Frank - O Caçador #84: "Além da Imaginação"


Naquela noite estrelada, porém desprovida de lua, um jovem de 25 anos usando calças jeans e casaco preto se embrenhava nos arbustos grandes para espiar à distância uma casa na qual morava alguém que parecia não ver há séculos. Emergiu sua cabeça, dos olhos para cima, para focar sua visão na janela descortinada do quarto da bela adolescente que contemplava. 

Arriscou uma aproximação mais larga. A garota de longos cabelos castanhos soltos e ondulados que caíam aos ombros estava de costas parecendo falar com alguém. O rapaz não tirava os olhos da janela à medida que encurtava seu caminho à ela. Encostou-se na parede depressa com medo de que sua presença fosse sentida, mas logo inclinou-se para a sua direita intencionando uma espiada mais invasiva. O que constatou acabou gerando um misto de preocupação e confusão.

A garota conversava com um acompanhante que não parecia estar ali. O rapaz parou de observar, ficando a pensar no que estaria acontecendo para sua grande amiga estar falando sozinha. Um único nome lhe veio à mente como possível solução de desvendamento além do que os olhos podem ver. Correu para longe se misturando às sombras e desaparecendo.

Frank voltava de mais um dia produtivo, com o corpo estafado desejando cair na sua cama. Ao adentrar na sala, se encaminhou direto para a escada, mas interrompeu-se, sentindo a atmosfera diferenciar-se. 

- Axel? - indagou o detetive imaginando que na pior das hipóteses o seu hóspede poderia ter sucumbido novamente à maldição de gárgula e escapado da cela no porão. - Não, não pode ser... Ele não teria surtado, virado gárgula e fugido. - No entanto, sua percepção apurada detectou aquilo que contrariou essa especulação - Mas que diabos... 

- Surpresa. - disse o rapaz que espionava a garota irrompendo da escuridão num canto da sala onde a luz do poste não alcançava. Frank tomara um susto que quase pulou para trás - Ei, calma, vê se não morre do coração, aliás, desculpa aparecer assim... 

- Peraí, você é o... - disse Frank não o reconhecendo logo de imediato - ... o corvo. 

- Ex-corvo. - corrigiu ele - Não tá lembrado do meu nome?

- Ah sim... - disse Frank apontando para ele - Franz... 

- O sobrenome não importa. - cortou ele chegando mais perto - É ótimo revê-lo. Mas vim aqui... pra te pedir um favor.

- Dependendo do que seja... - disse Frank - Se for pra hoje, esquece. Acabei de voltar do trampo e tô bêbado de sono.

- Não é que não possa esperar, mas... Tem a ver com a Amélie, a minha amiga de quem te falei quando nos conhecemos, que ouvia minhas histórias no cemitério lá em Londres... Há algo de errado com ela, algo que talvez você saiba o que possa ser.

Frank não pôde refrear a curiosidade instantânea sobre a semente de um novo caso plantada. 

- Pode contar comigo. Vai fundo nos detalhes. - disse o detetive, atento a ouvir, apesar do cansaço. 

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CAPÍTULO 84: ALÉM DA IMAGINAÇÃO

Franz sentou-se no sofá maior apoiando os cotovelos sobre as coxas em clara demonstração de preocupação. Frank foi para perto da poltrona preferindo manter-se de pé. 

- Fica relaxado. Ela está bem, não está? Chegou a notar um comportamento nela que fosse diferente da personalidade real? 

- Até onde eu sabia, ela não tinha o hábito de falar sozinha. - disse Franz esfregando lentamente as mãos.

- Então isso por si só já descarta possessão demoníaca. - falou Frank - O que você reparou exatamente?

- Eu iria visita-la como uma pessoa normal. Bem, hoje eu... basicamente sou uma criatura aparentemente normal, como você pode ver. - disse Franz referindo-se às suas vestes. 

- Você até que ficava estiloso com aquela roupinha gótica. - disse Frank, rememorando a ocasião em que Franz apareceu de surpresa quando iriam confrontar as pessoas possuídas por fantasmas. 

- Muita coisa mudou desde que reencarnei no meu verdadeiro corpo. Me adaptei aos tempos modernos, nada mais natural. Agora voltando a Amélie... Eu nem sequer tive coragem de bater na porta, estava muito nervoso, faz bastante tempo que deixamos de nos falar, isso quando eu ainda eu tava preso naquela ave. Ela certamente não guarda uma lembrança boa do nosso último encontro quando ela iria partir de mudança pra cá. Tudo que me limitei a fazer foi... espia-la na janela. 

- Daí você flagrou ela conversando com alguma coisa invisível?

- Sim. - respondeu Franz, a expressão de temor - Eu posso ser alguém que literalmente vive nas sombras, mas ser quem sou não torna imune de sentir medo de certas coisas sinistras. É irônico e hilário, eu me escondo nas trevas, viajo por elas, foi por isso que cheguei aqui, só pra constar, e... estou sentindo medo de algo que não sou capaz de enxergar com meus próprios olhos. Talvez essa fase de normalidade tenha me humanizado, mas por outro lado... 

- Sente que acovardou. - completou Frank como se adivinhasse os pensamentos dele - Não anda com a mesma postura como na época em que fomos partir pra cima da galera possuída por fantasmas enfeitiçados. É nessa vibração que você tem estado, né? Perdeu o costume de ficar cara à cara com o sobrenatural. Mas não tem que se achar enferrujado.

- Como vou ajudar a Amélie se atualmente não sou nem a sombra do que já fui? Ops, acho que usei a palavra errada... ou certa, sei lá. - fez uma pausa, baixando a cabeça - O fiapo de esperança que tenho me diz que é só um amigo imaginário.

- Quantos anos ela tem hoje em dia? 

- Não sei, mas obviamente ela cresceu bastante de lá pra cá. Arrisco dizer que uns 15 anos. Ela tá linda, por sinal.

- Amigo imaginário em plena fase da rebeldia? Aí tem coisa... e coisa boa não deve ser. Tem uma grande possibilidade da Amélie ter criado sim um amigo, mas que se tornou autossuficiente. Entende o que isso significa? 

Franz virou o rosto para o detetive com a face tomada de seriedade bruta.

- Tá dizendo que... um Tulpa saiu da mente da Amélie? 

- É a única hipótese válida considerando o que você viu. Ou melhor, não viu. Ah, as duas coisas. 

Sem aviso algum, Nathan adentrava, o que espantou Frank. 

- Vou entrando. - disse ele que paralisou ao ver um rosto desconhecido na sala - Opa, não sabia que tinha visita.

- Ei cara, sua mãe não te deu educação pra pedir licença ao entrar? - questionou Franz, levantando-se. Voltou-se à Frank - Quem é ele?

- Ahn... Esse é o meu novo parceiro de caça, o Nathan. - respondeu Frank evitando dizer que fosse seu filho - Ele já é de casa, não esquenta. - foi aproximando-se dele - E aí, por que veio à essa hora? Expirou a reserva no hotel? 

- Não, tem mais dois dias sobrando, mas tô duro pra renovar a estadia. Resolvi tirar um tempinho pra trocar uma ideia com o Axel, não vou demorar. Ele não se zanga mesmo se eu interromper a meditação ou o sono.

- Você e ele tem ficado muito entrosados ultimamente. Os empurrões que eu te dei surtiram efeito. 

- Pois é, a gente tem estreitado os laços, eu vi que ele necessitava de uma companhia pra amenizar a solidão naquela masmorra. De certa forma, tem feito bem a mim também. Tô compensando os anos que passei sem ter alguém pra chamar de amigo por perto. - fez uma pausa, crendo que convenceu o pai - E então? Não vai me falar do cara-pálida aí?

- Do que você me chamou? - perguntou Franz, franzindo o cenho. 

- Nada pessoal. - disse Nathan erguendo de leve as mãos - Leva na boa. 

- Olha, vou dizer uma coisa que vale pros dois: É uma longa história. - disse Frank olhando-os - Satisfeitos?

- Não. - disseram ambos em uníssono. Frank deixou os ombros caírem de cansaço. 

- Nathan, vai lá ver o Axel, acho que ele não tá dormindo ainda, deixei uns livros de mitologia grega pra ele se distrair. O Franz tem um problema, precisa do meu apoio. Nos conhecemos de outros carnavais. 

- Caso novo? - indagou Nathan, suspeitoso. 

- Tecnicamente sim. - disse o detetive, evasivo para não instiga-lo. Nathan fingiu se contentar. 

- OK, vou nessa. - disse ele passando por Franz - Foi um prazer. 

- Idem. - disse o outro não fazendo o menor contato visual. Assim que Nathan se distanciou, aproveitou o ensejo - Amigo ou familiar, não desobriga ele a agir com o mínimo de educação e cordialidade. Mas admito que ele tem estilo. 

- Não dá bola pra isso, se concentra no nosso plano em alertar a Amélie do inquilino duvidoso. Vou te encontrar próximo da casa dela, mas não seremos parceiros de investigação. Você primeiro vai e se apresenta como um amigo de longa data. Só depois, bem depois, que eu chego na área. Beleza? Agora me dá licença que... - bocejou longamente.

- Tá legal, você quem manda. Agora vai contar carneirinhos enquanto conto as horas pra gente dar o pontapé inicial. 

- Peraí, você não dorme? - indagou Frank, estranhando. 

- Ser uma criatura que maneja as sombras vem com um pacote de restrições. Aqui o endereço. - entregou um papelzinho dobrado que Frank pegara sem ler nada. 

- Muito bem, fiquei com medo de você agora. - disse Frank dando passos em direção à escada. 

- Boa noite. - disse Franz recuando até um canto opaco da sala, desaparecendo literalmente nas trevas.

                                                                                 ***

Na manhã seguinte, Franz encontrava-se de prontidão no espaço dos arbustos aguardando Frank. Conferiu no relógio por uma vez não-contada, andando de um lado para o outro em impaciência. 

Julgando pelo atraso, estava quase cogitando bater à porta de Amélie sem mais esperar um segundo. Mas logo avistou um carro cinzento parando uns metros próximo. Franz suspirou com a boca, aliviado e logo foi ao encontro dele.

Porém, Frank baixou o vidro e colocou sua cabeça para fora fazendo um gesto pedindo pra que ele desse meia-volta. Franz respondeu com uma expressão confusa que acabou forçando Frank a sair.

- Francamente, não entendeu meu sinal? - perguntou o detetive - Tá bom que você é de outra época, mas isso também é demais. 

- Eu não me sinto tão pronto. - disse Franz, nervoso - E se ela estiver no colégio à essa hora?

- Não custa bater na porta e perguntar. Tá suado, parece que gastou muita perna pra vir à esse terreno fechado... 

- Quer uma resposta simples? Não posso usar meu poder à luz do dia. Esse é um lugar que os tios da Amélie pagaram quase uma fortuna pra se apropriarem ao invés de alugar. Como seu carro passou pelo portão?

- O porteiro é gente fina. - disse Frank - E é claro, inventei um belo pretexto. 

- Amigo da família? 

- Parente distante. - respondeu ele, dando de ombros - Ele não deve ser tão vinculado à família, mas talvez muito bem pago pra manter um sitiozinho desses seguro. Vamos começar? Ergue a cabeça e acaba com esse receio bobo, você consegue.

- Me deseje sorte. - disse Franz tentando externar sua segurança - Reencontros podem ser tão difíceis quanto despedidas. 

- Ei, espera um minuto. - disse Frank, retirando um celular de um bolso do sobretudo - Pega. 

- O quê? Desculpa, não posso aceitar como presente, falei que tinha me adaptado ao mundo moderno, mas aparelhos telefônicos portáteis ainda não se incluem pela minha dificuldade de compreensão.

- Teve quatro anos pra se encaixar psicologicamente, ainda mais em se tratando de tecnologia. Como é que você tem vivido nesse meio tempo? 

- Muita coisa aconteceu, se eu te falar cada peça dos momentos bons e ruins que vivi, desperdiçaríamos tempo. - disse Franz, um pouco desconfortável - Pra quê o celular, afinal?

- Ah, pelo menos você sabe como se chama. É o seguinte: Você terá que me informar o que extraiu de substancial das palavras da Amélie sobre o Tulpa que ela abriga. Se achar que tem coisa podre no ar, me liga, tem meu número registrado. 

- Não. - disse Franz decididamente - Desnecessário. Caso eu demore, simplesmente você entra em cena.

- Daí a tia ou o tio dela pode desconfiar da estranha coincidência da visita de um amigo e um detetive do DPDC num curto espaço de tempo.

- Você dá um jeito. - contestou Franz devolvendo o celular à mão de Frank - Não é bom com desculpas? 

O rapaz dera as costas, caminhando em direção à casa de Amélie bem mais confiante. Frank fazia que sim vagarosamente com a cabeça, pensando no sentido que fazia o contraponto. O detetive retornou ao carro para esperar a oportunidade.

Franz bateu contidamente na porta da madeira vermelha. Uma mulher de belos cabelos pretos e ondulados, parecendo ter saído há pouco do salão de beleza, o atendeu, limpando as mãos no seu avental branco bordado. 

- Olá, senhora, bom dia... Ahn... A Amélie está?

- Depende de quem está perguntando. - disse ela lançando um olhar minimamente desconfiado. 

- Sou Franz, um amigo dela. A senhora é...

- Sou Ursula, a tia dela. - interrompeu não parecendo estar disposta a conceder àquele estranho passagem livre - Amélie nunca falou de ninguém com esse seu nome. Você não parece ser daqui... 

- Sou britânico. - respondeu Franz sorrindo educadamente - Nos conhecemos há alguns anos. 

Ursula aparentava estar tomando as palavras de Franz como verdade. 

- E então, ela está ou não? - perguntou Franz - Olha, é sério, a Amélie significa muito pra mim, não quero causar incômodo... 

- De modo algum, entre. Ela está no quarto. - disse Ursula abrindo mais a porta, conferindo passagem para a euforia interna do rapaz. Franz entrou pouco à vontade com o ambiente e foi guiado por Ursula até o quarto de Amélie. Deixou-o entrar sozinho. Amélie estava sentada na cama compenetrada na leitura de um livro. Ela ergueu os olhos ao ver Franz entrando.

- Quem é você? - indagou ela fechando o livro. 

- Não tá me reconhecendo, tudo bem... Eu te ajudo: O bode velho sempre me azucrina com o ceticismo dele. 

Um estalo na memória de Amélie ocorreu subitamente. A garota estudou a figura de Franz com minúcia extrema e levantou-se da cama largando o livro. 

- Não... - disse ela balançando a cabeça olhando-o de cima à baixo - Você... não pode ser ele.  

Franz sorriu crédulo de que sua amiga estava em pleno e passageiro estado de negação. 

- Em carne e osso. Agora numa carcaça a qual pertenço. 

- Meu Deus... - disse Amélie tapando a boca com as mãos, fascinada. Correu até ele, abraçando-o fortemente. Franz retribuiu afagando as costas dela - Eu não parava de pensar em você desde que embarquei naquele avião. 

- E nem eu desde que dizemos adeus no cemitério. - disse ele segurando firme nas mãos dela - Precisamos conversar. 

Paralelamente, Frank observava a casa, mas pra ele já estava ficando desinteressante apenas esperar olhando para o tempo. Deu uma conferida na caixa de mensagens do celular. Apertou no nome que não lhe saía da cabeça um segundo sequer.

Porém, constatou não haver novas mensagens. 

- Droga, Lucy. - reclamou ele, logo guardando o celular, frustrado pelas mensagens suas ignoradas. 

Franz e Amélie estavam sentados na lateral da cama engatando a conversa de reencontro. 

- Esteve me observando ontem?! Por que não chamou minha atenção? - perguntou ela. 

- Por que... você já tinha companhia. - disse Franz, hesitando em falar diretamente do Tulpa. 

- Ah, sim... Na verdade, era o Sr. Forfuller, o meu amigo imaginário. Ou costumava ser só meu. 

- Como assim ele não é mais apenas seu? 

- Eu consigo fazer com que ele seja visível a outras pessoas somente tocando nelas. Posso fazer com você assim como fiz com meus tios.

- O quê?! Seus tios também sabem que ele existe?! - disse Franz num tom mais alto do que deveria.

- Shhh! - chiou Amélie com o dedo indicador direito na boca - Nesse momento, ele tá na cozinha ajudando a tia Ursula com os biscoitos que ela levará pro casamento do meu primo. Tio Phill e ela irão logo à tarde e voltam no fim da noite. 

- Você não vai? Ou não foi convidada?

- Convidada até fui, mas tô atrasada pra um trabalho urgente da escola. - disse Amélie olhando-o com seus grandes olhos claros - Franz, eu sei que pra você parece sinistro e sombrio, te conhecendo bem, mas resgatar o Sr. Forfuller e torna-lo real tem me provado ser uma das decisões mais sábias que já tomei. Me deixa compartilhar ele com você.

Amélie ergueu sua mão direita pretendendo tocar em Franz a fim de faze-lo enxergar o Tulpa. 

- Vá em frente. - disse ele em permissão. Amélie levou sua mão à cabeça dele, tocando nos seus macios cabelos pretos e fechou os olhos por um instante. Os reabriu, sorrindo de leve - Ué, não tô vendo ele em parte alguma. 

- Tolinho, basta eu chama-lo.- disse Amélie - Sr. Forfuller, pode vir aqui no meu quarto, por favor?

Não tardou para que o Tulpa aparecesse entrando no cômodo. Franz rapidamente se espantou com a aparência da criatura originária da mente de Amélie. Um mordomo trajando um elegante terno negro, com luvas brancas e sapatos lustrados. Porém, a cabeça era a de uma coruja com penas marrons, face pálida e olhos grandes e negros bem redondos. 

- Ao seu dispor, minha dama. - disse Sr Forfuller, muito cortês. Mas a voz que saía pelo bico de coruja soava meio cavernosa.

- Faça um chá para mim e... para o Franz. Dê as boas-vindas à ele, é um grande amigo meu.

- Seja muito bem-vindo, Franz. - disse o Tulpa voltando-se para o rapaz que parecia meio atemorizado - Trago o chá rapidinho. 

O Tulpa saíra do quarto em passos firmes fechando a porta. Franz olhou para Amélie com preocupação.

- Não faz essa cara. Ele parece um monstro por fora, mas por dentro é um ótimo serviçal de coração nobre.

                                                                                  ***

Nathan descia da sua caminhonete preta que estacionou perto da calçada, seguindo direto à porta de Frank. Havia feito uma cópia de chave sem o conhecimento do detetive. A retirou do bolso do sobretudo preto de couro e enfiou na fechadura, girando com cuidado. Sabia que àquela hora Frank não estaria presente. Já eram por volta das dez da manhã. 

A porta abria com um fino rangido. O jovem caçador adentrou em passos cuidadosos e lentos, fechando a porta nesse ritmo. Direcionou-se ao porão para destrancar a cela de Axel. O hóspede de Frank estava no meio de uma das suas meditações imersivas, a qual foi bruscamente rompida com a entrada repentina de Nathan puxando a pesada porta de ferro oxidado. 

- Te atrapalhei de novo, não foi? - perguntou Nathan aproximando-se.

- Sem problema, mas você bem que podia ter marcado um horário. - disse Axel levantando-se. 

- Foi mal, não tinha certeza se o papai estaria de folga, mas sei que ele tá e ainda assim partiu pra uma missão com um amigo estranho dele. Pronto pra voltar a respirar um arzinho puro? 

- Só se for agora. - disse Axel expressando uma retraída felicidade. 

A dupla saíra da casa em direção à caminhonete. Nathan trancava a porta. 

- É ótimo, sabe... Sentir o sol na minha pele de novo. - disse Axel, respirando o ar externo - E aí, já tem alguma pista sobre a górgona? 

- Ela tá sob o disfarce de uma operadora de caixa numa loja de conveniência. - respondeu Nathan, convicto.

- Você já... descobriu quem ela é?! Como assim tão rápido e fácil?

O caçador não virou o rosto para o parceiro, ficando em silêncio por uns segundos julgando a melhor desculpa que inventaria. Obviamente que justificar atribuindo ao EMF seria basicamente subestimar a inteligência de Axel. 

- Coisa do futuro, você tem uma ideia de que não posso jogar as cartas na mesa sobre tudo em relação ao meu tempo, da época em que eu nasci até o momento em que subi a bordo do Expresso Temporal. É um fardo pesado de se carregar.

- Ahn... Sim, eu sei, as consequências de contar sobre o futuro. Eu respeito isso, não vou te pressionar a falar. 

- Vamos nessa, então? Tenho um plano ideal pra atrairmos ela à nossa arapuca de modo que fique encurralada. - disse Nathan andando com Axel lado à lado até a caminhonete. 

Distante dali, Frank irritava-se com a demora de Franz em sair da casa de Amélie para trazer alguma evidência que denunciasse o Tulpa como uma entidade maligna ou o que depusesse ao contrário disso. Com a paciência estourada, Frank saíra do carro e fora à casa de Amélie. Ursula atendeu a segunda visita do dia e arqueou as sobrancelhas em espanto.

- Em que posso ajuda-lo? - perguntou ela. 

- Perdão pelo incômodo, mas... eu gostaria de saber se o Franz terminou de colocar o papo em dia com a amiga dele. 

- Primeiro um amigo desconhecido da minha sobrinha aparece de surpresa, agora um detetive que vem atrás dele. Espero que haja uma boa explicação. 

- Eu sou o pai dele. - disse Frank falando rápido, mas não controlou uma postura meio insegura devido ao analítico e penetrante olhar de Ursula que poderia fazer desmoronar qualquer mentira.

- Está bem, pode entrar. - disse ela, permissiva - Ele parece ser bem jovem, portanto nada estranho que venha acompanhado do próprio pai. 

- O-obrigado. - disse Frank pisando no solo de madeira da casa - Com licença. 

Franz e Amélie prosseguiam na conversa quando foram surpreendidos pela chegada abrupta do detetive ao quarto. 

- Não tô interrompendo nada, certo? - perguntou Frank. 

- Opa, calma aí Amélie, deixa eu te falar... - disse Franz levantando-se rápido da cama. Virou-se para Frank numa expressão aborrecida - O que tá insinuando? - perguntou baixinho.

- Não é nada, foi só uma pergunta normal. Você não ia arrastar pra uma garota no auge da puberdade sendo você bem mais velho, né?

- Franz, quem é ele? Amigo seu? - perguntou Amélie, intrigada. 

- A sua tia acreditou piamente que eu fosse pai dele pra me deixar entrar. - disse Frank.

- O quê? Disse que sou seu filho? Nós podíamos ter entrado juntos com essa desculpa, sabia?

- O senhor parece algum tipo de detetive... - disse Amélie olhando-o com certa apreensão.

- Sem querer me gabar, mas... não qualquer detetive. - disse Frank - Muito bem, mocinha, vamos tratar do seu amigo imaginário aparentemente inofensivo. Pode crer que minha intenção é ajudar.

- Franz, não me diga que você trouxe ele pra ficar na cola do Sr. Forfuller?

- Ah, esse é o nome da coisa? 

- Ele não é uma coisa! - retrucou Amélie com rispidez - Não vou deixar você machuca-lo, se é que pode.

- Tem razão, eu realmente não posso. A única coisa capaz de destruí-lo é única e exclusivamente você.

- Ah, claro, vai achando que eu farei isso só porque você quer. 

- Amélie, fica fria, o Frank e eu viemos te orientar sobre o Sr. Forfuller. Mais sobre o que ele é, pra ser exato.

- Ótimo, tentem me convencer de que ele é um monstro terrível. Qual de vocês quer começar? - perguntou ela.

- Lembra daquela história que te contei sobre a fada dos dentes? 

- Pra ser sincera... - disse Amélie vasculhando na memória - Não muito. Mas lembro vagamente que envolvia uma menina que criou a fada a partir da sua própria mente.

- Sim, a fada que no início era imaginária adquiriu autoconsciência e ficou independente. Eu expliquei que se tratava de um Tulpa, uma criatura materializada do seu pensamento, mas não necessariamente boa.

- Tulpa... Sim, a lembrança tá voltando que nem um filme na minha cabeça. Essa história foi bem... sombria. Mas o Sr. Forfuller não descumpre minhas ordens, até porque minha tia tá nesse momento sendo ajudada por ele a meu pedido.

- Garota, presta atenção: Você abriga uma bomba-relógio na sua casa. - afirmou Frank - Os seus tios, inclusive você, podem estar em perigo constante, morando com o inimigo. E peraí, os seus tios conhecem ele?

- No começo, chegaram até a me levar ao psiquiatra, mas no fim das contas pude faze-los verem com seus próprios olhos o Sr. Forfuller como eu sempre o imaginei, por fora e por dentro. - declarou Amélie, disposta a convencer Frank de que ninguém está sob ameaça - O Sr. Forfuller não passava de um fragmento da minha infância que eu resgatei pela saudade que eu tenho.

- Então num surto de nostalgia você resolveu ressuscitar o amigo imaginário pra ele ser parte da sua vida como um amigo leal. - disse Frank constatando a necessidade emocional de Amélie - Tem certeza de que ele não faz absolutamente nada sem seu consentimento? 

- Franz, manda ele ir embora ou peço pros meus tios expulsarem. - disse Amélie, impaciente. 

- Olha, se acalma, eu tô com o Frank nessa. - disse Franz colocando as mãos sobre os ombros dela - Mas a situação pode não ser tão tranquila quanto parece. Teremos que investigar o Sr. Forfuller você gostando ou não da presença do Frank. Os seus tios vão sair, né? É uma deixa perfeita.

- Mas como seus tios são capazes de enxerga-lo da mesma forma que você? - perguntou Frank.

Amélie, sem aviso prévio, pegara a mão direita de Frank segurando-a firme e fechou os olhos. 

- Pronto, você é um dos que podem vê-lo. - disse ela. Franz notara um filete de sangue escorrendo de uma das narinas dela. 

- Ei, tá sangrando. - disse ele, preocupado, prontamente limpando com a barra da camisa. 

- Eu tô bem, apenas... me esforcei além da conta. Aconteceu o mesmo quando fiz com a tia Ursula e o tio Phill.

- O chá está servido. - disse o Sr. Forfuller adentrando no quarto com uma bandeja - Com sua licença, senhorita Kingsley.

Frank recuou uns passos para trás ao se deparar com a figura bizarra do mordomo com cabeça de coruja, logo de cara não captando boas impressões.

- Obrigada, pode deixar na cama. - disse Amélie que notou a reação de Frank. 

- Oh, que maravilha, temos um novo visitante. Queira se apresentar, por favor. - disse o Tulpa para o detetive.

- Frank Montgrow, detetive paranormal especializado em... monstros. - disse Frank, sincero e direto. 

Amélie lançou um olhar de reprovação contra ele que manteve-se inabalado. 

- Eu compreendo. - disse o Sr. Forfuller - Me despeço, por ora, minha cara dama. 

- Até mais. - disse Amélie. Sr. Forfuller deixara o quarto com sua postura ereta e elegante. 

- Sabe o que me deixa mais de cabelo em pé? É um amigo imaginário desses ter saído da mente de uma criança. - disse Frank apontando.

- Ah, dá um tempo. O Sr. Forfuller é uma criatura acima de suspeitas... até que se prove o contrário.

- A questão é: Você nos permite ficar pra comprovarmos a verdade? - perguntou Franz. 

Amélie mordeu o lábio inferior, perturbada ao confrontar com a razoável probabilidade do Sr. Forfuller rebelar-se aos seus comandos. 

- Eu aviso aos meus tios, antes deles saírem, que vocês ficarão pra me fazerem companhia.

                                                                            ***

A caminhonete de Nathan estacionara no outro lado da rua em que localizavam-se o posto de gasolina e a loja de conveniência. O jovem caçador focou seus olhos no estabelecimento. 

- Tudo que temos a fazer por enquanto é esperar. - disse Nathan - O turno dela acaba daqui à alguns minutos. Saída pro almoço. 

- Você ainda não disse qual minha utilidade na armadilha. - disse Axel. 

- Paciência, cara. Cada passo seguido corretamente torna esse plano mais infalível.

- E onde eu me encaixo? Sabe que por causa da maldição de gárgula... 

- Eu sei, eu sei, Axel, tem que evitar conflitos que levem você a explodir de raiva já que esse é o gatilho principal pra reativar o feitiço. Eu não apenas vou colocar a safada num beco sem saída, também vou extrair informações dela.

- Como o quê? Sobre a Medusa? Foi ela quem dava uns pegas no Nero antes da fatídica noite.

- Sobre uma cura. - disse Nathan virando o rosto para ele - Obriga-la a falar com a falsa condição de que deixarei sair viva. É aí que você entra. 

- Pra arrancar a cabeça dela na guarda baixa. Gostei, genial. 

- Larga de sarcasmo. - disse Nathan em tom brincalhão. 

- Não fui sarcástico. - retrucou Axel franzindo a testa. 

- Lá vem ela. - disse Natan avistando uma jovem mulher de cabelos castanhos encaracolados compridos - Já volto. - saiu do carro e andou na direção da atendente. Ela abriu um sorriso ao vê-lo vindo ao seu encontro - Oi, gatinha. Como é que vai?

- Considerando que estou diante de um possível romance promissor desabrochando na minha vida, melhor impossível. - disse ela que chamava-se Tessa na sua identidade adotada. 

- Quero te propor uma coisinha básica. 

- Noivado, já? - indagou ela logo desatando a rir - Brincadeira. Troca de presentes? 

- Um encontro. O que me diz? Na minha casa. 

- Você não sabe nem disfarçar. - disse ela com um sorrisinho malicioso. 

- Eu moro à umas quadras daqui. Na rua 1478, casa número 88. Às nove?

- Às dez. Bom pra você? 

- Tranquilo. Te espero com garrafa de bourbon no gelo e comida de delivery na mesa. 

- OK, tô ansiosa pra descobrir do que é capaz. - disse Tessa sorridente de um jeito sacana. 

Ambos deram um selinho. 

- Isso aí, falou. Não se atrasa hein. - disse Nathan logo virando as costas para sua nova "namorada".

- Meu mais novo parceiro de caçada é um conquistador barato. - disse Axel assim que Nathan reentrou no carro. 

- Está no papo, amigo. - disse ele, confiante - De hoje à noite, ela não passa. 

Paralelamente, Frank chamava Franz para uma conversa em particular num canto do corredor. 

- Já é complicado pra caramba o criador de um Tulpa se livrar da praga, imagina convencer a pessoa a fazer isso contra a vontade. - disse Frank. 

- Eu dei uns toques pra ela. - disse Franz - A manifestação do Tulpa pode fugir ao controle do criadorl ela tá ciente disso.

- O problema é que ela continua apegada à esse troço achando que ele ainda é um simples amigo imaginário fofinho e adorável como ela sempre sonhou. Primeiro de tudo, ela tem que acabar com esse saudosismo de infância. 

- O que estão cochichando? - perguntou Amélie atrás deles - Ah, deixa eu adivinhar... 

- Não precisa, era de você mesmo que estávamos falando. - disse Frank voltando-se para ela.

- Quantas vezes tenho que enfiar nessas suas cabeças ocas que o Sr. Forfuller não é um Tulpa que machucaria a mim, aos meus pais, nem a ninguém? Afinal, se ele é fruto da minha imaginação, porque viria a fazer coisas ruins? Até onde me conheço, sou uma boa pessoa. Não faz sentido. Ele tem me tratado com tanto carinho durante todo esse tempo. 

- E se ele estiver fingindo obedecer às suas ordens? - teorizou Frank - Parou pra pensar nisso?

- Senhorita Kingsley, algum problema? - perguntou o Sr. Forfuller vindo da sala. 

- Não, obrigada. Está tudo bem. Como está indo o assado que preparou pro jantar?

- No capricho, minha cara dama. - disse o Sr. Forfuller fazendo um sinal de O.K com a mão direita.

- Tá vendo só? Ele simplesmente veio sem que você o solicitasse. - apontou Franz.

- Na maior parte ele me atende sem questionar, mas ele também tem sua liberdade. 

- É aí que mora o perigo. - disse Frank - Deixa eu te perguntar: Tem sentido emoções negativas ultimamente? Raiva, ódio, medo, desejos de vingança... 

A garota permaneceu em silêncio não sabendo se fitava um ou outro com um semblante sério. Enquanto isso, Sr. Forfuller subia a escadinha que levava ao semi-escuro e empoeirado sótão. Andou até uma caixa grande de tábuas de madeira, levantando a tampa com força. De dentro dela retirou um baú cujas travas abriu com os polegares. O pusera sobre uma mesa e abriu-o lentamente. No interior dele haviam vários corações humanos armazenados como um tesouro. O Tulpa pegara um dos órgãos aleatoriamente e o levou ao bico onde mordiscou um pedaço, saboreando a carne fresca que apreciava. 

Frank retornou ao quarto de Amélie seguido por ela e Franz. O detetive pegara o laptop a fim de pesquisar notícias acerca de fatos violentos no bairro que contivessem detalhes suspeitos. 

- O máximo que o Sr. Forfuller sai de casa é indo ao bosque colher frutas. - disse Amélie - Vocês estão paranoicos. 

- Acabou de nos dizer que tem uma inimiga no colégio te provocando e você nem revida. - disse Franz - Lamento te desapontar, Amélie, mas você trancar esses sentimentos ruins... é o combustível pro Tulpa adotar um comportamento fora do seu controle e, obviamente, maligno. 

- Aqui estão as provas. - disse Frank virando o laptop para eles - Nem demorei cinco minutos e já pesquei umas manchetes sobre pessoas encontradas com buracos no peito. - na tela via-se uma foto de alguma das vítimas sendo esta um homem com um profundo buraco no centro do peito - Segundo os laudos da perícia, as vítimas estavam sem seus corações, foram arrancados com uma precisão e facilidade surreais. Esquilos também foram achados na mesma condição.

- Meu Deus.... - disse Amélie atemorizada com a imagem. 

- Amélie, já são provas bem suficientes pra indicar que... o Sr. Forfuller andou praticando assassinatos. Que outro ser paranormal agiria dessa forma? - perguntou Franz - Não é um simples ataque de animal selvagem, nem de longe.

- Não adianta dizer que isso é um engano. - disse Frank olhando para Amélie - O que dá um grande reforço é essa sua picuinha com a garota que te enche o saco no colégio. A mente do criador e o Tulpa são ligados por um canal de transmissão, ou seja, você tem inconscientemente transferido suas emoções negativas à ele. A diferença entre um amigo imaginário e um Tulpa... é que o Tulpa é uma marionete que consegue ver as cordas e se desprender delas pra agir livremente. 

A adolescente pusera as mãos no rosto soluçando em prantos. Franz a tocou no ombro para ampara-la frente àquela impactante verdade.

- Há quatro dias, montei um piquenique com meus amigos do colégio. Se o Sr. Forfuller não fica em casa quando eu mando e vai aonde eu for... 

- Temos o veredito: Culpado. - disse Frank - As primeiras vítimas foram achadas há exatos quatro dias.

- O que vocês querem que eu faça? - perguntou Amélie, desconsolada, as lágrimas descendo pelas maças do rosto. 

- Amélie, olha no fundo dos meus olhos. - pediu Franz virando-a para ele delicadamente - O mínimo que pode fazer... é deixar o passado pra trás. O motivo pelo qual o Sr. Forfuller não virou um Tulpa na sua infância se explica por você ter sido uma criança que não acumulava mágoa de outras pessoas. Eu entendo que a situação ruim no colégio te fez sentir falta de ser feliz quando era apenas uma menininha. Infelizmente... te levou a cometer o erro de tentar suprir sua necessidade resgatando das profundezas da sua mente um amigo imaginário que deveria continuar parte do passado. 

- O Franz tá coberto de razão. - disse Frank - Tem que exercitar o desapego antes de se preparar. 

- Me preparar para o quê? - indagou ela. 

- Pra elimina-lo... com toda a força da sua mente, Amélie. - disse Frank na intenção de passar confiança à ela. Escondido atrás da porta, o Sr. Forfuller ouvia a tudo e limpou seu bico sujo de sangue com um guardanapo. 

                                                                            ***

No endereço indicado, Nathan aguardava a chegada de Tessa na vazia sala de estar no interior da casa velha e abandonada que escolheu como o túmulo da górgona. As luzes estavam todas apagadas, com as únicas fontes sendo a lua e os postes. 

Eis que o toque da campainha soou. Tessa, que trajava um belo vestido vermelho, estranhava um pouco a fachada mal-acabada da residência, além das luzes não estarem acesas. Nathan abriu a porta após acionar um interruptor. 

- Oi, pode ir entrando, fica à vontade. - disse ele, gentilmente. 

Tessa sorrira, mas logo alterou drasticamente sua expressão ao deparar-se com a sala desprovida de móveis e decorações. 

- Não tô entendendo. - disse ela, confusa - Você mora mesmo aqui ou pediu permissão pras baratas e pros ratos liberarem o espaço? 

Nathan fechara a porta com força. 

- Digamos que selecionei o lugar apropriado pra acertamos as contas. 

- Quem é você, afinal? - perguntou Tessa virando-se para ele com irritação na face. 

- Acho que essa pergunta é minha. - rebateu ele, sacando do sobretudo um facão afiado com pequenos dentes. 

- Entendi... - disse ela com um sorriso debochado - Armou a ratoeira e aqui estou eu, presa nela, sem escapatória. 

- Para de fingir. Você não quer sair daqui sem tirar um pedaço da minha carne. 

Tessa fechou os olhos brevemente enquanto seu cabelo, em cada fio, transformava-se num ninho de serpentes marrons e peçonhentas sibilando para atacarem. Nathan segurou mais firme o punho da faca, encarando-a seriamente. 

- Qual delas você é? Responde! - exigiu ele. 

- Euríale. - disse ela, soberbamente - Eu não passei os últimos longos tempos pra sofrer o mesmo destino de Medusa nas mãos de um reles humano com uma faca. Mas sei que Esteno está viva.

- Não vem ao caso, quero mesmo é saber como se reverte a maldição de gárgula. 

- Mesmo que eu dissesse, como espera ter sucesso sem saber a localização?

- Localização do quê? - perguntou Nathan aproximando-se com a faca em destaque. 

- Da presa do Basilisco. - disse Euríale, as inúmeras serpentes revoltas na sua cabeça - Foi a partir do sangue dele que fomos criadas para depois sermos lançadas no abismo infernal. 

- Ouvi falar. Basilisco... Uma serpente gigantesca. Mas e daí? Não basta dizer do que preciso. 

- Eu sinto muito. - disse ela dando uma risadinha maldosa - Não faço ideia de onde está. 

- Já que é assim... - disse Nathan olhando para a faca e depois para a górgona - Você não me dá escolha.

O caçador avançou contra Euríale tentando golpeia-la com o facão, mas a górgona habilidosamente esquivava-se dos movimentos. Nathan levou sua mão esquerda ao pescoço para enforca-la, mas as serpentes picaram sua mão que nem sequer encostou. O caçador recuou conferindo sua mão.

- Hora de dormir pra sempre, querido. - disse Euríale - É uma pena, gostava mais quando fingíamos.

Os olhos a górgona brilharam completamente em vermelho. Nathan os encarou fixamente. As feridas das picadas na sua mão regeneravam-se. 

- O que está havendo? - perguntou Euríale, furiosa - Seus olhos estão olhando diretamente nos meus! 

- Você me subestimou graças à ignorância. - disse Nathan, a mão já sarada. 

- Não! Impossível! - disse a górgona, colérica por causa da resistência de Nathan contra seu olhar petrificador. 

Pegando-a desprevenida, Axel veio por trás cortando a cabeça dela munido de seu facão. O corpo tombou ao chão enquanto a cabeça repleta de serpentes rolou. Nathan agachou-se retirando do bolso do sobretudo um pedaço de espelho. 

- É inconcebível que exista alguém como você. - disse Euríale que novamente brilhou seus olhos em escarlate puro. Nathan aproveitou para fazê-la olhar seu reflexo através do pedaço de espelho.

A cabeça de Euríale, numa expressão de pasmo total, petrificou-se em milissegundos junto às serpentes. Axel pusera as mãos na cabeça em um novo surto de fragilidade emocional. 

- Ei, ei, calma, Axel, respira fundo, respira fundo... - disse Nathan ajudando-o. 

- Eu tô tentando... - disse ele, os olhos avermelhando e a pele acinzentando.

- Aquele mantra que eu te ensinei!

- A mente leve como uma pena, o corpo firme como uma rocha. - disse ele, voltando a si aos poucos.

- Muito bom. Você aprendeu direitinho. - disse Nathan, aliviado. 

- Só acho que... "o corpo firme como uma rocha" é meio contraditório. Mas funciona, é o que importa. 

- E quanto à ela... - disse Nathan voltando-se para a cabeça da górgona. Axel deu uns passos adiante.

- Deixa comigo. - disse ele, logo pisoteando a cabeça petrificada de Euríale com o pé direito, despedaçando-a completamente - Ela mencionou a Esteno... 

- A sua antiga namorada. Relaxa, a Euríale foi a única górgona que vi morrer. 

Axel olhou para ele com uma expressão preocupada fazendo que sim com a cabeça. Ambos saíram da casa sentindo-se vitoriosos. Uma fumaça escapava pelas janelas da casa em decorrência do corpo de Euríale no qual eles atearam fogo. 

- Pelo menos obtemos uma pista de como quebrar a maldição. - disse Nathan - Não tem problema, acho que tem uma opção bem provável de descobrir onde tá essa presa do Basilisco. 

- O que seria? - indagou Axel. 

- Dentro de poucos dias saberemos. - afirmou Nathan, misterioso. 

Cercando-os de repente, surgiram das sombras duas figuras encapuzadas que Nathan imediatamente reconheceu. Uma delas desferiu um golpe de karatê na nuca de Axel levando-o à inconsciência. 

- Axel! - gritou Nathan que arriscou enfrentar um deles, mas seu punho cerrado foi barrado pela pesada mão pedregosa do soldado gárgula de Nero, sendo entortado com grande dor. O brutamontes quebrara o pulso de Nathan e o arremessou contra um poste. As costas do caçador bateram forte e ele caíra com uma dor excruciante da fratura no pulso da qual rapidamente viria a se recuperar. Mas de uma coisa não se recuperaria tão cedo: Axel ter sido levado pelos gárgulas até Nero.

                                                                              ***

Passavam das dez e meia e nenhum sinal do Sr. Forfuller perambulando pela casa. Amélie voltava do bosque. 

- Somente a cesta. - disse ela, frustrada - Claro que não diria que roubaram as frutas... 

- Se você dissesse isso, a gente acharia que a sua negação não tem conserto. - disse Frank. 

- Pega leve com ela. - disse Franz pondo-se ao lado dele. O rapaz sentira um leve tontura que chamou a atenção de Frank e Amélie. 

- O que foi, Franz? Se equilibra, tá meio grogue... - disse Frank segurando-o.

- Eu tô legal, é que... senti uma energia estranha se alastrando por toda a casa. 

- É o Sr. Cara de Coruja que voltou pra arrasar com essa noite, na certa. - disse Frank, sacando sua arma já carregada. 

- Amélie, eu tenho que te levar pra o mais longe possível daqui. - disse Franz aproximando-se dela. 

- Esqueceu que o Sr. Forfuller me acompanha aonde quer que eu vá?

- Não, eu tenho um plano, mas você não vai gostar nada, nadinha mesmo. 

- Acho que minha munição não dá conta, vou ter que pegar algo mais pesado. - disse Frank dirigindo-se à porta. No entanto, ao pegar na maçaneta viu que estava trancada - Começou a palhaçada. Nos tornamos reféns do mordomo corujão. 

- É ele, Amélie. Se desilude de uma vez por todas. - disse Franz - Ele quer fazer picadinho de nós aqui dentro. Arrisco dizer que ouviu nossa conversa todinha escondido na hora em que descobrimos as mortes. 

- Vou até o sótão. - disse Frank - Porque vocês sabem... Sótãos são reservatórios de segredos. 

Armado com a única pistola que havia trazido no sobretudo, Frank se enveredou ao sótão, subindo a escadinha retrátil de madeira. Pegou sua lanterninha e passou o facho de luz por vários pontos do escuro cômodo. Iluminou o baú em cima da mesa coberta por uma grossa camada de poeira. O detetive deu passos à frente, pôs a lanterna na axila direita e abrira o baú. Uma visão nauseante foi constatada. Frank viu naqueles corações humanos e animais a prova mais cabal do caso. Ao virar-se para a direção oposta, a luz da lanterna revelou o Sr. Forfuller como um observador na escuridão. O Tulpa avançou contra Frank emitindo um som grotesco do seu bico de coruja, mas o detetive correra para fora do sótão visando atraí-lo. 

Franz e Amélie se refugiaram no quarto, porém Frank entrou depressa fugindo do Sr. Forfuller. 

- Cadê ele? - perguntou Franz. 

- Tava no sótão, o desgraçado faz uma coleção de corações arrancados dentro de um baú. Ele tá vindo atrás de mim. 

A porta foi derrubada com um chute dado por Sr. Forfuller e Frank afastou-se com a arma em punho.

- Tá esperando o quê? Leva ela, executa logo esse tal plano que tu tem na manga! - mandou Frank. 

- Vem, Amélie, vem! - disse Franz, pegando-a pela mão para saírem logo dali. A garota não tirava os olhos entristecidos do Tulpa enquanto recuava para longe do quarto com Franz. O que lhe doeu foi o Sr. Forfuller aparentemente ignora-la como se aquilo confirmasse a nula importância ao vínculo formado. Frank destravou a arma preparado para o embate. 

Sr. Forfuller, por sua vez, destravou garras afiadas que rasgaram as pontas dos dedos das luvas. As mostrou com as mãos levemente erguidas, movendo os dedos. Frank disparou três vezes contra o peito do Tulpa, os disparos não surtindo o menor efeito, a não ser estragando o terno bem passado dele. O Tulpa avançou com suas garras, mas Frank desviava bem, mas as garras conseguiram rasgar sua camisa. Logo desferiu um soco. Em revide, o Sr. Forfuller dera uma bicada na mão dele que causou um ferimento sangrento. Resistindo à ferida, Frank largou a arma sobre a cama de Amélie e pegara uma cadeira. 

Quebrou-a violentamente sobre o Tulpa, acertando-o no rosto, mas não produziu um dano sequer. 

O sangramento na ferida aumentava e Frank estava sem opções de defesa. 

Franz envolvia a si mesmo e Amélie num abrigo de sombra. 

- O que é isso? Você quem fez? - perguntou ela, estupefata olhando o completo breu ao seu redor. 

- É uma habilidade que tava bloqueada durante minha vida de corvo. Eu chamo de Vácuo das Sombras. Estamos plenamente seguros e fora de área aqui dentro. 

Amélie levava sua mão direita para a "parede" de sombra que rodeavam-nos. A mão atravessou como se fosse intangível. 

- A menos que você queira sair. - disse Franz - O que achou? 

- É incrível. - disse ela, maravilhada, retornando sua mão ao espaço dimensional - E pra quem está do outro lado?

- Simplesmente ficamos invisíveis. Aliás, fora do espaço. Bem, é meio complexo. Enfim, Amélie... Eu queria, encarecidamente, te pedir pra aceitar o preço que devo pagar pra te livrar desse encosto. 

Amélie não captava algo positivo vindo de tais palavras e ficou apreensiva.

- Franz, o que tá querendo dizer com isso? 

- Temos que realizar um feitiço... que consiste num pacto de sangue. 

- Pra quê? - indagou ela não esperando uma resposta que a confortasse. 

- Pra trocar de lugar com o Sr. Forfuller. - revelou ele, logo tirando um canivete do bolso da calça. Deslizou a lâmina pela sua palma direita num corte que fez seu sangue escorrer e gotejar - Você agora. 

Hesitante e derramando lágrimas, Amélie pegava a lâmina com a mão trêmula. 

- Por que tem que acabar desse jeito? - perguntou ela, chorando - Não é justo. 

- Porque é o único jeito de aniquilar com ele rápido. Você sozinha não conseguiria, sentiria pena. 

A garota fizera o corte na palma de sua mão esquerda. Ambos chocaram suas palmas cruzando os sangues. Franz recitou palavras em latim para a execução do feitiço. Amélie fechou os olhos emanado sua força mental ao máximo para que a substituição fosse bem-sucedida. 

Frank arriscou novamente a usar a arma após desviar de várias tentativas do Tulpa em fatiá-lo. Antes que ele fizesse o próximo movimento agressivo, o detetive pegou rapidamente a pistola e disparou uma vez. Para a perplexidade dele, o disparo se mostrou bastante eficaz. Sr. Forfuller deu para trás debilitando-se com o tiro que o fazia sangrar. Frank deu um sorrisinho de canto e exauriu toda a munição numa sequência de seis tiros, com o último disparado no meio da cabeça. 

- Morre, desgraça. - disse ele, olhando-o cair. Sr. Forfuller contorcia-se em dor até finalmente falecer. O detetive saiu do quarto, encontrando Amélie sentada com as costas na parede e chorando - O que houve? Cadê o Franz?

Amélie ergueu o rosto encharcado para o detetive, levantando-se para apenas toca-lo. 

- Bem atrás de você. - disse o rapaz parecendo calmo na condição a que se submeteu. 

- Ué, o que aconteceu? De repente, o corujão feioso ficou vulnerável. 

- O que aconteceu foi que... eu inverti os papéis com a magia. 

- Franz agora é meu amigo imaginário. - disse Amélie que logo se queixou de uma dor de cabeça aguda.

- E o Tulpa... foi rebaixado à fraqueza humana. - disse Frank, compreendendo - O que vem depois? 

Franz baixou um pouco a cabeça, pesaroso. 

- Amélie terá que me apagar da sua mente. Não sou um produto da imaginação dela... e isso vem com consequências. Ela não vai resistir até o amanhecer. Ou ela me mata ou a cabeça dela vai pros ares.

- Caramba... - disse Frank passando a mão no rosto - Então... vamos esperar o sol raiar.

- Quero dar um funeral pro Sr. Forfuller. - disse Amélie, inconsolável - Apesar de tudo. 

O trio aguardou ao longo da madrugada. Frank tirou uma soneca no carro e logo se juntou à eles para acompanha-los até um ponto do bosque que possibilitava ver um lindo nascer do sol. Ao chegarem lá, Franz saiu na frente. Uma linha meio avermelhada e meio alaranjada clara despontava no horizonte. Frank ficou ao lado de Amélie tocando-a no ombro. 

- Chegou a hora do adeus. - disse Franz, emocionado. Amélie, que suportava a dor de cabeça intensa, segurou na mão direita dele antes que ele desse mais um passo adiante.

- Cada momento... cada segundo que passamos juntos... vou levar pra sempre no meu coração. Nada foi em vão. Me diverti muito com suas histórias, fossem reais ou não. Eu, você e... até o coveiro. 

- Que Deus o tenha. - disse Franz lembrando-se do velho ranzinza que o recriminava. Abriu um largo sorriso, achando graça na sua relação dúbia com aquele pobre senhor idoso - Você foi a melhor pessoa que conheci em toda minha vida. E Frank... você também significou muito pra mim. Adeus, amigos.

- Valeu, rapaz. Parte dessa pra uma melhor. - disse Frank, os olhos marejados. Os primeiros raios solares alcançaram o bosque. Amélie fechara os olhos com o que restava de força imaginativa em resistência a dor aguda, fazendo o amigo retornar à sua antiga aparência de corvo que alçou voo graciosamente. O corvo emitiu seu último crocitar antes de ser desintegrado dos pés à cabeça, reduzindo-se em cinzas negras que pairaram no ar. Amélie abraçou Frank não controlando o choro. A cabeça libertou-se da dor, mas foi como se tivesse espalhado por sua alma. 

                                                                                     ***

Ao voltar para casa, ainda tentando absorver a partida de Franz, Frank tivera a surpresa de ver Nathan largado no sofá fitando o nada.

- Que cara de enterro é essa? Parece que não pregou o olho. - disse ele fechando a porta.

- Nem um pouco. - respondeu o filho sem olha-lo - Caçada longa hein. Deve ter sido exaustiva.

- Ocorreu uma tragédia. - disse Frank - Claro, não é surpreendente pra você, mas... foi com o amigo que te apresentei anteontem. 

- Ele bateu as botas? 

- Infelizmente, sim. - disse Frank com profundo pesar. 

- Que pena. - disse Nathan, soando meio apático - Ele parecia ser um cara bacana. Meus pêsames.

Frank estreitou os olhos para o filho estranhando o comportamento. 

- Aconteceu alguma coisa pra você ficar assim... deprimido? Se sim, melhor tirar as papas da língua. 

- Pra quê me negar, né? Você vai insistir até dizer chega. - disse Nathan levantando-se e finalmente olhando-o nos olhos - Eu tirei o Axel da cela.

- Você o quê?! - disse Frank engrossando o tom - Mas o que... - o detetive parecia estar à beira de um ataque de nervos, pondo as mãos na cabeça - Perdeu o juízo, Nathan? Por que fez isso? Levou ele pra onde? 

- Fomos caçar uma górgona que localizei e armei um plano pra encurrala-la e pressiona-la a revelar sobre a cura pra maldição de gárgula. Eu precisava ser a distração pra que o Axel fosse útil e fizesse a principal parte. O Nero precisa da cabeça de uma górgona como ingrediente final pro plano de dominação dele. A górgona que matamos foi Euríale. 

- Meus parabéns. - disse Frank não parecendo nada aliviado - E onde é que tá o Axel? 

Nathan emudeceu diante do pai, a boca tremendo. Frank semicerrou os olhos, balançando a cabeça. 

- Não... Não, não, não, não...

- Na volta, apareceram dois lacaios do Nero.... e sequestraram o Axel. Eu não pude fazer nada.

Frank sinalizava explodir de fúria a qualquer instante. 

- Mas que merda! - disse ele chutando a mesinha de centro. Agarrou a gola do sobretudo de Nathan, enfurecido - Passou pela sua cabeça que todas as melhores chances que tínhamos de derrotar o Nero foram pro buraco? O Axel dá o feitiço pra controlar o Behemoth sob pressão do Nero e pronto! Ferrou com tudo!

- Me desculpa, pai... - disse Nathan, sentindo-se péssimo. 

- Porque você não faz a coisa certa nessa altura do campeonato? Volta pra tua época. Volta sem olhar pra trás. Conta pra sua mãe que a missão deu com os burros n'água. Não realizou seu sonho já? Conheceu o seu velho aqui. Se dá por satisfeito. Porque eu lavo as minhas mãos. - disse Frank duramente, em seguida indo até a escada a passos largos e subindo-a. 

Nathan sentou-se novamente no sofá, baixando a cabeça e colocando as mãos sobre ela, afundando em um copioso choro em vista do pesado sermão de Frank que encontrava-se desesperançado.

                                                                                  -x-

*A imagem acima é propriedade de seu respectivo autor e foi usada para ilustrar esta postagem sem fins lucrativos. 

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