Capuz Vermelho #40: "Hecatombe"


Em algum lugar de Oxônia, Oxford


Mãos pálidas, magras e um pouco enrugadas datilografavam com precisão o que aparentava ser uma carta para alguém com grande influência. O ambiente - um quartinho meio vazio de paredes cor creme e piso em madeira - exalava certa calmaria. O remetente matinha-se confortável estando próximo à única janela do recinto, favorecido pela ótima luz solar da manhã que atravessava o vidro.

"Primeiramente, peço que não se atreva a desconsiderar este manifesto quando souber o nome de quem o enviou. Sei que não solidificamos uma relação muito próxima do que poderia ser chamada de parceria, mas seria deselegante de sua parte tratar minhas palavras como poeira ao vento. Em primeiro lugar: Saiba que se enganou quanto ao meu conhecimento dos fatos recentes. Acredite se quiser... Eu sei absolutamente tudo. Minhas fontes captaram, sem deixar rastros, toda e qualquer informação que o senhor e sua equipe intencional e desprezivelmente ocultaram de mim e, sendo franco, não me advém nenhuma obrigação de esclarecer a respeito.  

E em segundo lugar: Desejo falar sobre nossos pontos em comum. Não pense, nem por um minuto, que nós estamos na retaguarda. Estamos travando a mesma guerra. Portanto, quero lhe dizer, com todo o respeito, o que posso ter a oferecer para que nossa união torne-se mais próxima, na medida do possível - o que, em todo caso, vai depender de suas escolhas. 

Quero lhe falar sobre o futuro."

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CAPÍTULO 40: HECATOMBE

QG Alternativo do Exército Britânico

Os leitores avançados da sala de controle religaram-se subitamente em um comportamento anormal, com seus ponteiros praticamente executando uma "dança" frenética e trêmula. Segundos depois, começaram a dispersar várias faíscas agressivas e exalar uma fumaça abafada que preenchia o ambiente.

O soldado encarou, lívido e petrificado, a atividade elevada demonstrada pelo que pensava ser Rosie, cuja aura intensificava-se a cada segundo a ponto de afetar a vidraça que começava a formar pequenas rachaduras graduais, além do tremor que parecia querer sacudir o pequeno compartimento. "Esse lugar se transformou numa sauna de repente! Tenho... Tenho que avisar ao General!!", pensou ele, conseguindo recuar alguns passos, sem desviar a visão estarrecida para a jovem encapuzada que o fitava com os olhos resplandecendo uma luz amarela que lhe conferiam certa imponência.

Yuga esboçara um presunçoso sorriso ao fitar o reles mortal afastando-se, como que deliciando-se ao observar o pavor estampado na face do indefeso homem.

Antes que pudesse tocar a maçaneta, o soldado sentiu o perigo lhe fazer arrepiar a espinha.

Num súbito golpe, o deus solar abrira a boca refulgindo a luz amarela em crescente elevação, seguida de um zumbido ensurdecedor.

O soldado mal ouviu seu grito quando encarou o arrasador impulso explosivo de chamas sendo liberado para enfim destruir toda a sala, logo sendo varrido em cinzas pela poderosa onda flamejante.

                                                                                          ***

O alarme soou estridentemente por todos os corredores do QG.

Uma horda de soldados devidamente uniformizados direcionava-se a passos apressados por um corredor, os sons das botas ecoando pelo espaço, cada um portando metralhadoras de grosso calibre.

A porta metálica que levava a outro corredor à direita encontrava-se literalmente derretida - parecia ter virado uma espécie de pasta alaranjada e fumegante. A alta temperatura implicava dizer que ocorrera há poucos minutos. Um soldado da linha frontal fitava em um misto de estranheza e medo.

- Jamais esperava que houvesse algo capaz de derreter metais pesados em tão pouco tempo...

- Então sinta-se atualizado. - disse Yuga, com a voz de seu receptáculo vinda do outro lado do corredor, fazendo todo o grupo se virar com alarde quase simultaneamente e apontando suas armas. O deus solar sorriu debochado - Minhas inclinações permitem-me fazer isso e um pouco mais.

Sem aviso, todo o pelotão descarregara suas munições para cima do corpo de Rosie.

A saraivada barulhenta de balas mal penetravam o deus solar, mas sim uma espécie de campo de força invisível gerado em volta dele que fazia-as virarem cinzas assim que encostassem, criando algumas ondulações não muito extensivas. Alguns soldados notavam pequenos grãos de cinzas caindo ao chão enquanto ingenuamente persistiam.

- Nunca aprenderam que desperdiçar energia é um ato de extrema estupidez? - questionou Yuga, lançando-lhes um olhar entediado. O tiroteio cessara de súbito, alguns "clicks" sendo ouvidos de algumas metralhadoras esgotadas e seguidos de murmúrios de frustração.

Após um sorriso sacana, Yuga resplandecera novamente sua explosão de luz solar flamejante, fazendo a boca e os olhos brilharem ao mesmo tempo que produzia um rugido retumbante. A intensa energia liberada avassalou contra o grupo que fora dizimado em cinzas de uma única vez e suas armas tendo o mesmo fim que o da porta.

                                                                                           ***

Em um ponto, viu-se um buraco - cuja borda queimava - se fazer no chão do amplo espaço do hangar de aeronaves, se desfazendo em cinzas com a mesma eficácia de lava vulcânica. Emergindo dele em um bem executado voo, Yuga observou por um instante todo o alarido na forma de gritos apavorados e chamados de emergência em um corre-corre louco.

Cerca de quatro soldados ousaram apontar suas armas, para enfim dispararem.

Não perdendo tempo, o deus solar investira ao correr superveloz e derruba-los como pinos de boliche.

Alçou-se em pleno voo ao perceber a vinda de mais soldados correndo em sua direção, ficando pouco mais de 6 metros do chão.

- Parada! Nenhum movimento brusco! - gritou um dos homens.

Um deles, completamente incrédulo, comentara:

- Isso é algum truque? Ela está voando mesmo? É sério isso? - se perguntou, estupefato.

Antes que pudessem disparar, foram surpreendidos por uma ação inesperada. Yuga lançara sua rajada óptica contra o chão claramente no objetivo de barra-los e determinar tal ponto como fim da linha.

Os soldados viram-se, obviamente, sem saída a não ser parar e observar, impressionados, a figura que estava sendo gravada no solo de concreto.

- Que isso sirva de aviso. - declarou Yuga, o tom altivo, olhando para cada um dos meros mortais - Ultrapassem a marca e todo o seu povo vai estar a um passo da aniquilação total.

A ameaça fora assimilada conforme o símbolo marcado transparecia certa imponência.

O disco solar, emblema oficial do império, havia sido desenhado como uma demonstração de um orgulho que não abalou-se com a rendição ao poder absoluto. Em brasas, o símbolo possuía um tamanho semelhante a uma caixa de areia de um parque infantil. O bastante para intimidar a armada britânica, somado a outros fatores óbvios.

Por fim, o deus solar deu seu último olhar desdenhoso aos auto-proclamados heróis do país - os cabelos loiros de Rosie, alisados até as pontas devido a influência da meditação fortalecedora, esvoaçando de leve com o vento tal qual a capa e o capuz - e em seguida iniciou um voo supersônico em velocidade arrasadora.

- Senhor, não podemos fazer absolutamente nada. - disse um aflito soldado, se aproximando do General Holt que correra até ali - Senhorita Campbell e suas ameaças deixaram todos de mãos atadas. E levando em conta com o que estamos lidando, não estamos mais em posição de tomar decisões.

- Vai ser o nosso fim se avançarmos. - disse um outro - Até agora contabilizaram cerca de 80 mortos aqui dentro. Não temos aparelhamento e nem recursos para enfrentar algo dessa proporção.

Holt estudou com uma minúcia invejável aquele grupo de homens que pareciam acovardados mediante à um obstáculo intransponível e intocável. Por dias quis fazer a luta contra essa sensação valer a pena de forma que encorajasse seus homens a fazerem de tudo, menos ficar de braços cruzados enquanto alguém que se proclama superior em todos os aspectos decide fazer o que bem entende, forjando suas próprias regras e princípios apenas por possuir tudo ao seu alcance para fazer daqueles que são vulneráveis as suas peças que pode mover e quebrar ao seu bel prazer.

A velha regra da sobrevivência do mais apto. Do mais forte sobre o mais fraco.

- Fiz um juramento aos meus 18 anos... - disse Holt, o tom determinado - E não será agora que vou andar na contramão do meu destino para satisfazer o ego de uma abominação da natureza. - fez uma pausa, respirando fundo, tendo toda a atenção voltada para si - Evacuem as proximidades. Alerta de bombardeio alemão. Não deixem o que ocorreu neste Quartel-General vazar ao conhecimento público. Nenhuma fagulha desse caso pode ser compartilhada ou acidentalmente escapada. Agora vão.

O pelotão se dispersava depressa em uma prontificação eficiente. Holt sabia que sua tensão não foi totalmente disfarçada, mas não o bastante para acender a chama da desconfiança sobre a verdade.

"E, no fim das contas, Crannon era a voz da razão que rejeitei por puro orgulho. Aquele miserável estava certo e agora o mundo foi colocado no meio de um tabuleiro onde não passamos de meros peões. A que ponto chegamos? Será que... existe algo maior... olhando por nós... em algum lugar? Se há exceções entre tantos políticos desonestos... porque não existir uma entre deuses assassinos? Pelos tempos que vivemos, talvez não sejamos dignos de misericórdia.".

                                                                                        ***

Em uma área montanhosa e relativamente deserta, a tão destemida Sekhmet encontrava-se sem sua habitual confiança sendo expressada diante de seus leais seguidores. A deusa solar andava alguns passos, de costas a cinco dos vários sentinelas renegados que se curvaram aos propósitos da esposa de Yuga. O sol forte abrilhantava os cabelos lisos do receptáculo da deusa.

- Por que chamou apenas nós? - perguntou um deles, de braços cruzados, um caçador de cabelos castanhos meio bagunçados e rosto relativamente fino - Seremos promovidos a alguma posição privilegiada? - esboçou um sorriso contido.

Sekhmet virou-se, o semblante extremamente sério.

- Estou prestes a tomar a decisão mais difícil de toda a minha existência. Meu amado se encontra em um estado de completo descontrole. E pareço ser a única que pode obter algum sucesso na tentativa de trazê-lo de volta.

- Majestade comprovou ser impossível há poucos dias. - ressaltou outro, desconfiado quanto as intenções da deusa - O que quer que vá tentar, não existe nenhuma chance, não importa como aja.

- Eu sei disso. - retrucou ela, o tom rude, alguns fios de cabelo movimentando-se com o vento na frente do rosto - Sua irradiação se manteve baixa por ter estado confinado numa prisão desconhecida. Por alguma razão, ele se rendeu aos mortais subordinados ao General Holt. Agora se libertou e elevou seu nível a algo capaz de massacrar todo o exército sem o mínimo esforço.

- E o que deseja que façamos? - perguntou mais outro.

- É apenas uma questão de tempo até que a quimera reúna sua tropa e aceite combatê-lo, a menos que ele tenha uma outra ideia o que é bastante improvável. - declarou Sekhmet, andando por um lado, mantendo-se de frente aos súditos. - Portanto, preciso que avisem aos demais para agirem em conjunto. Extraíam o máximo de energia para atacarem com poder total. Não se contenham nem por um segundo. Se tiverem que morrer, morrerão com honra. Não acredito que direi isso, mas... - aparentou estar pouco à vontade - ... sinto orgulho de ter guerreiros fiéis.

- Nós é quem nos orgulhamos, ó grande imperatriz. - disse o de cabelo castanho, fazendo uma reverência. - Faremos o que estiver ao nosso alcance para salvarmos o império. - olhou para os companheiros que assentiram positivamente. No entanto, restava uma dúvida latente - Como vossa majestade se encaixa nisso tudo? Qual papel vai exercer?

- Como eu disse, sou a única que pode ter uma chance de reaver o imperador ajuizado que ainda amo. - disse ela, com determinação na face - Em outras palavras, a ação de vocês se tornará prioridade caso a minha fracasse. Mas não se preocupem, não vou errar a mão tão fácil quanto ele espera.

                                                                                        ***

Área florestal de Raizenbool 


Era como se uma vertigem aguda acometesse a mente e o corpo da jovem vidente. Cada sussurro com o mesmo peso de intensas badaladas de um sino que resultava em insuportáveis dores de cabeça.

Alexia, liberando um frio suor que molhava seus cabelos ruivos alaranjados, andava pelo corredor em cambaleios que, até certo ponto, a faziam segurar-se na parede tamanha era a concentração sensorial que fora descarregada. Sua face estava tomada pela aflição pulsante que descompassava o coração a cada efeito subsequente.

"Mas que tipo de energia é essa? Faz parecer que quer me derrubar ou me enfraquecer até a morte!"

Údon, sentado em um dos sofás da sala de estar, ouvira o arfar incessante vindo do corredor dos quartos e aguçou a atenção. Levantou-se depressa ao ver o estado da profetisa, correndo para apoia-la.

- A-Alexia?! O que está havendo? O ar está rareando demais pra você?

- Obrigada pela ajuda, Údon. - agradeceu, sendo conduzida pelo arqueu. - E por acertar o primeiro sintoma também. - sentou no sofá, pondo as mãos na cabeça com os olhos fechados. - Senti como se... - sua respiração ainda mostrava-se debilitada - ... como se um raio invisível tivesse me atingido, mas ao invés de sentir meu corpo queimar... a minha cabeça, minha mente, foi que sofreu o dano. Como uma bomba explodida e você afetado pelo pulso mesmo sem estar no lugar.

Naquele instante, Údon ficara pálido ao depreender, com máxima certeza, a razão.

- Isso não é nada bom. - disse ele, em tom baixo, como que esperando que sua eleita não ouvisse.

- O que disse? - indagou Alexia, virando o rosto para ele, à sua direita.

- Ele escapou... - disse o arqueu, transparecendo preocupação - O maldito liberou uma quantidade insana de energia a ponto de afetar você. Mas isso é normal. Aconteceu pelo simples fato de um profeta estar ligado e próximo a um arqueu numa curta distância.

- Espera, se refere a Yuga? - perguntou Alexia, se levantando. De uma de suas narinas escorria um filete de sangue - Então foi isso?! Por que não me disse antes?

- Esqueceu que inibi meu sensor justamente para não ser achado? Digamos que no fundo eu esperava você sofrer efeitos colaterais caso Yuga se libertasse com estardalhaço e agora esse momento passou, hora de nos concentrarmos em uma forma de agilizarmos as coisas. - disse Údon, enfático e firme. Visualizou o sangue saindo do nariz da profetisa, meio tímido ao apontar - Ahn... - apontou ao próprio nariz - ... está sujo aqui. Não se preocupe, certas descargas causam hemorragias momentâneas, o que não quer dizer que nesse caso seja grave só por estarmos lidando com algo...

- Só pare de falar, por favor. - disse Alexia, interrompendo-o, limpando o nariz com uma mão e depois pressionando com a cabeça inclinada para trás para estancar o sangramento.

Hector descia num ritmo rápido a escada que dava acesso ao segundo andar, no qual, em um dos quartos, está um depósito com algumas caixas pequenas de papelão que serviam de "reduto nostálgico" para fotografias e objetos caídos em desuso há tempos. O caçador trazia consigo uma das poucas fotos coloridas do "baú" onde nela mostrava Eleonor, em plenos 70 anos, segurando um bebê alvo como a neve e de realçados olhos cor de lápis-lazúli.

No mesmo instante, Lester retornara após realizar um check-up nas proximidades.

- Muito bem, pessoal. Tudo limpo. Sem armadilhas, sem subalternos babacas com seus brinquedos de ouro... Resumindo: Perda de tempo. - disse o caçador, olhando ao redor à procura de Áker - Cadê o ave de rapina? Isso foi ideia dele, só pra constar. Queria dizer à ele que precisa levar esse lance de possíveis ameaças um pouco menos a sério senão vai ficar paranoico. Mas em compensação, até que serviu para tomar um ar fresco, mesmo achando que poderia estar na minha cama sonhando que voltei à casa dos meus pais para comer a divina torta de maçã de Mra. Cooper. - olhou para Hector - E aí, Hector?

- Olá Lester. - cumprimentou-o, dando olhadelas na foto - Vou tomar a liberdade de resolver isso por minha conta. De uma forma ou de outra.

- Teve a ideia errada na hora certa, rapaz. - disparou Údon, arqueando uma sobrancelha - Yuga está à solta. Alexia sentiu a extensão do seu poder e pelo estado dela pude concluir que... - balançou a cabeça negativamente - ... ele maximizou a energia através da meditação. Há cinco dias parecíamos formigas, agora somos bactérias.

- Há quanto tempo foi isso? - perguntou Hector, preocupando-se.

- Poucos minutos. - disse Alexia, parecendo abatida - E pelo modo como senti... Tudo deve ter sido bem caótico.

- Nem posso imaginar como está o QG agora. - disse Hector, pensativo e desesperado. - General Holt... - voltou-se à Údon - Preciso arriscar uma opção. - destacou a fotografia - Rosie está lá ainda, em algum lugar, e devo tirar a prova ainda que minha vida se coloque em risco.

Údon mostrou-se um tanto irritado com a postura completamente teimosa do líder da Legião.

- Você deve? - indagou ele, o tom rude. Tomara a foto do caçador com rapidez - Me deixe ver... - olhou-a, arqueando as sobrancelhas - Bela senhora... bebê fofinho. Sim, é óbvio que esta foto é nossa garantia de salvação, já que Yuga, no nível de frieza e poder que alcançou, vai se deixar levar pelos sentimentos de sua escolhida que com algum esforço assumirá o controle até... sei lá, expulsa-lo com toda a sua força. - ironizou, devolvendo a foto.

- Não fico surpreso por reagir assim. - retrucou Hector, pegando de volta - E nem vou gastar minha saliva para convencê-lo. Eu acredito e confiarei nessa esperança até que uma luz surja e indique que as coisas voltarão a ser como eram.

- A única luz que provavelmente você verá pode pulveriza-lo até o último átomo. - rebateu Údon, descrente quanto à opção selecionada por alguém claramente movido a desespero - Sentimentalismo barato não vai trazê-la de volta. Yuga a pôs para dormir... Não serão meras lembranças do passado que vão desperta-la...

Repentinamente, o arqueu sofrera um baque súbito na forma de uma dor de cabeça que lhe pesava como blocos maciços de trocentas toneladas. Ganhando a atenção e preocupação de todos ao seu redor, Údon inclinou-se à frente com a coluna curvada e as mãos na cabeça, além de exprimir grunhidos rascantes.

- Será que isso pode ser Yuga? - perguntou Hector, tentando ajuda-lo.

- Não. - disse Alexia, afligindo-se - Ele não me disse que arqueus podiam sentir energia próximo a profetas, mas sim o contrário. Ou talvez seja algo diferente.

- Alguém tem uma aspirina? - indagou Lester, sem saber como auxiliar.

- Údon, tente se concentrar. - pediu Hector, tocando-o nos ombros - O que está sentindo? Aliás, o que significa essa dor?

- Esse... - dizia o arqueu, aos poucos recompondo-se, por fim abrindo os olhos - Esse desgraçado.

- O quê? Foi Yuga? - perguntou Alexia, curiosa.

- Ele sabe minha localização. - disse Údon, depois olhando para Hector com urgência - Exige que você vá ao encontro dele imediatamente. Caso recuse, virá até aqui e me matar.

- OK, o que esse monstro planeja dessa vez? - se questionou Lester, aborrecido pelo chamado.

- Hector precisa ir se quiser descobrir. - recomendou Údon, assumindo a gravidade das ameaças. - Provavelmente é sobre a negociação com Abamanu. A propósito, estive elaborando algo sobre aquele plano, por isso me tranquei naquele quarto vazio.

- Ah sim, isso explica as paredes estarem preenchidas com um monte de papel rabiscado. - apontou Lester, visualizando o arqueu com certa suspeita. - O que você tá escondendo?

- Saberão quando chegar a hora. - respondeu ele, com um sorriso levemente misterioso. Voltou-se para Hector, sério. - Tome cuidado, Hector. Ele tornou-se mais forte do que somos capazes de lidar.

O caçador assentira, o semblante que exteriorizava arrojo e revelava sua confiança inabalável.

                                                                                           ***

Em algum ponto da floresta, Hector atentamente esquadrinhava com os olhos os seus arredores mantendo-se alerta a qualquer aparição surpresa que pudesse lhe soar perigosa, tendo em vista que o imperador solar culminara em sua irrefreável ambição destrutiva e sem qualquer limite.

- Vamos logo, apareça. - disse Hector, aborrecendo-se. - Não tenho o dia todo.

- Saiba que eu também não. - dissera Yuga, surgindo a alguns poucos metros de distância por trás do caçador que se virou estremecido, fitando-o com ódio além de notar as mudanças físicas que introduziu no corpo de Rosie, como por exemplo os cabelos alisados e mais compridos - Vamos direto ao negócios, Hector? Porque sinceramente separar uma quantidade de força só para tortura-lo até que se submeta aos meus termos não seria muito vantajoso para nós dois. Certo?

O caçador respirou fundo para enfrentar a tensão de modo seguro.

- O que você tem a mente agora? Só para deixar Údon e os outros longe das suas garras.

- Digamos que você precise abortar a missão número um, que é jogar aquela besta direto no limbo. - disse o deus solar, o tom sério, as mãos na cintura - Afinal, o ritual só pode ser feito uma vez a cada mil anos. O que vou fazer sem meu persistente inimigo na ativa logo quando mais quero rasga-lo em pedaços até não sobrar nada?

- Nunca acreditei que fosse dizer isso, mas... - Hector esboçou um fraco sorriso de canto - ... ele é o menor dos nossos problemas agora. Não vai se safar tão facilmente, usufruindo do corpo de Rosie como uma simples armadura... - sua postura tornara-se fragilizada - Jamais vou deixar de acreditar na força que ela possui. Isso era o que a movia a lutar, o que não a permitia desistir.

- Lamento informa-lo, pois ela já está quase no limite. - declarou Yuga, soando zombeteiro usando o belo sorriso de sua eleita para transmitir seu cinismo enojante - Eu a ouço gritar seu nome o tempo inteiro. Não faz ideia de como ela está sofrendo um inferno psicológico aqui dentro... O que quer que esteja disposto a tentar, ela não vai ouvi-lo. Em meu estado de paz interior e fortalecimento, criei uma barreira psíquica que impede que ela ouça até a si mesma. - estreitou os olhos - Escuto berros de dor, mas o que ela ouve não passam de sussurros vãos, não importa o quão forte ela tente ser.

Inesperadamente, Yuga expressou um desconforto que parecia aumentar a cada segundo, como se estivesse sendo vítima de uma profunda náusea. Inclinou-se para frente, aparentando sentir-se mal.

- Oh, veja só Hector... - disse o deus solar, a voz esganiçada e cansada - ... parece que sua amada... sua amada Rosie está querendo trapacear...

Tais sensações semeavam em Hector alguma esperança de que aquilo indicasse uma resistência. "Não estive errado no fim das contas? Será verdade que...", pensou ele, olhando com expectativa Yuga contorcer-se em grunhidos e gemidos dolorosos.

Em um instante, o desconforto cessou. O semblante entristecido no rosto de Rosie ergueu-se para o caçador que automaticamente elevou sua confiança.

- Hector. - disse a voz doce da jovem, olhando-o comovida. - Me diz como está todo mundo. Minha avó... o Áker, o Lester... qualquer um dos nossos amigos...

- Ro-Rosie...? - indagou o caçador, dando uns passos adiante em lentidão, a expressão de incerteza - É você? Como conseguiu alternar o controle?

- Não sei... - respondeu ela, balançando a cabeça - Não sei, eu... O que isso importa? - tentou sorrir - Eu consegui. É exaustivo, mas é possível. - uma lágrima escorrera pela maçã do rosto - Olha, antes que ele volte, só quero dizer... - ao que parecia, o deus solar forçava-se para reassumir o comando.

- Sim... Diga o que quiser. - disse Hector, empolgando-se, sem conter a emoção ao toca-la nos ombros.

- Eu... Eu am... - um brusco arquejo cortou a frase, fazendo-a baixar a cabeça a ponto dos cabelos loiros lisos ocultarem parte do seu rosto.

Uma tremulação nos ombros da jovem seguiu-se de uma risada infame. Confuso, o caçador procurou afastar-se, temendo, a partir dali, ter voltado a estar de frente ao deus. No entanto, pairava uma dúvida que talvez rejeitou devido aos sentimentos aflorados que o cegaram quanto a intuição.

O riso de Yuga tornara-se cada vez mais escarniante logo ao reerguer a coluna.

- O que é isso? O que é tão engraçado? - perguntou Hector, ríspido.

- Sua fragilidade com relação a... sentimentos, torna você digno de pena. - afirmou Yuga, intercalando com o mesmo riso - Mas enfim... Minha imitação foi convincente?

Um rosnado de cólera foi solto por Hector, reforçado pela sua face furiosa, quase que por impulso avançando contra o deus solar.

- Vou arrancar você dela... Não importa o que isso vá me custar!

- O seu mundinho triste e obtuso é que pagará o maior preço, a menos que... - disse Yuga, levantando uma sobrancelha e deixando a frase no ar por alguns segundos. Dera um novo sorriso sacana - Reconsideremos o acordo. - de repente, erguera de leve sua mão direita e a cravara no peito com extrema força, causando dano físico ao corpo de seu escolhida.

- O que está fazendo? - indagou Hector, estupefato, sua voz soando alarmada.

De dentro, o deus solar removera o coração ainda pulsante de Rosie e o mostrara ao caçador.

- Além de estar torturando-a por dentro, tem a ousadia de machuca-la fisicamente. - disse Hector, tentando não expressar insegurança. - Acha que isso me amedronta? Não conhece meu histórico.

- Não faz ideia do quanto eu conheço. - retrucou Yuga, em seguida relanceando o órgão que segurava com a mão direita encharcada de sangue. - Só para sua informação, eu posso fazer isso incontáveis vezes. Agora mesmo um novo coração está sendo reconstruído. Mas, por um instante, me ocorreu a ideia de perambular pelos cantos sem esse importante elemento de sobrevivência, pelo menos até que você e seu pequeno grupo de mentecaptos desistisse da ideia de me prender considerando que a quimera não representa um problema maior do que me tornei.

- Está dizendo que... - Hector fechou os olhos por um segundo, cansando-se daquela conversa - Cogitou deixar Rosie sem um coração para nos fazer desistir. Mas posso garantir que a ideia inicial era prender Abamanu. Você estava em segundo plano o tempo todo.

- Isso me deixa magoado. - disse o deus solar, claramente irônico. - No entanto, não o farão. O seu arqueu será inutilizado com meu ultimato. Acabo de ter uma excelente ideia. - jogara fora o coração da jovem para trás tal como um pedaço descartável de lixo - Esse poder... que me entorpece... confesso que me escapa a maneira correta de segura-lo. - fechara o punho - Muito embora ele me permita fazer pequenas coisas que podem se transformar em grandiosas. - abrira a mão, sendo que da palma crescia uma pequena esfera de luz alaranjada similar a um sol. - A quebra de fidelidade que você me fez suportar, Hector, me forçou a radicalizar os meus termos do contrato. - o caçador visualizava o pequeno sol com apreensão. O deus solar, telecineticamente, alçou a pequena esfera de energia solar aos céus. Por uns segundos, Hector acompanhou o lento elevar daquele que seria o trunfo infalível.

- O que significa isso? - perguntou o caçador, voltando seus olhos para o deus.

- Significa que a ampulheta foi virada. - afirmou Yuga, o tom ameaçadoramente sério. - Como eu disse antes, o seu mundo, este mísero pequeno planeta, pagará as consequências da sua desobediência. - mostrara a palma da mão esquerda - Este planeta tem apenas 5 horas até a destruição completa. A estrela que lancei é semelhante a que vocês conhecem, mas com alguns... aditivos. E em apenas 5 horas este planeta vai ser completamente consumido, a não ser que você entre em consenso com a quimera e se entregue de corpo e alma para que nossas diferenças sejam resolvidas de uma vez por todas.

- Exijo uma prova. - disse Hector, desafiador - Sei reconhecer um blefe quando vejo um.

- Então sua inclinação para tal está bem enferrujada. - rebateu Yuga, com sarcasmo. - Mas chega de delongas. O tempo está correndo. Logo mais saberá do que sou capaz quando me deixam esperando por um momento muito importante. Só depende de você. Além disso, estou pensando em algo que sirva de estímulo para que você seja diligente dessa vez. - fez uma pausa, propositalmente esperando que o suspense fizesse o caçador corroer-se em inquietude. - A cada 30 minutos uma população será varrida através dos meus incríveis poderes. Se não quiser que a pilha de corpos e toda a fumaça polua o ambiente... então eu sugiro que se apresse.

A postura de Hector resumia palidez e temor puros.

- Não... Não, não precisa seguir esse tipo de...

- Tarde demais. A estrela já ultrapassou a atmosfera. - disse o deus solar, interrompendo-o. - Melhor correr agora que os primeiros grãos de areia vão começar a cair... ou subir. - deu uma risadinha canalha. Por fim, desaparecera dali em nanosegundos.

Perdido em devaneios aflitivos, Hector, meio boquiaberto, encarava a assustadora gravidade que se cristalizava à sua mente enquanto inerte por alguns segundos no meio da floresta.

Aquele era o verdadeiro terror de sentir uma responsabilidade pesada demais aos seus ombros.

                                                                                           ***

Proximidades de Raizenbool

Bastante perto do topo de um morro, Yuga contemplava a relativamente grande cidade, sob o azul anil do céu. Cidade esta onde a profetisa de seu inimigo uma vez se refugiou para escapar de um hipotético destino cruel.

A brisa fazia a capa vermelha de Rosie esvoaçar lateralmente com beleza somada a luz solar que deixava a tonalidade ainda mais nítida e chamativa. O deus solar formou um sorriso ansioso, visualizando cada ponto da cidade à vários metros de seus pés, completamente vulnerável.

- Acho que o lance dos 30 minutos é passível de desconsideração. Meu acordo... minhas regras.

Lentamente foi esticando o braço direito, abrindo devagar a mão em direção ao centro da cidade.

A luminosidade amarelada característica irradiou com rapidez começando dos olhos e parecendo canalizar-se para os braços e, por fim, na mão que mirava seu alvo. Os fios dourados do cabelo de Rosie ventavam devido a imensa concentração, além da forte luz que envolvia o corpo.

Em algum ponto da cidade, uma menina de cacheados cabelos loiros e de vestido azul claro voltava acompanhada de sua mãe do mercado. Parou a caminhada logo ao notar uma estranha luz no alto do longínquo morro. Primeiro veio a confusão para em seguida deixar entrar a empolgação.

- Olha mamãe! - disse ela, apontando com entusiasmo - Viu só? Eu disse que elas existem! As fadas existem mesmo!

A mãe permaneceu em silêncio sem saber no que pensar ao acompanhar o olhar da filha.

- Filha, isso não parece nada com...

Antes que a mulher concluísse, a energia canalizada de Yuga foi disparada como um raio solar retilíneo que se enveredou até Raizenbool em alta velocidade.

A esmagadora explosão veio num tempo de 15 segundos após o disparo. Yuga entreviu uma forte ondulação de poeira irromper por toda a extensão seguido do brotar assustador e robusto "cogumelo de fogo".

O deus solar, indiferente ao retumbante estrondo que parecia não ter fim, foi envolvido por uma alastrante e densa nuvem de poeira aquecida.

                                                                                    ***

Área florestal de Raizenbool

- Segurem-se em alguma coisa! - exclamava Údon, em total desespero em meio ao intenso terremoto provocado pela explosão que aniquilou toda a população da cidade mais próxima. O arqueu estava recostado com as mãos quase grudadas numa parede que rachava-se, sentindo as pernas bambas enquanto a casa sacudia-se violentamente. Numa estante, alguns vasos de vidro eram conduzidos direto ao chão devido à vibração potente.

Alexia tentara refúgio no segundo andar, mais tropeçando do que subindo. Já Lester deslizou no chão para debaixo da mesa da cozinha a fim de proteger dos pedaços do teto que caíam aos montes.

- Caramba! Isso é o fim do mundo! - disse o caçador, aturdido pela brutalidade do tremor.

Subitamente, o abalo cessou. Údon via pela janela quebrada uma enorme fumaça misturada à poeira cobrir a floresta como uma névoa abafada engolfando as árvores.

- Vocês estão bem? - perguntou ele, correndo para ajudar Alexia que se segurava firmemente no corrimão da escada. Lester, por sua vez, saíra da cozinha quase cambaleando. Údon olhara para ele enquanto ajudava a vidente a se levantar. - Como se sente, rapaz?

- Sinto meu corpo vibrar feito um liquidificador. - reclamou ele, com uma mão na cabeça meio zonzo.

Alexia tremia de nervoso, apoiando-se em Údon.

- Que coisa horrível... Foi assustador. - disse ela, a expressão atordoada. - Mas... acho que não foi pior do que o aperto que senti no meu coração. Údon, é a minha visão...

- O quê?! Se refere a...

- Previmos coisas diferentes sobre Rosie, certo? É o que quero dizer. Esse impacto, essa energia... As lembranças dessa visão maldita estão voltando à tona, a profecia está se cumprindo.

A entrada repentina de Hector fez todos arregalarem os olhos de atenção. O caçador deixou a porta escancarada, adentrando com urgência e ofegando.

- Hector. - disse Lester, indo em direção ao amigo, em seguida abraçando-o. - Achei que aquele desgraçado tinha feito você virar carne defumada. - olhou profundamente nos olhos - O que diabos foi isso? O que foi que ele... quero dizer, ela... - balançou a cabeça em negação rapidamente - Enfim, você sabe que merda acabou de acontecer?

- Eu estou bem, Lester, não se preocupe. - disse Hector, tocando no ombro do caçador em agradecimento, logo olhando para Údon e Alexia - Enquanto corria no meio do terremoto, olhava para trás e tive a leve impressão de ter visto uma nuvem de explosão enorme... vindo de Raizenbool.

- Por isso toda essa fumaça... - disse Alexia, a fala comovida. - Ai, não... - seus olhos marejaram ao imaginar a situação - Ele não teve... não teve essa coragem...

- Sim, Alexia, acredite, ele fez. - interrompeu Hector, olhando-a sério. - Agora não se trata mais só de Rosie. Mas do mundo inteiro. A morte de todas essas pessoas... - baixou a cabeça - Eu juro que não terão sido em vão. Eu juro! - falou, erguendo a cabeça ao segurar as lágrimas numa expressão de ódio profundo pelo ato traiçoeiro cometido pelo deus que vai contra um dos termos.

A vidente desviou o olhar lacrimoso para um canto, prestes a desabar em prantos pelas vítimas do fatal ataque.

- Mas que miserável, filho da... - disse Lester, revoltado, cortando a frase para não soltar um palavrão. - A gente tem que correr com esse plano. Esse deus maluco passou dos limites.

- É aí que você se engana. - retrucou Hector para o amigo, depois voltando os olhos para Údon - Vocês ainda não viram nada. - neste instante, Lester foi em direção à porta para fecha-la

- Hector nos fale de uma vez. - pediu Údon, ansioso - O que Yuga decidiu aprontar para deixar você assim tão agitado? Está tenso demais e certamente não foi só a explosão.

- O que pode ser pior do que todo o planeta ser transformado num campo minado? - questionou Lester, voltando à conversa.

- O planeta ser devorado por um tipo de estrela similar ao sol em poucas horas. - disparou Hector, firme no tom, mas ao mesmo tempo não escondendo seu medo - Ele se tornou tão poderoso ao nível de criar estrelas e inserir nelas habilidades diversas. E a função da que ele lançou no espaço é exatamente consumir matéria sólida até... - encarou o nada, tensamente pensativo - até atingir o tamanho do nosso sol. Talvez até esse estágio... já nem haverá mais chance de sobrevivência.

Alexia se mostrou inconformada ante a postura pessimista do caçador.

- Está falando como se quisesse desistir! - disse ela, aproximando-se a passos largos numa expressão de reprovação. - Pense em como Rosie se sentiria caso tivesse a chance de saber o que Yuga está fazendo. Como ela ia se sentir se soubesse através dele que seus amigos falharam. Hector, não estou te recriminando, mas pense um pouco. Pessoas inocentes morreram. Jurou que não ficaria por isso mesmo. Agora é sua vez, a sua oportunidade de fazer dessa promessa uma realidade.

A concordância de Údon se exibiu clara.

- Ela tem razão. Yuga está testando a todos nós, mas é você que ele deseja atingir em primeiro lugar porque você é a coisa mais próxima de um irmão que Rosie teve. Portanto, deve se decidir quanto a negociar com Abamanu a liberdade do mago do tempo e, claro, a última arma que falta para o ritual.

O caçador passara alguns segundos imerso em pensamentos confusos que se amontoavam em uma espiral de dúvidas e incertezas alimentadas pelo medo crescente.

- Ele disse que... a ampulheta foi virada. Agora sei o que quis dizer. A ampulheta possui dois compartimentos de vidro, tendo o de cima uma quantidade de areia que será escoada ao de baixo. A Terra simboliza o compartimento superior... e a estrela o inferior. É... - deu um fraco sorriso nervoso - De alguma forma subestimei a esperteza dele, admito.

Áker surgira de repente no meio do recinto, assustando a todos.

- Peço perdão se demorei muito. Sei tudo o que aconteceu nos últimos minutos. A população da cidade há quilômetros daqui... foi completamente dizimada.

Alexia suspirou com forte pesar após o arauto dar a certeza absoluta dos fatos.

- Consigo sentir uma energia familiar... - disse Áker, pensando no detalhe que o intrigava - ... emanando constantemente e aos poucos aumentando. Está inerte, mas sob controle.

- Yuga pretende destruir o planeta com um sol criado por ele mesmo caso eu não recorra a Abamanu e faça o acordo. - informou Hector. - Temos apenas 5 horas, segundo ele.

Údon foi se aproximando do arauto para um ato prestativo. Colocara sua mão esquerda sobre um ombro do sentinela solar com os olhos fechados, transferindo algum tipo de energia.

- De nada. - respondeu o arqueu, com um leve sorriso amigável.

- O que foi isso? - indagou Áker, franzindo o cenho - Eu não entendi. Você...

- Precisa se manter fora do nosso rastro se quiser sobreviver à isso. - recomendou Údon - Não é que estejamos preterindo você, mas a questão, na verdade, é relacionada a possíveis represálias de soldados que Yuga não sabe estarem subordinados à Sekhmet. Por via das dúvidas, dividi com você minha ocultação de energia no caso dele deduzir ser você o mandante dos ataques. Nos deseje sorte no plano.

- Não sei o que dizer, é... é muita gentileza sua, Údon. - disse o arauto, gratificado. Olhou para o trio de mortais - Vocês vão conseguir. Especialmente você Hector. - estendeu a mão direita ao caçador que retribuiu em um aperto amistoso - Cuidado redobrado quanto à Abamanu. Lembre-se daquela vez na fábrica. Ele quase teve você na palma da mão.

- O farei cair. Údon, por sinal, esteve trabalhando numa ideia que pode ser crucial quando chegar a grande hora. - disse Hector, olhando com orgulho para o arauto - Salve-se.

- Irei tentar. - disse Áker, sorrindo levemente, tomando seriedade logo em seguida ao se afastar. - Boa sorte a todos. - assentiu aos demais e, por fim, sumira num piscar de olhos.

O telefone tocara, surpreendendo aos presentes, sobretudo Lester. Ligações àquela hora crítica passavam anos-luz de serem aguardadas ou tratadas com importância.

- Alô? - disse Lester logo ao atender. - Sim, sou eu George, Lester Cooper, ao seu dispor. O que você me traz? - deu uma olhadela aos demais - Espera aí, vai devagar... Sim... Ah, então você era um dos recrutados do Exército nas operações de resgate... O quê? Rosie... OK... deixa isso por minha conta, eu a conheço melhor, fomos praticamente namoradinhos de infância - nesse instante, Alexia revirara os olhos - ... Ótimo, sei onde é... George, é sério, deixa comigo, eu sei que é estranho, mas posso fazer isso sozinho, não tentem ir longe demais pois podem acabar morrendo do mesmo jeito... Tudo bem... Até mais. - desligara, depois fitando as expressões preocupadas de Hector, Alexia e Údon. - Pessoal, a coisa esquentou em um banco lotado em Londres, literalmente. Um dos caçadores estava nos arredores e viu quase tudo. O deus pirado atacou de novo. Tenho que investigar.

- Até onde essa sede de morte e caos pode ir? - se perguntou Alexia, nervosa. - Se todo esse poder acabar matando-o, vai matar Rosie também.

- Eu duvido. - disse Údon, um tanto incerto. - Lembre-se que a ligação que Yuga possuía com sua energia bruta foi restabelecida e agora compartilha do poder da fênix apoteótica.

Hector retirara do bolso as chaves do carro e jogara-as para Lester.

- Tome muito cuidado, Lester.

- Pode deixar. - disse ele, pegando as chaves e indo em direção à porta. Porém, virou-se demonstrando dúvida - Você fala de mim ou do carro?

- Pra ser honesto, de ambos. - disse Hector, dando um sorriso de canto.

Algumas agitadas batidas na porta quebraram o silêncio.

- Eu atendo. - disse Alexia, prestando-se a ir até a porta.

Ao abrir, a surpresa foi instantânea.

- Você é...? - indagou a vidente, estranhando o tal homem de meia idade que vestia uma roupa característica de um safari.

- Oh, que bom estar ocupada. - disse, ajeitando os óculos ao olhar o interior do Casarão - Muito prazer, me chamo Maximilliam Lenox, talvez tenha ouvido falar de mim, sou um honrado cientista. - falou, dando um aperto de mãos em Alexia - Não pude deixar de lado minha vontade de invadir essa casa, confesso, mas minha educação falou mais alto. Estava no meio de uma pesquisa de campo conjunta quando o chão estrondou de repente e logo que vimos a fumaça corremos, querendo lutar por nossas vidas, imaginando ser um bombardeio nuclear inimigo. - fez uma pausa, olhando-a meio desconcertado - Estou tagarelando, não é?

- Ahn... Olha, eu não sei se devo...

Hector cortara a fala da vidente logo quando se direcionou ao pequeno corredor da entrada para ver de quem se tratava. Foi difícil para o caçador disfarçar o espanto.

- Dr. Lenox?!

- Olá... jovem. - respondeu o cientista, sorrindo meio nervoso. - É o proprietário desta casa?

- Um deles. - disse o caçador - Ouvi um pouco do que o senhor disse... Se quer um refúgio para se acalmar, então achou o lugar certo. - mostrara-se solidário com a situação do homem perdido - Pode entrar.

                                                                                          ***

No ponto mais movimentado do centro de Londres, algumas pessoas paravam suas andanças ao testemunharem um estranho fenômeno que consistia basicamente em seus acessórios pessoais sendo atraídos para cima como se um imã invisível estivesse pairando sobre os céus.

Relógios, anéis, colares, brincos e pulseiras eram puxados por algum tipo de força magnética, deixando seus proprietários estupefatos e, consequentemente, sendo alvos das atenções confusas e intrigadas das pessoas ao redor que, segundos depois, também foram "roubadas", arrancando delas arquejos de pânico. Indagações paralelas tomaram conta e o estado de temor generalizado consumava-se e espalhava-se como um vírus.

Acima da exosfera, o pequeno sol começava a obter volume. Já haviam se passado 30 minutos.

                                                                                  ***

O exército de 50 quiméricos marchava rumo ao confronto que decidiria o futuro, em meio a uma área despovoada e carente de vegetação sendo composta, em grande parte, por morros, planaltos e serras.

O refulgir da luz solar fazia brilhar as pelagens azul-acinzentadas dos lobos bípedes - armados com suas lanças prateadas. Sob o comando daquela "orquestra" mortífera, estava o amargurado Cavaleiro da Noite Eterna, andando na frente sem o menor resquício de desistência lhe fazendo dar meia volta.

Dos amarelos olhos lupinos de sua receptáculo, Mollock, transbordava toda a ira de um coração traído que só alimentava um sentimento que perdurou desde o fim do primeiro embate: vingança.

Andar em plena luz do dia deixava-o aborrecido, entretanto inevitável era a escolha. O fracasso do plano anterior, infelizmente, o forçou a apelar para seus inveterados guerreiros, por piores que fossem as possibilidades imaginadas, levando em conta o quão imprevisível tornou-se Yuga.

O deus solar surgira diante do aqui-inimigo surpreendentemente, com o mesmo sorriso debochado no rosto de Rosie Campbell.

- Apontem! - bradou Abamanu, ordenando os soldados a miraram as pontas de suas lanças em Yuga.

- Senti sua energia em movimento, mas acho que me levei demais pelas expectativas. - disse o deus solar, olhando-o dos pés à cabeça.

- Não fale comigo como se fosse um mero encontro casual. - retrucou o deus lunar, quase espumando pela boca. - Já fazem séculos. E durante todo esse tempo só fiquei a pensar em um modo menos trabalhoso de extermina-lo com minhas garras.

- Vamos mesmo levar essa discussão adiante? - indagou Yuga, arqueando uma sobrancelha - Nem está apto a lutar comigo de forma justa. Pode mandar seus lacaios atirarem, não me importo. Eu quero uma vingança perfeita. Você sabe bem do que estou falando.

- Continua arrogante achando que pode jogar as melhores cartas só porque está na frente do jogo. - disse Abamanu, controlando seus impulsos. - Com um exército de um soldado só.

- Se quer um trabalho bem feito faça você mesmo. - rebateu o deus solar, dando de ombros. - Não troco este poder único por um bando de soldados patetas. Já tenho tudo. Você, por outro lado... - olhou-o com escárnio - Numa casca degradável e no comando de um exército reduzido. Não chega nem perto do deus implacável que teve o privilégio de me enfrentar por horas a fio. Nesse cenário, percebo que não está muito longe de se qualificar como a besta quadrúpede e desprovida de inteligência que devia ser desde o início. Uma coleira no seu pescoço cai muito bem ao invés de uma armadura super-resistente.

- Por acaso já se viu num espelho hoje? - questionou Abamanu, tentando zomba-lo. - Não vou mentir... Está bem desprezível para alguém que reluzia feito ouro. - fez uma pausa, mantendo a postura soberba - Vou tomar suas ofensas como um convite aos meus subordinados para descarregarem tudo em você.

- O abismo que nos separava cresceu potencialmente. - declarou Yuga, andando para seu lado direito - Você vir até aqui tão confiante é como querer fazer um buraco num profundo oceano congelado, mas não tem forças para sequer arranhar a superfície.

- Nossas diferenças não foi exatamente o que motivou nosso desafeto. - disse Abamanu, querendo referi-se sobre o quanto sentiu-se desvalorizado e enganado durante todo o acordo.

- Ah... elas foram sim. - disse Yuga, esticando lentamente seu braço direito aos quiméricos - Eu cumpri minha parte do acordo. Você jogou sujo. Como esperava que eu reagisse? - o braço enchera-se de labaredas - Mas agora... tenho um parceiro que certamente não vai ousar me trair. Não de novo.

Yuga lançara sua assoladora rajada de fogo contra todo o exército quimérico, um por um sendo cruelmente incinerados, suas lanças caindo no chão queimadas.

- Nãããoooo!! - gritara Abamanu, atônito, sua voz quase soando um rugido e suas presas à mostra. Assistira cada um de seus soldados reduzirem-se a cinzas. Por um instante, pensou em avançar. Mas um lampejo de sensatez o convenceu que o melhor ataque seria a paciência.

O deus solar sorriu, esbanjando satisfação ao ver que do exército oponente sobraram apenas "poças" de fogo.

- Então... sobre o meu novo parceiro... - disse Yuga - ... ele é uma das peças que falta para ficarmos pareados. Dei a ele um tempo-limite para que o achasse e não vai demorar.

- Hector está vindo atrás de mim?! - perguntou o deus lunar, o tom ríspido. - Mas o que...

- Desculpe atrapalhar o reencontro caloroso - disse Sekhmet, por trás de Yuga, interrompendo-se bruscamente a conversa -, mas agora é assunto de família.

- É melhor espera-lo. - disse Yuga, olhando desdenhoso para a esposa e dirigindo a palavra a Abamanu - Se duvidar, ele já pode estar lá agora mesmo. Como estou no controle, decido como será. - voltou seus olhos ao imperador - Será uma luta justa se o destino for cumprido. Se preciso, abra sua cripta secreta. Pensa que não sei o que há lá?

- Tudo, menos isso. - devolveu Abamanu, encolerizado. Relanceou uma impaciente Sekhmet. - Droga... - teleportou-se de volta ao palácio, rendido à curiosidade.

- Enfim, a sós. - disse Yuga, claramente desinteressado em continuar de onde pararam. - Você não vai me deixar em paz nem por um minuto, não é? Eu tinha deixado claro que não jogamos mais no mesmo time.

- O pacto que selamos foi um caminho sem volta. - argumentou a deusa, séria - Ainda somos família, goste ou não. Mihos entrou em contato e me disse ter realmente tentado mata-lo. Disse também que você cavaria sua própria cova estando viciado nesse poder.

- Sei medir meus limites. - retrucou Yuga.

- Não, não sabe! - disse Sekhmet, aproximando-se com aborrecimento - Eu daria tudo para sofrer a sua dor. Foi essa minha intenção desde o início. Mas você decidiu confundir minha consideração com egoísmo. Não confiou em mim. Preferiu insistir numa rixa estúpida, e eu fui a egoísta na história. Eu quis salva-lo!

- Não, Sekhmet, você queria sentar confortavelmente no meu trono. - disparou o deus solar, sem dó. - Se olhar mais a fundo, poderá perceber que, no fim das contas, o objetivo sempre foi o império de volta aos tempos de glória. Você não acreditou em mim, eu não acreditei em você. Ficamos nesse impasse. - deu as costas devagar, emanando mistério - A partir do momento em que Rosie Campbell beneficiou o meu destino em detrimento do próprio, vi ali a chance de fazer minhas regras sem me agarrar a mais nada. - retirou uma adaga dourada que Rosie havia guardado no cinto, passando o indicador sobre a lâmina - Quero me divorciar do império. De tudo que me prendia.

- Mas e quanto a mim? - perguntou Sekhmet, tocada, chegando perto. - Ainda significo algo pra você? Existe aí dentro um vestígio do rei que escolhi ter ao meu lado?

Alguns segundos de silêncio tornava o clima desconfortável. O olhar triste da deusa ganhou mais brilho.

- Não. - respondeu Yuga, logo virando-se de inesperado ao cravar a lâmina dourada no abdômen do receptáculo da deusa. A beijou nos lábios como que para facilitar o desapego ou satisfazer o desejo da deusa pela última vez num lapso de piedade. A faca havia sido transmutada de uma convencional para uma especial, a mesma que Mihos usara na tentativa frustrada de matar o pai. Sekhmet, boquiaberta, exprimiu gemidos lentos, baixando os olhos para a mancha de sangue formada na roupa de espiã de Betsy Rossman - Não há mais império. Nem mais família. Nem você e eu juntos.

O último olhar dado pela deusa fora de pura frustração antes da luz amarela irradiar de dentro para fora sinalizando sua morte. O corpo de Betsy Rossman carbonizava-se até, enfim, cair - a luz que saía dos olhos e da boca apagando-se rápido.

- Covarde! - gritou uma voz masculina. Tratava-se de um dos sentinelas aliados à Sekhmet, com mais outros dois, todos abismados com a morte trágica daquela que sucederia o reinado.

- Era só o que faltava... - disse Yuga, visualizando-os com desprezo. Abriu os braços. - Vamos lá, façam seu julgamento! Eu fiz o que tinha que ser feito!

- Nós também faremos o que achamos ser certo. - disse o do meio, olhando para os companheiros. - Prontos? - perguntou, cerrando os punhos. Os dois sentinelas tocaram nos ombros de seu líder com os olhos fechados. Uma centelha de energia brotou do peito do líder, cujos olhos e boca irradiaram, descarregando-a na forma um raio reto que atingiu Yuga certeiramente.

Porém, o tempo de efeito não foi o estimado. O deus solar se manteve de pé, com filetes da energia do ataque passando pelos braços e no rosto como se fossem veias.

- Mas o que... O que deu errado? - se perguntou o líder, consternado.

- Foi só isso? Ela mandou que atacassem sem dar maiores detalhes sobre o alvo? E justo com esse golpe tão previsível...

- É como se tivesse... absorvido. - disse o da esquerda, recuando. - Vamos fazer a transferência novamente?

- Eu acho que não. - decretou Yuga, erguendo sua mão direita e movendo-a como se espantasse uma mosca numa só vez. Imediatamente ao movimento, os três sentinelas foram varridos em cinzas como poeira se dissipando no ar.

Pouco depois, o céu produziu trovões com algumas nuvens carregadas e parecia abrir-se num círculo do qual despontava uma forte luz. Mais uma tentativa de ataca-lo brutalmente.

Ao olhar para cima, o deus não intimidou-se e abriu novamente os braços - os cabelos e a capa esvoaçando com ondulação de poeira ao seu redor.

- Podem vir. - disse ele.

A rajada solar - controlada por mais de 20 sentinelas em algum lugar não tão distante dali - desceu retumbante até o solo, atingindo o deus com toda a potência, além de causar estragos em seus arredores próximos.

                                                                                   ***

No Casarão, Hector limitava-se a andar vagarosamente de um lado para o outro na sala, próximo à uma das janelas, ora pondo juntando as mãos e pondo-as diante dos lábios, ora esfregando-as de leve.

Alexia e Údon permaneciam pacientes, sentados cada um em sofás diferentes. O arqueu estava reflexivo com os braços apoiados sobre os joelhos e inclinado à frente, enquanto que a vidente roía uma de suas unhas da mão esquerda sentada com as pernas cruzadas. Do lado de fora, não havia mais indícios da fumaça provinda da devastadora explosão em Razienbool.

O silêncio que reinava absoluto, enfim, quebrara-se. Hector reagiu com sobressalto ao toque do telefone, logo correndo para atender.

- Lester? - disse, crente que seria o amigo. - É você?

No banco, o caçador estrategista verificava após passar pelas faixas amarelas e dizer-se um agente federal, falando num telefone conectado à parede ao mesmo tempo em que observava o que havia sobrado das vítimas que sofreram a ira do poder de Yuga.

- Sim... Cara, você não vai acreditar.

- Por que não tenta? Estou quase ciente de que não há nada vindo de Yuga que possa me surpreender ainda hoje. - disse o caçador, ansiando pelas informações.

- Bem, segundo algumas testemunhas sobreviventes, era uma garota loira, pálida e aparentemente fantasiada. Por muita razões ela chamou bastante atenção. Só pra encurtar a história, um grande clarão de cegar os olhos foi visto, teve até gente que ficou literalmente cega só de encarar por muito tempo. Todo mundo aqui dentro virou sopa, se é que você me entende.

- Quer dizer então que... - Hector estreitou os olhos - ... os corpos das vítimas foram liquefeitos?

- Afirmativo, capitão. - confirmou Lester, fitando o chão coberto por uma gosma quente, meio rosada meio avermelhada com várias roupas grudadas no fluido que se misturava à pedaços de carne derretidos. - Melhor eu ir... Todo esse fedor, essa loucura toda tá me deixando enjoado, então vou desligar, já tô começando a sentir a bile subir pela garganta.

- OK. Volte o mais rápido que puder e ignore qualquer caçador que esteja planejando matar Rosie, nem tente convence-los de que estão enganados. - aconselhou Hector. - Está bem. Até. - desligou, logo fechando os olhos por um segundo pelo teor da notícia lhe deixar um gosto amargo na boca.

- Chacinas sem sentido também fazem parte de todo esse joguinho sádico? - questionou Alexia, inconformada. - Hector... - levantou-se depressa - ... agora que lembrei, temo pela vida de Eleonor, se Croydon for o próximo alvo...

- Fique calma, Alexia, o jeito é torcermos para que os lugares onde nossas famílias estão não sejam atingidos. - declarou o caçador, tentando aclama-la ao se aproximar dela - Uma cidade a cada meia hora. Ele não foi muito específico. Plantou essa dúvida em mim para testar meu desespero. Primeiro Raizenbool. Qual será a próxima? Londres, Birmingham, Liverpool, Cambridge... e se não for apenas restringido à Inglaterra?

- Meus tios vivem na Irlanda e meus pais em Cambridge... - disse a vidente, o ar aflitivo. Balançou a cabeça negativamente, atormentada, andando alguns passos - Ai, se tudo piorar, vou acabar enlouquecendo, esse monstro maldito tem que ser parado e responder por tudo o que fez seja lá em qual inferno ele tiver que ser jogado pra apodrecer. - falou, seu tom manifestando raiva.

- E ele vai pagar. - disse Hector, a expressão de decisão pulsando. Ele se voltou a um silencioso Údon, andando alguns passos na direção dele - Estou pronto. Não temos mais tempo a perder.

- Por um instante, pensei que só resolveria nos últimos minutos quando tudo estivesse à beira do colapso. - disse o arqueu levantando-se - Não vou demorar. - falou, dirigindo-se à Alexia - Realmente está preparado?

- Mais do que nunca. - respondeu o caçador, exalando firme seriedade. Tocou no ombro do arqueu.

Údon assentiu positivamente. Ambos teleportaram-se em nanosegundos, deixando a jovem vidente sozinha no aguardo pelo retorno de Lester.

Porém, ela lembrara-se do Dr. Lenox e suspirou com desânimo ao ouvi-lo reclamar do chuveiro por conta do fornecimento de água prejudicado pela explosão.

                                                                                         ***

Croydon

Cravada no solo, à frente da sua casa, estava uma tábua de madeira cuja parte superior tinha pregada uma placa branca que dizia "Aluga-se" em letras garrafais. O olhar emocional e prematuramente saudosista de Eleonor durou por uns bons minutos de pura reflexão sobre os momentos que vivenciou naquela residência com a jovem mulher cuja vida transformara de certa forma, ajudando-a a converter-se numa garota assustada demais com seu dom a uma mulher forte que se adaptou em pouco tempo e aceitou seu destino mesmo que houvesse um caminho seduzente e, em essência, sombrio. "Adeus, Alexia. Onde quer que esteja, espero que um dia encontre a paz que você não achou ao meu lado. Mas em compensação a fiz crescer e desejo, profundamente, que use essa evolução a seu favor contra qualquer dificuldade que surgir pelo caminho. A vida de um profeta é repleta de espinhos, abismos e pedras. E sei que vai conseguir dar a volta por cima quando estas horas difíceis chegarem, eu a encorajei a despertar esta força. Agora chegou a hora de seguir meu caminho.".

A bruxa usava um vestido preto com alças que ia até os joelhos, além do seu inseparável colar de esmeralda. Ao enxugar uma lágrima, respirou fundo e sorriu com orgulho. Pegara sua mala e virou-se em direção ao seu novo rumo onde sua esperançosamente almejava reencontrar Evelyn.

Para sua surpresa, havia um táxi estacionado numa rua quase deserta, em um ponto vizinho a um parque ecológico com árvores altas que faziam sombras convidativas. Apertou o passo, animada.

Ao nota-la, o motorista acenou com o polegar para cima confirmando a carona. A bruxa pediu licença para por a bagagem no porta-malas. Após feito, entrara e sentara-se no banco de trás, exibindo felicidade que mal aquietava. Notou um embrulho no banco ao lado do motorista, mas ignorou.

- Direto para a estação, por favor. - pediu ela, o tom suave.

Uma pequena demora de pouco mais de 5 segundos pareceu estranha. O motorista virou-se... porém, o que a bruxa viu pareceu esmagar seu entusiasmo. Foi como um soco no estômago que lhe privava de ar.

- Você... Não... Não pode ser... - disse Eleonor, a face sendo tomada pelo medo.

Uma de suas perseguidoras roubara o veículo, disfarçando-se com a roupa cinza e o quepe da mesma cor, sendo esta uma bela mulher ruiva de sorriso de batom vermelho infame e, em simultâneo, atraente. Eleonor, num ato desespero, tentou abrir uma das portas.

- Bem, é mesmo uma pena que não terá a chance de admitir a derrota. - provocou ela. Eleonor a olhara aturdida e boquiaberta - Nos vemos no inferno, vadia.- disse a bruxa, sacando um detonador conectado ao tal embrulho.

Apertou o botão e o carro explodira instantaneamente, a nuvem de fogo, misturada a uma fumaça negra, erguendo-se à altura das arvores.

                                                                                            ***

Palácio subterrâneo de Abamanu

O local onde foram parar era de um aspecto tenebrosamente cavernoso. Hector, ao lado de um temeroso Údon, esquadrinhou com os olhos as paredes rugosas, com algumas tochas que ofereciam uma aceitável iluminação, daquele que acreditava ser o possível confinamento do estimado e sofrido mago do tempo.

- Tem certeza de que é o lugar certo? - perguntou o caçador, ainda desconfiado.

- A mais absoluta certeza de todas. - disse Údon, logo visando uma sombra robusta que aproximava-se deles à poucos metros. - Talvez seja melhor você assumir daqui. Boa sorte, amigo.

Hector assentiu para o arqueu que desapareceu num piscar de olhos.

Como um espectro umbroso, Abamanu surgiu na direção do caçador e soltou um grunhido de espanto ao se deparar com ele, estacando no mesmo instante com a luz das tochas banhando-o.

Encarando-o com seriedade, Hector manteve-se numa postura corajosa.

- Dessa vez não estou com uma pedra mágica no meu corpo.

- É tranquilizante. - disse o deus lunar - Por um instante, me passou pela cabeça que ele estivesse tentando me enganar para me fazer cair numa armadilha do tipo que me deixasse sem saída a ponto de não ter escolha de, no fim das contas, enfrenta-lo com este corpo. Pela primeira vez em tempos, ele foi honesto comigo.

- Se cruzaram para um confronto? - quis saber o caçador, dando uns passos adiante.

- Eu cometi um erro. - disse Abamanu, soando lamentoso - Agora entendo o preço da confiança exacerbada. Me dói profundamente ter de admitir isso, mas tenho de fazê-lo. Não posso conseguir sem você. Eu preciso de você, Hector. - foi se aproximando - Não tenho mais nada a perder. Meu exército foi massacrado pelas chamas do ódio que aquele miserável sente por mim.

- E você acreditou que eu deveria me sensibilizar por seu luto? O seu orgulho ferido? Você realmente não me conhece. - retrucou Hector, severo. - Meu coração pode conseguir ser tão frio quanto o seu, mas jamais me entregaria em sacrifício. Não foi pra isso que vim. Minha barganha é bem diferente.

- Já posso adivinhar. - disse Abamanu, com cinismo - Tem a ver com um certo mortal com potencial divino desperdiçado... - apontou o polegar esquerdo para trás - ...que está logo ali atrás se martirizando em lamentos.

- Não seja ingênuo se pensa que vou dizer sim para deixa-lo entrar em troca da liberdade de Charlie. - declarou Hector, a expressão rígida - Preciso que o liberte pois precisamos do sangue dele para realizar a abertura do portal do Vazio e prendermos Yuga. É isso ou... - fez uma pausa, estreitando os olhos - ... podemos considerar destrancar sua cripta como medida desesperada.

- Já ressaltei no nosso último encontro que a cripta deve permanecer lacrada. - enfatizou Abamanu, o tom rascante e áspero. - Lembra-se do que falei a respeito de minha filha e de meu ato inconsequente? Eu não posso me dar ao luxo de persistir neste erro para rivalizar com Yuga. Além do mais, o poder está fixado á ela, o que torna impossível uma transferência ao antigo portador. Teria de prender nós dois caso saíssemos da linha.

"Na verdade, esse é o plano", pensou Hector, estabilizando a paciência.

- Então aceite libertar Charlie. Só precisamos de apenas uma arma divina para criar a chave. Údon fará o ritual.

- É claro que fará. Somente um arqueu idiota é capaz de abrir a pior de todas as prisões. - disse Abamanu, soando ríspido. - Aliás, eu percebi sua presença. Aquele covarde...

- Vai matar as saudades se entrarmos em um consenso. - garantiu Hector.

Um grito distante e agitado quebrou a atmosfera, ressoando pelo subterrâneo. A voz soou inconfundível aos ouvidos do caçador que alterou sua expressão.

- Hector! É você? Hector!!! Estou aqui!!!

- Charlie... - disse ele, em tom baixo, sendo atraído pelo chamado implorante. Correu na direção. O deus lunar teleportou-se para barrar sua passagem em clara demonstração de suspeita em relação ao plano. - Saia do meu caminho, eu vou vê-lo!

- Determino que só o verá quando eu decidir se aceito ou não ser parte disso.

- O tempo está se esgotando! - disse Hector, exaltando-se - Em um prazo de 5 horas o mundo será vítima de um fenômeno que pode destruí-lo completamente. É o ponto de partida da sua expansão imperial sendo perdido por causa da sua arrogância! Disse à Yuga que você é o menor dos nossos problemas e ele me testou... até o baixíssimo golpe de mexer com meus sentimentos sobre Rosie.

- Sou eu quem digo agora:- disse, inclinando-se para o caçador - Eu deveria me importar com sua perda? - fez uma pausa, fitando-o - Somos mais parecidos do que imagina.

- Acho que tem razão. - respondeu Hector, concordante. - Mas quero fazer valer nossas diferenças. Você pelo império e eu por Rosie. É o que acontece quando há inimigos em comum.

Um breve momento de silêncio pareceu durar minutos. Era de se esperar um certo azedume por parte de Abamanu em ser obrigado a unir forças com aquele que rejeitou seu destino.

O deus lunar estalou os dedos, logo destrancando a cela na qual Charlie estava confinado. O mago do tempo franziu o cenho, levantando-se do chão totalmente confuso. Viu uma sombra familiar se avizinhar. "Não posso acreditar... Deve ser um truque, algum tipo de ilusão... Hector nem deve estar...". Seu ritmo cardíaco acelerou ao divisar a forma do acompanhante de Abamanu, quase ignorando a presença do deus lunar para focar sua atenção no visitante.

- Isso é mesmo real? - se perguntou o jovem, seus verdes olhos realçados.

Hector finalmente aparecera à luz das tochas esboçando um sorriso fechado e amigável.

- Hector... - o mago do tempo deixou formar seu sorriso de alegria para depois correr até o caçador como se mal controlasse as pernas. Um forte, longo e apertado abraço realizou-se. Abamanu assistia ao reencontro com uma expressão dura e indiferente.

- Finalmente você voltará para casa, para junto de nós. - disse o caçador, emocionado. - Alexia o espera ansiosa.

- Eu sei. - disse Charlie, derramando uma lágrima em sua expressão comovida e ao mesmo tempo feliz. - Espero por isso há dois anos. - relanceou Abamanu, ficando sério ao vê-lo com o escudo prateado - Agora me diz como isso foi possível.

- Temos um plano formidável para deter Yuga. - informou Hector para acalma-lo - Abamanu nos dará sua espada como a arma que falta para abrirmos o portal.

- Espere um minuto. - disse o jovem, alarmando-se de repente - Pretendem jogar Yuga no Vazio com Rosie ainda possuída? Me diga que esse não é o único jeito, por favor...

- Não, é claro que não faremos isso, de forma alguma. - negou Hector, tocando-o no ombro - Felizmente temos alguém especialista em desfazer possessões.

- O medíocre traidor. - disse Abamanu, com amargor.

- O seu escriba. - disse Charlie. - Como você especulou, realmente ele se aliou à Legião.

- Podemos ir agora. - disse Hector, preparado, assentindo positivamente ao deus lunar. - Já detectou a energia do sigilo de Onúris?

- Como uma agulha no palheiro. - disse Abamanu, tocando em ambos e teleportando-os diretamente à uma gruta praticamente fechada. A parte de cima possuía aberturas finas por onde transpassavam-se fachos de luz solar que penetravam no solo arenoso e "paredes" com rochas cinzentas e vigorosas parecendo toscamente empilhadas.

Charlie sentiu um incômodo que fez florescer suspeitas em sua mente.

- Estranho... - disse, ao explorar a gruta. Pegou uma pedra aleatória e a jogou para cima. A mesma pairou devagar no ar durante a descida até certa altura cair mais rápido no chão. Sua expressão de desconfiança reforçou-se - A gravidade parece instável... - respirou fundo - ... o ar está rarefeito... - virou-se para Hector e Abamanu - O que está acontecendo? Sei que tem relação com Yuga, mas preciso saber. O que está causando esses efeitos?

- Yuga criou uma espécie de estrela parecida com o sol que vai crescer de tamanho à medida que absorver matéria. - disse Hector, sem rodeios.

O mago do tempo fechou os olhos em nervosismo.

- Não pode ser...

- Agora Údon precisa aparecer e nos dar boas novas. - ansiou Hector, a impaciência dominando-o.

- Estou bem aqui. - disse o arqueu, surgindo por detrás de Charlie, assustando-o um pouco.

Abamanu realçou sua expressão ansiosa e presunçosa em simultâneo ao rever, após eras, o seu antigo confidente com o qual reservou segredos valiosos. A emoção do reencontro manifestou-se na forma de puro rancor alimentado pela dor de uma traição imperdoável. Um entreolhar tenso durou uns segundos até que o deus resolveu falar com um sarcástico sorriso:

- Há quanto tempo... parceiro.

                                                                                            ***

Área florestal de Raizenbool 

A volta de Lester aliviou um pouco as palpitações no coração de Alexia. Andando pela sala, o caçador franziu o cenho ao estranhar a ausência de Hector.

- Ué, cadê o Hector e o barba cinza?

- Já faz mais de meia hora que foram ao encontro de Abamanu. - disse a vidente, se levantando do sofá. - Údon deixou Hector assumir o controle da situação por acreditar que sua presença só deixaria Abamanu zangado e diminuiria as chances do plano dar certo. Então ele voltou para buscar um objeto que guardou segredo sobre o que era. - fez uma pausa, estreitando os olhos para Lester meio suspeitosamente - Tinha dito que ficou xeretando o quarto desocupado. Fui olhar depois que ele saiu, mas está trancado. Quando você entrou, percebeu algo além de papéis colados na parede?

- Olha, não faço a menor ideia do que aquele vira-casaca ficou tramando dias desses. - declarou Lester, dando de ombros - Mas vai saber né? De repente, eu teria virado pó se tocasse na porta com um daqueles desenhos mágicos gravado, o que pode até explicar ele não ter avisado pra não criar suspeitas. Sorte minha que a porta estava escancarada. Ele não deu nenhuma mísera dica?

- Não sei se posso considerar "a arma secreta que deixará os dois de castigo" uma dica satisfatória. - respondeu Alexia, não ficando convencida com o que o arqueu dissera antes de sair às pressas.

Áker surgira de repente, para a total surpresa de ambos.

- Como estão indo as coisas? - perguntou o arauto, aproximando-se.

- Você não devia estar em um lugar seguro agora? - indagou Lester, aparentando não ter entendido o compartilhamento de ocultação sensorial.

- Mas aqui é um lugar seguro. - retrucou o arauto, franzindo o cenho - Aliás, todos os lugares onde vou são perfeitamente seguros. Para Yuga é como se eu tivesse desaparecido, mas ele com certeza pouco se importa se saio vivo ou morto disso.

- Então você realmente ficou fora do encalço de qualquer um? Não pode ser rastreado? - perguntou Lester, avidamente curioso.

- Absolutamente por ninguém. - respondeu Áker. - É exatamente o contrário. Posso andar livre por qualquer lugar em vez de escondido e temeroso.

O Dr. Lenox aparecera no cômodo vindo do corredor dos quartos, logo surpreendendo-se com Áker.

- Não me disseram que tinham um mordomo.

Alexia se pusera entre os dois, apresentando-os.

- Ahn... Áker, Dr. Lenox. Dr. Lenox, Áker. - disse ele, sorrindo.

- Um nome bastante peculiar, devo admitir. - afirmou o cientista, estendendo a mão ao arauto. - É uma prazer.

- Ouvi muito falar do senhor. - disse Áker, apertando a mão dele. - Inclusive do seu sequestro. Sinto muito que Abamanu tenha lhe obrigado a agir em favor dos seus interesses malignos.

Uma expressão de confusão se desenhou na face de Lenox.

- O... O quê?! Ma-Mas... Mas como você pode saber disso? Presumo que devia ser confidencial...

A fim de pôr os panos quentes na situação, Alexia e Lester entreolharam-se nervosos e um deles precisava intervir.

- Err... - disse Lester, intrometendo-se - É que nosso mordomo possui fontes secretas... ahn... através dos sonhos, ele é tipo um médium...

- O quê? Não entendo... - dizia Lenox, de repente, em seguida, sendo assaltado por uma lancinante dor de cabeça que preocupou os três de imediato.

- Doutor, o que foi? - perguntou Alexia, querendo ajuda-lo.

- Provavelmente é Údon. - especulou Áker, parecendo indiferente ao sofrimento do cientista por confiar na ideia quase certamente absoluta.

- Que esquisito. O barba cinza sofre com o mesmo lance psíquico que ele também fez na Rosie. - disse Lester, apresentando dúvida.

- Aquilo foi por causa de Yuga e sua atual condição que lhe dá uma sobressaída. - explicou o arauto, assistindo o homem gemer em dor enquanto a vidente tentava apoia-lo. - Ligações psíquicas podem variar de acordo com o que o emissor tem a mostrar e os efeitos também variam de receptor para receptor. No meu caso, a dor foi ausente.

- Vamos, doutor, me diga... - Alexia insistia, tocando-o com preocupação - O que o senhor viu?

Um tanto grogue, Lenox fez um esforço para se reorientar a fim de organizar as ideias repassadas para melhor explicação das mesmas.

- Eu... Eu realmente não faço ideia de por onde começar. Isso é bárbaro. - disse, logo olhando para a profetisa - Imagens de uma pequena esfera de fogo bem perto do planeta foram enviadas à minha mente... como um filme mudo e acelerado... Esse poder tem uma força magnética equivalente a 1 milhão de imãs juntos... cada vez que se alimenta de uma determinada quantidade de matéria sua massa triplica. Eu não posso acreditar! Como isso aconteceu? - seu semblante foi assumido pelo desespero enquanto recuava alguns passos, suas pupilas trêmulas fitando os três. - Eu quero que me digam a verdade! - apontou para Áker - Ele é mais do que um mordomo! O mais próximo do sobrenatural que cheguei foi ter conhecido um monstro de armadura que se dizia deus. E de repente, sou bombardeado psicologicamente com imagens de uma catástrofe iminente!

- Doutor, acalme-se. - pediu Alexia, erguendo de leve uma mão. - Só nos diga o que pode acontecer se essa coisa ficar ainda maior.

- O que pode acontecer!? - disse ele, logo dando uma risadinha irônica, depois recompondo a exasperação - Sendo direto e realista, toda a massa do planeta será consumida por esse gigante vermelho que, por enquanto, ainda é um bebê. Seja lá o que tenha criado essa supernova, chamemos assim, simplesmente tem capacidade suficiente para fazer o planeta retroceder exatos 4,5 bilhões de anos no tempo. Nas aulas de ciência, vocês lembram de ter aprendido o que era a Terra nesse período?

- Acho que na época isso ainda não tinha sido descoberto... - disse Alexia, meio embaraçada.

- Ah, tem razão. - aquiesceu Lenox, suspirando - Fiquei tão perturbado com isso que esqueci que não faz mais do que 4 anos que novas teorias sobre a origem da Terra foram lançadas. Mas respondendo a pergunta: Uma bola de fogo em fusão. Mas em vez de transformar, irá destruir. E não para por aí. O magnetismo pode alcançar um pico que coloca em risco todo o sistema solar. - tirara os óculos imerso em aflição e passara a mão no rosto. - Não temos tecnologia para enfrentar uma coisa dessas. Seremos extintos.

- Se depender de Hector, não. - disse Áker, sucinto.

- Então o destino da humanidade está nas mãos de um homem que vive numa casa no meio da floresta!? - disparou Lenox, incrédulo.

- Olha, é muita informação pro doutor processar... - disse Lester, intervindo na conversa - ... seria melhor a gente se concentrar em esperar por notícias, boas ou ruins. OK? Não vamos nos precipitar.

- O Sr. Cooper tem toda a razão. - disse Áker, concordante. Virou-se para Lenox - A propósito, essa mensagem que foi enviada ao senhor... incluía uma localização específica?

O cientista, atordoado, permaneceu inerte e pensativo por vários segundos. Engoliu a saliva, mal conseguindo se adaptar à ocasião ímpar.

- Eu vi uma caverna. Parecia ser uma. E uma placa com a palavra "Kéup".

- A gruta da região de Kéup. - disse Lester, estalando os dedos. - É lá que eles estão. - se encaminhou à porta a passos largos e rápidos.

- Espere, Lester, aonde você vai? - perguntou Áker, o tom reprovativo.

- Não é óbvio? - indagou ele, franzindo o cenho com um sorriso presunçoso, puxando a maçaneta - Você acha que vou ficar aqui esperando o telefone tocar quando estou há poucos quilômetros de ver um espetáculo sobrenatural? Nem que a vaca tussa. - abrira a porta e saiu apressado.

Áker demonstrou preocupação ao se virar para Alexia.

- Espero que ele esteja se referindo ao exorcismo.

                                                                                      ***

Região montanhosa de Kéup

Três horas e meia já haviam se passado.

Charlie matinha-se paciente e encostado numa rocha, sentindo um leve tremor de terra sob seus pés e vendo a luz do sol que passava pelas frestas à alguns metros acima, gradualmente, adquirir uma tonalidade alaranjada que o deixava em estado de tensão no nível máximo.

Abamanu e Údon esforçavam-se para ignorar um ao outro e Hector parecia andar em círculos sentindo o suor frio das mãos intensificar-se a cada minuto... a cada grão de areia que caía.

- Údon, já não aguento mais. - disse o caçador, nervoso - Só resta apenas uma hora e meia! Onde esse miserável está? Será que por acaso ele também descobriu uma maneira de ocultar seus rastros?

- Estou tentando com o que posso, rapaz. - disse o arqueu com os olhos fechados em sua procura extra-sensorial por Yuga - A todo momento tenho a ligeira impressão de senti-lo fugir de mim. A coisa não anda nada bem lá fora.

- O quê? - quis saber Charlie. Ouviu-se um estrondo bastante próximo só para alimentar a apreensão.

- Quero dizer... a tal estrela devoradora está do tamanho de algum monumento histórico deste mundo. Talvez da pirâmide de Gizé, suponho.

- Uma pirâmide. - disse Hector, passando a mão pela boca - Nada sugestivo.

- Está mais preocupado com uma bola de fogo que pode ser facilmente destruída do que continuar persistindo em segui-lo até fazê-lo vir. - reclamou Abamanu, de braços cruzados, olhando com reprovação.

- Sua queixa não vai me estimular a ir além dos meus limites. - retrucou Údon. - Ele só está jogando conosco. Nos fazendo perder tempo para achar que somos dependentes dele.

Subitamente, o procurado chegara, pegando a todos desprevenidos, posicionado à alguns metros de distância com as mãos na cintura. Todos viraram suas atenções, sobretudo Údon que abriu os olhos no exato momento. Abamanu cerrara os dois punhos ao ver a face do inimigo novamente, buscando algum auto-controle àquela altura onde era tudo ou nada.

- Isso é algum tipo de pegadinha? - indagou Yuga, estranhando. Deu de ombros depois - De qualquer forma, foi divertido deixa-los ansiosos feito donzelas esperando serem salvas.

Údon ergueu sua mão direita e estalou os dedos, fitando o deus solar com um semblante sério.

O sigilo de Onúris acendeu-se instantaneamente sob Yuga.

- Mais alinhado do que última vez. - disse o deus, debochante - Só que agora não passa de um simples desenho. - falou, estalando os dedos em seguida e apagando completa e facilmente o sigilo.

Boquiabertos, Údon, Hector e Charlie se entreolharam terrificados.

Abamanu era apenas desaprovação em sua postura.

- Idiotas. Realmente esperavam que esse sigilo funcionaria dentro do nível que ele alcançou?! Todas as soluções que tinham em mãos antes dele ser trancado numa cela tornaram-se obsoletas. Que dirá o exorcismo!

- Então é isso?! Queriam tentar de novo? Insistir no mesmo erro? - perguntou Yuga, andando.

- Teria funcionado naquela ocasião - disse Hector -, claro, se não tivesse ameaçado a vida de Alexia forçando Údon a abandonar o plano.

Charlie olhou um tanto tímido para Údon, como se pedisse algo.

- A propósito, obrigado. - disse o jovem, baixinho.

- Pelo quê? - indagou Údon.

- Por ter protegido Alexia. - respondeu ele. - Obrigado.

Meio sem jeito, o arqueu acenou com a cabeça, voltando sua atenção à Yuga.

- Hector, Hector... - dizia o deus solar ao caçador - Ou você é teimoso por natureza ou não é temente o bastante à morte. Fui claro nos meus termos e você novamente me decepciona. Vim aqui na esperança de ver esta maldita quimera sem estar nesse saco de carne podre e essa peça de sucata que ela chama de armadura.

- Permito-lhe a testar a resistência dela se caso tivermos que lutar assim mesmo. - propôs Abamanu, altivo. - Não faz ideia do quanto estou me segurando...

- Viram só? Ele deseja a mesma coisa. - disse Yuga, pretensioso, levantando uma sobrancelha - Podem dispensar o mago do tempo - relanceou Charlie com uma piscadela -, porque somente Hector é quem será realmente útil.

- Esse acordo está cancelado e ponto final. - disparou Hector, ousado. - Se serei útil para algo... será para assistir você ser derrotado humilhantemente. Ter Rosie de volta e salvar o mundo são minhas únicas metas e não servir de armadura para nenhum deus ou qualquer outra porcaria sobrenatural que exista. Eu faço o meu destino!

Cinicamente, Yuga estava sorrindo ao ver o manifesto rebelde do caçador.

- Admiro sua perseverança, mortal. Querer salvar um mundo que não pode ser salvo... Acho que detectei mais uma diferença entre deuses e mortais. Alguns desistem fácil... - olhou para Abamanu que rosnou como resposta -... já os mortais, aaahh... a maioria deles nunca se dá por vencido, a começar por acordar todas as manhãs e fazerem suas obrigações monótonas porque sem isso não existe propósito. Sem propósito não há vida. E sem vida este mundo torna-se bem chato. Mas as circunstâncias demandam que ele seja destruído.

Charlie escutou um barulho provindo de trás , parecido com passos de som baixo. Virou o rosto disfarçadamente, mas acabou se atentando ao notar a forma humana. Bastante familiar, por sinal.

- Perdi alguma coisa? - perguntou Lester, falando baixo enquanto chegava perto. Olhou à sua esquerda, parecendo mal acreditar. - Peraí... É você mesmo ou algum fantasma?

- Sabia que me perguntei o mesmo quando vi Hector? - disse Charlie, sorrindo de canto.

- Nossa... - disse o caçador, sorrindo e olhando-o dos pés a cabeça. - Pior que nem posso te abraçar agora... - olhou de soslaio, alterando a expressão.

- Tem razão. É uma hora crítica. - aquiesceu Charlie. - Melhor ter cuidado e não dar com a língua nos dentes.

- Tá de brincadeira né? Minha boca é um túmulo. - disse o caçador, ficando mais perto do mago do tempo como se precisasse manter-se ou sentir-se isolado. - Aliás, é bom te ver de novo.

- Igualmente. - respondeu Charlie, atento ao próximo movimento de Údon.

Abamanu se mostrou favorável ao acordo entre Hector e Yuga, para o desprazer do caçador.

- Sem nenhum meio de neutraliza-lo para o exorcismo, sobra a única opção viável. - disse o deus lunar, fitando o seu real pupilo com presunção.

- Não mesmo. - rebateu Hector, opondo-se. - Ainda há um jeito.

- Que seria...? - indagou Yuga, severo no tom.

- Este aqui. - disse Údon, novamente estalando os dedos. Um sigilo circular apareceu em volta. Sigilo este capaz de imobiliza-lo e utilizado por Áker no Palácio Subterrâneo no desastroso encontro, outrora com pacificidade, entre o deus e Rosie. A artimanha o fez sentir a garganta secar e o sangue ferver em ebulição. Desconcertado, não sabia se encarava um relativamente despreocupado Hector ou um implicante Yuga.

- Espere... eu devo estar enganado. - disse Abamanu, tentando acreditar numa hipótese alternativa - O sigilo inibidor é para garantir que vou prestar bom comportamento enquanto possuo Hector. - fez uma pausa, suando em profusão - Não é? - indagou, elevando a voz raivosa. - Digam que sim, seus vermes!

Hector se limitou a acenar lenta e negativamente com a cabeça.

- Inacreditável... - o ar de desapontamento no deus lunar era nítido - ... Eu seria a única forma de fazer Yuga se colocar no seu devido lugar quando não tivessem mais como para-lo. Eu dei a minha espada... Me doei a esse plano com minha generosidade... E é assim que você me retribui?! - pausou, ofegando com a boca aberta - Sabe de uma coisa, Hector? Eu devia ter matado você nas Ruínas Cinzas. Cruel e dolorosamente. Todos vocês... esmagados e caídos!

- Não tiro sua razão. - disse Hector, firme - É o que você é. Força-lo a trabalhar conosco pedindo por boa vontade foi até demais, e isso o irrita pois vai contra a sua natureza. Teve três chances de me matar e desperdiçou covardemente. Agora eu tenho só uma... para derrota-lo de vez e não vou perder.

Yuga dava constantes risadinhas infames ao observar a situação do rival.

- Nunca pensei que me deleitaria tanto em vê-lo preso numa armadilha tão patética.

- Cale a boca! - revidou Abamanu, enfurecido - Onde está a sua tão sonhada revanche contra mim? Hein? Ah sim... ela está completamente arruinando diante dos seus olhos! - vociferou, algumas gotas de saliva respigando.

- Acho que revi minhas prioridades. - determinou Yuga, olhando seus oponentes. - Vou destruir e recriar este universo de acordo com minhas regras.

- Ouviram? É isso que vão deixar acontecer? É isso que vão permitir? - questionava Abamanu, no ápice do estresse. - Esqueceram da parte importante do manual? Mil anos! Você costumava ser mais inteligente, Hector. E você Údon... consegue fazer melhor do que isso. O que está acontecendo com vocês? A menos que tenham... um ás debaixo da manga. Fizeram isso para impedir nosso confronto. Vão me condenar ao vácuo infinito, mas Yuga sofrerá o exorcismo depois... - desviou o olhar dilatado para o deus solar. - De alguma forma, podem drenar a energia.

Údon andara em direção a um pequeno conjunto de rochas pequenas largadas.

- Se enganou mais uma vez. - disse o arqueu, misterioso - No entanto... existe um ás. - agachou-se e fez surgir um objeto metálico que Lester e Charlie, de início, estranharam.

O arqueu arremessara-o contra ambos os deuses com rapidez.

De repente, Abamanu viu seu braço esquerdo ser prendido por uma espécie de algema adequada para o seu tamanho ligada por um fio com outra menor que prendera Yuga.

- Mas o que significa isso? - perguntou Yuga, notando sigilos inéditos entalhados nas algemas especiais. - Nunca vi... Nunca vi esses sigilos antes! O que você fez, arqueu?

- Menos de cinco dias foram necessários para testar inúmeras combinações de sigilos inibidores. Eis o resultado. Me sinto um Da Vinci olhando satisfeito para sua Monalisa terminada. - disse Údon, logo em seguida desfazendo o véu que tornava as armas divinas invisíveis.

- Então aquele monte de papel rabiscado foi para isso?! - disse Lester, não contendo a admiração. - Uou! Agora senti firmeza! - empolgou-se, esfregando as mãos ao ver os dois encurralados. - Você definitivamente conseguiu meu respeito infinito. Vocês se ferraram, babacas.

- Obrigado. - agradeceu Údon, feliz pelo caçador reconhecer seu valor.

- Charlie. - chamou Hector, sacando uma faca e jogando-a para o mago do tempo. - Faça sua parte.

- Com todo prazer. - disse Charlie, pegando a faca e se encaminhando até as sete armas enquanto realizava um corte não muito profundo na palma direita. Fechou o punho e deixou as gotículas de sangue caírem sobre os artefatos, banhando-as com o sangue puro de alguém genuinamente conectado ao poder de um deus. "Ainda que distante e prestes a ser punido por ter me ensinado... farei isto em retribuição... em gratidão por todo o conhecimento repassado sabiamente. Obrigado, meu eterno mestre.".

- Não dou garantia de que isso vá funcionar. - disse Abamanu, provocador. - Charlie me disse certas palavras... que talvez possam murchar suas esperanças.

- Não diga asneiras, sua aberração. - disse Yuga, fitando o grupo com extremo ódio. - O plano foi pegar a nós dois no mesmo momento esse tempo todo! Pagarão caro... muito caro por afrontarem a um deus absoluto como eu.

- Mesmo vulnerável você continua se achando. Que desprezível. - retrucou Abamanu, enojado.

Hector mostrou-se interessado em saber do que Charlie disse que o deus fez parecer tão sério para arruinar o plano.

- O que Charlie disse à você?

- Seu potencial de mago do tempo supostamente reduziu com o tempo de inatividade.

- Como é que é? Isso é verdade? - quis saber Lester, alarmado.

Após terminar de enrolar um pano para estancar o corte, Charlie virou-se para andar na direção de Abamanu esbanjando uma confiança surpreendente.

- Quer a verdade? Eu menti. - disparou ele, sem medo, ficando próximo demais do deus. Deu um sorriso vitorioso - E mal podia esperar só para ter que revelar isso bem na sua cara.

As presas do deus lunar ficaram à mostra enquanto produzia um rosnado furioso.

- Ora... seu...

- O gosto da liberdade nem se compara a satisfação em ver você assim. - disse Charlie, estreitando os olhos. - Chega de ficar preso à correntes. Vou seguir em frente, tentando recuperar o tempo que você me fez perder, seu monstro assassino.

Uma curiosa risadinha zombeteira adveio de Abamanu.

- O que acha tão engraçado nestas condições? - perguntou Charlie, sério. - Você perdeu.

- Ah... com certeza você recuperará o tempo perdido. - disse o deus, rapidamente levantando a mão direita e a colocando sobre a cabeça do jovem que exprimiu um gemido doloroso ao cerrar os dentes e apertar os olhos pelo efeito incutido contra ele.

- Charlie! - disse Hector, hesitando se aproximar. - O que está fazendo com ele? - perguntou, ríspido.

O mago do tempo caíra desacordado, sendo, em seguida, apoiado por Lester e Hector que deu olhadelas de repúdio à Abamanu.

- O que você fez, seu desgraçado? - perguntou Lester, colocando o braço esquerdo dele sobre sua nuca ao levanta-lo.

- Eu lhe dei uma boa razão para correr atrás do prejuízo. - disse Abamanu - Boa parte de suas lembranças como mago do tempo foram todas... apagadas. - deu um riso nervoso devido ao efeito da algema - Eu nunca deixo pontos sem nó, que fique registrado.

- Não pode ser... - disse Hector, incrédulo. - Não pode ser verdade!

- Você confirmará quando ele despertar. Mollock será um grande estorvo sem a conveniente habilidade do mago do tempo em usar os tais selos.

- Tenho que admitir - disse Yuga, respirando com dificuldade -, isso foi estupendo. Perspicaz, aliás. Eu teria feito o mesmo.

- Isso foi um elogio? - indagou Abamanu, confuso - É difícil saber quando está sendo irônico ou não.

- Não, você fez exatamente o movimento certo, tem minhas congratulações, embora isso não mude nada entre nós.

- Nunca irá mudar. - salientou Abamanu, o tom revoltado.

Údon se posicionou diante das armas com as mãos abertas direcionadas à elas, recitando o dialeto divino a ativação para realizar a criação da chave de abertura. Segundos depois, os artefatos, que tremiam e pareciam ficarem mais próximos, refulgiram uma luz branca e intensificante até suas formas não ficarem visíveis. A claridade ganhou destaque ao tornar-se ofuscante, fazendo os dois caçadores quase protegerem os olhos com os braços.

- Uma guerra sem vencedores. - disse Yuga, lamentando - Iremos juntos remoer nossos fracassos na escuridão profunda. - olhou-o de esguelha - Ter trazido nossa divergência à este mundo foi o seu pior erro.

- Engana-se. - retrucou Abamanu - Confiar em você foi meu pior erro. Portanto, nem ouse me pedir para agradece-lo. Já não reconheço mais o aliado que jurou contribuição eterna em prol da sobrevivência do meu império. Você foi a minha maior decepção e o meu pior castigo. - declarou, encarando fervoroso.

A luminosidade diminuíra rápido, desaparecendo até mostrar um objeto preto do tamanho de um cubo mágico. Possuía formato losangular e de certa finura. O segundo passo concluiu-se com êxito. Hector e Lester tentavam fazer Charlie reaver a consciência, mas o jovem parecia imerso num sono profundo. Údon manipulava telecineticamente a chave com as mãos, andando em direção à uma das rochas que estava à frente dos dois sentenciados.

- Ouça, arqueu. - disse Yuga, o tom provocativo - Não faz ideia do pecado que está cometendo. Subtende-se que tem noção do extremo risco que é julgar um deus sem a autorização do Conselho ou o conhecimento dele. Ainda mais sendo dois. Somente o Conselho Geral tem essa liberdade. Será perseguido, caçado até os confins do universo por sua inconsequência. Espero que quando o capturarem, o torturem sem misericórdia em uma morte lenta!

Ignorando todas as palavras do deus solar, Údon fizera a chave atrair-se à rocha na mesma velocidade do magnetismo de polos opostos. Hector foi o único a se atentar ao aviso aparentemente grave e uma ponta de preocupação o deixou em aflição contínua.

Enquanto o arqueu recitava a abertura, a chave produziu linhas retas de luz meio alaranjada partindo das quatro pontas e ligando-se ao minúsculo círculo. Este, por sinal, foi crescendo de tamanho conforme a chave dividia-se em quatro partes em afastamento, criando um buraco na rocha que aumentava progressivamente até atingir o tamanho correto e carregava uma intensa corrente de vento que parecia querer sugar o que estivesse por perto.

Yuga parecia querer resistir ao imenso poder de arranco do portal - os cabelos loiros pertencentes a Rosie esvoaçando com força, ora uns fios batendo no rosto, ora pelos lados. Os sigilos nas algemas brilhavam em amarelo a cada vez que o anseio por libertação os dominava.

Com a mão aberta e o braço esticado para os julgados, Údon proferia o recitamento do exorcismo pois a combinação permitia realizar um duplo numa vez só, algo que certamente seria inviável com um sigilo de Onúris para cada um.

- Acham mesmo que conseguirão? - questionou Yuga, resistindo com mais afinco - Minha estrela vai se tornar auto-suficiente assim que desfeita a ligação! E seu poder será aumentado em uma força que nem podem imaginar! Não existe nada ao alcance de vocês para destruí-la, não há vencedores!

- Acharemos um jeito. Sempre há uma saída. - afirmou Hector, a expressão de determinação.

Por fim, Údon terminara de recitar o exorcismo.

- Ainda vamos nos encontrar, Hector. E quando esse dia chegar... não vou poupa-lo! - disse Abamanu,  seus coléricos olhos lupinos fulminando o caçador, logo em seguida de seus olhos e boca irradiando uma luz azulada. - Nããããoooo!!! - Uma sombra espectral e fantasmagórica se projetou para fora do corpo de Mollock e tragada direto ao abismo. Em Yuga, o mesmo resultado. Os olhos e boca brilharam refulgentes e um "fantasma" iluminado similar a imagem da estátua no museu saindo do corpo de Rosie e absorvido direto ao portal.

Ambos os corpos tombaram ao chão em ritmo quase lento e ao mesmo tempo.

Hector correu para se pôr diante do portal, estendendo o braço direito com a mão aberta após Údon lhe dizer como se fecha o portal. As quatro partes da chave retraíam-se em velocidade até o fechamento completo para depois ir à Hector como se ele a atraísse diretamente à sua mão .

O caçador estudou o objeto por breve, passando os dedos com suavidade. "Temos uma dívida de gratidão com você Údon. Nem sei o que seria de nós sem você do lado com toda essa sabedoria".

- Caramba, isso foi super tenso. - opinou Lester, quase sem fôlego, literalmente - Ué... - expressou desconforto na face - Sou só eu... ou mais alguém aqui tá com uma falta de ar desgraçada?

- É a estrela. - disse Charlie, para o alívio de todos com seu despertar.

- Charlie. - disse Hector indo até ele, agachando-se. - Como se sente?

- Estou bem, obrigado. - respondeu, levantando-se esforçadamente. - Mas a descarga que Abamanu lançou em mim foi como... se tivesse sugado mais do que minhas memórias, minha disposição também. Por isso me sinto um tanto fraco.

- Pode deixar, eu te seguro. - se prestou Lester, assentindo. - Então é isso? A supernova também absorve o oxigênio, a atmosfera?

- Supernova? - indagou Hector, confuso.

- Ahn... Foi esse o nome que o Dr. Lenox deu pra essa coisa.

- Fiz um contato psíquico para que pudesse usar seu conhecimento científico e explicar à Alexia e Lester. - revelou Údon, guardando a chave losangular no bolso. Andou até o trio - Muito bem, pessoal. Devido à alta demanda de energia que o exorcismo somado à abertura do Vazio consumiram, fico impossibilitado de me teleportar por pelo menos 40 minutos.

- Isso tudo?! - queixou-se Lester. - Então vamos ficar lá em cima assistindo o mundo acabar? Por que o ave de rapina não pode ser achado e você não pode usar seus poderes...

- Ele vai aparecer. - disse Hector, confiante. - É melhor vocês dois irem na frente. - olhou depressa para o corpo de Rosie, cujos cabelos voltaram a coloração e textura normais.

- Então vai lá caçador, beije sua branca de neve. - brincou Lester, levando um enfraquecido Charlie para a superfície. Hector soltou um riso rápido e fraco, logo desviando um olhar meio desconsolado à sua protegida. Encaminhou-se até ela em passos vagarosos enquanto poeira caía sobre ele por conta do cataclisma que estava ocorrendo do lado de fora.

Entretanto, seu sangue gelou, sua espinha ouriçou... ao observar cada parte do corpo da jovem ser convertida em cinzas puras, sobrando apenas as vestes. Uma cremação instantânea e indolor.

- Não... - disse ele, temorizado, a pupila dilatada. - Isso... - uma lágrima não foi contida - Não pode estar acontecendo... a... a... - a voz parecia falhar tamanha comoção.

As cinzas foram sorvidas em direção a um saco marrom no chão. Pertencido a ninguém menos que Údon. O caçador o olhou com certa desilusão. O arqueu amarrou o saco com um nó apertado e o entregou ao caçador sem nenhum vestígio de surpresa ou emoção na face.

- Não entendo... Você sabia disso o tempo todo? - perguntou Hector. - Se sim... Por que escondeu? Justo de mim. - a demora do arqueu em explicar o enfezou - Responde, Údon! - disse ele, o tom rude e tocando no ombro do arqueu.

- Esse é o destino absoluto da fênix apoteótica, rapaz. O mito que vocês mortais conhecem possuía um fundo de verdade. Toda lenda talvez possua. Este detalhe é real. É a consequência final. O ciclo da fênix é inevitável. Das próprias cinzas ela se foi. E delas vai ressurgir. Quando a possessão se desfez, foi como se a energia desbloqueasse esse efeito pois a ligação a superaqueceu. Agora ela quer um descanso. Um longo descanso. - tocou no ombro com amistosidade - Eu sinto muito, Hector. Sinto muito mesmo. Não contei para não deixa-lo mais perturbado do que estava.

- Em quanto tempo... isso acaba? - perguntou Hector, derramando mais uma lágrima ao segurar o saco.

- O mesmo que leva para abrir a porta do Vazio. - disse Údon, sucinto. - Mil anos.

O arqueu virara as costas para sair do lado oposto ao qual Lester e Charlie foram.

Hector, amargando numa torrente de sofreguidão, agarrou o saco em seu peito como se estivesse predestinado a proteger um objeto valiosamente único. "Não precisa ser forte o tempo todo" As últimas palavras que ouviu dos lábios da bela jovem ecoaram na sua mente afundada em tristeza.

Assim que se virou para sair, o rosto encharcado em lágrimas, notou uma ausência estranha.

A armadura de Abamanu encontrava-se vazia e largada. Viam-se rastros sinuosos de sangue. "Ele escapou... Maldito Mollock. Ainda o pegaremos. E vou dar seguimento à minha vingança por Josh", pensou, a face séria e irritada ao vasculhar pela caverna algum sinal de que ele estivesse por perto.

                                                                                      ***

Enfrentando uma ventania de caráter brutal, Lester e Charlie saíam para fora da gruta com dificuldades. Pedaços de grama erguiam-se junto às pedras de todos os tamanhos, tudo sendo arrastado para a mesma direção. O caçador arriscou olhar para cima e sentiu os pelos eriçarem - alguns fios do seu cabelo preto curto agitavam-se com o vento em escala anormal.

- Meu deus. - disse ele, boquiaberto e estupefato ao fitar a supernova, em um céu misturado com tons de vermelho e laranja, num nível de poder e tamanho assustador. Era como estar em outro planeta de condições severas que sofresse com a influência maligna de seu sol localizado em uma curta distância.

Údon correra até ele.

- Foi bom te conhecer, barba cinza. - disse Lester, aceitando que ali poderia se tratar do fim.

- Yuga avisou - disse o arqueu, os longos cabelos grisalhos adejando no rosto - que quando sua ligação com a estrela fosse perdida, ela ficaria fora de controle! Posso sentir! - assustou-se com uma enorme rocha subindo aos céus ao sofrer a atração destrutiva. - Nossa única saída é contar com Charlie e o que restou de suas habilidades!

- Dá pra ser mais específico? - exigiu Lester, preocupando com o estado do mago do tempo e também desesperado com o caos á sua volta.

- Me refiro à viagem interdimensional! - disse ele, sua voz abafada devido ao poder do vento.

- Não posso... - falou Charlie, a voz entrecortada e meio grogue.

- O quê? Não pode desenhar aquele símbolo numa porta e nos mandar pra outro universo? - perguntou Lester, inquieto. - Como você fez naquela vez pra resgatar Rosie! Lembra?

- Não sabia que magos do tempo podiam fazer algo tão extraordinário. - disse o jovem para a infelicidade da dupla.

- É, acho que isso responde a questão. - disse Lester, rendido ao terrível fato.

- Tudo bem! A simples equação: tempos de desespero mais pessoas desesperadas igual a medidas desesperadas! - declarou Údon, mal acreditando no que diria a seguir - Resta menos de trinta minutos até a estrela atingir seu pico. Nesse meio tempo vou extrair todas as minhas forças para nos levar até o palácio de Abamanu e tentar chegar a um acordo com um Coletor. Eles abrem brechas no espaço-tempo para outros mundos!

- Údon... - chamou Charlie - Se caso optarem por essa ideia... eu serei a moeda de troca.

- Você ficou maluco?! É óbvio que a gente não vai embarcar nessa ideia de jerico! Tem que haver outro jeito! - contestou Lester.

- Mas é a mim que eles querem. Eles terão uma oportunidade de terem o que sempre queriam além de que vai beneficiar vocês. Eles vão aceitar. A minha morte é a salvação!

Hector chegou em passos acelerados ouvindo o pedido de Charlie.

- Não vamos sacrifica-lo, Charlie. Testei o amuleto para chamar Áker e parece ter funcionado.

O carro de Hector, outrora estacionado próximo a uma das entradas da gruta, estava sendo arrastado pelo solo gramado até ser elevado com suas peças sendo retiradas pela força magnética, inclusive a lateria sendo despedaçada como papel.

- É difícil dizer adeus né? - perguntou Lester a Hector que o olhou com reprovação - Brincadeira.

- Hector! - chamara Áker, rumando até os companheiros - Onde está Rosie? O que aconteceu?

- Ela está aqui. - disse o caçador, seus cabelos agitando com o vento, mostrando o saco enchido com as cinzas da garota. - Não tenho tempo pra explicar assim como você não tem tempo para se despedir. Mas fazendo um resumo... nós conseguimos.

- Agora precisamos que você e sua tropa reúna máxima quantidade de energia para bombardear a estrela! - sugestionou Údon, apreensivo, com uma das mãos perto dos olhos para protege-los da poeira e das pedras que rolavam no ar aos montes.

- Não é necessário. - afirmou o arauto, com decisiva segurança. - Posso resolver isso sozinho.

- É sério? Essa pago pra ver! - disse Lester, cético e, ao mesmo tempo, temeroso.

- Áker, tem certeza? - indagou Hector, com um pé atrás - Parece mais do que consegue suportar.

- Talvez eu consiga inverter os polos. - especulou Áker, estudando brevemente a enorme bola de fogo devoradora. - Sendo direto, posso expandir minha aura numa certa altitude como um escudo para a atmosfera e posteriormente, com a inversão, absorver a estrela em vez do contrário. Tudo isso numa escala que nunca alcancei. - baixou os olhos para Hector, tocando-o no ombro - Você e Rosie significaram muito mais pra mim do que qualquer um dos meus sentinelas. Posso imaginar o que aconteceu. Cuide bem dela. É a pessoa que melhor consegue fazer isso.

Fortemente emocionado, o caçador o abraçou com os olhos marejados. Feliz com o gesto, o arauto retribuiu.

- Será lembrado como um herói. - disse Hector, não contendo as lágrimas que voavam ao vento - Obrigado. Por tudo. Você vai conseguir. Adeus, amigo.

- Adeus, Hector. - disse o ex-arauto de Yuga parecendo tocado pela emoção - Farei por este mundo. - foi caminhando até Údon, Lester e Charlie.

- Então é mesmo um adeus? - perguntou o caçador, segurando-se. - Olha, não tive tempo de te agradecer, então... Obrigado. Afinal, você me salvou duas vezes. Sempre vai estar na memória da Legião, isso eu garanto. - estendeu a mão para ele num aperto amigável.

- Adeus, Lester. - disse Áker, sorrindo de leve. Olhou para o mago do tempo que lhe acenou com a cabeça e acenou de volta. Voltou-se para Údon.

- É melhor se apressar. Quinze minutos. - disse o arqueu, logo apertando a mão do arauto - Não estranhe, nunca fui muito sentimental. - falou, sorrindo de canto - Vê se tenta regenerar.

- Dificilmente. - disse Áker, sentindo-se orgulhoso por ter amigos como aqueles. Finalmente começara a proceder em direção ao seu propósito de existência há pouco tempo assumido. Os membros da Legião observavam o arauto percorrer o caminho em passos firmes até a ponta de um barranco.

Na metade do percurso suas costas exibiram marcas de brasas queimando a parte de trás do smoking preto em duas linhas retas em meio à chuva invertida de pedras, areia e grama.

Dois feixes de luzes alaranjadas irromperam das aberturas ganhando um formato que o quarteto, perplexo, divisava com facilidade a cada segundo. Lester foi o que mais exibia espanto.

- Esse engomadinho me enche de orgulho.

Um par de asas douradas se fez reluzente. Como nunca antes se tinha visto, o arauto materializou suas asas provando o que para muitos de seus aliados era tido como impensável. Na ponta do barranco, contraiu as pernas para, enfim, lançar-se para cima em um super-voo. O bater de suas asas à distância proporcionava uma sensação digna de ser comparada a observar o voar de um pássaro.

À cerca de 80 metros, em apenas 30 segundos, o ex-mensageiro de Yuga elevou a potência de sua energia a um nível que no passado considerava inalcançável e que beirava à insanidade.

Sua aura se expandiu a ponto de fazer as nuvens repelirem-se depressa. Não demorou para que os quatro sentissem o ar voltar fluir normalmente.

- A atmosfera... - disse Údon - ... parece ter sido privada do efeito da supernova.

Em uma aproximação ainda mais estreitada e veloz, Áker soltara um rugido grave com toda pujança, fazendo seus olhos irradiarem uma poderosa luz amarela que se alastrou pelo corpo e nas asas.

Estando numa distância curta, os primeiros resquícios de energia da esfera flamejante começavam a serem sorvidos numa forma meio afunilada. Forma que diminuiu bruscamente quando o arauto literalmente adentrou na estrela, atingindo seu máximo potencial de absorção.

Gradativamente, a supernova reduzia seu tamanho para o florescer do alívio de Hector e dos demais.

Vista da lua, parecia um pequeno sol a apagar-se. Áker permaneceu a voar mesmo depois de tamanha carga de energia fulminando em sua essência em temperatura inimaginável. Seu voo pelo espaço soou numa velocidade tal qual uma estrela cadente vista da Terra. Porém, a diferença é que esta progredia exponencialmente... ao ponto de se igualar a própria velocidade da luz.

A faísca superveloz atravessara uma brecha dimensional que rompeu devido ao seu estado. Àquela altura, nem mesmo Áker reconhecia o lugar onde tinha ido parar - um planeta aparentemente inabitável com um céu azul esverdeado e planícies vermelhas. Ao se dar conta o arauto desvencilhou-se do peso de carregar aquele poder abismal, deixando liberar a energia por todo a área que sofreu com uma avassaladora explosão cuja tendência ameaçava o planeta como um todo.

                                                                                  ***

Condado de Hampshire

Ao redor de um casebre isolado no meio de uma mata encontravam-se pedaços de rochas e árvores queimando e fincados no chão após caírem por conta da regressão imposta por Áker contra a estrela.

Dentro da localidade adentrava um caçador de rosto quase redondo e cabelo curto, meio loiro e meio espetado. Abriu a escancarada e decrépita porta do único quarto da velha casa, logo deparando-se com um grupo misto de sentinelas solares, a partir de então unidos numa só causa pelo declínio dos dois pilares do império.

O herdeiro de Yuga ficou silencioso por um instante, sem ter como reagir àquela estranha reunião.

- Sem me dar as boas-vindas? Por favor, não me façam perder tempo.

Um soldado aproximou-se para dizer-lhe a triste notícia.

- A batalha que nosso imperador tanto ansiou teve sua chance frustrada por um grupo de quatro. Três mortais, sendo um deles o mago do tempo que seria executado, e o arqueu anteriormente aliado da quimera... que também foi pega no mesmo golpe. - fez uma pausa, fitando-o com mistério - E nossa rainha, Sekhmet, foi morta por Lorde Yuga em um acesso de fúria.

"Acesso de fúria... Único fato que não chega ser novidade nessa história", pensou Mihos, meio desnorteado ao dar-se conta das perdas sofridas. De repente, os sentinelas ajoelharam-se em reverência, deixando-o inconfortável.

- Nós, a partir de agora, saudamos o magnífico imperador.

"É o que estou pensando que é...". Mihos esboçou um sorriso imodesto. "Nada mal... nada mal mesmo".

- Agora me deixaram indeciso. - disse ele, com um dedo no queixo ao pensar - Um memorial ou uma festa? Mas nada que uma votação não resolva. Eu voto pela festa. - ergueu de leve a mão direita, visualizando seus súditos - Alguém quer empatar?

- Senhor, poderia começar nos dando uma ordem para reparar os danos causados pelo fenômeno de destruição em massa. - sugeriu um sentinela.

- Ou escolher o próximo arauto já que Áker se deixou morrer para salvar os mortais. - citou outro.

Mihos deixou uma expressão surpresa escapar ao ouvir que fim levara seu ex-tutor.

- Foi isso mesmo? O serviçal quis bancar o herói?! - tentou segurar uma gargalhada - Que trágico. É como uma criança tentar salvar sua fazendinha de formigas. Mas sobre a ordem... Ouvi dizer que os mortais não sabem lidar com coisas que não entendem... Então que tal fazerem uma faxina, nas mentes deles, só pra variar?

- Áker nos pediu o mesmo pouco tempo atrás e o fizemos. - ressaltou o da frente.

- Então chegou o momento de expandirem o serviço. - disse Mihos, decidido e orgulhoso com o exército a comandar - Um mundo de humanos com medo de coisas como nós não seria nada divertido. É que o medo deixa a carne com gosto ruim.

                                                                                              ***

Área florestal de Raizenbool 

Os finos grãos de cinza vertiam-se do saco para um pote de vidro aleatório encontrado na dispensa, preenchendo-se pela metade.

O bem de grande valia a ser preservado por memórias que o tempo não apagaria.

Hector depositara o pote tampado na dispensa, o olhar taciturno e vago, e o coração apertado. Em sua visão, perder Rosie tinha um significado maior de derrota comparado ao sentimento próspero em libertar um amigo que mal havia conhecido direito há alguns anos. Não era conflitante. O peso do fracasso era como um todo. Nada surtiu o efeito desejado. A promessa foi em vão... como tentar segurar areia no meio de um deserto assolado pela ventania.

                                                                                         ***

Contar notícias ruins era de uma tarefa que demandaria pulso firme e compostura na medida certa. Údon tentou do melhor jeito que lhe foi possível diante de sua eleita.

Primeiro devia-se lidar com a negação. As mãos do arqueu tentavam acalmar os ombros inquietos da vidente que, em pranto desesperado, tentava não acreditar no que acabara de ouvir.

Alexia deu-se conta após Údon explicar pormenorizadamente, levando a mão direita à boca enquanto os verdes olhos dilatados e aflitos transbordavam lágrimas de pesar doloroso.

O arqueu a fitou entristecido por alguns segundos, com certo dó. Um espontâneo abraço ocorreu. Údon afagava as costas da jovem, ao mesmo tempo em que ela debulhava-se em choro mais silencioso em soluços súbitos. Através da situação, Údon refletiu sobre a dificuldade dos mortais na aceitação de um fenômeno tão natural como a morte, chegando a imaginar como se sentiria caso perdesse aquela que o abraçava fortemente e na qual tinha o dever de consolar.

Ao abrir os olhos, Údon visualizou na soleira da porta uma figura que compensaria em dobro todo o luto manifestado pela vidente. A recompensa ideal para amenizar seu sofrimento estava à poucos metros. O arqueu desfez o abraço, virando Alexia para a direção e apontando.

Os olhos encharcados da vidente foram de encontro aos do mago do tempo que se via parado com um fechado sorriso de felicidade contida.

Passaram-se segundos até que Alexia conseguisse processar a realidade do que estaria vendo. Uma expressão inicial de confusão e estranheza... para depois do lampejo um júbilo preencher seu âmago como nunca antes em sua vida.

- É... É você mesmo? - perguntou, aproximando-se devagar.

Charlie andou ao seu encontro, pronto para abrir os braços, sem conter a emoção. Os passos foram tornando-se menos vagarosos. Os sorrisos mais abertos. E o luto menos predominante no lar.

Um longo e intenso abraço entre amigos que ansiavam para rever um ao outro em uma saudade que maltratou por longos dois anos.

Lester, que vinha por trás do mago do tempo, entrava na casa observando o comovente reencontro.

- Ahn... Eu acho que não devia te abraçar por muito tempo, porque... - disse Charlie, prendendo um riso, afastando um pouco seu corpo ao da vidente - Porque seriamente preciso de um banho. - sorrira.

- Eu concordo. - disse Alexia, em lágrimas de alegria, não controlando a risada.

Ambos deram as mãos, entrelaçando seus dedos em demonstração de companheirismo inabalável.

- Nem os deuses podem dimensionar a falta que eu senti. - disse Alexia.

- Penso o mesmo. - respondeu Charlie, sincero.

- Bem-vindo de volta. - declarou a vidente, assentindo com um sorriso em simultâneo à mais lagrimas.

Lester foi até Údon a fim de comentar.

- Olha... Aposto uma grana alta que isso ainda dá em casamento. - cochichou ele perto do arqueu.

- Algo me diz que não é preciso apostas nem premonições para chegar a uma conclusão. - disse Údon, orgulhoso ao assistir laços humanos serem restabelecidos.

                                                                                       ***

41 dias depois

Área florestal de Raizenbool 

Eram exatamente oito da manhã. O Casarão estava desocupado por três razões: 1 - Hector fora até o mercado comprar mantimentos - no período passado lançou-se em frequentes caçadas ao lado de Lester contra licantropos, vampiros e outros seres repulsivos, que pareciam envolvidos numa infestação, ao redor do país como que para extravasar toda a melancolia e desgosto de si mesmo. 2 - Lester recebeu uma ligação sobre a pista de um criatura não-identificada, mas que morde e possui garras que estraçalham a carne como as que costumavam enfrentar. 3 - Alexia e Charlie foram a um passeio na biblioteca. O mago do tempo vendera sua antiga casa a um velho homem que produzia artigos artesanais, depois cogitando alguns planos futuros ao lado de Alexia numa relação que emitia indícios de estar seguindo além da amizade vista há dois anos.

O pote dentro da dispensa ganhara acúmulo considerável de poeira. Naquele instante, no mais pleno silêncio da casa, seu conteúdo pareceu movimentar-se... como se fosse uma fera revolta querendo libertar-se da jaula.

Uma rachadura formou-se pequena. Em seguida, progressivamente alongando-se.

Alguns grãos escapuliam pela ínfima brecha, até irem se amontoando e assumindo uma direção para fora da dispensa. O pote começava a esvaziar-se a cada vez que a fresta alargava-se.

Como uma serpente no deserto, assim estavam as cinzas deslizando sobre o piso da cozinha e rumando ao banheiro cuja porta fora mantida entreaberta. Mais precisamente, a banheira era o alvo de instalação.

O pote quebrara-se por inteiro, deixando os últimos grãos seguirem o curso. Por fim, a "serpente" subira pela borda da banheira, concentrando-se no fundo após sair completamente de sua prisão.

Dentre segundos, um barulho peculiar e rascante se fez presente no recinto.

Cessado o barulho, três segundos depois brancos dedos com unhas bem cuidadas emergiram ao tocar a borda da banheira.

O corpo nu e reconstituído de Rosie Campbell levantava-se - os fios baixos dos cabelos pretos meio ondulados ocultando os seios. A jovem, assustada e quase boquiaberta, olhou para as mãos em uma torrente de confusão, principalmente ao não recordar-se de nada do que viveu após a refulgente luz divina abarca-la no Salão das Duas Verdades.

                                                                                       ***

Após retornar, Hector fora até a cozinha, prestes a tomar uma decisão alternativa sobre a preservação das cinzas que muito se vinha pensando sobre executar ou não. A ideia consistia em enterrar o pote na frente do Casarão com uma pedra servindo de lápide e com escrito feitos em carvão com o nome da garota que jurou proteger até o fim.

Hesitou um pouco antes de abrir a porta da dispensa, mordendo os lábios.

Ao abrir para conferir, tomara um baque estremecedor: O pote estava em cacos.

- Não... Não pode ser... - disse ele, desesperando-se rapidamente, pegando o que restou do pote. - Estava bem aqui o tempo todo! Como... Como pode ter sido quebrado sem deixar nenhum vestígio? - disse, visualizando o chão e a mesa à procura de rastros. Estacou o olhar para pensar no que parecia improvável - A menos que...

- A menos que eu mesma tenha feito. - falou uma voz que o pegou desprecavido. O caçador virou-se velozmente, os olhos arregalando-se ao se deparar com uma visão que lhe soou fantasmagórica, fazendo-o involuntariamente deixando cair o pote destruído que estilhaçou-se totalmente.

Hector piscou inúmeras vezes, franzindo o cenho e balançando a cabeça inteiramente cético. A voz parecia falhar a cada tentativa de esboçar uma reação.

- Údon... - disse ele, apontando de leve para a jovem - É melhor parar. De forma alguma, eu vou cair em um truque desses, essa... habilidade sua, você deve ter planejado isso há um bom tempo. Deve haver algum sigilo gravado em algum ponto que ativou esse seu poder de ilusão para me pregar uma peça. Você foi de grande ajuda, eu sou eterna e imensamente grato, mas brincar com minhas emoções usando a imagem de Rosie é passar dos limites, nem se eu fosse o pior dos seus inimigos eu faria isso com você usando Alexia pra tortura-lo psicologicamente!

Rosie desatara a rir do manifesto do caçador.

- Eu mal ressurjo dos mortos e sou presenteada com a diversão que é ver Hector Crannon indo longe demais nas teorias e acabar paranoico.

- Não se aproxime. - disse ele, recuando - Encarei doppelgangers na semana passada. Você pode ser um integrante do mesmo bando.

- Hector, será que dá para você usar a cabeça nesse momento tão importante? - questionou Rosie, andando até ele, vestida com seu traje habitual, incluindo o manto vermelho de seu pai. Seu semblante amenizou - Essa sou eu de verdade. Não se belisque pra ver se está num sonho ou não. Não fique agindo como um cético incorrigível, você é um caçador, você luta contra coisas assustadoras que para as pessoas normais é pura fantasia. - parou numa curta distância, observando-o fita-la com nervosismo intenso. O olhou condescendente e deu de ombros. - O que mais eu posso dizer? Eu voltei. - sorriu em felicidade.

Alguns minutos foram necessários para o caçador processar o que estava bem diante de seus olhos.

- Údon disse... que, você, a fênix apoteótica só ressurgiria após mil anos. Não se passaram nem cinquenta dias desde que derrotamos Abamanu e Yuga. - fizera as contas de cabeça com rapidez, olhando para um canto - Sim, é isso. Se passaram 41 dias... o equivalente a... - voltou seu olhar impressionado à Rosie - Mil horas. - fez uma pausa, deixando um sorriso formar, a emoção tomando conta - Aquele filho da mãe. - dissera, quase rindo.

Rosie, com os olhos enchidos de lágrimas a derramar, sorria para o caçador. Ao mesmo tempo, ambos abraçaram-se apertadamente.

- E gostei do apelido novo. Deve ter uma história bem interessante por trás. - brincou ela.

- Ah, com certeza. - confirmou Hector, mal acreditando que estava vivenciando um instante de genuína felicidade após anos de tormentos contínuos - Uma interessante e longa história.

                                                                                          ***

A rolha do champagne - cuja garrafa encontrava-se nas mãos de Hector - soltara-se com barulho, soando o glorioso princípio de uma comemoração noturna entre amigos que sobreviveram a um quase-apocalipse.

Mas a celebração não se limitava a escapar de ser devorado por um segundo sol. Era uma celebração com visões reflexivas a respeito do futuro.

Alexia e Charlie sorriam orgulhosos de si mesmos e de um do outro, segurando suas taças enchidas com o líquido dourado. Údon e Lester estavam próximos de si, em uma relação amistosa que apresentou melhoras com o tempo.

Rosie trajava um vestido carmesim com mangas curtas, cuja parte inferior descia à altura dos joelhos.

Hector, com seu costumeiro sobretudo de couro marrom, tomara as atenções para si como sua liderança inerente o movia a fazer, erguendo de leve a taça.

- Eu gostaria de propor um brinde mais que especial... - desviou o olhar contente para sua parceria de caçada - ... à Rosie. E seu retorno incrivelmente surpreendente e que tranquilizou nossos corações.

- Surpreendente ainda é pouco. - disse Lester, brincalhão - As cinzas estavam bem quietinhas no seu canto, mas a alma podia estar por aí. Quem além do Hector ia nos garantir que não fosse um fantasma? Sorte a dele que conseguiu nos convencer, ele é mestre nisso.

Todos riram. As seis taças chocaram-se em um suave tilintar, em seguida todos tomando seus goles.

- Ah, sim. - disse Alexia, de repente, depositando sua taça na mesinha de centro da sala, depois erguendo-se sorridente - Quase ia me esquecendo. - juntou as mãos, empolgada - Charlie e eu... - olhou para o mago do tempo - ... queremos contar uma novidade.

- Depende do teor da novidade. - disse Lester, soando comicamente exigente - Vão finalmente assumir de vez?

- Muita calma nessa hora, não precisamos ir tão rápido. - disse Charlie, sorrindo nervosamente - Mas se é a título de curiosidade... - virou o rosto para a profetisa - ... está na lista de planos. - segurou na mão esquerda, entrelaçando os dedos - Só vai depender de como os compromissos vão afetar nossa rotina pesada.

- Andem logo, esse mistério todo vai acabar nos cansando. - disse Rosie, ansiosa pela revelação.

Alexia riu timidamente, pronta para contar.

- Recebemos uma carta de ingressão para Oxford. Ficaremos em salas diferentes, mas em compensação vamos estar juntos em um só lar.

- Nossa, mas isso é ótimo. - disse Rosie, feliz por ambos pela grande conquista.

- Meus parabéns aos dois. - felicitou Hector, erguendo a taça como um sinal de congratulação. Os dois agradeceram em uníssono.

- Estou bastante feliz por vocês. - disse Údon, olhando-os com orgulho - Merecem essa vida pacata, longe de problemas sobrenaturais, como eu, por exemplo.

- Ah quê isso, barba cinza. - disse Lester, mostrando-se companheiro ao arqueu - Você foi para nós um herói tão corajoso quanto o ave de rapina foi. Aliás, sinto falta dele.

- Todos nós sentimos. - disse Hector, a expressão séria - Até Charlie que não teve uma oportunidade de conhece-lo melhor o reconhece como o verdadeiro salvador de nossas vidas.

- De todas as vidas humanas. - complementou Údon, assentindo e lembrando-se dos momentos que passou ao lado do ex-arauto do decadente Yuga.

- Eu quero propor um brinde - disse Rosie, de repente erguendo a taça com gosto - à memória de Áker. Aquele que... de início era só um mensageiro, que depois passou para nosso aliado fiel, quebrando regras e juramentos por nossas vidas... e no fim se sacrificou por elas. Por isso esse brinde é nossa demonstração do quão gratificados nós estamos e seremos até o fim.

As taças chocaram-se em um novo e fabuloso brinde dedicado como um memorial ao arauto.

- Ah, só tem mais uma coisa. - disse Charlie - No meio dos semestres, vou tentar conciliar meus estudos com pesquisas dos arquivos do meu pai para ver se consigo reaver meu potencial de mago do tempo e totaliza-lo em poucos meses, mas sendo realista eu diria que a expectativa seja de anos de reaprendizado. Abamanu só deixou 5% da minha capacidade intacta. Não posso abrir portais para outros mundos com os símbolos, não posso usar o selo de separação... Eu sinto muito ter me tornado inútil para enfrentar Mollock novamente...

- Não se sinta assim - aconselhou Rosie - , o importante é que você conquistou uma virada positiva na sua vida, vocês dois finalmente tem a chance de viverem uma vida normal, chance esta que nunca tive e fico orgulhosa por dois amigos alcançarem essa felicidade.

Após a jovem dizer tais palavras, Hector a olhou um tanto pensativo.

- Obrigado, Rosie. - agradeceu Charlie, assentindo.

- Nossa partida está agendada para... amanhã. - disparou Alexia, intencionalmente deixando a parte mais bombástica para o final. Lester quase engasgou-se com o champagne.

- Ué, mas já? - indagou ele, estupefato.

- Pois é. - respondeu Alexia, emocionada - Eu... Ai, caramba... - baixou um pouco a cabeça, sorrindo meio que sem jeito para dizer tamanha a emoção - Já estou com saudades... de todos. Pena não ter que me despedir do Adam e da Êmina, eles também fazem falta aqui entre nós.

- Com certeza fazem. - disse Hector, com firmeza. Rosie o olhou de relance, curiosa.

Batidas na porta interromperam o clima comemorativo, fazendo todos olharem para a direção.

Lester encaminhou-se para atender, deixando a taça sobre a mesa.

- Posso falar com vocês dois em particular um minuto? - perguntou Údon, dirigindo-se à Rosie e Hector.

- Ahn... Sim. - disse Hector, desconfiado da razão.

- Sim, claro. - disse Rosie.

O trio se direcionou à cozinha, enquanto Charlie e Alexia conversavam baixinho sobre os últimos detalhes da viagem e Lester atendia à visita surpresa.

- Olá... Em que posso ajuda-los? - perguntou o caçador, visualizando os três homens caucasianos com posturas que transpareciam certa elegância. O da esquerda - na visão de Lester - possuía cabelo loiro pentado de lado e rosto jovial e redondo com olhos azuis. Já o da direita tinha um cabelo preto comprido amarrado em um rabo de cavalo, sobrancelhas grossas e barba por fazer na face robusta. O do meio, claramente indicando ser o líder, tinha um charme nítido em seu modo de se portar, seu cabelo preto em corte social penteado de lado, um rosto quadrado e olhos pretos penetrantes graças às sobrancelhas meio grossas e arqueadas. Todos eles vestiam sobretudos pretos bem abotoados.

- Viemos à procura de Rosie Campbell e Hector Crannon. Somos enviados do Exército. Prometemos não demorar, já que... - disse o do meio, relanceando as taças com champagne -... estão no meio de uma ocasião especial.

- É, a gente tá numa festinha, nada demais... - disse Lester, olhando rápido para trás, depois voltando-se para os visitantes - Mas e então? São do Exército... É algum aviso, uma informação do General?

- É bem particular, na verdade. - respondeu o líder, secamente.

- Bem, eles estão tendo uma conversa particular agora lá na cozinha... Será que dá pra vocês esperarem um pouco? Ou melhor: Por que não se juntam a nós? A bebida está nota dez.

- Seria um prazer. Muito obrigado. - respondeu ele, gentilmente entrando.

                                                                                        ***

A dupla pusera suas taças sobre a mesa da cozinha, atenta ao que Údon estava prestes a lhes falar.

Com a luz do luar atravessando a janela, Údon se posicionou próximo ao refrigerador, ficando parte de seu corpo com a luminosidade azulada do astro.

- Muito bem, eu também tenho algumas novidades a dizer. A começar por Sekhmet. - o arqueu aparentemente emitiu um sorriso - Ela se foi.

- Como é que é?! - soltou Rosie, espantando-se subitamente - Quem disse isso à você?

- Se isso é verídico, quem a matou? - perguntou Hector, igualmente surpreso.

- O próprio Yuga o fez, após rejeitar uma tentativa, bem frustrada, de sua esposa em querer trazer a mente de seu amado imperador de volta aos eixos. - disse Údon, sucinto - E minhas fontes atendem por nomes de sentinelas solares que agora respondem a um novo chefe... Não vão acreditar.

- Deixa eu adivinhar.... - disse Rosie, fechando os olhos por uns segundos, depois abrindo-os de forma estreita - Mihos?

- Acertou. - confirmou o arqueu, sorrindo fechado - A razão de não vermos nada sobre a supernova nas páginas dos jornais é graças a ele, tecnicamente.

- Então grande parte do mundo teve sua memória apagada? - questionou Hector, curioso - Um evento dessa proporção chegaria a cancelar planos de guerra.

- Isso explicaria porque o memorial às vítimas de Raizenbool foi associado a um ataque nuclear. - disse Rosie, sem dúvidas.

- Bem, nós podemos ter nos livrado daqueles dois patifes desgarrados, no entanto não significa que estão livres de problemas do mesmo nível que enfrentamos hoje. - alertou Údon, assumindo seriedade no tom e na face, o que os deixou com a atenção ouriçada - Entendam. Os demiurgos podem atingir uma força expansiva de modo a colapsar com todo o universo. Imaginem centenas de milhares como Yuga se tornou. Essa parte já foi resolvida com um simples contrato de sigilo entre todos os seres que compartilharam dessa informação. Foi muita sorte isso ter acontecido exatamente ao mesmo tempo do julgamento de Chronos, que, infelizmente, foi condenado a uma prisão específica. Nunca se sabe quem está de fato com aptidão para administrar o próprio poder. Em outras palavras, nenhum deus é totalmente confiável no que se refere às intenções com o uso de seus poderes superiores, eles também são corruptíveis. Yuga e Abamanu são a prova viva disso. Mas... - andou para um lado - ... a ordem natural exige um curso que satisfaça seu equilíbrio. Hoje nós testemunhamos um armagedon de luz... E amanhã? E o futuro? A resposta está em vocês. Nas suas ações daqui em diante. Minhas habilidades premonitórias foram inibidas temporariamente devido a sobrecarga que sofri no exorcismo e na abertura do Vazio. Levará um tempo até eu me recuperar. Não basta prever o que irá acontecer daqui há anos, a ordem natural deve ser mantida de qualquer forma e o que ocorreu hoje deixou tudo esclarecido. Se houve um armagedon de luz... é necessário que haja um armagedon de trevas. E vai haver, de um jeito ou de outro.

- Vamos estar preparados. - disse Rosie, voltando-se para Hector em seguida - Para o que der e vier.

O caçador assentira positivamente para ela com firmeza.

- Chegou a hora. - disse o arqueu, esfregando de leve as mãos, deixando uma ponta suspeita na dupla.

- Hora para quê, Údon? - perguntou Hector.

O arqueu suspirou.

- De me despedir. Áker não se preocupou a toa quando contestou minha ideia de abrirmos o Vazio sem uma autorização do Conselho Geral. Fiz parecer que estava errado, mas foi a urgência do tempo que não me levou a nenhuma outra opção. Me desculparia por isso, mas naquele momento o tempo não podia esperar. E o deixei ir. Agora devo seguir driblando as consequências.

- Espera aí - disse Rosie, aproximando-se dele -, não precisa fugir nem seguir uma estrada perigosa sozinho. Não faz sentindo você ir embora quando podemos protege-lo, você encontrou um lar aqui, o seu lugar no mundo.

- Não, está enganada. - retrucou Údon - Quebrei uma regra extremamente rígida. Agradeço todo o acolhimento, mas... posso sobreviver com os meus meios. Trilhando meu próprio caminho. Me mantendo aqui vou estar expondo vocês a riscos maiores, o Conselho é implacável, na primeira chance serão autuados como cúmplices, não quero que os vejam como meus parceiros de crimes. Como o julgamento de Chronos encerrou há poucos dias, a primeira ordem será caçar o arqueu que julgou dois deuses violadores ilegalmente. Ponham isso na mente de vocês e não tentem questionar. Estou falando sério.

- Está bem. - aquiesceu Rosie, cedendo á decisão - Já que é assim... Na verdade, faríamos você se sentir um prisioneiro nosso e nos sentiríamos mal em mante-lo num lugar em que sua segurança está comprometida ao nosso lado, porque pelo que parece nós ficamos famosos entre os deuses. - disse, referindo-se à ela e Hector.

- Respeitamos e compreendemos sua decisão, Údon. - disse Hector, andando até o arqueu com a mão estendida  - E eu agradeço à você... por tudo. Obrigado por existir. - apertaram as mãos.

- Disponha. - disse Údon, sorrindo - Ainda nos veremos de novo... amigos.

Rosie fez que sim com a cabeça, o semblante suavemente alegre.

A figura de Lester irrompeu da cortina.

- Ahn, pessoal, - disse, olhando para a dupla dinâmica -, tem três caras que se dizem subordinados do Exército, e parecem que estão bem apressadinhos pra falarem com vocês dois aí... - apontou para eles.

- Mencionaram o General Holt? - perguntou Hector, empertigando-se.

- Disseram que só falariam o essencial apenas a vocês dois. Sinto cheiro de coisa grande. Pelo visto, vou ser o último a saber. Nada fora da curva. - disse o caçador, sentindo-se preterido.

- Tudo bem, pode chama-los. - disse Rosie, concordando.

- Bem, se me derem licença... - disse Údon -, vou deixa-los a sós com seus supostos novos amigos.

- Ei, espere, Údon. - disse Hector, tocando-o no ombro e fazendo-o estacar. - Me ocorreu agora uma dúvida sobre a viagem no tempo que Rosie fez através de Áker. Você era a fonte que transmitiu à ele imagens da previsão que teve com relação a vitória de Abamanu. Sabe me dizer como funcionam as viagens temporais?

- Há uma coisa que devem saber. - disse Údon, segurando uma risada ao virar-se para ambos - Eu não deveria achar engraçado, mas não consigo controlar. Eu... - apontou com o polegar á si mesmo - ... não sou exatamente quem vocês pensam.

- Engraçado, eu disse mais ou menos isso quando estava naquele futuro horroroso na hora que revelei à Êmina sobre que eu estava morta naquela linha do tempo. - disse Rosie, a crescente suspeita, concentrada em seu olhar para o arqueu, a levando diretamente à uma conclusão irrefutável - Espera um minuto aí... então você é...

- Exato. - disse Údon, seguro de si - Voltei três anos no tempo para corrigir a história. Mesmo sabendo que não mudaria em nada na época de terror que presenciei. Deveria existir uma história a ser escrita com um final menos trágico. Estamos nela agora.

- Então quer dizer que... nesse sentido, de não mudar nada no futuro, quer dizer que... - Hector estava visivelmente incerto - Duas linhas existem paralelamente? Se fôssemos para lá agora... alteraríamos o rumo de tudo, mas também não mudaríamos o que ocorreu na outra linha do futuro, mas se voltássemos a partir dali para criarmos um outro futuro, nós... - passou uma mão no rosto - Não, melhor parar antes que minha cabeça exploda.

- Áker nunca me disse isso. - declarou Rosie.

- Pelo fato de ele querer dar a impressão de que só existiria um único futuro existente. - explicou Údon.

- Então se você é o Údon do futuro - quis saber Rosie, a sua grande dúvida do momento -, deve ter uma cópia sua nesta linha do tempo. Onde ela está? Por que não deu sinais até agora?

- Porque eu a matei. - revelou Údon, para o estarrecimento imediato da dupla. - Vou me despedir dos outros mais tarde. Boa noite. - desaparecera em nanosegundos, deixando os dois congelados de estupefação pela revelação honesta e direta.

- Aqui estão eles. - disse Lester, trazendo os três homens misteriosos que entravam na cozinha por detrás dele - Cadê o barba cinza?

- Ele foi tomar um ar. Estava sentindo um pouco cansado. - mentiu Rosie, não parando de dar olhadelas constantes aos tais homens.

- Ah, sei. - disse o caçador, fingindo acreditar. - Vou indo nessa. Foi bom conhecer vocês. - disse, saindo do cômodo a passos rápidos.

- Igualmente. - respondeu o líder, com educação. O elegante homem virou-se devagar à dupla. - É uma prazer finalmente conhece-los. - estendeu a mão direita à Hector que apertou. - Sou Derek Marshall, recrutador e recentemente nomeado chefe de operação pela iniciativa DECASO.

- DECASO? - indagou Rosie, estranhando.

- Departamento de Controle de Ameaças Sobrenaturais. - respondeu Derek, logo em seguida lançando um olhar interessado á jovem. - Engavetado pelo General Holt há dois anos. Reativado por ele mesmo há duas semanas.

- Não tiveram suas mentes apagadas, o que significa... - disse Hector, juntando as peças.

- Significa que fomos poupados por supostos infiltrados especiais no QG que também podem ser os responsáveis por deletarem as lembranças de boa parte da humanidade sobre o sol devorador. - falou o de cabelo loiro. - O General disse que foi a gota d'água.

- Harrison tem razão. - disse Derek, apontando para o parceiro com o polegar esquerdo. - Este ao lado dele é Nick, - o rapaz de cabelo amarrado e face dura - não fiquem magoados, eles não é de socializar muito. Nos abstemos de nossas funções militares para nos comprometermos a esta causa de tão grande relevância. Queremos dispor dos melhores agentes que saibam combater ameaças que não podem vir a público. Vocês dois encabeçam a lista, o que automaticamente os tornam prioritários.

- Prioritários!? - a voz de Hector soou impressionada - Não podia esperar isso do General...

- Ele quer enterrar as desavenças passadas. - disse Derek, interrompendo-o. - Agora a parceria com o Colégio de Caçadores tornou-se oficialmente vitalícia. - Nick entregara à ele uma prancheta com dois papéis anexados. Derek estendeu o braço para entregar à Hector - A folha de contrato e o relatório da primeira investigação, respectivamente.

O caçador analisou com minúcia cada detalhe escrito no relatório. As descrições lhe trouxeram enjoos e eriçamentos nos pelos da nuca.

- Três testemunhas indicaram terem visto um grande e forte homem com características de... um lobisomem rondando um vilarejo, sendo confundido com um forasteiro. A polícia local estaria associando mortes de professores da escola a ele, já que perambula, sempre à noite, pelas redondezas. Suas ações parecem se concentrar somente em Londres.

Rosie e Hector entreolharam-se sérios como se quisessem dizer um ao outro telepaticamente: "Está pensando o mesmo que eu?"

- Pode deixar. Já tenho algumas teorias em mentes. É uma descrição bem familiar. - garantiu Hector, virando a folha para ver o contrato que possuía duas linhas pontilhadas. Assinara na primeira. - É para um bem maior. Não tem porque eu recusar. Err... Caso não tenham percebido, Lester, o cara que atendeu vocês, ele é meu amigo e também é um caçador, somos da Legião, um grupo especial que o diretor Vannoy oficializou há anos. Eu vou chama-lo.... - deu dois passos em direção à cortina.

- Ei, espera aí! - disse Rosie, agarrando-o pelo braço direito. O caçador a olhou com certo dó contido. Rosie olhou de soslaio para os três, desconcertada pela reação súbita - Podem nos dar um segundo.

Derek fez que sim com a cabeça. permitindo.

Ambos foram a um canto da cozinha conversarem reservadamente.

- Que diabos você pensa que está fazendo? - perguntou Rosie, soando irritada, em tom baixo.

- Lhe dando uma oportunidade de ver uma janela se abrir na sua vida. - disse Hector, decisivo - Ela representa o caminho mais curto para você buscar seus verdadeiros sonhos.

- Meu verdadeiro sonho? Posso estar a um passo de descobri-lo. - retrucou ela. - Mas não tem a ver com o que você se culpava de ter me privado. Quer saber de uma coisa? Acho que meu pai queríamos nós dois juntos não apenas para fugir, ou você me manter em segurança, mas principalmente para lutarmos. A razão de nos conhecermos se resume à isso. Ele sabia que com você ao meu lado eu aprenderia a me adaptar ao mundo que estava oculto pra mim até ler aquela carta. Aquela carta... tudo começou com aquela maldita carta. Você pode ter falhado comigo uma vez... mas merece uma chance de fazer valer a promessa que fez. Não se trata de proteger a mim e esquecer de si. Mas de protegermos um ao outro. De aprendermos um com o outro. Então, Hector, eu estou lhe dando uma chance de você não sentir mais essa culpa.

O caçador não tinha palavras para mensurar o quanto aquele manifesto lhe fez perceber com clareza que a presença de Rosie em sua vida era uma essencialidade oferecida pelo destino.

Os segundos de silêncio para definir uma reposta pareceram mais tempo.

Os olhos de Rosie abrilhantaram-se quando Hector aproximou a prancheta e a caneta às suas mãos.

- Eu acredito em você. Sempre vou. Você se adaptou a esse mundo estranho. A culpa? - balançou a cabeça negativamente devagar, comovido - Ela simplesmente desapareceu. Graças a você.

Rosie sorrira abertamente para ele, logo escrevendo seu nome na segunda pontilhada abaixo da primeira.

A jovem se virou para os três homens, esbanjando determinação.

- Tem todo o meu apoio nesse iniciativa. O mundo está mudando e quero fazer parte desta mudança como uma força positiva.

- E isso soa como... um sim? - perguntou Derek, querendo uma resposta concreta.

Rosie assentiu firmemente.

- Eu tô dentro.


                                                                                    CONTINUA... 

                                                                       FIM DA 3ª TEMPORADA



*A imagem acima é propriedade de seu respectivo autor e foi usada para ilustrar esta postagem sem fins lucrativos. 



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