Frank - O Caçador #83: "Bem-vindo ao Noir"

Jeffrey Holland era um prestigiado escritor de ficção fantasiosa nascido e criado em Danverous City ganhando atenção nacional com suas obras. Naquela noite fria, ele, um homem afro-descendente careca com uma barba bem cuidada e aparada, retornava à sua casa radiante trazendo algo num saco de papelão. Fechou a porta e andou rapidamente até seu escritório, ávido para desembrulhar o presente. Sentou-se à mesa e retirou um livro grande e meio pesado do saco. 

- Uma relíquia dessas em minhas mãos... - disse ele passando os dedos da mão esquerda na capa de couro marrom que estampava um símbolo desconhecido em dourado - ... nem me sinto digno de toca-la. - ponderou sobre o que faria - Mas por qual razão eu desperdiçaria uma oportunidade tão valiosa quanto esse livro? Por que não... constatar o seu poder?

Conhecendo bem os atributos místicos do livro, Jeffrey pegara uma pena e mergulhou no tinteiro. Sorriu enquanto formulava as ideias básicas da história que escreveria. Teria de ser uma aventura instigante que fizesse jus a um grande amigo que fizera num passado recente. Um detetive que havia salvo sua vida quando foi vítima de um fenômeno paranormal que quase lhe ceifou. Num lampejo de inspiração, escreveu várias linhas desenfreadamente, entusiasmado com a história. 

Não parava mais de escrever, perdendo a conta de quantas vezes molhou a ponta da tinta no tinteiro ou quantas páginas amareladas havia preenchido. Mas várias páginas depois, uma sonolência abateu sobre sua disposição criativa fazendo-o bocejar e se espreguiçar continuamente. Num dado instante, Jefffrey foi vencido pelo sono assim que finalizou um parágrafo, caindo adormecido sobre a mesa com o livro aberto ao lado. Uma ventania fizera a janela do escritório abrir deixando o ar gélido adentrar com muita força. A corrente de vento intensa folheou o livro de forma que ele voltasse a primeira página.

O escritor acordou sobressaltado, porém muito do que via estava largamente diferente. A começar pela sua visão, enxergando absolutamente tudo em tons de preto, cinza e branco. Conforme a narrativa que escrevera, além daquele detalhe, via-se sentado à sua mesa de trabalho com um diário aberto. Exatamente como iniciava sua narrativa: um detetive registrando fastos do seu cotidiano num diário. Assustou-se com o som de alguém batendo na porta. 

Jeffrey atendera e não se espantou ao ver quem era, contendo sua euforia para incorporar o personagem.

- Boa noite, parceiro. Eu conheço essa cara: É de quem andou dormindo meio cedo. - disse Frank usando um sobretudo chique de detetive e um chapéu - Acertei, né? Vem comigo investigar uns assassinatos ou vai voltar pra sua soneca?

Jeffrey sorriu de forma contida pensando no que diria. 

- Matei o sono, estou pronto. - disse ele, firme - O que temos pra resolvermos juntos hoje à noite? 

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CAPÍTULO 83: BEM-VINDO AO NOIR

Caminhando por uma rua deserta e molhada naquele horário silencioso da noite, a dupla de investigadores se lançava na mais nova missão de capturar um assassino com características surreais à primeira vista. Jeffrey olhava de soslaio para Frank, estando preparado para encarnar seu personagem. Ainda não tinha se acostumado com a visão em preto e branco.

- Vamos ficar apenas andando sem um rumo predefinido? - perguntou Jeffrey.

- Estamos indo diretamente pro local onde a última vítima deu seu último suspiro. - disse Frank, a postura destemida e confiante, portando-se fielmente como o personagem baseado no real. 

- Que tipo de assassino exatamente estamos à caça? - indagou Jeffrey olhando para as casas fechadas, todas num aspecto retrô dos anos quarenta - Não me sinto nada seguro, mesmo com você por perto... 

- Pois é, sermos os únicos a perambularem por essas bandas... nos torna alvos fáceis. - declarou Frank, sua preocupação controlada. Dobraram para uma outra rua à esquerda. Jeffrey notou de cara as manchas de sangue na calçada - Bem ali. Um corretor de seguros voltava do serviço e foi apanhado pelo assassino de capa e olhos vermelhos. 

- Então é esse o suspeito. - disse Jeffrey com ar de desapontamento - Até você resolveu dar corda pros rumores.

- Como você imaginaria um assassino em série comum retalhando o peito da vítima com uma brutalidade tão animalesca e selvagem? - perguntou Frank olhando-o de forma a desafiá-lo - Luvas com garras de metal embutidas? 

- Talvez ele injete um líquido que deixa a vítima tonta e incapaz de mostrar resistência, daí facilitando um ataque mais violento que satisfaça o prazer carniceiro dele. - conjecturou Jeffrey, mas não conseguindo arrancar uma expressão de convencimento por parte de Frank - Forçado, né? Eu sei... 

- Até poderia ser uma hipótese válida pelo nível de metodologia criativa e estratégica que os matadores estão adotando hoje em dia, mas eu vi o laudo pericial do corpo e não acharam vestígios de nenhuma substância que não fosse álcool porque o infeliz costumava fazer uma parada pra encher a cara e voltar pro lar doce lar segurando em alguma coisa pra não cair. - disse Frank observando as manchas de sangue. Um policial surgiu vindo assoviando para perto deles e Frank não deixou de se atentar a um detalhe - Ei, você, me responda uma coisa: Por que somente um policial patrulhando hoje?

- Tem vários espalhados nos arredores. - respondeu o policial, despreocupado. 

- Mentira. - retrucou Frank, severo - Faz pouco mais de uma hora que tenho andado por aí em busca de mais testemunhas do monstro assassino e não vi nenhum policial fazendo ronda, você é o primeiro. 

- É verdade, por que o departamento enviaria um único homem quando se tem um assassino em série livremente agindo? - questionou Jeffrey.- Não que, caso se trate de um monstro propriamente dito, um batalhão tenha alguma serventia prática.

A luz do poste sob eles iniciou um pisca-pisca tremido e rápido. Ao olharem para cima, tiveram os três um tremendo susto. Um indivíduo de aparência magra, esguia, usando o que parecia ser uma capa com uma roupa preta apertada e dotado de uma face cadavérica com nariz pontudo, boca com dentes afiados e olhos vermelhos brilhantes se encontrava agachado sobre o poste fitando suas presas. Frank sacou sua pistola de dentro do sobretudo e efetuou um disparo. 

A criatura dera um pulo quando a bala ricocheteou na lâmpada acabando por destruí-la. A parca luminosidade do espaço com esse tiro de baixa pontaria foi ideal para a criatura partir para cima do policial. O monstro bolou na calçada com sua vítima que tentava enfrenta-lo com murros. Frank arriscou disparar, mas Jeffrey segurou o braço dele em impedimento.

- Espere, não atire, essa escuridão limita a visão pra um tiro certeiro nele. 

- Droga de mira ruim essa minha. - reclamou Frank. Ambos ficaram a ouvir os gritos de dor do policial que estava sendo trucidado no ponto mais opaco da rua, além de sons das garras rasgando a carne, sem poderem tomar nenhuma iniciativa eficaz. Viram a criatura subindo o prédio ao lado como um macaco escalando uma árvore. Frank disparou mais vezes sem acertar nem um mísero tiro de raspão. Sem reclamar da sua incompetência, Frank pegou uma lanterna e ligou-a. 

Aproximou-se de onde estava o policial com Jeffrey o seguindo. O facho de luz iluminou o corpo dos pés à cabeça. Frank fizera uma cara feia ao ver o policial com a roupa ensanguentada e rasgada, bem como os cortes horrendos no peito e na garganta que geravam uma poça de sangue ampla. Jeffrey continuava pasmo com o grau perturbador de violência. 

- É o fim dos boatos pra você, Jeffrey? - disse Frank - Já acreditava que não eram historinhas fantasiosas, mas agora que vi diante dos meus olhos... Eu vou confessar que não me sinto pronto pra pôr minha vida em cheque.

- O que vai fazer? Desistir? Virar as costas pros inocentes? Não estava preocupado se o tiro pegasse no policial, certo?

- Ele iria morrer inevitavelmente, a coisa deu o bote em cima dele, não havia jeito de afasta-lo sem levar um golpe fatal. Se um tiro acertasse o bicho ruim, seria uma questão de sorte. 

- E é disso que vamos precisar se quisermos evitar mais mortes. 

- Evitar mortes ou capturar a assombração? Eu escolho a segunda opção. Se escolher a primeira, volta pra sua soneca. - disse Frank, soando rude com o parceiro. Jeffrey não parecia ter uma objeção a fazer, preferindo fazer um minuto de silêncio pelo policial - Anda, vamos ao clube de apostas, lá tem um magnata que possivelmente tinha vínculo com o corretor. 

                                                                                  ***

O maior clube de apostas de Provincetown era o ponto de encontro das mais bem prestigiadas figuras da alta sociedade que regozijavam com os jogos, alguns inseridos nessa escala social comandavam o lugar como sócios de alguém muito maior em influência e poder aquisitivo. Frank e Jeffrey adentraram na casa rodeados de homens e mulheres em obsessivos envolvimentos com as jogatinas. Frank afastava com a mão direita a fumaça que vinha de muitos cigarros à sua volta. Um garçom veio lhe servir uma bebida, mas o detetive gentilmente recusou com um balançar de cabeça e um sorriso educado.

- Quem é o tal magnata empresário? - perguntou Jeffrey correndo os olhos pelos clientes do local - Sua memória fotografou o rosto dele pra conseguir identifica-lo facilmente no meio desse povaréu? 

- Somos parceiros há anos, mas você ainda age como um estagiário. - retrucou Frank que o olhou como se quisesse retirar o que disse - Opa, não me leva a mal, amigo, eu quis dizer que até parece não nos conhecermos muito pra você me perguntar sobre meus talentos naturais. Ou ainda não acredita na minha memória bem capacitada? 

- Podemos ir direto ao alvo, não quero ouvir você tagarelar em retratação achando que me magoou. - disse Jeffrey, impaciente - Eu não estou nem aí se me vê como um sub-detetive, um mero auxiliar, não me importo de ser o ajudante. 

Frank iria respondê-lo, porém, notara alguém levantando-se e prestes a sair da casa de jogos. 

- Essa não, lá se vai ele. - lamentou o detetive. Jeffrey virou-se para acompanhar o olhar do parceiro. 

Um homem de meia-idade recolocava o chapéu na cabeça enquanto saía acompanhado de mulheres. Os dois detetives seguiram para fora e o viram entrar numa limusine extremamente bem polida juntamente com as belas moças um pouco mais jovens que ele, todas sorridentes e risonhas, algumas levando garrafas de espumante e vinho. 

- Pensando bem, devíamos ter corrido do monstro. - disse Jeffrey observando a limusine partir - Qual é o próximo passo?

- Não pergunta pra mim. - disse Frank, um tanto aborrecido com o atraso e a perda da chance - É mais uma pessoa que vou esperar ser rasgada pelo monstro. Quem sabe ela tenha conexão com outra potencial vítima. 

                                                                                     ***

Joanne Felton - ou Carrie "interpretando" a personagem da narrativa de Jeffrey - vivia numa invejável mansão com seu marido, Alfred Lynch, ninguém menos que o chefe do departamento policial de Provincetown, estava, naquele instante, vivendo uma noite romântica com um dos seus múltiplos amantes, Tony Vale, dentro do quarto do casal. 

- Quais são os planos pra hoje? - perguntou Tony, ansioso, pegando-a na cintura.

- Ahn... Talvez seja melhor pularmos uma parte. - disse Joanne que logo em seguida colou sua boca à dele num demorado beijo. Ela logo afastou-se com uma expressão maliciosa reforçada por um sorrisinho sacana - Começando por você tirando a roupa enquanto eu... preparo umas bebidinhas. 

- Apressadinha você. - disse Tony, logo virando de costas e removendo o cinto da calça. Joanne voltou-se para a cômoda onde haviam dois copos e uma garrafa de uísque. Deu um rápida olhada por cima do ombro. Tony já estava sem calça. Ela abrira seu anel que continha um pó branco e derramou-o num copo cheio, o qual ofereceria para Tony. Misturou com uma colher antes de encher seu próprio copo. Tony estava apenas de bermuda e meias e virou-se para ela, excitado. 

- Que as preliminares comecem. - disse Joanne num tom sedutor, destacando os copos enchidos de bebida. Aproximou-se provocante, entregando o copo com o uísque misturado ao veneno que segurava na mão esquerda. Tony pegara e rapidamente tomou um golpe - Oh, esquecemos de brindar.

- Estamos com pressa, não é? - perguntou Tony tocando-a carinhosamente no pescoço.

Passos na escada se fizeram audíveis para Joanne que olhou de soslaio para porta com insegurança. 

- Agora é uma boa hora pra termos pressa. - disse ela, a voz meio trêmula. 

- O quê? - indagou Tony, sem entender. De repente, sentiu-se meio tonto - Olha, Jo, me veio uma tontura... Minha cabeça tá girando. - quando pareceu que iria largar o copo a cair no chão, Joanne agilmente tomou-o de sua mão e levou de volta para a cômoda - O que tá havendo? Por que você tá tão tensa? - perguntou, os olhos semicerrados devido à sonolência. 

- Você sabe quem... vem se aproximando. - disse Joanne em voz baixa - Vai pro esconderijo. 

- Mas... - disse Tony, interrompendo-se ao bocejar. Com os passos cada vez mais altos, Joanne foi empurrando o amante em direção à cama e o abaixou para se enfiasse por baixo do móvel - Calma, devagar, devagar... 

- Anda logo, vai, vai. - disse ela em desespero, olhando para a porta cuja maçaneta movia-se. Se recompôs ajeitando os cabelos e o vestido escuro de seda meio decotado. Aproveitou para pegar um maço de dinheiro do bolso da calça de Tony, escondeu-o no vestido e logo enfiou as roupas dele embaixo da cama. A porta abriu-se e Alfred Lynch, um homem parrudo e meio calvo de quarenta e poucos anos, entrava no seu aposento de descanso - Oi, como foi hoje no trabalho? - perguntou Joanne.

- O de sempre. - disse Alfred meio frio jogando a maleta na cama - Nenhum progresso com relação ao assassino que dizem se tratar de um monstro. Pode levar uma eternidade pra capturarmos essa aberração da natureza que se instalou nessa cidade perdida.

- Vem cá, porque não damos continuidade... ao que começamos ontem? - perguntou Joanne puxando a gravata de Alfred para aproxima-lo dela - Reduzir o estresse... do nosso jeito. - falou ela, passando os lábios pelo pescoço do marido. 

Alfred deixou-se seduzir e seguiu beijando ardorosamente Joanne até ambos caíram na cama. Tony não sentiu o impacto dos corpos sobre o colchão por já estar dopado. Para a sorte dela, Alfred não questionou dos copos estarem cheios do seu uísque favorito. Joanne cessou os beijos ao arregalar os olhos focados na janela pela qual a luz do luar atravessava e banhava o piso do quarto. A mulher soltara um grito de horror, apontando para o monstro assassino parado na janela em observância. Alfred levantou-se rápido e sacou sua arma disposto a atirar. No entanto, o monstro grunhiu grotescamente e fugira. 

- Meu Deus... É exatamente fiel aos desenhos que você traz, idêntico. - disse Joanne, apavorada. 

- Fique aqui, essa pode ser minha única chance de pegar o desgraçado. - disse Alfred indo até a porta com sua arma e saindo do quarto. Joanne não faria nenhuma objeção, naturalmente. A esposa do corrupto chefe policial apenas esperou os passos do marido diminuírem de som. Ela deu um gritinho de susto ao ver a mão de Tony se postar para fora e tapou a boca.

- Jo... - chamou Tony, a voz ainda carregada de sono - O que aconteceu comigo? 

- Ei, vem, a barra está limpa. - disse ela puxando-o de volta - Mas por pouco tempo. Pega suas roupas e salta da janela, depressa.

- Enlouqueceu? Não vou pular dessa altura. - disse Tony indo conferir com o rosto quase colando-se ao vidro da janela - Cadê o chefão? Não era ele que vinha chegando? 

- Saiu... pra pegar mais gelo pro whisky. - mentiu Joanne, esforçando-se para parecer convincente. 

Porém, Tony ainda recusava-se a fugir pela janela considerando a altura arriscada. 

- Então eu saio tranquilamente pela porta da frente sem ele me ver. 

- Não, espera. - disse Joanne soando alarmada - Você pode saltar... É só ser cauteloso quando for descer.

- Tá brincando, né? Pode esquecer, não vou arriscar minha vida por uma fuga desesperada.

- Garanto que vai arriscar ainda mais se o Alfred te flagrar andando pela sala. 

- É mais provável ele matar você - disse Tony vestindo a calça - do que... - cortou sua fala ao tatear os bolsos traseiros da calça - O que... O que houve com minha grana? - perguntou lançando um olhar mordaz contra Joanne - Cadê minha grana, Jo? Não, tem alguma muito errada... Eu apaguei depois de... tomar o uísque. 

Joanne o encarava séria numa postura que tentava intimida-lo a não fazer uma loucura. 

- Me apagou pra roubar minha grana... Sua vagabunda! - disse Tony que agarrara Joanne pelos braços fortemente.

- Preciso dele mais do que você! - rebateu Joanne. 

- Então faz isso pelo seu maridinho, né? Arranca dinheiro dos imbecis que caem no seu joguinho pra bancar suas despesas! Eu não saio daqui sem meu dinheiro. Devolve, vadia! - vociferou Tony, sacudindo-a. 

- O Alfred tá vindo... Pro seu próprio bem, foge por essa janela que tá bem atrás de você! 

- É você quem vai experimentar um salto. Vamos ver se a altura não é tão perigosa quanto você diz. - disse Tony levando-a para perto da janela com o aperto das suas mãos nos braços de Joanne aumentando. 

Num impulso de coragem e frieza, Joanne desvencilhou-se das mãos violentas de Tony e o empurrara com toda a sua força contra janela que estilhaçou-se em pequeníssimos cacos. Os olhos atordoados de Tony fitaram os dela por uma fração de segundo que pareceu longa para que aquele olhar fixasse-se na mente da adúltera. 

Alfred retornara ao quarto para saber o que se passava. 

- O que está acontecendo? Ouvi você gritar e... - olhou para o enorme buraco no vidro da janela. 

Joanne simulou um choro afetado e exagerado.

- Está bem, está bem, querida, o pior já passou. Me conta o que aconteceu. O monstro esteve aqui?

- Sim. - respondeu Joanne ainda em prantos - Ele pulou pra dentro do quarto ameaçando me matar com aquelas garras compridas e afiadas e... não sei de onde tirei forças, mas consegui derruba-lo pra fora com um empurrão. Ainda bem que você chegou pra acalmar meus nervos. - disse ela, deitando sua cabeça sobre o peito de Alfred. 

- Tudo bem, não há mais o que temer. - disse ele visando tranquiliza-la. Foi verificar o que havia abaixo. Viu um homem caído de barriga para cima sobre os arbustos do jardim - Minha nossa, os rumores... eram plausíveis esse tempo todo.

- O que disse? - perguntou Joanne recuperando-se da sua dissimulada crise limpando as lágrimas com um lenço branco.

- Os rumores estavam certos. - disse Alfred virando-se para ela - É um homem sob a pele de um monstro.

                                                                                 ***

A dupla de detetives foi prontamente solicitada por Alfred para algumas averiguações diante da invasão do monstro à casa. Jeffrey encarregou-se de interrogar Joanne na sala de estar ao passo que Frank desenrolava uma conversa muito em particular com Alfred no quarto. O escritor tentava se manter dentro do personagem ao máximo. 

- A senhora jura ter sido abordada pelo monstro... - disse Jeffrey não sabendo muito como iniciar. 

- Ele pulou para dentro do quarto, estilhaçou a janela... - disse Joanne ainda na sua atuação emotiva.

- Tem mesmo tanta certeza de que o viu exatamente na janela? 

- Alfred também viu, tanto é que saiu correndo armado na esperança de captura-lo vivo ou morto. 

- Não descartamos a hipótese de estar ocorrendo algum fenômeno de alucinação coletiva que beneficia a imagem do verdadeiro assassino. - disse Jeffrey deixando a mulher fatal mais irritada. 

- Qual o seu embasamento pra sustentar essa ideia? 

- A consciência coletiva tende a criar monstros projetando-os em figuras reais de uma forma tão intensa que a mente reflete a crença como a mais pura verdade concreta. A natureza dantesca dos assassinatos, sem precedentes, estimulou o imaginário popular a atribuir isso a um monstro sobrenatural. O homem que você empurrou... é provavelmente o assassino.

Enquanto isso, Frank analisava o estado da janela ou que havia restado dela. 

- Detetive Montgrow, será que podemos ter uma conversa apenas entre nós dois? - perguntou Alfred.

- Mas não já estávamos tendo? Bem, o senhor terá que vir até aqui, tenho algo a explanar. 

Alfred se dirigiu à ele andando a passos firmes e pacientes. 

- A maneira como a janela foi quebrada contradiz o depoimento da sua esposa. - declarou Frank - Veja bem. - apontou para as partes da madeira que encaixavam os quadrados de vidro - Quebraram de fora para dentro e não o inverso. Ninguém invadiu o quarto. Alguém já estava aqui. 

- Oh, meu Deus... - disse Alfred, preocupando-se, as mãos no rosto - Eu sabia, eu sabia, eu sabia.

- O que foi, chefe Lynch? - indagou Frank, os olhos estreitados - Sabia do quê?

- Eu vinha alimentando uma forte suspeita de que... Joanne estaria me traindo com vários homens, se divertindo com eles na minha ausência. - disse Alfred em tom moderadamente baixo - Essa é praticamente a prova cabal. 

- Opa, espere aí. - disse Frank cravando sua visão em um detalhe não percebido anteriormente. Estendeu sua mão direita para algo preso entre umas partes quebradas do vidro. Um pedaço de tecido preto. Frank arrancou-o e levou-o ao nariz, sentindo um forte cheiro de perfume - Esse pedacinho de tecido tem um perfume bem forte... mas não é masculino. 

O chefe policial pegara o tecido e o cheirou, reconhecendo imediatamente aquela fragrância. 

- Ah não... - disse Alfred, consternado. Fechou os olhos, aturdido com a verdade - É o perfume de Joanne.

- E esse pedaço de tecido não é de nenhuma roupa dela, obviamente. 

- Maldita. - disse Alfred controlando sua raiva - Isso vai passar impune... 

- Faça o que o senhor achar melhor pra puni-la. - disse Frank que deu uma batida leve no ombro do chefe policial e saíra do quarto. Alfred apertou aquele pedaço de tecido com força, imaginando como colocaria Joanne contra a parede pelo seu ato perverso. Após os detetives irem embora, Alfred fechara a porta da sala olhando para Joanne com uma expressão de austeridade. Joanne vinha trazendo um copo com o uísque favorito dele, mas não outro copo... 

De inesperado, Alfred sacara uma faca que tinha pego na cozinha enquanto Frank e Jeffrey despediam-se de Joanne. 

- Alfred, o que pensa em fazer com isso? - perguntou Joanne olhando temerosa para a lâmina. 

- Não finja que está amedrontada com uma simples faca quando teve muita coragem de fazer o que fez.

- Pegue, precisa se acalmar, podemos conversar amigavelmente...

- Cale-se! - berrou Alfred chutando a mesa de centro que possuía um vaso de cristal sobre. Aproximou-se dela com a faca em riste - O invasor nada mais é que... um dos muitos crápulas que você arranja pra se satisfazer quando eu não estou em casa. 

Joanne fechou a cara em seriedade bruta. fitando o marido intensamente. Ela retirou o maço de dinheiro que guardara entre os seios na parte decotada do vestido.

- Para provar que não dou ponto sem nó. - disse ela oferecendo a quantia como uma maneira de causar uma espécie de tentação materialista em Alfred - Os homens que convido à sua revelia me prestam favores dos quais... eu extraio uma renda extra pra quitação de dívidas. Não sou de escolher qualquer pé-rapado, o Tony, por exemplo, é um cara nascido em berço dourado com direito a herança e tudo. Vamos, Alfred, eu sei o que está sentindo. Pegar ou largar. E quando digo largar, me refiro... a mim mesma. Me ponha pra fora desta casa, me corte com essa faca, faça o que quiser comigo, se assim preferir. 

Alfred mordeu os lábios num misto de raiva e inquietação, seus olhos fixados no dinheiro. 

- Passa isso pra cá, Joanne. - pediu ele estendendo a mão esquerda. A esposa entregara a quantia sem temer uma ação inesperada e insana do marido. Alfred pegou de modo ríspido - Até que esse seu trabalho sujo serve para alguma coisa, porém... as dívidas serão pagas com minha própria renda, enquanto a sua... ficará comigo pra que eu possa gasta-la ao meu bel prazer. Não venha dizer que usou da traição pra estabilizar nossa situação financeira, que fez por amor. Não, você fez por si mesma.

Alfred jogou a faca no sofá e enfiou o maço de dinheiro no bolso, logo andando em direção à escada. 

- Não vai querer esfriar a cabeça com uma bebida? 

Ele parou antes de pôr o pé no primeiro degrau. Virando-se para ela, Alfred caminhou. 

- Pensando bem, é a única coisa que pode me dar algum prazer nesta noite. 

- Eu não? - indagou Joanne com um semblante triste. 

- Quem sabe outro dia. - disse Alfred não dando muitas esperanças à ela. Pegou o copo e bebera. No entanto, poucos segundos bastaram para que uma sonolência instantânea conturbasse sua atenção. O chefe policial deixou o copo cair e espatifar-se despedaçando no chão. Joanne sorriu sacanamente ao ver o marido embriagado pelo pó venenoso, sendo aquele o mesmo copo do qual Tony bebeu - O que... significa isso, Joanne? - perguntou ele vendo a imagem da esposa enturvar-se. 

- Meu beijinho de boa noite. - respondeu ela, cínica. Alfred aos poucos era dominado pelo sono retumbante que afetava seus músculos. Caiu no sofá, adormecido com a boca aberta. Pegara a faca e deslizou seus dedos no fio da lâmina suavemente - Quando você não me servir mais, sou eu quem apontará a faca. Esse dia pode estar próximo ou distante. Mas chegará. 

A mulher fatal sorrira de modo sádico gabando-se do seu poder de abater homens ingênuos. 

                                                                            ***

No escritório da agência de detetives, Frank fumava um cigarro com os pés sobre a mesa olhando relatórios de investigação. Jeffrey entrou na sala para relatar o testemunho de Joanne. 

- Frank, tem algo sobre a esposa do chefe de polícia que precisamos colocar em discussão.

- Ela é uma adúltera inconsequente que manipulou a história pra ele cair feito patinho. - disse Frank, levantando-se e voltando-se para a janela com venezianas para observar a rua sob o luar cheio. 

- O quê? Por que não disse isso quando saíamos? 

- Que diferença faz antes ou agora? Diz logo o que você arrancou dela. - disse Frank dando uma baforada. 

- Josh Welles, o magnata que tentamos interrogar, ele é conhecido de Joanne Lynch. - informou Jeffrey - Ela compartilhou um segredo inconfessável até então do próprio marido. Foi difícil lidar, ainda está indigesto saber disso. 

- Ajudaria se você parasse de enrolar. - retrucou Frank virando-se para ele e apagando o cigarro no cinzeiro. 

- Bem, o chefe de polícia tem ligações criminais, Joanne denunciou o próprio marido alegando que ele se auto-promove através da busca pelo monstro, por isso está tão obstinado em pega-lo para limpar sua imagem pública diante de todos que sabem da corrupção do departamento em que ele é envolvido até o último fio de cabelo. 

- Talvez a Joanne esteja a par de mais podres do maridinho do que pensamos. - disse Frank - Acho que vou interroga-la. 

- Tudo bem, vá sozinho, eu... ahn... tenho umas coisinhas a serem resolvidas em casa. - disse Jeffrey despertando suspeitas no parceiro - Boa sorte com a Joanne, espero que ela seja colaborativa.

O detetive saiu do escritório deixando Frank a imaginar o que ele teria de tão urgente para resolver.

Poucos minutos depois, nuvens tempestuosas cobriram o céu ocultando a lua. Uma chuvarada caía sobre Provincentown pegando de surpresa um perdido Josh Welles sem calças, camisa e nem paletó corria num beco sob o forte aguaceiro. 

- Socorro! Polícia! - gritava ele, sua voz abafada pelo som da chuva torrencial - Polícia, ajuda! Fui roubado! 

Como se o golpe que sofrera das beldades com quem luxava durante a noite e a chuva não o tivessem surpreendido o bastante, o monstro caíra num pulo direto ao chão perto dele mostrando sua face horrenda com olhos vermelhos fumegantes. Welles gritara de horror diante da criatura que parecia impor mais terror em meio à chuva e os relâmpagos. 

O monstro pulara sobre ele com suas garras à mostra. O peito nu de Welles foi um convite para elas o desfiarem implacavelmente. O grito de dor pelo ataque ecoou pelo beco, mas ainda assim abafado pela chuva que aumentava de segundo à segundo. Jeffrey chegara em casa encharcado e não se importou de entrar molhando o piso de madeira. Muito menos se preocupou em fechar a porta já que sairia novamente logo depois. Debaixo de várias apostilas universitárias, encontrou o Livro do Destino e o abriu apressadamente. Conferiu a última página escrita do livro.

- Não pode ser... - disse ele sentindo um arrepio na espinha ao ver o ponto da história em que havia parado de escrever. 

Após as nuvens carregadas dissiparem-se, Joanne caminhava por uma calçada aparentemente disfarçada a julgar pelo seu visual atípico do seu cotidiano com peças de roupas mais modestas, especialmente pelo lenço enrolado na cabeça. O único acessório dentro do seu figurino padrão era um óculos escuros de lentes redondas grandes visivelmente caro. A esposa de Alfred ficou tensa ao ver luzes de faróis de carro aproximarem-se bem atrás. 

Cessou a andança voltando-se para quem se avizinhava.

- Quer uma carona, senhora? É um horário perigoso pra uma dama sair sozinha. 

- É muita gentileza sua, mas... não estou muito longe do meu destino. - disse ela, logo retomando a caminhada, porém, parou outra vez por conta de uma percepção - Espere, essa voz eu conheço... 

- A sua também me é familiar. - disse Frank saindo do carro. 

Joanne retirou os óculos, abismada com a presença de Frank. 

- Você é o detetive que desmascarou minha farsa. 

- E você é a vagabunda que o chefe de polícia tem como esposa. E quer saber? Vocês se merecem. 

- Alfred pode não ser o homem mais íntegro deste mundo, mas nosso casamento é uma união valiosa. 

- Não me vem com conversa fiada, mais valioso que sentimentos, sem dúvidas é o dinheiro que ele ganha por mês. Soube que consegue uma renda extra colocando um par de chifres nele. 

- Chega, eu não vou ficar aqui sendo estorvada por um detetive intrometido. Como me descobriu?

- Fui até a sua casa e Alfred falou que você tinha saído. Na verdade, contou absolutamente tudo acerca da sua nobre intenção de ajudar com as finanças da casa. Agora responde você: Pra onde estava indo?

- Pra onde eu estou indo. - corrigiu ela enfatizando o "estou" - Não é da sua conta.

- É da minha conta quando estou no meio de uma investigação que conecta você a uma vítima do monstro. Ou vai dizer que não conhece Josh Welles? 

Joanne ficou uns segundos silenciosa, sua postura denunciando seu nervosismo. 

- Mas que droga. - reclamou ela - Ótimo, mais uma vez você me encurralou, definitivamente. Josh foi meu amante, uma pena que ele morreu. Ou nem tanto. 

- Fala logo qual sua ligação com o assassino. - disse Frank pressionando-a com uma aproximação. 

- Uma bruxa. - disse ela rapidamente. Frank franziu o cenho - Eu... contratei uma bruxa para enfeitiçar um amante meu e transforma-lo numa criatura horrenda, vil, inescrupulosa e selvagem que ninguém seria, nem a polícia, seria capaz de fazer frente ao seu incrível poder de matar. Escrevi os nomes de cada um dos meus parceiros de sexo barato numa agenda e fui riscando os nomes a cada morte. A bruxa me conferiu uma marca... - retirou o lenço e mostrou o lado esquerdo do pescoço que continha uma pequena marca similar a uma tatuagem de um símbolo místico - ... que representa minha ligação com a mágica. Ela vai desaparecer quando todos os alvos forem eliminados. O monstro volta ao normal. Mas seria muito mais vantajoso se a polícia o capturasse antes do último morrer, assim meu casamento estaria salvo se eu contasse ao Alfred. A honra dele estaria restabelecida assim como nosso amor.

- Que amor o quê! Você quer mesmo é desfrutar da boa vida que tem graças à ele. 

- Que seja. Ele me quer por perto independente do que eu fizer pois sabe que um divórcio abalaria sua reputação. - disse Joanne, confiante - Ah, enquanto eu tiver a marca, o monstro está sob meu jugo.

- Interessante. - disse Frank olhando-a com desprezo - Controlou a fera pra levar seu marido a persegui-la ao redor da casa enquanto você escondia o amante que você empurrou da janela e que tentou transformar num bode expiatório. Acabou seu lindo sonho de restaurar a honra do seu marido. Quantos faltam pra serem mortos?

- Três. - respondeu Joanne friamente. 

- Me diz onde eles moram. Tenho algo em mente pra facilitar a captura do monstro. 

                                                                                ***

Jeffrey corria desesperadamente pelas ruas à procura de Frank após saber que ele não estava mais no prédio da agência de detetives. O escritor pretendia avisa-lo revelando toda a verdade por trás do mundo que criara por meio do livro do destino. Não escreveu nenhum evento subsequente ao que Frank protagoniza reunindo os três homens e ex-amantes de Joanne em um bar para serem abatidos pelo monstro. Três coelhos numa só marretada. 

Naquele instante, os últimos alvos marcados se encontravam no bar fechado após Frank manda-los irem para um encontro formal. O trio acreditava que iriam ser postos contra a parede pelos seus delitos. 

- Que negócio é esse? - perguntou o último que chegava - Vocês também? 

- Parece que nosso anfitrião resolveu armar um jogo conosco. - disse um deles. 

- Logo quando eu estava prestes a receber uma visita. - disse o outro. 

- Se eu puder adivinhar... - disse Frank saindo de uma passagem que levava aos banheiros - ... essa visitinha atende pelo nome de... Joanne Lynch. Pela sua cara, tô vendo que acertei. 

O detetive andou rápido para abrir as janelas. Os homens se entreolhavam confusos. 

- O que quer de nós? Por que nos chamou até aqui? - perguntou um deles. 

- Pra que vocês deem as boas-vindas ao nosso amigo. - disse Frank, misterioso. 

Mas tal mistério repentinamente se findou com a aparição do monstro que pulou a janela para dentro do estabelecimento. Os homens se afastaram alarmados. O monstro olhou para cada um deles com seus olhos vermelhos brilhantes. A aparência de um duende magérrimo usando roupas negras terrificou-os. A criatura não perdeu tempo em avançar contra eles. 

Frank assistia tranquilamente a perturbadora cena do monstro retalhando suas últimas vítimas brutalmente. O festival de sangue e vísceras no ar terminou e o detetive prontificou-se a fazer sua parte. 

- Medalha de honra ao mérito, você é minha. - disse Frank sacando sua arma, logo disparando nas costas do monstro que virou-se revolto para ele - Não pode me atacar, não estou na lista negra.

Contudo, a chegada imprevista de policiais ao bar derrubou a chance de sucesso do detetive. 

- Deixe ele ao nosso controle. Recue! - mandou um policial apontado sua arma para o monstro. 

Mas antes que Frank pudesse protestar, ele teve a ligeira impressão de que o tempo parou de seguir. Ganhou proximidade com os policiais e balançou sua mão direita frente ao rosto do que proferiu a ordem. Todos estáticos, congelados, totalmente imóveis. O monstro também não movia um milímetro. Em seguida, viera Jeffrey correndo, passando pelos policiais. 

- Jeffrey?! O que tá fazendo aqui? Aliás, como soube que eu estava aqui? 

- Não percebe algo estranho, Frank? Pois é, tudo culpa minha. Mas vou assumir minha responsabilidade para nos salvarmos. 

- Do que você tá falando? - perguntou Frank com brabeza. 

- O tempo literalmente parou devido ao fato de não estarmos numa realidade autêntica criada por um livro cuja história eu escrevi e não terminei. Você é Frank Montgrow, mora em Danverous City, não é fumante, mas é um detetive bem-sucedido que desbrava novos seres além da nossa compreensão como se sua vida dependesse disso. A história que desenvolvi pra este mundo acaba aqui. Mas não a sua história real.

Frank foi acometido por uma sensação de peso na cabeça. Recobrou imediatamente o senso de realidade.

- O que... - disse ele como se tivesse acordado de um longo sono. Olhou ao redor, estranhando - Por que tô enxergando tudo em preto e branco? Tô preso em algum filme do Hitchcock? - olhou para Jeffrey - Você é o...  aquele escritor...

- Jeffrey Holland. Lembra-se de mim, né? 

- Nunca esqueceria daquela noite de autógrafos arruinada por um fantasma. - disse Frank - Cara, que doideira é essa? Que monstrengo é esse? Em que mundo viemos parar? 

- Te conto no caminho. Melhor irmos. - disse Jeffrey sugerindo transferirem a conversa para a rua. 

                                                                                ***

Durante a caminhada, Frank parecia um turista que acabou de aportar numa cidade nova ao olhar as casas e sentir-se genuinamente numa época passada. Jeffrey viu um pássaro congelado no ar quando iria alçar voo. 

- Então quer dizer que você criou uma dimensão onde todo mundo enxerga como um cachorro pra ter uma chance de viver uma caçada comigo? 

- Não exatamente eu, mas o livro do destino. - disse Jeffrey mostrando-o - Um amigo especial me presenteou alertando que certas forças sombrias estariam atrás dele. Me desculpa ter posto você e a Carrie, a minha grande fã, nessa roubada. Eu causei toda essa confusão, tenho de resolvê-la. Mas o único jeito de voltarmos ao mundo normal é com a história sendo finalizada, mas nisso estaríamos voltando aos nossos personagens. Isto aqui não passa de uma versão espelhada do livro.

- Olha, Jeffrey, lamento te desapontar, mas acho por hoje já deu de bancar o detetive dos anos dourados. - disse Frank - E a Carrie concordaria de deixar de ser a dama fatal ardilosa.

- Nesse caso, teremos que entrar em contato com alguém do outro lado. - idealizou Jeffrey avistando uma cabine telefônica - Ali, vamos. - correu em direção à cabine. Frank o seguiu no mesmo ritmo. O escritor entrou depressa e pegou o fone para dá-lo à Frank - É verdade, acredite, podemos falar com qualquer pessoa que estiver no mundo real.

- Tomara que funcione. - disse Frank pegando o fone e discando o número do celular de Nathan - Vamos lá, Nathan, atende a merda desse celular, rapaz... Espero que ele esteja dando uma voltinha no carro.

O jovem caçador, como desejado por Frank, estava em sua camionete percorrendo por uma rua pouco movimentada à noite. O celular tocara e ele prontamente atendeu. 

- Pai, fala aí, o que tá pegando? 

- Onde você tá, Nathan? 

- Voltando de uma caçada contra demônios. 

- Demônios, é? Em qual lugar eles estiveram? 

- Muitos deles estão procurando um livro mágico, interroguei um e consegui uma localização, mas... quando cheguei lá tinha um cara morto, foi estripado até dizer chega. Parece ser alguém a quem os demônios marcaram como alvo por estar em posse do livro, mas não encontrei nada em parte nenhuma da casa dele.

- O dono atual do livro está comigo nesse exato momento. É um bagulho muito louco, presta bem atenção no que vou te dizer, vai ter que seguir umas instruções pra... tirar a gente dessa. 

Nathan ouviu atentamente tudo o que seu pai dissera a respeito da realidade forjada pela história escrita por Jeffrey no livro do destino. O caçador parou sua camionete em frente à casa de Jeffrey ainda com Frank na linha. A porta estava aberta, mas felizmente não se deparou com uma bagunça na sala de estar com paredes cor de salmão. 

- Beleza, pai, já tô aqui na casa do Jeffrey. 

- Nada revirado? 

- Não, tá tudo no lugar, ninguém pisou aqui. - disse Nathan que pegou seu medidor EMF - O detector não tá captando leitura, então sem vestígios de presença demoníaca. Cadê o livro?

- No escritório do Jeffrey em cima da escrivaninha. - informou Frank.

Nathan seguiu explorando a residência, tendo logo achado a porta do escritório. 

- Caramba, que loucura. - disse ele - Como vou resgatar vocês se...

- O Jeffrey falou que você pode continuar a história de onde parou. 

- OK, tô no escritório e o livro é esse daqui... - disse Nathan vendo o livro do destino aberto na página inacabada. 

Jeffrey estava uma pilha de nervos, suando em demasia.

- Fala pra ele escrever de modo que se insira na história. 

- Achei que fosse pra dar um final definitivo. - disse Frank contrariado.

- Confie em mim, podemos escapar de um destino terrível. 

- Nathan, você tem que escrever se imaginando como um personagem, põe a criatividade pra funcionar.

O jovem caçador viu a pena e molhou a ponta no tinteiro, mas travou a mão ao aproxima-la do livro.

- Não consigo, deu bloqueio. Nunca escrevi histórias antes, só lia e ouvia. 

- Vou testar a versão espelhada se ele estiver com dificuldade. - disse Jeffrey abrindo o livro do destino que carregava. Tirou um lápis do bolso e agachou-se começando a escrever sem pausa - É funcional, ele pode se juntar a nós.

Numa fração de segundos, Nathan surgira entre eles. O filho de Frank olhou em volta, estupefato.

- Que lance mais sinistro é esse? Você... - disse ele virando-se para Jeffrey e depois para Frank - Pai...

- O Jeffrey tem uma cópia do livro do destino, é como se um fosse um efeito automático da criação de uma nova realidade através do livro. - disse Frank saindo da cabine. - Vamos lá, Jeffrey, escreve aí um final que nos tire daqui já.

 - Não, Frank. Não pra já. - disse Jeffrey ficando de pé - Sou um escritor perfeccionista, quero concluir essa história da melhor forma possível. Trouxe o Nathan pra cá no intuito de ele agir como um personagem adicional. 

- Eu tive a impressão de ter escutado alguém bater na porta. - disse Nathan.

Jeffrey ficara lívido ao saber. 

- Ah não... E se foram os demônios? Mataram meu amigo depois de o forçarem a falar paradeiro atual do livro. 

- Se você escreveu mais, por que não voltamos a entrar nos nossos personagens? - perguntou Frank. 

- A magia só é reativada com um determinado número de páginas escrito. Enquanto não houver mais um bloco de eventos criado, continuamos a sermos nós mesmos. 

- Então escreve logo um final nas coxas pra isso acabar rápido. - pediu Frank, exaltando-se.

- Não posso, Frank, preciso dar um ponto final do meu jeito. - disse Jeffrey exasperado.

- Rasga a página! - sugeriu Nathan - Se forem demônios, eles pegam o livro e escrevem do jeito deles pra nos ferrar.

- O Nathan tá certo, tem que rasgar a página na parte em que você deu continuidade à história.

O escritor baixou os olhos para o livro quase querendo debulhar-se em lágrimas, altamente hesitante. Em paralelo, três homens invadiam a casa de Jeffrey. Um deles possuía um rosto familiar. Era Dustin Farrell, o líder da gangue de caçadores de artefatos sobrenaturais, possuído por um demônio tal como os comparsas. O trio enveredou-se pelo corredor, descobrindo o escritório de Jeffrey. O demônio possessor de Dustin sorriu ao ver o livro aberto. 

- Ora, ora, ora, foi mais fácil que roubar doce de criança. - disse ele aproximando-se.

- Mas olha só, o cara já escreveu umas vinte páginas. - disse um dos demônios. 

- Hum... Frank Montgrow. - disse o demônio que possuía Dustin - Nunca foi tão moleza me livrar de um caçador antes. 

O demônio pegou o livro, mantendo-o aberto e seguiu para a sala trazendo-o e acompanhado dos parceiros. Na realidade em estilo noir, Jeffrey lamentava-se de não encerrar sua história como gostaria.

- Jeffrey, amigo, supera essa. - disse Frank - Eu posso não lembrar de nada do que vivemos aqui, mas... eu entendo você querer que fôssemos parceiros numa caçada contra um monstro depois de eu ter salvado sua pele do fantasma. Só que esse poder subiu à sua cabeça, levou você a se sentir um deus capaz de manipular toda a história. 

Jeffrey fechou os olhos apertadamente, atormentado com a ideia de interromper sua narrativa. O escritor foi rasgando gradualmente a página pela metade, descartando o momento em que Nathan foi introduzido no enredo. Paralelamente, o demônio em Dustin estalou os dedos diante da lareira, acendendo o fogo com intenção de queimar o livro. Os outros dois demônios riam infamemente. Frank e Nathan olhavam Jeffrey rasgar a página com expectativa.

- Eu adoro finais dramáticos. - disse o demônio possessor de Dustin prestes a atirar o livro no fogo - Sem o livro perdemos nossa oportunidade de criar um mundo ideal onde nosso eterno líder Malvus reina em absoluto, mas em compensação... sem Frank Montgrow essa cidade está condenada.

Jeffrey rasgara a página ao meio terminando como se aquela tarefa exigisse um esforço hercúleo. Escreveu "FIM" na parte interrompida. Num súbito fenômeno, Frank, Nathan e Jeffrey caíram na sala de estar como se tivessem teletransportado. Os demônios, surpresos, os encaram furiosos, mostrando seus olhos pretos. 

- Eu tava tão perto de me livrar de uma escória feito você. - disse o demônio em Dustin. 

- Peraí, você é o Dustin Farrell da turma dos ladrões de artefatos. Resolveu se juntar com demônios depois que o seu chefe foi chutado pro xadrez?! - disse Frank - Tá bem arranjado hein. 

- Dustin? Não, aqui é o Zyndao. - disse ele exibindo seus olhos negros - Há quanto né, Frank? 

O detetive o encarou com olhos semicerrados e sacou sua lâmina sacerdotal, partindo para cima de Zyndao. Nathan tomou a iniciativa de enfrentar os outros dois num mano à mano, dominando-os com certa facilidade. Conseguiu jogar um contra uma estante com portas vidro. Jeffrey percebeu que o livroi oi largado e correu para reavê-lo. Zyndao socara Frank no rosto, derrubando-o, mas o detetive logo reergueu-se fazendo um corte no rosto dele com a lâmina anti-demônio. Jeffrey se aproximou da lareira jogando o livro do destino ao fogo, o que deixara Zyndao enfurecido. 

- Não! - gritara o demônio, colérico. Com sua telecinesia, levitou um espeto da lareira e o mandou direto ao peito de Jeffrey, cravando-o pela metade. 

- Jeffrey! - disse Frank, alarmado ao vê-lo ser empalado. O detetive exorcizou um dos demônios com as palavras romenas fazendo-o rapidamente despossuir o corpo. Frank passara a lâmina nele que se desfez em fumaça negra a se dissipar num instante. Nathan surrava o outro que defendia-se com os braços, mas logo despossuiu seu receptáculo, correndo e fugindo pela janela - Agora é a tua vez, maldito! - disse Frank, voltando-se à Zyndao. Recitou o exorcismo romeno, arrancando-o do corpo de Dustin. 

Nathan foi ao socorro de Jeffrey que estava gravemente debilitado. Zyndao soltou um grunhido de raiva e antes que Frank avançasse para mata-lo com a lâmina, o demônio sumira em teleporte. 

- Desgraçado, filho da mãe. - disse Frank revoltado com o ato perverso do demônio que foi braço direito de Lilith. Correu para ver o estado de Jeffrey - Como ele tá? 

- O pulso tá fraco. - disse Nathan - Acho que acertou em cheio no coração. 

- Fra... Frank... - disse Jeffrey, a boca escorrendo sangue e a respiração difícil - Eu te agradeço... imensamente.

- Jeffrey... - disse Frank, emocionando-se - Por mais errada que tenha sido sua ideia, você... fez pelos motivos certos. - segurou a mão esquerda do escritor que apertou, mas deixou-se cair. Jeffrey dera seu derradeiro suspiro, seus olhos encarando o vazio. Frank fechara-os, abalado com a morte de um bom amigo que fizera após uma missão bem-sucedida, diferentemente daquela em que sentir ter falhado. Nathan tocou no ombro do pai também impactado pela morte.

Na lareira, o fogo consumia as páginas do livro do destino, bem como o mundo sombrio concebido por Jeffrey. 

                                                                                 ***

No DPDC, mais especificamente na sala de Frank, Carrie ouvia o detetive terminar de contar a história irreal que viveu e a parte real e trágica do desfecho. 

- Meu autor favorito se foi. - disse a assistente, lamentosa - Malditos demônios. E pensar que eles quase destruíram vocês junto com o mundo inspirado pelos filmes de suspense antigos. E o Nathan metido nisso também, coitado. Eu gostaria de reter minhas lembranças de femme fatale. 

- Ia gostar de lembrar de ter traído seu marido com uma penca de homens e ainda dopado um deles? Além disso, tem o lance do pacto com a bruxa pra criar o tal monstro da história. - disse Frank.

- Ah, eu creio que seria uma experiência legal sentir ter encarnado uma faceta diferente do que sou. - disse Carrie imaginando - Ele foi um gênio pra mim. Que descanse em paz.

- O Nathan e eu enterramos ele numa cova aleatória. Ele não tinha plano funerário, muito menos parentes vivos. Enfim, não quero remoer a velha frustração de não conseguir salvar uma alma inocente de sangrar até a morte. - disse ele pegando a pasta com o caso do dia, logo abrindo-a - Suposta criatura oriunda de uma lenda urbana em Massachusetts aterroriza subúrbio. - fez uma pausa, lendo - Provincetown... O famoso Flash Negro. Foi esse o monstro que o Jeffrey botou na história. 

- E pelo visto... terá que caça-lo de verdade. - disse Carrie - Aí estão endereços de pessoas que relataram avistamentos à polícia e associaram à lenda. 

- Bem, ser detetive aqui é bem melhor que no mundo falso em preto e branco. - disse Frank levantando-se - Mas não mancha quem o Jeffrey realmente era. Vai ver ele já tinha uma noção da existência dessa coisa... e se inspirou.

- Vai saber. - disse Carrie, um tanto entristecida, dando de ombros. 

Enquanto o detetive e a assistente saíam da sala, à vários metros de profundidade no subterrâneo, mais precisamente na cidade de Gargóvia, dois subalternos de grande estatura e porte robusto encaminhavam-se para a entrada do palácio de Nero que dava-se por um corredor iluminado por tochas. O governante saía das sombras para trocar algumas palavras. 

- Nos chamou, senhor? - perguntou um deles. 

- Daqui há dois dias, vocês voltarão à superfície para uma importante missão. - disse Nero, categórico - Eu subestimei Axel ao longo do meu treino.

- Pensamos que... o senhor tinha conseguido se infiltrar na mente dele. O que aconteceu de errado?

- Não era ele quem sabia do feitiço pra dominar o Behemoth? - perguntou o outro. 

- Ele sabe, mas reforçou suas barreiras, sobrepujando meu poder aprimorado. - disse Nero, amargurado - No instante em que pensei ter penetrado fundo até o núcleo do seu subconsciente... acreditei que ele teria se rendido. Mas não. O feitiço que ele me forneceu estava incorreto. Testei ontem, arriscando minha própria vida descendo por uma rota pela qual o Behemoth passaria arrasando com tudo, mas senti tanta vergonha pelo fracasso que não fiz nenhum pronunciamento público até agora. - o governante virou o rosto pedregoso de semblante enfezado para os lacaios - Tragam-no até mim vivo. 

- Mas nem ao menos sabemos a localização atual exata ele. - disse a gárgula virada à esquerda de Nero.

- Não é necessário. - contrariou Nero - Na minha última invasão, em mais uma tentativa frustrada de obter o feitiço, ele guardou uma informação nova. - o governante dera um sorriso confiante - Uma data marcada para sair a uma aventura junto com o híbrido. Axel está confinado numa espécie de cela e finalmente sairá, mas sem o aval de Frank. Repassem aos demais, apenas dois não serão o bastante. Chegamos num momento crítico e pra supera-lo teremos de jogar pesado. 

Os dois soldados parrudos assentiram com meneios de cabeça.

- Querendo ou não, Axel tem a chave para a salvação de nossa raça. - disse Nero, determinado - E ele, querendo ou não, vai reconhecer esse papel. 

*A imagem acima é propriedade de seu respectivo autor e foi usada para ilustrar esta postagem sem fins lucrativos.

*Imagem retirada de: https://veja.abril.com.br/blog/augusto-nunes/beco-sem-saida-3/

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