Capuz Vermelho #61: "Sete Vidas"


As duas forças haviam colidido fortemente. Rosie desviando habilmente dos desferimentos incansáveis do machado do minotauro e a criatura morta antigamente morta por Teseu recebendo alguns socos que em nada o afetavam. A jovem aproveitava brechas estreitas para socar um arremedo de armadura feito de puro couro endurecido e resistente. O monstro usara o cabo da arma, conseguindo acerta-la no queixo. Rosie chutara a cara dele mantendo-se no chão e logo deu-lhe uma rasteira. Levantou-se velozmente e pegou o machado, sentindo o peso considerável.

- Você quer seu precioso machado de volta? Então vai lá buscar. - disse ela, em seguida jogando a arma para o mais longe que pôde. A distração foi um sucesso e a jovem levara Leo com ela para fugirem dali rapidamente. O minotauro correra para buscar sua arma, mas não distanciou-se muito, tendo apenas esticando seu braço esquerdo para acionar seu controle inerente sobre ela. Lá vinha voando o machado na sua direção retornando as suas mãos. Ao se virar, porém, não achou sua oponente. Bufara fazendo sair fumaça das narinas.

A dupla parou para recompor o fôlego, mas escondidos num ponto discreto.

- Talvez aqui estejamos seguros. - disse Rosie - Ele nos perdeu de vista completamente, foi perfeito.

- Aquilo foi tão.. imprudente. Digo... Não nossa saída, mas você ter cedido aos impulsos. - disse Leo - Avisei seriamente pra não enfrenta-lo, que iria trazer riscos graves pra você, mas parecia que.. estava dominada, como num transe hipnótico.

- Sim, já entendi. Esse maldito lugar tá distorcendo a minha mente. - disse Rosie, ofegando - O cansaço tá passando... bem mais rápido do que eu esperava. A dor nos meus dedos sumiu faz tempo. A propósito... que droga de roupa ou colete é aquele que ele usa? Apliquei toda minha força nos punhos e achei que meus ossos iam quebrar.

- Duas coisas: O Tártaro não distorceu nada, na verdade ele aflorou seus desejos mais obscuros e sombrios, é parte do processo de corrompimento. - disse Leo, encostado na rocha - E outra... ter esmurrado aquilo que ele deve chamar de armadura foi um dos motivos pra ter desistido da luta.

Rosie abriu um sorriso risonho para ele. Mas logo desfez a expressão.

- Caramba, que estranho... ficar sorrindo na situação em que estou. Só você mesmo. Porque sinceramente... eu não me sinto feliz. Eu nem consigo chorar. Uma tristeza trancada no peito.

- É a pior de todas. - disse ele, sensibilizado por ela - Não vai perguntar porque da dor de cabeça que tive antes de você se deixar levar pelo descontrole emocional induzido?

- Pois é... Eu fiquei numa dúvida imensa. Afinal, como você podia saber com tamanha certeza que eu iria me dar mal naquela luta e acabar virando um espírito maligno? Leo, o que houve de fato?

O rapaz se resguardou num silêncio incômodo. Lembrou que não teria nada a esconder.

- Acreditaria se dissesse que eu posso prever o futuro? - questionou ele.

Rosie definitivamente estava um pouco chocada, mas uma especulação lá no fundo existia.

- Você é um profeta. - disse ela, fitando-o com seriedade.

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CAPÍTULO 61: SETE VIDAS

Derek fizera uma parada num restaurante pela manhã bem cedo, trajando roupas socialmente aceitáveis para uma cidade grande, pelo menos uma vez no ano abandonando o casual sobretudo longo e preto. Ajeitou seu casaco de couro preto-acinzentado e ficara esquadrinhando o local ao mesmo tempo que andava sem orientação de por onde estaria indo.

Eis que uma mulher de cabelos loiros, uma garçonete, vinha trazendo um café na bandeja e acabou esbarrando atrás de Derek, derramando todo o líquido. A xícara quebrou-se no chão. Derek logo prestou sua gentileza recolhendo os cacos.

- Ah, veja só, não passo de um desastrado que não sabe olhar pra todos os lados. Me desculpe.

- Não, tá tudo bem, obrigada. Se bem que é a primeira vez que um cavalheiro presta esse ato a uma garçonete inexperiente como eu. - disse ela, dando um sorriso largo realçado pelo batom vermelho - Você não vai sair da frente? Eu ainda preciso atender...

- Oh, que indelicadeza minha. Pode passar. Só vim aqui pra um encontro.

- Espera, vai querer alguma coisa? Posso descontar da sua gorjeta, quem sabe.

- Ficaria agradecido, mas insisto em servir ao local como se deve. Não sou muito adepto de quebrar certas convenções. Então... - retirou uma nota de euro do bolso - ... sinta-se recompensada.

A moça o olhou certamente interessada.

- Não tem problema de nós sentarmos numa mesa e... esperarmos essa tal pessoa que você iria encontrar, porque do jeito que você procurava ela nem deve ter chegado ainda. Que tal?

- É um convite? Desculpa, eu... não estou habituado a ficar muito à vontade, foi um acidente.

- Um feliz acidente, devo dizer. Não acredito em acaso.

- Muito menos eu. - disse o líder na sua postura firme - Aceito sua proposta. A mesa, não a gorjeta.

Sentaram-se ao mesmo tempo um de frente ao outro. Derek tomara um gole demorado do café.

- Tanto cavalheirismo me fez sentir menos péssima de romper meu expediente. Eu sou Marjorie.

- Derek. Muito prazer. - disse ele, dando uma piscadela sedutora - Bem... Será que você poderia... me passar o sal? - perguntou, sua pupila contraindo-se e dilatando, o que significava hipnose. Marjorie franziu o cenho, confusa quanto ao pedido - Deixe pra lá, acho que preciso abastecer meu cérebro com cafeína.

- Você consome drogas, por acaso? Sal no café?  - perguntou ela - Espera aí... - o encarou atentamente - Não adianta mais ficar preso nesse personagem bom demais para ser real. Reparei algo estranho nas suas pupilas, mas pensei estar vendo coisas, muita carga de trabalho prejudica a concentração. Quem é você?

- Acabei de falar. Sou Derek. Derek Marshall, um entusiasmado negociante que atravessou 20 quilômetros para achar alguém especial. Aí está você.

- Mais do que trocador de favores, diria que somos igualmente especiais. Vai seguir na atuação? Eu gostei do cavalheiro, não tô muito interessada no cara debaixo dessa pele, então... continua assim.

- Nem pense em sair. Eu tentei hipnotiza-la, confirmei minhas suspeitas. Eu preciso da sua ajuda.

- Esse dia não tem como piorar. Quase me apaixono por um mago do caos. - disse Marjorie, chateada.

- Eu escolhi um chakra aleatório que pulsava no meu rastreio. Ao contrário do que pensa hoje é seu dia de sorte. Será um bom trato, asseguro com total confiança. Quero que localize um corpo.

- Necromancia não é meu forte. - disse ela, bebendo seu café.

- É algo bem mais específico. Uma ex-parceira minha ocultou a localização de seu esconderijo no qual guardou o cadáver de uma garota que sacrificou-se para nos dar a glória. Acontece que essa garota é uma ameaça potencialmente prejudicial a todos nós, uma vez ressuscitada, irá nos atacar.

- Vou logo avisando que não farei tudo sozinha. Para quebrar o selamento junto ao feitiço localizador é necessária força conjunta entre uma bruxa nível ômega e vários magos do caos. - disse Marjorie - Mas também requer um item fundamental. Básico e orgânico.

- E qual seria? Aposto que não deve ser difícil de conseguir.

- O sangue da garota. - afirmou a bruxa, despreocupada com o problema relatado pelo seu contratante.

                                                                                     ***

Rosie e Leo davam continuidade à andança sem rumo e visada na fuga constante aos perigos - apesar dos impactos meramente psicológicos.

- Pra dizer a verdade, eu tenho uma amiga com a mesma condição. - disse Rosie, recordando-se de Alexia e uma saudade pulsando no seu âmago - Um dos mais irritantes defeitos dela... era a péssima mania de hesitar falar sobre as visões, achando que pioraria as coisas. Ah, espera aí...

- O quê? Foi mal, eu pareço meio desnorteado, tô com a cabeça em mil pensamentos. - disse Leo - Mas continua, gostaria de saber mais dessa sua amiga profetisa.

- Leo... Há quanto tempo você morreu? - perguntou Rosie, parando de andar e o tocando no ombro - Preciso saber pra confirmar uma informação que até então tinha esquecido totalmente, é sério.

- Pra te poupar de uma longa história que eu não ia resistir em contar... Foi há 127 anos.

- Eu sabia! Fiquei com uma ponta de suspeita, mas agora tá claro. Você é o profeta que veio antes da Alexia, esse é o nome dela. Eu sei que um profeta nasce a cada 100 anos. - disse Rosie, conformada - Mas a questão que isso leva... é intrigante. Do que você morreu pra ser condenado ao Tártaro?

O profeta engoliu a saliva nervosamente ao bater de frente com uma indagação forte daquelas. Baixou a cabeça, mas quando a reergueu pegara Rosie pelo pescoço subitamente.

- O que tá... fazendo? Me larga! - disse ela, mostrando resistência.

Leo piscava os olhos e esboçava expressões confusas... aparentemente lutando contra aquele instinto.

- Eu... não sei. - falou ele, trincando os dentes - Rosie, eu não quero...

A jovem tentava libertar seu pescoço da forte mão que o apertava violentamente. Pegara uma das adagas e cravara fundo no braço dele. O profeta gritou de dor recolhendo o braço ferido.

- Que merda foi essa? O que deu em você? - perguntou ela, irritada - O que você não quer contar? É tão longa história assim pra não querer que eu saiba.

- Rosie, desculpa, por favor, me desculpa. - disse ele, voltando a si - É o Tártaro, sem dúvidas, querendo nos colocar um contra o outro. Eu também sou uma alma pura que cometeu um pecado. Você também é uma boa pessoa, as visões ajudam a sentir quem nós somos por dentro...

- Não, eu que agi impulsiva pra te fazer parar. O que aconteceu com você... não passou de dominação. E eu não sou virtuosa. Olha o que fiz, mesmo que o efeito seja temporário... foi uma reação instintiva, eu tenho um animal selvagem trancado em mim. Leo, matei pessoas ruins e talvez alguns inocentes pelo caminho. Melhor que não me conheça demais. Não como eu conheço. - disse ela, dando prosseguimento à caminhada. O profeta ficou a pensar angustiado nas palavras da jovem.

                                                                                  ***

No seu primeiro dia exercendo seu cargo alternativo no sofisticado escritório de advocacia, situado num prédio no qual absolutamente todos os funcionários sofreram hipnose para lidarem com a farsa criada sobre o novo candidato à prefeitura de Londres, Ephram largara alguns papéis para o lado e juntos as mãos entrelaçando os dedos e fechando os olhos calmamente. Testou um contato psíquico diretamente à Mollock confinado na prisão especial. A ligação estava instável, pouco eficiente.

O híbrido urrava na sua cela acometido por uma pontadas dolorosas na cabeça, batendo nas paredes da prisão enquanto o sofrimento o atormentava.

- Mollock. Ouça-me. Você deve manter o controle. Eu não quero machuca-lo. - disse Belphegor.

- Quem... você pensa que é? - indagou Mollock, confuso - Pare de me torturar! - bateu forte no vidro reforçado com as duas mãos - Não sou um brinquedo pra ser desmontado inteiro!

- Minha intenção passa longe de destruí-lo. Foque na minha voz. Esqueça a dor. Sou o único capaz de oferecer algum amparo emocional para ajuda-lo a suportar essa vida miserável.

- Então... É você mesmo? O demônio de inestimável grandeza... soberano do submundo... Belphegor. Eu lembro de ter invadido minha mente certa vez. O que deseja? O que quer de mim?

- Abrandar sua tensão. Lhe dar uma centelha de esperança. Mas ainda não estamos no momento apropriado para colocar em prática sua libertação. Eu vou necessitar do seu apoio, mas não agora.

- O quê? Eu nasci para governar... não ser governado. Eu não jurei servidão a você.

- Ah, jurou sim. Bem... não voluntariamente, claro. - disse Ephram, dando uma risadinha.

- Sair desta cela como um escravo... Isso nunca! Não admito esse tipo de humilhação! - retrucou Mollock, enervado - Jamais viole minha psiquê de novo. O próximo governante do Tártaro será...

Ephram abrira os olhos, desligando a conexão psíquica bem como recusando-se a ouvir de uma criatura que taxava de inferior uma promessa de tomada do poder absoluto na central do submundo.

Derek chegara nesse exato instante, achando que havia interrompido outra meditação do chefe.

- Pela segunda vez... Me desculpe. Eu odeio pedir desculpas, é também a segunda vez que faço isso num único dia. Pena que sou o único da equipe capaz de ludibriar uma mulher e criar uma situação favorável para conhece-la.

- O que veio fazer aqui, Derek? - perguntou Eprham - Não entre nos detalhes, eu sei que está ansioso por um favor. Nenhum subordinado entra aqui para falar sobre como foi seu dia.

- Achamos a bruxa ideal para o feitiço rastreador. O problema mora no requisito principal do feitiço que deve ser feito combinando energias místicas de magia do caos e magia ômega para quebrarmos o selamento ao mesmo tempo. Assim que ela falou, não imaginei ninguém além do senhor...

- No que devo ser útil, afinal? Seus problemas não são meus também. - rebateu Ephram, duramente.

- O sangue de Rosie na adaga Órion ainda está fresco? Não diga que o limpou, por favor.

- Já fazem muitas horas. A deixei sob os cuidados dos seus homens. Mas... - Ephram levantou-se e direcionou-se a um cofre secreto, retirando um quadro que o ocultava - Voltei atrás e exigi que a mantivessem segura comigo. - retirou a arma para a excitação de Derek - O sangue está seco. Servirá mesmo assim?

- E-eu... não tenho a menor ideia. Por isso vou leva-la até nossa ajudante e torcer para que funcione.

- E tem mais uma coisa. - disse Ephram, tirando um outro objeto da interior do cofre - Não inutiliza seu plano, mas é extremamente conveniente pra mim. - segurava um pote de vidro abrigando uma massa de luz branca - Olhe só. - o demônio contemplou - O trunfo certeiro. Não tem como falhar.

- Mas o que é isso? - indagou Derek, desconfiado - Não vá me dizer que...

- Sim, sua intuição não engana. Exatamente isso que pensou. A frágil alma de Rosie Campbell na palma da minha mão. Você testemunhou o momento que absorvi ela, tente lembrar.

- Sim, eu... - Derek recordou-se do soberano infernal removendo a adaga do corpo mas simultaneamente recebendo uma energia transferida da adaga à sua mão - Lembro perfeitamente. Sugou a alma dela através da adaga para depois... deposita-la nesse recipiente. Com que objetivo?

- O caçador e a amiga Pandora não vão recuperar mais do que uma projeção superficial. É o que chamo de alma residual. Isto aqui... é o núcleo, a essência, a parte vital que separei. À essa altura, o espírito desencarnado deve estar a um passo de se corromper e quando chegarem lá...

- Terá sido tarde demais. - completou Derek, sorrindo torto - Incrível, pensou nos mínimos detalhes. Não esperava menos do grande mestre.

- O corrompimento impede que o espírito se reconecte com a matéria desprovida de núcleo. - disse Ephram, pondo o pote na mesa - Hoje à noite precisarei da sua nova amiga bruxa. De preferência, iremos a um cemitério bem precário. Abriremos uma grande porta para dar as boas-vindas a velhos amigos meus que não vejo há séculos.

- Conte comigo. - disse Derek, assentindo positivamente - E obrigado. - pegara a adaga e saíra da sala.

                                                                                  ***

O ponto pelo qual Hector e Pandora cruzavam estava repleto de flores e outras plantas não muito convidativas para serem apreciadas ou tocadas. O caçador olhava para a vastidão de rosas vermelhas à sua esquerda e notara rapidamente algumas borboletas pequenas. Viu uma delas posar numa rosa cuja coloração mudava para um branco límpido ao passo que as asas da borboleta adquiriam a tonalidade rubra. Sua expressão era um misto de estranheza, fascínio e curiosidade.

- As borboletas desse jardim... Inacreditável, elas consomem a cor das rosas e passam às asas.

- Não exatamente a cor, mas sim o sangue contido nelas. - corrigiu Pandora, caminhando depressa por entre as flores - Estamos no jardim sangrento, tão perigoso quanto o rio da serpente Tífon. Todas as rosas não são vermelhas por serem comuns, o sangue é basicamente uma seiva que alimenta as borboletas e em poucas horas elas voltam a ser vermelhas. O cheiro de carne podre cada vez mais próximo indica uma proximidade maior com o lago da perdição. Olha por onde pisa.

- Ué, por que? Isso implica em algum perigo na escala do que enfrentamos com o Cérbero?

- Não chega a tanto, mas as raízes de certas plantas não podem ser pisadas. Aliás, as plantas já detectam nossas presenças pelo cheiro, obviamente por estarmos vivos. Quebre uma e todas as outras te arrastarão direto para a boca devoradora. - disse Pandora.

- Como se fosse simples enxerga-las nessa escuridão. - disse Hector, incômodo com a escassez de luz do submundo - Ai! - sentira algo morder seu pescoço e levou a mão esquerda ao local. Pandora virou-se, curiosa. O caçador sentiu sangue entre os dedos e comprovou - Fui picado por uma dessas borboletas sanguessugas. Não foi?

- Toma cuidado. Pressiona a ferida pra impedir que o odor do sangue se espalhe e atraia um enxame delas direto pra nós. Vamos, estamos quase no fim. - disse a bruxa, retomando a caminhada - E antes que pergunte: Não são venenosas.

- Essa não era a pergunta que eu faria. - retrucou Hector, seguindo-a em igual ritmo - Por que justamente o lago da perdição seria o ponto de grande probabilidade pra encontrarmos Rosie?

- Porque normalmente os espíritos que passaram a existência terrena corrompendo sua alma caem diretamente lá.

- Está insinuando que Rosie se corrompeu ao longo da vida para merecer o lago como seu primeiro destino? - questionou Hector.

- Um arqueu despertou um alter-ego assassino na mente dela. Sinceramente, não teria razões pra não desconfiar de que ela reprimiu sentimentos malignos por um longo tempo e quando teve as oportunidades pôde extravasar sua fúria. Não sei se tá dando pra você acompanhar minhas ideias...

- Estou entendendo, mas não concordo. - disse Hector, alcançando-a para andar lado a lado - A mente dela sofreu um distúrbio por conta de uma manifestação psíquica, não tem nada a ver com ela manter um monstro enjaulado dentro de si. Ela está aqui pelo que foi forçada a fazer, não pelos seus demônios internos. Posso ir na frente agora?

- Ei, espera aí. - disse Pandora, aborrecida - Eu não quis dizer que ela é uma assassina conscientemente do que faz... OK, você tem razão, touché. Não insisto mais no assunto.

Após atravessarem o jardim, chegaram finalmente à área cheia de rochas volumosas.

- Teremos que ter cautela máxima quando o lago da perdição estiver perto. - alertou Pandora - Ai, droga... Esqueci minha bússola de detecção de espíritos.

- E onde você guardou?

- No meu cofre, o qual somente eu sei a combinação. Não nos resta saída a não ser confiar na sorte. Já devem ter se passado 28 horas desde que entramos e isso não é bem um palpite.

Hector fechou os olhos por um segundo ao considerar aquilo meio absurdo.

- Contou o tempo que estamos aqui até agora? Tenho que dizer, estou diante de uma mente brilhante.

- Obrigada, criei muitas coisas armazenadas no meu cofre que fariam meus antigos colegas de seita morrerem de inveja. E por que nós paramos?

- Foi você quem começou a reclamar de ter esquecido um objeto crucial para nossa busca.

- Hector, não vou perder tempo discutindo. O lago da perdição tá logo ali, a partir dele nossas chances de sucesso quadruplicam e à medida que avançarmos só vão aumentar. E eu tenho culpa pela bússola.

- Não me disse a razão pela qual temos que evitar o lago. - disse Hector, um tanto impaciente.

Para a surpresa de ambos, quatro bastardos apareceram exprimindo seus asquerosos grunhidos.

- São eles. - disse Pandora, logo erguendo levemente suas mãos para aplicar sua onda psíquica aguda sobre eles. Os monstros curvaram-se sendo torturados por uma intensa dor de cabeça - Vai, Hector! Rápido! Não dá pra segura-los por muito tempo! - lançou contra eles uma telecinesia que fraturava os ossos - Subitaneus Ignis. - os fizera entrar em combustão espontânea, mas pareciam resistir ao fogo.

Hector correra, mas ao parar indeciso sobre qual direção seguiria acabou levando um chute nas costas que o derrubou de frente. Auto-criticou-se pela guarda baixa. Levantando-se, tentou vasculhar ao seu redor para encontrar indício do agressor. Percebeu um machado voando ao seu encontro e desviou inclinando o corpo para trás. A arma cravou na rocha e o caçador observou-a com atenção. No entanto, ao virar-se seu rosto foi golpeado por um punho cerrado que o nocauteou.

                                                                                    ***

À noite, num horário tardio, Ephram, acompanhado de Derek e Marjorie, entrava num cemitério largado às baratas, tentando achar um ponto aceitável para a invocação ocorrer discretamente.

- Vamos começar isso logo ou ficaremos zanzando nesse cemitério nojento como um passeio? - perguntou Marjorie, nem um pouco satisfeita em estar ali.

- Relaxe, o grande mestre está determinando onde seus amigos poderão sair livres e sem muita exposição. - disse Derek - Mas pra não parecer um bajulador integral, eu também estranhei a ideia de ser num cemitério aberto. Acho que... no fim das contas o mestre apenas quer ser simbólico.

- O que tem de simbólico pra ele invocar demônios num lugar assim tem de inconveniente pra nós. - retrucou a bruxa - Pensei que agenda de político fosse bem cheia. É tão urgente e inadiável?

- Em linhas gerais, eles sete são nosso meio para manter os obstáculos longe de atrasar meus planos. - falou Ephram, sacando o pote com a alma de Rosie - Fique tranquila, não dará tanto trabalho.

- Sete? Existe um feitiço exclusivo para invocar sete demônios de uma só vez? - questionou Derek.

- Ele não pode estar falando dos... - disse Marjorie, meio espantada - Ai caramba, não é brincadeira.

- Do que está falando? - indagou Derek, aborrecido.

- Sua amiga é bem versada. - elogiou Ephram - Eu os considero minha frente combativa de elite. Apenas uma bruxa como ela saberia conjurar um feitiço dessa escala. É fantástico. Representam as amarras que a humanidade desde o início está condicionada a se prender. Eles plantaram a semente que originou a raiz de todo o declínio moral da espécie.

- Não posso acreditar... - disse Derek, abismado.

- O primeiro demônio da história reconheceu meu valor. Meu dia está feito. - disse Marjorie, olhando para Derek com um sorriso - Ah, mas devo avisar que vou cobrar um acréscimo com esse serviço extra. Sorte minha que magia do caos não é necessária pro feitiço.

- Esse serviço é feito ao mestre e gratuitamente. - redarguiu Derek - Insista nisso, a menos que queira sentir seus ossos fervilhando até virar cinzas.

- Trabalhar sob ameaças me torna uma escrava, não uma aliada de bom grado. Mas darei um voto de confiança na sua promessa, eu não vou decepciona-los. - disse Marjorie num semblante sisudo.

- Aqui está ótimo. - disse Ephram, logo voltando-se à Marjorie e fazendo que sim pra ela com a cabeça. A bruxa se posicionou, preparando o recitamento.

- Et peccatum sangria spirituum, et frui libertate invitare te ad ruinam consummare exolvuntur. 

O solo gramado rachou-se, cedendo em pedaços e logo uma cratera fora aberta emanando uma luz alaranjada que subia brasas do fogo infernal. Mãos enrugadas e com unhas pontudas saíam tocando no chão.

- Meus parabéns. - disse Ephram, fascinado, a luz do fogo deixando um brilho nas pupilas.

- Eu devia agradecer? - perguntou Marjorie à Derek.

- No mínimo prestar algum respeito, mas não agora, esse momento é apenas dele. Eu jamais imaginei que um dia os veria pessoalmente. Os sete principados do Tártaro. São como cavaleiros escolhidos a dedo pelo rei.

Finalmente os sete demônios correspondentes aos sete pecados capitais estavam reunidos diante de seu soberano após séculos de reclusão. Ephram destacou o pote, intencionando abri-lo.

- Hoje vocês ganharam uma chance de renovação. Estamos em guerra. Eu os vejo mais fortes e mais capazes do que nunca para esmagarem cada pedra que estiver no caminho. Rumem ao triunfo, meus queridos irmãos. - disse ele, abrindo o pote e deixando escapar a alma de Rosie que pairou pelo ar. Estalou os dedos, repartindo a massa de luz em sete pedaços e os direcionou aos principados, cada parte entrando neles. A reação que sofreram a princípio foi dolorosa, seus corpos tremeluziam a luz branca, mas podiam sentir o poder transbordando nas veias abundantemente.

                                                                                     ***

Na manhã seguinte, um bar londrino pouco classudo estava em superlotação, o que inicialmente era benéfico para o proprietário que também encarregava de servir as bebidas aos clientes mais assíduos, embora fossem os mais hostis. Um homem truculento deixara seu dinheiro sobre o balcão, mas teve sua atenção chamada por um amigo, criando uma distração que serviu de brecha para um cara ao lado pegar a nota de 30 euros. O homem à direita do ladrão, um rapaz de 30 e poucos anos de expressão carrancuda, percebera o ato, tomando um gole da bebida sem tirar os olhos do meliante.

Ele foi até a vítima do furto.

- Ei, sinto muito cara, mas... foi você quem deixou uma nota ali no balcão?

- Sim... - respondeu ele, olhando para o balcão onde não havia mais o dinheiro - Ué, cadê? Estava bem aqui! Barman, vem cá! Quem pegou minha grana?

- Foi ele aí. - disse o rapaz que testemunhou, pondo um cigarro na boca e apontando para o culpado.

- Ah é... Seu mendigo miserável. - agarrou-o pela roupa - Devolve minha grana já, seu safado.

- Me desculpa... tenho família, filhos pra alimentar, por favor... piedade.

- Não me interessa, seu filho da mãe! - disse o homem, partindo para a agressividade. Todos do bar assistiam à confusão - Vai, devolve logo, senão te arrebento.

- Acho que devia tomar logo a iniciativa e acabar com a raça dele. - disse o rapaz.

Um amigo do cara roubado resolveu intervir pacificamente.

- Aí Manchester, deixa ele ir, se ele falou que tá precisando, então...

Manchester o respondeu com um forte soco. Outros dois vieram estufando o peito contra ele.

- Parece que alguém tem que esfriar a cabeça. - disse um deles, estralando os dedos.

Um quebra-quebra começara. Cadeiras e mesas arremessadas, garrafas quebradas usadas como armas, socos, chutes e pontapés... Só tinha um indivíduo imune a toda a celeuma que voltou ao assento para terminar sua bebida. Depois acendeu seu cigarro e virou para assistir o espetáculo pandemônico. Um dos homens da briga generalizada levou banho de uísque e teve o corpo coberto de chamas após o adversário jogar um fósforo aceso. O rapaz sorria com a arruaça.

O mendigo assustado desapareceu fantasmagoricamente num estalar de dedos. Não era mais que mera ilusão fabricada para impulsionar o cenário. "Os humanos continuam interessantes.", pensou Ira, dando uma baforada.

                                                                            CONTINUA... 

*A imagem acima é propriedade de seu respectivo autor e foi usada para ilustrar esta postagem sem fins lucrativos.

*Imagem retirada de: http://www.gnosisonline.org/defesa-psiquica/cemiterios-antro-de-magia-negra-e-larvas-astrais/

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