciara passou pelo corredor e olhou para sua esquerda onde ficavam os banheiros feminino e masculino.
Se direcionou ao primeiro, batendo na porta e chamando pelo nome de Jenna sem obter resposta. Porém, reparou numa água avermelhava escorrendo por baixo da porta do banheiro masculino. Ao abri-la, foi tomada por um tremor repentino nos músculos devido ao susto baqueante vendo toda aquela água rubra correndo como um rio sob o piso. Aproximou-se, lívida, do box de onde escorria e, um pouco afastada da correnteza sangrenta, com a mão direita trêmula empurrou a porta.
Outro susto arrepiante, desta vez a fazendo soltar um grito de pavor.
O corpo de Calvin estava enfiado no vaso sanitário que transbordava de água misturada a sangue fresco.
***
Ciara corria entre as pessoas da festa chamando atenção não pela sua face criativamente pintada para o concurso, mas também pela expressão de pura aflição no seu rosto. Ela acabou esbarrando de costas em Frank.
- Ai, me desculpa. - disse ela virando-se - Espera... O senhor por acaso é detetive ou policial?
- As duas coisas. - respondeu Frank olhando para o semblante de assustada de Ciara - O que foi que houve? Aposto que com essa cara você tá tão branca quanto essa tinta. Calma, respira, e me conta.
- Eu... acabei de descobrir uma coisa horrível no banheiro...
Steve veio para perto de Frank curioso quanto o relato de Ciara.
- Ei, você não é uma das meninas que fez a tal pesquisa de campo pro seu trabalho de faculdade?
- Não foi apenas pra isso, eu quis ajudar meus pais, eles sempre viveram aqui no país, não tiveram muito contato com a cultura na infância, daí tive que viajar ao México coletar informações do festival. Sem minha contribuição, essa festa não teria acontecido de verdade. Mas minha última parada nessa viagem foi um erro. - disse Ciara, resistindo ao choro - Não devia ter entrado naquela mansão...
- Relaxa, conta o que foi que você viu no banheiro. - disse Frank.
- O vereador Diggle... está morto. Alguém o assassinou de uma maneira tão... brutal e selvagem. Você tem que vir comigo se quiser, eu estava procurando a polícia que cuida da segurança da festa...
- OK, vamos lá. E tio Steve... fica aí, volto já, prometo.
- E você acha que vou deixar escapar a chance de te ver bem de perto trabalhando numa investigação criminal? Eu não fico no escanteio, não vou implorar por permissão. - disse Steve.
- Tá bom, o senhor pode vir, mas nem pense em querer ver o corpo do vereador.
- Eu sei, tô chocado demais pra encarar uma coisa dessas ao vivo e a cores. - disse Steve um tanto amedrontado com um assassinato ocorrendo em plena festa de dia dos mortos e logo com o vereador.
Frank e Ciara entravam na casa do comitê a passos largos e rápidos, a jovem guiando o detetive ao banheiro masculino.
- Desliguei o registro de água pra não atrair gente que fosse alardear aos quatro ventos. - disse ela.
Frank entrou no banheiro e viu Diggle no vaso sanitário ainda com sangue expelindo. Enquanto o detetive o retirava para verificar o tipo de ataque mortal que recebera, Ciara voltou à sala de aprontamento.
- Pessoal, é o seguinte: A festa tá sob ameaça de cancelamento. O vereador Diggle... ele... foi assassinado no banheiro.
A notícia arrancou arquejos de pânico das meninas que levantaram-se alarmadas.
- Mas como? Logo hoje? - perguntou uma delas.
- Achei um detetive, ele já tá cuidando de desvendar a situação. Até tudo ficar sob controle, vocês tem que ficar aqui.
- E quanto à você? Vai ficar zanzando pela casa enquanto tem um assassino à solta? - questionou outra.
- De alguma forma, eu tenho que ajudar nisso e ainda encontrar a Jenna... A gente se vê mais tarde.
- Ciara, espera... - disse outra delas preocupada.
Frank saía do banheiro masculino e Steve veio ao seu encontro com enorme curiosidade.
- Teria sido melhor o senhor esperar lá fora. - disse Frank.
- Mas por que? Disse que eu podia vir junto.
- Olha, tio, a última coisa que eu quero é o senhor vazando informação pra passar de boca em boca por aí e causar pânico generalizado, daí arruinando a festa. Finge que aqui tem uma faixa de "Não ultrapasse".
- Não entendo, você primeiro me deixa te acompanhar, agora muda de ideia querendo que eu não avise as autoridades? É um assassino em série? Se for, um detetive sozinho não é capaz de captura-lo.
- O senhor certamente não avisaria a polícia. Talvez sim, mas depois dos vizinhos, de uns conhecidos...
- Quanta desconfiança em cima do seu parceiro de investigação. - disse Steve, sarcástico.
Ciara vinha voltando da sala de preparação.
- Detetive, será que daria pra gente conversar em particular? Pode ser aqui nessa sala ao lado.
- OK, tô sentindo que você tem muita história a compartilhar. - disse Frank.
Steve deu um passo à frente, mas Frank o barrou com o braço esquerdo.
- Tio, é sério, volta pra festa e não dá com a língua nos dentes pra ninguém sobre o vereador. Deixa que daqui há pouco aviso à polícia, principalmente se houver mais mortes. - disse Frank, cansado da intromissão de Steve que bufou de incômodo e deu meia volta seguindo para fora da casa. Antes que pusesse o pé para fora, Jenna quase esbarrou nele, ainda possuída pelo espírito de Catrina. Ele estranhou ao reparar nos pequenos pontinhos vermelhos na pintura branca do rosto.
- Pode passar. - disse ele, educado. Jenna se encaminhou provavelmente indo para a sala de preparação.
Steve ficou a observa-la intrigado. "Impressão minha ou... Ah, esquece, é viagem minha.", pensou ele.
O detetive acompanhou Ciara entrando junto com ela na sala de reuniões do comitê.
- Beleza, Ciara, o que tem de tão relevante sobre esse caso pra me falar? - perguntou Frank.
- A culpa foi minha. - disse ela, virando-se para ele, atordoada - Entrei naquela mansão como uma invasora, transgredi uma norma só por bisbilhotice. Queria muito ver e perto o caixão da Catrina Sanders, a mulher abastada e famosa que inspirou o autor da caveira mexicana. Era estranho um caixão em cima da mesa, nunca enterrado, e tinha símbolos, ideogramas, alguma coisa do tipo pintados e arranhei um deles deduzindo que fossem mágicos e libertaria a alma de Catrina do seu corpo. Quando abri, não tinha nada, mas logo depois... ela apareceu.
- A Catrina apareceu bem diante de você?
- Pode parecer que foi mera imaginação, mas sim, ela tava na minha frente, sei que não era ela fisicamente...
- Um espírito. - interrompeu Frank - É lógico pensar que o caixão servia de prisão para a alma da Catrina e os símbolos que viu... são muito provavelmente de feitiçaria e das brabas pra selar o espírito.
- Nossa... Não esperava que o senhor fosse tão por dentro desses assuntos. Foi praticamente a mesma conclusão que eu tirei depois que eu reassumi meu corpo. Sim, ela me possuiu e agora está usando outro corpo, talvez o da Jenna. Ela saiu da sala quando todas deviam ficar antes do concurso começar. Me desculpa, a morte do vereador tá na minha conta.
- Por mais que você tenha cometido uma imprudência, mesmo acreditando no sobrenatural, não tem que levar sentimento de culpa na cabeça, nem mesmo a sua amiga, Jenna. E agora dificulta pra mim, eu não vou sair por aí jogando sal na boca de todo mundo pra descobrir em qual corpo a Catrina tá possuindo. Pra dizer a verdade, nem sal eu trouxe, hoje era pra ser minha folga.
- Você é tipo um... detetive paranormal? Lida com fantasmas e possessões de demônios?
Steve veio entrando no exato momento em que Ciara fizera a pergunta e expressou dúvida na face.
- Tio Steve?! Ah não, já não falei pro senhor voltar pra festa?
- Como acha que posso me divertir com um assassino entre nós?
- Ele tá certo, a festa tecnicamente acabou. Se avisarmos a polícia, todo mundo lá fora vai ter que se dispersar em nome da segurança. - disse Ciara - É até bom que isso aconteça, vai impedir o plano da Catrina.
- Plano? Que plano?
- Enquanto estive possuída ouvia os pensamentos da Catrina como se fossem meus.
- O que diabos é isso? Possuída? O que realmente tá havendo aqui? - perguntou Steve, afobado - Tá começando a me dar medo...
- Calma aí, tio, deixa ela falar. - repreendeu Frank.
- Ela planeja um banho de sangue pra hoje à noite, matando várias pessoas pra que seus fantasmas se juntem aos outros que virão do além para os corromperem. Pra isso ela fará um ritual de sacrifício. Já está fazendo, aliás.
- Então não vamos deixa-la terminar. - disse Frank - Tio, como o senhor não quer desgrudar de mim, vem comigo avisar a polícia da morte do vereador. O fantasma ainda deve estar por aqui...
- Frank, eu voltei pra te dar um aviso. - disse Steve - Mais duas pessoas morreram lá fora.
- É ela, a Catrina tá juntando almas dos que mata pra se juntarem aos espíritos que ela vai conjurar. E pensar que eu só quis liberta-la pra que ela visse a homenagem e se orgulhasse disso. - disse Ciara.
- Tio, o senhor tem que acreditar: Tem um espírito maligno, o espírito de ninguém que Catrina Sanders, a musa inspiradora da caveira que enfeita a festa do dia dos mortos. E eu vou cuidar de deter ela.
- Então é nesse tipo de trabalho que você atua. - disse Steve, um tanto surpreendido - Fantástico....
- Fantástico nada, é horrível. Vamos logo que o tempo tá encurtando.
***
Algumas nuvens de chuva bastante cinzentas vinham a caminho naquele final de tarde. Frank conversava com um policial que fora repassar a informação aos demais urgentemente.
- Olha ali, Frank. - disse Steve apontando para o céu - Vai cair um toró já já. Não faz diferença, a festa tá acabada mesmo.
- Muito bem, vamos chamar a Ciara pra irmos na sua casa, ficamos lá até a chuva passar. A polícia vai soar o alerta de evacuação. O assassino pode ainda estar dentro da casa do comitê. Digo, o fantasma da Catrina.
- Ainda continuo pasmo com essa verdade. Um detetive de assombrações. A Heather sempre soube disso?
- Soube desde que começou a namorar meu pai. - disse Frank.
- Até ele também?! Que família mais estranha, nunca mais vou olhar pra minha irmã da mesma maneira.
- Não tinha dito que achava isso fantástico?
- Estou revendo esse conceito. - respondeu Steve sentindo-se tenso pela atmosfera soturna que recaiu sobre aquele dia que deveria terminar em celebração. Ciara vinha correndo até eles segurando o vestido.
- As minhas concorrentes fugiram pela janela. Parece que vai chover, mas não importa, o concurso já era.
As pessoas se dispersavam atarantadas ao saberem da morte do vereador Calvin Diggle e a rua se esvaziava, apesar de haver uma pequena parcela de gente protestando pela continuidade da festa após o término da chuva que esperava-se ser passageira, mas foram contestados, gerando brigas ferrenhas.
- A confusão começou. Sempre tem esses do contra. - disse Steve, reprovando - Bando de insensíveis.
- Eles vão fechar a casa do comitê. Temos que... bolar algum plano pra impedir a Catrina antes de anoitecer completamente, só que a chuva vai dificultar. Meus pais estão com a chave da casa.
- Como eles estão ocupados vendo a questão do prejuízo da festa, podemos ir pra casa do tio Steve. Vamos, tá começando a garoar.
Paralelamente, uma das participantes do concurso corria em meio a chuva tentando proteger sua maquiagem e se refugiou num beco. Relâmpagos piscaram seguidos de trovões. Ela se protegeu debaixo de um teto com telhas naquele beco ofegando de tanto que correu. Porém, uma presença foi sentida. Virou-se tomando um baita susto e recuando. O espírito de Catrina estava diante dela com seus olhos que pareciam ter pupilas menores que o normal. Ela soltara um grito apavorada, mas a possessão ágil de Catrina a silenciou e se dirigiu em retorno a casa do comitê onde os policiais averiguavam. Um raio atingira um poste, cortando a luz da casa. Recorrendo às lanternas, o grupo seguiu explorando para encontrar possíveis novas vítimas não descobertas. Um deles foi à sala de reuniões, não vendo nada.
Um relâmpago iluminou a mesa perto da janela. Encostada nela e sentada, havia uma jovem aparentemente chorando. O policial com a arma e a lanterna em punho aproximou-se cuidadoso.
- Ei, você aí! Responda!
A garota levantou-se tranquilamente e o policial iluminou seu rosto com a lanterna. Ela esboçou uma raiva tremenda cerrando os dentes que sua pintura de La Catrina tornou sinistra. Agarrou o policial pelo pescoço e o jogara na janela, o rosto dele batendo contra o vidro que trincou bastante com o impacto.
Na casa de Steve, Ciara usava o laptop pesquisando a vida pregressa de Catrina.
- Deve haver algum jeito de mandar esse fantasma de volta pro além na base da conversa. - disse Steve, sentando-se no sofá ao lado de Frank.
- Pior que nesse caso não. - contrariou Frank tomando um café - Pela forma como matou o vereador, ela é um espírito impossível de purificar, violento e vingativo demais pra simplesmente lidar só com palavrinhas motivacionais. E nem sempre funciona, não importa se o fantasma tá menos ou mais P da vida... ou da morte. - tomou um gole - E aí, Ciara? Achou alguma coisa do passado da Catrina?
- Diz aqui que ela foi morta possivelmente por um ritual de magia negra arquitetado por um grupo, supostamente uma família, que invejava seu estilo de vida e queriam se apoderar da mansão depois que submetessem Catrina às coisas horríveis que fizeram. Catrina tinha um certo fascínio pela morte e usaram isso contra ela. Separaram o corpo do espírito.
- O que fizeram com o corpo? - perguntou Frank.
- O enterraram ou queimaram. Quanto ao espírito, já sabemos o que aconteceu. E sei como prendê-lo. - disse ela pegando uma caneta na mesinha e anotando o feitiço na palma da mão esquerda.
- Tá escrevendo o quê? - perguntou Frank.
- O feitiço de selamento. A chuva já passou, né? - perguntou, olhando para trás na janela.
- Parece que sim. - disse Steve - Mas e aí, como vão fazer? Não precisam de um caixão?
- Tem caixões decorativos pra festa na casa do comitê, mas... a polícia já deve ter trancado tudo.
- Ah, mas a gente vai entrar sim e com o pé na porta. - disse Frank, levantando - E isso não inclui o senhor, tio.
- Mas eu nem estava pensando em participar. - disse Steve em sua defesa.
- Bora lá, Ciara. Entra pelos fundos pra fazer o feitiço e eu pela frente pra meter bala de sal grosso na Catrina quando ela aparecer.
***
Assim que a chuva passara em definitivo, Frank e Ciara moviam-se à casa do comitê. Ficaram meio surpresos ao constatarem que nenhuma porta estava trancada. Ciara vinha voltado do outro lado da casa.
- A dos fundos também tá aberta. Estaria trancada se tivessem acabado de retirar o corpo do vereador.
- Significa que... eles ainda estão lá. Provavelmente não vivos. - disse Frank, temendo pelo pior.
O detetive adentrou com o rifle carregado de balas imbuídas de sal grosso.
Catrina, ainda no corpo da participante do concurso, acendeu as velas na mesa passando sua mão direita sobre elas. Desenhou um símbolo místico com sangue na mesa de madeira usando sua mão esquerda suja. Ciara correu para a sala onde ficavam os itens de decoração olhando para todos os lados procurando os caixões. Retirou vários cartazes amontoados e tapetes. Alguns caixões estavam ali e pegara um menor de mogno, colocando-o sobre uma mesinha e logo abrindo-o. Frank olhava pela brecha da porta da sala onde Catrina e percebeu que ela possuía uma das meninas fantasiadas, o que impossibilitava ao detetive de atirar para neutraliza-la já que as balas causariam mais danos na casca do que nela.
- Putz. - disse Frank - Vagabunda. - xingou em tom baixo.
Ainda assim, entrou. Catrina virou-se para ele expressando cólera e logo o arremessou contra uma estante de livros com telecinesia. Frank reergueu com livros caindo nos seus ombros e correu para estragar o símbolo desenhado na mesa, mas Catrina lhe deu uma "rasteira" com o poder telecinético.
- Você é patético. - disse Catrina, desdenhosa - E será o último dos sacrifícios antes do grande levante.
Frank levantou-se atirando nas velas que caíram ao chão e logo correu, mas Catrina novamente o controlou para joga-lo para longe. Daquela vez o detetive foi direto para a janela que estilhaçou-se por inteiro. Ciara já recitava o encantamento para sela-la, mas deveria pronunciar um pouco mais rápido pois Catrina fechara o punho usando uma inflição de asfixia em Frank que o incapacitou totalmente.
Ela ria maleficamente, a face pintada com o rosto caveiroso realçando um ar de puro terror.
Quando Ciara enfim havia recitado todo o feitiço, o corpo da jovem que Catrina tremeu. O espírito logo se desprendeu sendo arrastado por uma força de atração atravessando as paredes. O corpo da jovem caía devagar para trás, mas Frank o pegou antes que batesse ao chão. Catrina gritava ao ser sugada para o caixão de mogno com os símbolos desenhados com tinta branca de um vidrinho que ela encontrou dentre as coisas da decoração. Fechou rapidamente com as duas mãos.
Catrina socava por dentro, mas desistira. Ciara até pensava que não desenhara os símbolos corretamente, mas deu um suspiro de alívio.
***
Era chegada a despedida de tio e sobrinho naquela noite cuja lua cheia já brilhava entre as poucas nuvens.
- Foi um feriado e tanto hein. - disse Frank - É quase sempre assim: Se é Halloween, dia de todos os santos ou dos mortos, não importa, a parada bizarra vem até mim como se eu fosse um imã.
- Eu não queria esse destino pra você, Frank. Se eu fosse o seu pai... eu te proibiria de seguir nessa carreira. - disse Steve, parando de andar ao chegarem pero do carro do sedã prata - Tô falando sério.
- Me proibir não evitaria que essas coisas entrassem na minha vida. O meu pai guardou um propósito pra eu cumprir em nome do legado e... seguir na contramão seria uma desonra. Mamãe entende isso perfeitamente e ela não se colocou na minha frente pra me encher de tapa quando eu quis sair de casa pra fazer o que meu pai fazia. Fazer o que custou a vida dele. Ela só... confiou no meu potencial.
- Heather é muito compreensiva. - disse Steve - Temos sorte de uma mulher como ela ser nossa família.
- E a Ciara?
- Voltou pros pais, cancelaram mesmo a festa e deram a vitória do concurso à ela. E a garota que estava na casa do comitê?
- Ah sim, ela foi possuída pela Catrina, mas tá tudo OK, acho que ela vai esquecer ou no mínimo superar. A casa vai ficar trancada até uma nova eleição ser oficializada. Talvez esse novo vereador não venha a ser tão de boas quanto o anterior.
- É, pensei nisso, acho que esse foi o primeiro e último festival de dia dos mortos daqui. - disse Steve meio triste.
- Desanima não, faz uma viagem ao México pra conhecer o legítimo e autêntico. - sugeriu Frank - Vou indo nessa, tio. Minha assistente acabou de mandar mensagem, tem caso novo na mesa. Manda lembranças pra mamãe. - disse ele, logo abraçando-se ao tio - E um dia vamos saber do seu segredinho.
- Veremos. - disse Steve, não ajudando muito a coloca-lo numa posição defensável - Não espere mais 20 anos pra voltar.
Frank fez que sim com a cabeça sorrindo de leve, não imaginando que o tal segredo fosse grande coisa.
- E o senhor não espera mais 20 anos pra fazer visitinha casual. Falou, tio. Fica bem.
O detetive entrou no seu carro e deu partida, logo afastando-se dali. Steve ficou a observa-lo até dobrar.
Contemplando a lua cheia, os olhos dele tornaram-se inteiramente vermelhos como sangue.
Na casa do comitê, a sala onde se guardavam os itens de decoração da festa possuía um telhado com algumas goteiras nunca reparadas. Uma delas estava bem acima do caixão onde Catrina fora aprisionada sobre a mesa. As gotas borravam um dos símbolos místicos e a tampa do caixão sofreu uma leve batida de dentro.
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*A imagem acima é propriedade de seu respectivo autor e foi usada para ilustrar esta postagem sem fins lucrativos.
*Imagem retirada de: https://www.posta.com.mx/museos/conoce-el-parador-de-catrinas-en-guanajuato
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