Contos do Corvo #26


Ansioso, o corvo aguardava o momento da chegada da menina no cemitério à noite, esperançoso quanto a suposta reviravolta no caso da mudança planejada dela para uma outra cidade.

Para seu desprazer, o coveiro viera antes. Não sabia o que pensar. Se seria bombardeado por más notícias ou o velho homem ignoraria sua presença como prometia fazer em todas vezes que o encontrasse pousado sobre uma lápide aleatória.

Mal o coveiro se aproximou que já falara.

- Hum... Que surpresa desagradável. - disse ele, provocando-o.

- Azar de quem esperou demais. - rebateu o coveiro, olhando-o mal-humorado. - Mas... trago boas novas.

- E então? Ela vai ficar? - perguntou o corvo, em tom de pura empolgação.

- Talvez. - disse ele, incerto.

- Um "talvez" já é suficiente para renovar minhas esperanças. Ela tem que ficar. - disse o corvo, satisfeito com a resposta e permanecendo confiante.

- Os tios dela acharam o contrato da nova casa queimado no lixo do quintal. - informou o coveiro, não querendo fornecer muitos detalhes ao corvo. Mesmo que não tivesse, só diria o que considerava necessário.

- Pirralha corajosa. - disse o corvo, parecendo um tanto surpreso ao saber da atitude tomada por ela.

- Você me paga, seu desgraçado. - disse o coveiro, com fogo nos olhos. - Me fez ficar preso nesse cemitério enquanto eu ouvia aquela história do Carrasco.

- Mas foi curta. Do jeitinho que o senhor gosta. - disse o corvo, pouco se importando com o incômodo do homem.

O coveiro grunhira em raiva ao virar o rosto.

- Aquilo tem um nome. E se chama chantagem. - argumentou ele.

- Como é que se diz mesmo? Sem dor, sem ganho. - retrucou o corvo.

- É isso mesmo, sua voz é insuportável, me dá dor de cabeça. - reclamou o coveiro, andando ao redor da lápide.

- Olha, hoje não estou para briga. O.K? No início, achei que apreciaria minhas histórias por gostar do clima meio sombrio e sinistro desse cemitério, onde o senhor trabalha há anos.

- Esse lugar sempre me deu arrepios. - disse o coveiro, olhando ao redor. - Mas é meu ganha-pão. Fazer o quê né? - fez uma pausa, encarando o corvo com menos irritabilidade, algo que não estava acostumado a fazer. - Não é que eu não goste de ouvir e contar histórias... O problema está em você.

- O meu sarcasmo? - perguntou o corvo.

- Isso é o de menos. - devolveu o coveiro. - É sobre as suas histórias.

- Se refere... à veracidade de algumas delas, certo? - perguntou ele, inclinando-se para o homem,seu bico ficando mais próximo do nariz dele.

- Só algumas?! Eu digo todas! - esclareceu o coveiro.

- É um assunto que nos faria perder mais tempo. - disse o corvo, esquivando-se. - Provavelmente ela virá na semana que vem.

- Assim espero. - concordou o velho homem.

- Se quer ouvir uma história com um maior fundo de verdade, então o senhor perguntou no dia certo. - disse o corvo, preparando-se. - E esta é bem recente. Deu o que falar nos jornais no mês passado...

              ____________________________________________________________________

                                                                     RUÍDOS NA PAREDE

As primeiras ocorrências tiveram início, de acordo com conhecedores mais empenhados, entre 1999 e 2000. Existia pouco material sobre o caso em virtude da escassez de pistas e provas concretas. Justo a única testemunha, que revelaria mais detalhes se arriscadamente destrinchasse a origem da coisa, morreu um ano após o clima tenso, decorrido da repercussão do caso, abaixar. Aliás, ela suicidou-se em plena manhã de domingo. Não lembro muito bem de seu nome... mas sei que certamente sofria de psicose grave e tinha constantes e intensos ataques de pânico.

A tal pessoa, submetida a mais um ataque, perfurou os dois olhos com um gancho enferrujado na sala branca. Ela já alegava querer tentar algum método de suicídio para se livrar do inferno. O "inferno", no caso, associava-se à figura do ser que aterrorizava a cidade naquele época. Disse que faria tudo o que estivesse ao seu alcance para deixar de vê-la em todos os lugares...

Teve-se conhecimento de um outro suicida, supostamente também uma vítima daquele caso, que perfurou os tímpanos.

As vítimas nunca estavam acompanhadas. Não naquele tempo. Sabia-se, por meio de amigos e conhecidos, que todas elas costumavam passar próximo à um beco que passaria despercebido por qualquer um à noite de tão escuro que era. Pouco das luzes dos postes alcançava uma pequena parte do beco e o resto num total vazio de escuridão.

Ao menos uma amiga das vítimas presenciou algo que serviria como ponto-chave para uma investigação mais confiante. Ela estava na outra esquina e viu seu amigo passar perto do beco, acenou para ele, chamando seu nome várias vezes e nada dele ouvi-la. Ninguém seria tão surdo àquela distância. Além disso, o cara parecia estar... hipnotizado por algo que via no escuro do beco.

Esta pessoa não recebeu ligações da vítima naquela noite, nem no dia seguinte.

Nos casos mais recentes, passaram a haver acompanhantes.

A pessoa - o sobrevivente - contava sobre ruídos de unhas arranhando algo metálico. Neste caso, era o latão de lixo do beco. O caso do mês passado reacendeu a tensão esquecida há mais de 10 anos. Enfim, tinha-se a chance de saber o que causara aquelas mortes trágicas, tanto para descobrir mais sobre o responsável quanto para evitar mais suicídios.

O rapaz, não-identificado, declarou à polícia - após o achado do corpo do amigo ensanguentado no quarto - que ele havia percebido os ruídos primeiro e viu uma garota, agachada no meio da escuridão, roçando suas unhas crescidas no latão de lixo. A garota, não-identificada, tinha cabelos pretos compridos que cobriam totalmente o seu rosto e vestia trapos velhos, sujos e rasgados - parecia estar sem roupas íntimas, segundo o relato.

Todas as mortes, de fato, estavam vinculadas ao beco, de acordo com a polícia. Com o relato do rapaz sobrevivente, tornou-se fácil tecer teorias sobre a tal garota "mendiga". E o motivo de seu retorno.

Um policial - dado como anônimo em um relato publicado na íntegra em um fórum virtual restrito - lembrou-se de um acontecimento brutal ocorrido há cerca de, mais ou menos, uns 4 anos antes das primeiras mortes.

O assassinato da garota caiu no esquecimento de praticamente todo o Departamento. Detalhe: O policial que se prestou a esclarecer o assunto esquecido trabalhava no mesmo lugar há anos e esteve a par da operação de captura do assassino, a qual durou oito meses e descontinuada por falta de indícios. Assim que a morte do jovem foi a público com os detalhes apresentados, ele logo se recordou e atribuiu a causa das mortes à vingança.

A garota se chamava Liv pelos mais íntimos. O sobrenome não foi revelado. Liv foi morta pelo padastro abusivo. Ela fugia de mais um dos ataques de fúria do homem e se esgueirou em um beco. Ele a perseguiu, carregando uma faca de cozinha. Segundo o policial, quando a polícia foi informada, já vincularam o crime à estupro, mas não era bem o caso.

Na verdade, a língua cortada de Liv encontrada na cena descartou tal hipótese.

O corpo foi rasgado do tórax à garganta e estava envolto de uma funda poça de sangue. Acreditou-se que a língua da garota, após o profundo corte, foi brutalmente arrancada. A arma do crime não foi achada em nenhum ponto do beco, nem dentro dos latões de lixo.

E então veio a informação que elucidou o uso das unhas pela garota para reproduzir os ruídos.

O avô de Liv era Tenente-Coronel de um esquadrão participante da Segunda Grande Guerra. Provavelmente, Liv aprendeu um método novo de Código Morse que não fazia muita diferença. Desta vez, em vez de batidas, usava-se algum objeto pontudo e produzia ruídos levemente baixos.

Constatou-se, por fim, que Liv tentava estabelecer contato com suas vítimas por meio desses códigos.

A mãe da garota era negligente quanto aos abusos cometidos pelo atual ex-marido e disse, em depoimento à polícia, que não intervia por medo de ser violentada ao lado da filha, portanto, apenas ficava assistindo aos maus-tratos. Disse também que Liv era discriminada pelo padastro por ter aptidões consideradas "anormais" por ele, como, por exemplo, entortar talheres ou ressuscitar animais pequenos apenas beijando-os.

A grande diferença entre Liv e espíritos comuns é que ela é uma espécie rara... mas extremamente perigosa. Se fosse possível pôr na balança a alma de uma simples criança vingativa e a de uma criança com dons psíquicos, certamente a segunda sobressairia mais no peso. 

Ela apenas queria ser compreendida pelas pessoas ao menos uma vez na vida para que pudesse ter alguma paz. 

Se o rapaz morrera em seu quarto, significa que Liv seguiu sua energia vital, surgira lá de repente, no canto mais escuro, arranhando a parede com suas unhas para chamar mais uma vez a atenção dele. Se alguém se recusa a entender o que ela "diz" ou se dirige à ela de forma rude, esta pessoa não é poupada. Não importa se interditarem o beco, ela escolherá algum outro lugar e não vai desistir até que encontre alguém que entenda cada ruído. 

O espírito de Liv ainda continua preso neste plano e este é só mais um dos muitos casos de entidades paranormais que ficam um certo tempo sem agir e quando retornam estão mais fortes, com métodos alterados e mais violentos. 







Nota do autor: Este conto aprofunda um pouco mais a história narrada pelo personagem Jack na edição 2016 de Halloween da série "Nem Tudo É O Que Parece".

http://universoleituracontoscreepys.blogspot.com.br/2016/10/nem-tudo-e-o-que-parece-36-especial.html




*As imagens acima são propriedades de seus respectivos e foram usadas para ilustrar esta postagem sem fins lucrativos ou intenções relativas a ferir direitos autorais. 

*Fontes das imagens: http://setedosesliterarias.blogspot.com.br/2016/02/resenha-de-o-festim-dos-corvos.html
                              http://micosemental.wordpress.com/2009/11/10/o-beco/




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