Capuz Vermelho #27: "Deuses entre nós"


"Jamais imaginei que minha vida pudesse chegar a esse ponto. Me vendo como uma frágil criatura em meio a seres que se auto-proclamam superiores, ainda que possua uma importância com a qual não consigo lidar. Quero ter a chance de provar que a superioridade de um não prova a insignificância do outro. 
Não vejo seres acima da compreensão, mas sim criaturas tão defectíveis quanto nós e que se esforçam para ocultar suas falhas. Falhas que nem mesmo o mais devastador dos poderes é capaz de esconder. Em outras palavras... Apenas mais fortes, mas não perfeitos." 

                                                                                   Trecho do Diário de Rosie Campbell - Pág 102.

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No meio da madrugada, ouvia-se um farfalhar incessante e pouco distinguível. O clima parecia abafado e seco, mas nada que fosse comparado a um verão comumente quente.

O suor em demasia fazia Rosie remexer-se na cama repetidas vezes desconfortavelmente, o lençol e as demais cobertas brancas e límpidas se desarrumando com as pernas inquietas da bela.

- Mas que... - ela abrira os olhos, levantando-se depressa. - De onde está vindo esse barulho? - calçara suas pantufas e dirigira-se à porta. A chama da vela posta na cômoda estava instável, ora querendo apagar-se, ora elevando-se.

O corredor se estendia a poucos metros, não demorando para que Rosie chegasse logo à espaçosa sala de estar. O ruído fora aumentando consideravelmente... e então viera um inconfundível odor de algo queimando. A dedução mais óbvia seria um incêndio, o que a fez correr até a cozinha. Sem encontrar nada que denunciasse a situação, a jovem voltara-se para as escadas. No exato instante em que ia subir os degraus, estacara abruptamente e virou-se para olhar a brecha da soleira da porta que fazia a entrada principal.

Um luz alaranjada fumegava do lado de fora, fazendo adentrar alguns filetes que rasgavam a escuridão da sala em alguns metros. "Um incêndio na floresta?!", pensou Rosie, a expressão de pânico. As janelas estavam fechadas por cortinas negras que esvoaçavam.

Ao correr até a porta, gritos de dor e pavor foram crescendo, torturando seus ouvidos. Sem se importar com o calor causticante que subia pela sua pele, Rosie girou a maçaneta com pressa e abrira a porta.

Uma poderosa lufada de ar quente atravessou seu corpo. O cenário com o qual se deparara do lado de fora distanciava-se de um simples e controlável incêndio.

Com um semblante de estupefação e pavor profundos, a jovem ficara boquiaberta com o que assistia, sentindo arrepios contínuos. A floresta fora varrida completamente. Um fogo potente e avassalador castigava aquela terra que cedia e destruía-se, onde uma multidão de almas perdidas vagueavam gritantes e pedindo clemência, seus corpos em combustão espontânea e irreconhecíveis. Homens, mulheres e crianças, sofrendo as dores de um inferno trazido à Terra, correndo, chafundando e andando para os lados e aos montes em desespero total, numa louca dança de seres que produziam uma bizarra cacofonia de gritos estridentes. Alguns até caídos e açoitados por criaturas com humano, aladas e bicudas, os estalos dos chicotes intercalando-se com os clamores assombrosos.

Um estrondo reverberante descera dos céus. Instintivamente, Rosie olhara para cima, travando um grito de horror na garganta sem querer, fitando uma imensa bola de fogo que despejava toda sua fúria tal como um vulcão em erupção. Uma rajada flamejante foi liberada na direção de Rosie.

Sem conseguir emitir nenhum som de sua voz, a jovem se limitou a ajoelhar-se e chorar copiosamente enquanto tentava se proteger com os braços... e aceitar o fim.

Segundos passaram...

O calor desaparecera de repente.

Lenta e novamente abrindo os olhos, Rosie respirou o ar noturno da floresta banhada pela lua cheia. Ao se levantar e encarar o ambiente ameno com incredulidade, se viu confusa, afundada em dúvidas.

Olhou para os lados. Nada de fogo ou pessoas sofrendo. Apenas a floresta intacta e infestada pela ópera dos grilos. Ofegando, franziu o cenho, balançando a cabeça em negação.

- Foi mesmo um sonho? - perguntou-se em voz baixa.

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Nota do capítulo: Partes em itálico representam flashbacks ou menções específicas.

CAPÍTULO 27: DEUSES ENTRE NÓS

Eis uma das regras mais categóricas do Quartel-General: Jamais perturbar o general Holt no início de uma bela manhã ensolarada. Sempre seguida com rigor pela maioria dos soldados, tão tementes ao mau-humor característico do homem. William BuckHolt chegava ao cúmulo de se vangloriar por ser tão ranzinza, afirmando e reafirmando ser parte de sua demonstração e prova de autoridade nata. Naquele dia, não havia sido diferente. Organizava uma papelada com uma expressão impaciente, chegando a derramar o café sobre a mesa.

- Puta merda! - praguejou, se levantando enraivecido pelo acidente.

Antes que fosse buscar a ajuda do servente do local, parara para escutar alguns ruídos abafados... que ele interpretara como gritos. "O que está havendo lá fora?".

A porta do seu escritório se abriu depressa, dando entrada para uma estonteante figura.

Fechando a cara, Holt se viu indiferente à pessoa que entrava, voltando a sentar-se. Apoiou os cotovelos na mesa, colocando as mãos diante dos lábios em um triângulo. A mulher de alisados cabelos pretos, vestindo um sobretudo cinza e coturnos se aproximava, provocativa e canalha, lhe devolvendo um sorriso sacana.

- Não me diga que abortou a missão para vir me pedir férias. - disse o general, estreitando os olhos.

- Temos muito o que conversar, general. - afirmou ela, mantendo-se em pé.

- Ótimo, então comece me explicando o porque de ter voltado tão cedo. A menos que tenha informações urgentes a me dar. - resmungou ele, esboçando irritação.

- Sim, eu tenho. - ela sorrira de canto de boca. - Está perdendo seu tempo.

- Como disse? - o general inclinara seu rosto para ela, franzindo o cenho, parecendo não ter entendido direito.

- O seu prisioneiro. - retrucou ela. - Deve liberta-lo. Ele é a chave para minha vitória.

Um lampejo de confusão embargou o general. Balançando a cabeça com o semblante irritado, Holt não entendia absolutamente mais nada, seu intelecto ansiando por respostas. "Não faz sentido. Como ela pode saber tanto?".

- Betsy Rossman, quem lhe deu esta informação antes confidencial? - questionou ele, severo.

- Besty Rossman está morta. - disparou ela, tornando a andar calmamente para um lado da sala, apreciando a decoração. - Eu devia prepara-lo melhor, mas me encontro sem tempo. Então vai ter que ser do jeito difícil.

- É... - assentiu o general, estranhando o comportamento da moça. - Eu devia ter solicitado um exame para avaliar suas condições mentais antes de coloca-la em ação.

- Ora, não me provoque! - exasperou-se ela, virando-se rápido para o general. - Estou lhe avisando: Saiba com quem está lidando.

Holt, bufando de cólera pelo manifesto da moça, levantou-se com força, tornando a fita-la com fogo nos olhos e exibindo suas veias da testa em relevo.

- Ponha-se no seu lugar, agente Rossman! Sei que está tentando alguma artimanha para se sobressair ilesa na missão que eu ordenei que cumprisse! O que realmente quer? - ele fez uma pausa, recuperando o fôlego. - Aliás, como pode saber que estou mantendo alguém cativo?

Ela suspirou, fechando os olhos, desejando, mais do que tudo, o surgimento de uma chance para provar sua verdadeira posição... e principalmente poder.

- Espero não ter que me arrepender de ter assumido este receptáculo. Mas está quase impossível. - afirmou ela, mal resistindo à raiva.

De repente, um soldado de expressão atônita entrara rapidamente no escritório. Seu ar era de alarme e exibia um suor frio descendo pelo pescoço.

- Senhor! Foi ela! - apontou para Sekhmet nervosamente. - Matou vários... Estão no corredor, todos mortos, foram completamente carbonizados! Eu vi com meus próprios olhos! - seu terror estava nítido em sua face.

- Soldado Barton, acalme-se! - pediu o general, aumentando o tom de voz. - Até parece que enlouqueceu! De fato, eu ouvi gritos de dor daqui, mas... - arregalou os olhos, desviando-os para sua ex-agente, assumindo um caráter de urgência. - Você disse carbonizados?

- Sim... sim, general. - confirmou o soldado, gaguejando e arquejando. - Ela é uma ameaça... Um monstro! - já preparava-se para sacar um revólver.

A deusa devolvera um sorriso de satisfação. "Finalmente uma oportunidade.".

- Li sua ficha, general. - disse ela, aproximando-se vagarosamente do apavorado soldado. - Há pouco tempo atrás, jurou proteger sua nação de ameaças desconhecidas e extraordinárias. Bem, pode ser que minha presença sirva para encoraja-lo... - pôs uma mão no peito do paralisado rapaz, passeando seus dedos pela farda em um gesto sedutor. - Ou talvez fazê-lo se encolher de medo. - cravara profundamente seus dedos no coração do soldado, fazendo irradiar pelo corpo do mesmo uma luz amarela, até pelos olhos e boca.

Holt assistia a horrenda demonstração embasbacado. "Meu deus! O que ela é?"

O soldado gritava estridentemente, completamente paralisado pela dor do fogo que consumia toda sua carne, atravessando todas as camadas de sua pele. O rosto do rapaz tostava e crepitava, enegrecendo aos poucos, enquanto ele tentava se debater. O volume de seu urro foi aumentando consideravelmente, enquanto a deusa se satisfazia com sua dor perfidamente.

- Já chega! - gritou Holt, aterrorizado,recuando alguns passos e derrubando a sua cadeira. - Já chega! É o suficiente! Diga logo o que quer de mim! - vociferava ele, deixando gotículas de saliva saltarem-se da boca.

Cedendo à súplica do general, Sekhmet retirara, por fim, a mão do peito do soldado. O corpo do rapaz se deixou cair inteiramente reduzido a carvão, duro e exalando um forte cheiro de fumaça.

Um entreolhar incompatível havia perdurado por vários segundos. De um lado, os azuis olhos de Sekhmet denotando sua instabilidade. Do outro, os azuis olhos de Holt, pela primeira vez em anos, acentuados por um medo surpreendente.

- Que tipo de monstro é você? - perguntou ele, tentando se recompor.

- Seu próprio jogo virou-se contra você agora. - disse ela, chegando mais perto. - Eu quem faço as perguntas. Me diga onde está o caçador!

- Por que o quer e para qual propósito? - desafiou ele, não cedendo às exigências da deusa.

- Rosie Campbell. - soltou, com certo enojo. - Ela se tornou meu atual alvo assim que meu criado a considerou sua protegida, mas o caçador também exerce esse papel. Logo, ele, o caçador, deve ser entendido como a principal fraqueza dela. Em nosso primeiro encontro, eu vi o modo como ela reagiu ao se separar dele. - fitou um canto da sala, divagando sobre a luta. - Foi como se tivesse se desconectado de sua parte-irmã... como se houvesse perdido a completude. Pude ver nos seus olhos. Eles precisam um do outro mais do que nunca... - olhou para o general, arqueando uma sobrancelha. - No entanto, embora separados não signifique que ela se torna mais fraca, muito pelo contrário.

- Não estou entendendo. - disse o general, pondo uma mão na cabeça, sentindo uma dor latejante. - Rosie Campbell foi revelada por ele e é a nossa maior aposta como líder das nossas operações.

- Mas ela possui algo dentro de si que não a pertence. - afirmou Sekhmet, cada vez mais desafiadora. - Com o caçador por perto, ela se sentirá obrigada a lutar pelo que não pode salvar, e isto irá despertar sua enervação. É aí que entra minha deixa. - ela fez uma pausa, dando uma risadinha. - A protegida de seu prisioneiro guarda um poder que não pode controlar... o que a torna uma ameaça, a você e a seus comandados. Hector Crannon deve estar próximo dela.

- Aonde está querendo chegar? - perguntou Holt, estreitando os furiosos olhos.

- Eu salvarei seu exército ao salvar meu império. Eu sou uma deusa. Possuo mais poder de fogo do que todo o seu armamento. - disse ela, sentando-se em cima da mesa do general bastante à vontade ao cruzar as pernas bem torneadas. - Os seus soldados... eles disseram que sou como uma leoa feroz. Não fiquei ofendida... mas tive que mata-los. - ela assentiu, levantando as sobrancelhas. - Não permita que Rosie Campbell saia ilesa quando esse serviço terminar. Mas só terei o que quero de volta... se o caçador for libertado e voltar para ela, logo todos vão estar a salvo... da verdadeira ameaça que aquela mortal representa.

O ceticismo exalava da face do general Holt.

- Se o que diz for verdade... Então terei de repensar sobre quem deve liderar a próxima operação.

- Não faça isso. - ordenou ela, encarando-o mais de perto. - Não agora. Liberte o caçador, readmita-o, se não quiser que seus planos sejam arruinados por uma explosão de energia que pode arrasar com tudo.

- Você me pegou agora. - disse Holt, abrindo um sorriso fingido. - Está tão confiante pelo fato de saber que não tenho nenhum outro nome para ocupar a vaga de líder da operação. Considerando o que diz, meus soldados e os caçadores vão estar em risco o tempo todo. - fizera uma pausa, tentando pegar uma arma de uma gaveta disfarçadamente. - Eu farei. Mas nem pense em voltar aqui novamente, nem me encontrar em outros lugares. Tenho aliança com cientistas renomados que estão trabalhando em uma tecnologia de contenção para abominações como você. Um movimento brusco e será a primeira a experimentar a invenção.

Sekhmet rira debochadamente, com um escárnio odioso. Contagiando-se pelo riso da deusa, Holt se deixou levar, também abrindo uma risada de equivalente caráter, deixando à mostra seus brancos dentes. "Essa vadia pensa que pode me intimidar fácil. Tem poder suficiente para me matar... mas nunca, jamais vou permitir que me rebaixe!".

Cortando abruptamente a falsa descontração, Sekhmet agarrara fortemente a gola da farda de Holt, puxando-o para mais perto enquanto alterava a expressão bruscamente.

- Estou excitada, general. No entanto, não acho que esteja pronto. Para um homem que diz ter abraçado o desconhecido para encara-lo, precisa aprender muito sobre a própria natureza... tão insignificante. - afirmara ela, com ojeriza na voz. - Espero causar mais problemas para o senhor... Quem sabe assim, possamos passar mais tempo juntos. Seja lá o que estiver preparando para mim... estarei aberta a sugestões. Também gosto de experimentar coisas novas.

Holt a olhara com súbito desprazer, tendo uma ânsia de vômito subir-lhe pela garganta. Desistira de investir com a arma, dando-se conta da ausência de qualquer brecha para atacar.

- Façamos nossas partes. - afirmou ele, firme e duro. - Agora vá embora.

A deusa, em um suave movimento, foi erguendo a mão direita, misteriosa quanto às suas intenções.

- Antes... eu gostaria de saborear mais um pouco...

O general tornou a olhar apreensivo para os dedos dela balançando levemente... direcionando-se ao seu rosto.

- Não sei o que pretende, mas...

Sem nenhuma chance de poder completar a frase, o general sentiu algo ser retirado de sua face em uma fração de segundos. Quando deu por si, já se via urrando intensamente de dor... sentindo um fresco sangue gorgolejar ao perceber que seu olho esquerdo fora fácil e cruelmente arrancado.

Caindo no chão com um leve baque de seu robusto corpo, o general quase rolou tamanha era o sofrimento causado pelo ferimento.

Segurando na palma da mão o globo ocular de Holt como uma bola de tênis, Sekhmet virara as costas esbanjando calma e segurança de si mesma, alheia aos angustiantes e incessantes gritos do general que se debatia violentamente no chão.

- É assim que faz. Isso abre meu apetite. - disse ela, em seguida olhando para o globo e mordendo um pedaço, mastigando lentamente com os olhos fechados, sujando os lábios com o sangue quente.

Após o que pareceram vários minutos de tormento puro, Holt se recompunha e se levantara. A deusa já havia ido embora do escritório, a porta deixada escancarada. Fitou, com seu único olho, a porta, tapando a ferida com a mão encharcada de sangue e bufando de fúria rangendo os dentes.

Teria mais um motivo para se enfurecer depois que não visse mais o amuleto de Yuga em cima da mesa... ou, ao menos, após vê-lo fragmentado no chão.

                                                                                      ***

Área florestal de Raizenbool; 08h50. 

O som do fecho do zíper da mochila fez Rosie desvencilhar-se de suas divagações acerca do pesadelo que sentira na noite passada. "Esqueça, Rosie. Apenas esqueça", disse ela a si mesma, enquanto deixava as coisas já prontas no sofá. Armas de grosso calibre, cordas, facas, adagas, canivetes e algumas garrafas com água foram alguns dos itens indispensáveis guardados para a missão. Durante todo o resto do dia seguinte, ficara escrevendo em seu diário, lendo alguns livros românticos, saído da floresta para tomar um ar no fim da tarde e treinado seu corpo na noite esmurrando e chutando alguns sacos de areia na garagem. A exaustão recebeu de bom grado o sono profundo e relaxante que, infelizmente, fora destruído por um incômodo calor de origem, até certo momento, desconhecida.

Parada no meio da sala com as mãos na cintura, a jovem esperava que Hector fosse voltar logo, mesmo sem ter nenhuma informação de para onde ele foi ou se havia sido levado por alguém. Ou se fugiu. "Ele não pode ter decidido largar tudo assim... logo quando estávamos tão perto de arrancar informações daquele Coletor. Seria tolice minha não admitir que estou com medo de saber que ele abandonou a missão... que ele me abandonou... por mais que eu esteja desconfiada, por mais segredos que ele esconda... eu ainda preciso dele, nós precisamos um do outro, essa é a verdade.", pensou, olhando para os lados preocupada, o capuz abaixado deixando à mostra seus bem tratados cabelos pretos que iam até o busto.

Uma olhadela no relógio não custou nada. Eram nove horas em ponto.Uma plena manhã de quinta-feira. Dez minutos passados foram quase intoleráveis.

- Ah, droga. - praguejou ela, batendo o pé, impaciente. - Onde foi que você se meteu?

Algumas batidas na porta a fizeram se empertigar. Correu para ver quem era.

- Olá, senhorita Campbell. - disse um gentil caçador de aluguel de estatura mediana, meio gorducho e cabelo meio raspado.

- Ahn... Oi. - respondeu Rosie, pouco à vontade, tentando sorrir forçosamente. - Veio me dizer algo? Pode entrar. - afastou-se para dar passagem à ele e fechar porta.

- Oh, obrigado. - disse ele, entrando. - Vim repassar um recado urgente do general Holt. Pra dizer a verdade, ele não tem estado muito contente com nosso supervisor.

Rosie pôs a mão na boca, por pouco não deixando escapar uma pergunta na qual mencionaria o nome de Hector. O caçador estranhou o gesto e sorriu discretamente.

- Algum problema?

- Err... Não, nada. - disse Rosie, recompondo-se e dando uma risadinha nervosa. - E então... O que o general decidiu?

- Por decisão unânime... - ele fez uma pausa, um pouco inseguro. - Você conseguiu a licença para se tornar líder da operação.

A notícia caíra como um raio sobre Rosie. Contudo, meio que já esperava dadas as expectativas alimentadas por Hector ao sugerir a divisão do comando entre ambos. Mas o despreparo para a função lhe pareceu mais próximo do que imaginava, ficando tão insegura de si quanto o próprio mensageiro. "Por qual razão o general Holt confiaria em uma desconhecida? Ele quer mesmo apostar todas as fichas em mim?".

O caçador pigarreara, logo prosseguindo.

- Você deve assinar o contrato somente na presença do general. No entanto, só confirmaremos definitivamente através de sua decisão, sobre se concorda ou não em participar das operações.

Por alguns segundos, Rosie emudecera, sem encontrar uma maneira adequada de se portar perante aquela proposta. "É a segunda que já recebo... mas ao menos não é tão perigosa quanto a primeira.".

- Ah sim! - disse o caçador, estalando os dedos para a jovem. - Acabo de lembrar que você e o supervisor são bastante amigos! Isso é simplesmente ótimo.

- Por que?

- Bem... - ele ficara tímido, rindo baixinho. - Você deve ter sido treinada por ele, talvez saiba o básico... quero dizer, o suficiente. Ahn... desculpe se soei mal ao dizer básico e...

- Não, tudo bem, não foi ofensivo. - suavizou Rosie, erguendo levemente uma mão para acalma-lo. - A propósito, sabe onde ele está?

- O supervisor? Bom... - ele deu de ombros, parecendo saber pouco. -  O general, pelo que me disseram, suspeitava dele e o manteve sob custódia, mas acredito que poderão libera-lo dentro das próximas 24 horas, e, também pelo que me disseram, revelou sua existência, foi assim que consegui vir até aqui.  É provável que você e ele cheguem a dividir o comando... e ele finalmente mostre o rosto. - disse, satisfeito.

A jovem petrificara a expressão, aparentando estar imersa em um transe hipnótico, novamente assaltada por divagações. "Será verdade que... o general Holt descobriu o suposto crime de Hector? É bem plausível... se levar em conta que havia cartazes espalhados por aí. Talvez seja isso mesmo. Hector foi desmascarado e agora deve muitas explicações.".

- Olha, eu já arrumei algumas coisas... Pra falar a verdade, eu já estava decidida sobre isso. - disse Rosie, olhando para a mochila no sofá. - Eu tenho que fazer isso. - assentiu para si mesma. - Diga ao general que estou me preparando, ainda hoje quero assinar esse contrato. - seu tom era de pura decisão.

O caçador sorriu abertamente, empolgado.

- Ótimo. - disse ele, encaminhando-se para a porta. - Muito obrigado pela atenção, senhorita Campbell.

- Me chame só de Rosie. - disse ela, retribuindo-lhe com um sorriso amigável, acompanhando-o.

- Está bem então, brevemente um transporte virá para conduzi-la até o QG. - afirmou ele, saindo. - Até mais... Rosie. - logo rira, acenando ao se despedir.

- Até. - retrucou ela, com um sorriso moderado e fechando a porta em seguida.

Com um belo suspiro descansado, encostara-se por um breve momento, olhando pensativa para o teto alto da sala de estar. "Provavelmente Áker não vai estar por perto enquanto eu estiver resgatando os outros. Hector foi pego desprevenido e sem chance de usar o amuleto para pedir ajuda, talvez até tenham tomado dele sem intenção de devolver. Tudo bem... Acalme-se, Rosie, quando tudo isso acabar, quando todos os amigos estiverem a salvo... você vai arrancar toda a verdade dele, sem medo.".

- Rosie Campbell... - soou uma voz rouca e monstruosa.

A jovem se desvencilhou de seus pensamentos e fixou seus olhos na figura a alguns metros à frente. Seu semblante calmo logo se transformou em um misto de surpresa, alerta e sensação de ameaça. Um dos soldados de Abamanu estava parado na sala vestindo uma armadura de prata clara e segurando sua lança, fitando-a com seus lupinos olhos amarelos.

Por instinto, Rosie avançara contra ele rapidamente, sacando uma espada antes presa na parede, logo atacando-o com um movimento preciso. O soldado se defendera com a lança, uma colisão de metais faiscando. A bela o fulminava com o olhar enquanto forçava a lâmina contra a desconhecida liga metálica da arma do adversário.

- O que você faz aqui? Por que o enviaram? - perguntou ela, ríspida.

- Se largasse a espada... seria possível falar. - disse ele, claramente sem intenções para conflitos.

Assimilando com desconfiança a postura "amigável" do servo do Cavaleiro da Noite Eterna, Rosie recuara vários passos rapidamente, mantendo a espada firme numa mão, a lâmina cintilando.

- Obrigado. - respondeu ele.

- Nada de agradecimentos, diz logo porque foi mandado até mim. - redarguiu Rosie, impaciente.

- Meu nobre Lorde quer vê-la.

- Seja mais específico. - exigiu ela, relanceando a mochila no sofá atrás dele.

- Você é a privilegiada. Ele quer evitar a todo custo que nosso maior inimigo tome posse de seu corpo. Ele propôs um encontro pacífico nesta noite em seu palácio. No entanto, você vai estar ciente das restrições quando ao limites em que deve atravessar.

- Isso tem a ver com Charlie, eu presumo. - arriscou ela, incerta. - É óbvio. Está fazendo isso para me provocar e me fazer acreditar que nossa vitória é impossível.

- A localização do mago do tempo será um assunto à parte. - informou ele, deixando a lança na vertical. - Eu e mais um dos nossos serão os encarregados de leva-la. Esteja pronta quando a lua cheia estiver em um ponto considerável. A única proibição é com relação a premeditar planos para o resgate do mago do tempo. A pacificidade será cancelada se for descoberto qualquer vestígio de uma emboscada ou presenças de aliados. Se assim for, você acabará sendo punida.

Rosie respirara com força, tentando não golpear aquele soldado com espada. "Controle-se.". Desnorteada com surpreendente ideia de Abamanu, ela não pensou duas vezes antes de decidir. "Não sei se ele está escondendo algum jogo ou querendo me passar a impressão de que quer facilitar as coisas. Deve achar que sou idiota o bastante para acreditar que é tão simples.".

- Convite recusado. - disparou ela, largando a espada no chão. - Tenho algo mais importante a tratar com outras pessoas para o resto do dia.

- A recusa significa a morte de um dos nossos prisioneiros que também são seus aliados. - atacou o soldado, lambendo sua enorme boca e salivando constantemente.

"Desgraçado!", pensou Rosie, rangendo os dentes.

- Seja sincero: Você sugeriu isso só porque recusei ou seu Lorde é quem estabeleceu? - perguntou ela, intrigada.

- Ele próprio idealizou. - confirmou, assumindo uma postura civilizada. - Nossas intenções, no momento, estão distantes de conflitos. Lorde tem algo importante a lhe dizer. É melhor que vá.

Sumindo em um piscar de olhos e imperceptivelmente, o soldado fora embora sem perder mais tempo forçando uma civilidade com a qual não simpatizava nem um pouco. Muito pelo contrário, deixou sua posição ambígua ao demonstrar fome quando salivou para Rosie. A jovem olhara para os lados, rendida e com os ombros caídos. "Saída repentina para escapar de mais perguntas.".

- Mas que merda. - disse para si mesma, passando as mãos pelo rosto e andando de um lado para o outro. - E justo quando tenho a chance de me unir aos caçadores... Não, só preciso ter calma. Hector talvez apareça mais tarde. Só preciso ligar para aquele número... - tirou do bolso da calça vermelho-escuro apertada o papel dobrado com o número de contato que o caçador lhe deu.

Discando apressadamente, ela relanceava o relógio a cada dois segundos, a impaciência fervendo.

Por fim, alguém atendera.

- Olá... - disse ela, timidamente. - Aqui é Rosie Campbell. Eu gostaria de adiar minha admissão.

                                                                                          ***

Em um dos QGs alternativos do Exército Britânico, Hector estava sendo conduzido por dois soldados truculentos e de caras fechadas em um corredor de concreto cinza mal iluminado, sob o aperto insuportável das algemas em seus pulsos tão doloridos. Ainda se questionava sobre sua soltura repentina. O som dos passos pelo chão liso era o único que predominava.

Pararam na metade do corredor, para a surpresa do ex-prisioneiro. Um dos soldados, meio loiro de cabelo curto e face dura, sacou uma chave e se dispôs a libertar o caçador das algemas.

"Tenho certeza que me soltar antes de chegarmos lá fora não foi uma das ordens de Holt.", pensou ele, ainda surpreso.

O jovem soldado o olhou... exibindo um inconfundível brilho amarelado nas pupilas.

"Não pode ser...".

Tocando seus pulsos, ele sentiu o gosto da liberdade, Hector e o soldado se entreolharam por um breve instante. Um confronto entre revelação desesperada e desconfiança. O outro - pardo e sisudo - pusera a mão no ombro do caçador, fazendo que sim com a cabeça... e mostrando o mesmo brilho nos olhos.

                                                                                            ***

O ruído do motor de um veículo blindado - pintado de verde escuro e marrom claro - entrava em ignição, estacionado no enorme pátio do lado de fora do QG. 

Alguns caçadores e soldados do Exército conversavam antes de entrarem, empunhando suas metralhadoras e rifles de grosso calibre. 

De uma porta dos fundos do prédio saíra Hector, dirigindo-se com pressa à Edgar - que o aguardava próximo ao carro, seu colete marrom escuro repleto de munições prendidas em cintos envoltos do corpo. 

- E então, como foi com o General? - perguntou ele, olhando para Hector com expectativa. 

- Um pouco tenso, eu diria. - respondeu, parecendo cansado, mas preparado para a missão. - Ele aceitou minhas solicitações, até aí tudo bem. Você soube de antemão que eu estaria em uma missão de teste? 

- Bem, eu não fui totalmente honesto com você... - disse Edgar, coçando a cabeça e olhando de soslaio para um ponto do chão, meio sem jeito. 

- Ah, como isso me assusta... - reclamou Hector, desviando o olhar para um lado, temente. 

- Está tudo bem. Podemos assumir que eu estava querendo que você se surpreendesse. 

- Eu me prepararia melhor se tivesse me contado antes. - retrucou Hector, lançando um sorriso nervoso. 

- É a primeira vez que vou ver um caçador da Legião em ação, então... - ele tocara o ombro direito de Hector sorrindo abertamente. - ... não me decepcione. 

Hector baixara a cabeça, também sorrindo, um tanto encabulado por ter que servir de exemplo para inspirar um caçador de aluguel que se auto-exilou do Colégio dos Caçadores. 

- Ahn... Edgar. - chamou Hector, antes que o companheiro entrasse no carro. - O General não me especificou o objetivo do teste. Para onde nós vamos. 

Suspirando, decepcionado com a falta de clareza do general Holt, Edgar descera do veículo. 

- Ele disse isso mesmo? Teste? 

- Sim. - disse Hector, assentindo com a cara fechada ao lembrar da forma quase indiferente do chefe ranzinza em se portar diante do caçador. 

- Teste o cacete. - respondeu Edgar, balançando a cabeça levemente em negação. - Esta é sua primeira missão oficial conosco. Ele apenas disse isso porque está o subestimando. Acha que conhece os homens que recruta como a palma da mão. - deu de ombros, despreocupado. - Não ligo para o que ele pensa. Acredita que é o único que está no controle. 

- Pode não estar totalmente... - disse uma voz áspera por trás de Edgar. - Mas é o que está mais gerando influência sobre nós. - argumentou um soldado de alta estatura e face vigorosa. - Seu chefe caçador pouco está contribuindo e ainda se acha no direito de dar palpites na administração do General?!

Edgar virara-se para ele, exibindo um semblante de tédio e pouco interesse. 

- Olha, se vamos discutir qual chefe é melhor... Prefiro que seja quando tudo estiver acabado, quando não formos mais "colegas". - disse, fazendo aspas com os dedos. 

O soldado o fuzilou com um olhar. 

- Meça suas palavras... soldado. - rebateu ele, virando as costas. 

- Você também... caçador. - redarguiu Edgar, com ironia. Voltou-se para Hector, empertigando-se. - Muito bem, hora de irmos. Chesterfield, condado de Derbyshire. Lar dos meus tios e primos. As tropas que comando estão posicionadas lá como vigilantes e nos informaram que há várias vans estacionadas perto das residências. Eles suspeitam que os infectados estejam sequestrando pessoas para conduzi-las ao covil do cabeça desse plano ardiloso. - inclinou-se para frente para sussurrar algo. - Aquele que você não quer que eu mencione entre eles. 

- Há quanto tempo receberam o último alerta? - perguntou Hector, adquirindo tensão. 

- Uns dez minutos, aproximadamente. 

- Então devemos ir rápido. - disse Hector, abrindo a porta do veículo. - Seja lá o que nos espera... É bom que tenhamos a chance de ir mais longe e cortar o mal pela raiz. 

                                                                                       ***

A respiração calma de Alexia tranquilizava os nervos de sua mais nova mentora.

Uma lâmpada de luz amarela e de pouca expansão era a única fonte de claridade utilizada, algo que, segundo julgava a administradora do procedimento, favorecia o relaxamento dos músculos da pessoa, sendo assim a pouca luminosidade não causando nenhum tipo de tensão. O ensinamento primordial era focar-se no processo, não nos cantos escuros e penumbrais da sala.

Estavam em uma cabana abandonada, tendo chegado no início da tarde. A vidente decidira que fosse melhor encarar a prova no dia seguinte, logo pela manhã. Na noite passada, as duas foram ao teatro divertir-se um pouco... com Eleonor disfarçada com uma peruca loira e estilosa e vestidos com os quais não estava nem um pouco familiarizada. Era desconfortável, de fato, mas era por uma boa causa... uma causa de sobrevivência, de manter-se irreconhecível por quem quer que estivesse observando-a. "Elas podem estar por toda parte.", avisara ela para sua nova amiga logo na entrada do teatro, a atenção redobrada.

Naquela manhã, a vidente estava sentada em uma pequena cadeira de madeira e sem braços. Os olhos fixos em Eleonor, apresentando uma coragem para processar o que viesse lhe surpreender.

A bruxa a fitava condescendente, vestindo seu costumeiro vestido de seda azul com decote.

- Antes de mais nada, apenas quero perguntar... - disse ela, chegando mais perto. - Está pronta?

Alexia fez que sim com a cabeça.

- Estou disposta a enfrentar esse desafio, não importam as consequências. - afirmou ela, decidida.

- Tem certeza? Está tão calma que está me assustando. - disse a bruxa, tornando a rir.

A vidente retribuíra com um riso leve, mas que não desviasse seu foco.

- Bem, vamos lá. - disse Eleonor, sacando um pêndulo dourado. - Prometi a você que não iria esconder absolutamente nada sobre o papel que você representa para o mundo. - ela fez uma pausa, afastando uma mecha do cabelo. - Alexia... Você possui uma importância que jamais pensou que teria. Pertencente a uma das mais misteriosas linhagens já conhecidas. Os Profetas nunca foram totalmente reconhecidos, mas as bruxas, creio eu, teriam sido um dos poucos clãs que tinham conhecimento deles, talvez o único.

- Causar problemas é o papel que mais exerço. - disse Alexia, assumindo uma espécie de auto-depreciação. A sensação de inutilidade sempre retornava.

- Não diga isso. Os Profetas são extremamente essenciais para o mundo... mas também podem causar malefícios se suas visões forem expostas, e o maior risco que eles enfrentam é terem seus dons descobertos e acabarem sendo explorados por aproveitadores, essa é a parte perigosa. - informou Eleonor, deixando-se contagiar pela tranquilidade da vidente. - E isso ocorreu à você, infelizmente. - disse ela, sem se dar ao luxo de mencionar Robert Loub. - A cada 100 anos um Profeta ou Profetisa vêm ao mundo. Você, Alexia, é a profetisa desta geração, além de ser a primeira que conheci. - aproximara-se mais dela, erguendo o objeto que segurava. - Este pêndulo... é algo comumente utilizado em sessões de hipnose. Eu sabia que você estava um pouco nervosa por temer que eu fosse usar bruxaria...

- Não, está bem. - disse Alexia, interrompendo-a. - Contanto que me ajude a controlar os impulsos dos meus sonhos... acho que qualquer método eficaz seria bem-vindo. - ela assentiu, seus cabelos ruivos alaranjados reluzindo à luz da lâmpada.

- Não tenha tanta certeza. - reprovou Eleonor, balançando a cabeça de leve. - A hipnose é o único meio que não abrange riscos maiores. Eu conheço pouco dos Profetas pelo fato que mencionei antes. Quanto mais o tempo passa mais eles vão sendo esquecidos. Mas foi o suficiente para crer que a técnica de regressão pode responder suas dúvidas. - disse a bruxa, intencionando transmitir perseverança à vidente.

- Sim, já ouvi falar. Para os médiuns, se tratava de um modo de se conectar às vidas passadas.

- É verdade, mas como você é uma profetisa... - ela suspirou. - Você não exatamente verá o que foi em uma outra vida... mas sim o que ocorreu no passado mais distante possível.

Empertigando-se, Alexia fez uma expressão de alguém que não acreditou no que acabou de ouvir.

- Visões do passado? Não faz nenhum sentido.

- É o que parece, mas é possível, acredite. - confirmou Eleonor, com um aceno positivo de cabeça. - A regressão torna isto possível. O que verá terá total relação com as recentes visões que teve. - ela levantou uma sobrancelha, indicando suspicácia. - Que com certeza você ainda pretende guardar pra si mesma.

Um ligeiro desconforto acometeu a vidente, fazendo os músculos deixarem de se retesar.

- Acho que a razão pela qual eu escolho deixar assim seja bem óbvia pra você. - disse ela, desviando o olhar para um canto do chão. - E como eu disse antes... Minhas últimas visões tem relação direta com Rosie, por isso estou tentando manter a calma, ou ao menos afastar os pensamentos ruins.

- Então são premonições maléficas?! - murmurou Eleonor, deixando escapar um ar de preocupação.

- Bem... - Alexia relutava em querer relatar algo além daquilo. - Não acha melhor começarmos logo? Me sinto tão... preparada. - ela deu um sorriso confuso, desconversando.

"O que pode ser tão grave sobre Rosie que Alexia insiste em esconder?", pensou a bruxa, pensativa por alguns segundos. "Mais um motivo pelo qual devo reencontrar Hector. Estou com a estranha sensação de que... há algo muito sério ocorrendo, algumas coisas parecem fora do lugar, tudo está muito diferente... desde aquela noite.".

Dando um suspiro pesado, Eleonor erguera novamente o pêndulo, iniciando de vez o processo.

- Muito bem, Alexia, preciso que se concentre. - disse ela calmamente, balançando o objeto de um lado para o outro. - Acompanhe o movimento... atentamente. - suavizou o tom para que mantivesse a calmaria da vidente inabalável. - Relaxe... somente relaxe... como se sentisse com sono... bastante sono.

Os azuis olhos de Alexia seguiam concentradamente os repetitivos movimentos do pêndulo, ignorando o silêncio da sala que permitia que ela ouvisse as batidas do próprio coração. Uma sensação de paz invadira seu âmago, seguida de uma estranha fadiga que lhe proporcionava mais relaxamento. Suas pálpebras, a cada segundo que o pêndulo se movimentava para a direita e esquerda, ficavam mais pesadas e isto se intensificaria até que não pudesse mais controlar ou resistir.

O pêndulo balançava um pouco mais rápido. Os olhos estreitados e cansados de Alexia ainda acompanhavam-o...

Passaram-se, então, 3 minutos. O tempo preciso para que alguém já se encontre em completo domínio perante a regressão.

E Alexia adormecera, a cabeça inclinando-se levemente para um lado.

"Excelente. Agora só basta esperar...". Eleonor mantinha-se em pé, observando-a com máxima atenção. "Parece ter entrado em um sono profundo instantaneamente. Provavelmente não vai demorar a sonhar, pelo menos não mais do que cinco minutos.".

O pequeno relógio na parede à direita, pouco iluminado pela lâmpada, marcavam 09h35. Eleonor se limitou a andar vagarosamente de um lado para o outro, esperando pacientemente por uma resposta.

A vidente, em sua mente, sentia-se em um outro mundo. Um campo aberto, meio gramado, com uma vegetação um tanto seca e não muito alta. O vento soprava forte, esvoaçando seus cabelos ruivos e seu vestido de seda púrpuro. O dia estava ensolarado, as poucas nuvens volumosas mas calmas.

Até que veio o retumbante estrondo, como um poderoso trovão... fazendo a terra vibrar por vários segundos. Alexia, quase perdendo o equilíbrio, sentiu o coração praticamente saltar pela boca. "Mas o que foi isso?", pensou, apavorada. Instintivamente, olhara para cima... e tivera a visão mais aterradora que já testemunhou.

Figuras espectrais desciam dos céus rapidamente, bloqueando a luz do sol intermitentemente, fazendo, assim, uma verdadeira, rápida e assustadora intercalação entre noite e dia.

Alexia não entendia o porque. Apenas fitou, horrorizada e sem palavras, o confronto que ocorria nos céus. Dois seres alados se digladiando, os sons de suas armas reverberando de modo estridente por todo o espaço. Um possuía asas similares a de um morcego e poderia-se assemelhar sua cabeça a de um lobo. O outro claramente tinha longas asas de pássaro e uma cabeça similar a de uma ave de rapina.

A luta ficara mais brutal e intensa, parecia não ter fim. Tudo soava como uma tempestade de caráter apocalíptico.

Ajoelhando-se e sentindo-se sem forças, Alexia chorava, pondo as mãos nos ouvidos... até gritar como forma de súplica.

- Parem! Parem! Parem! PAREM!- berrava ela, sua voz extremamente abafada devido a confusão de barulhos estrondosos que ressoavam nos céus.

No mundo real, Eleonor começou a notar os primeiros sinais de reações. Se aproximou e inclinou-se para ela a fim de acalma-la. Alexia suava em demasia, fazendo uma cara de desconforto e querendo se debater como se algo estivesse prendendo-a.

- Alexia... - sussurrava a bruxa, amparando-a. - Diga-me. O que está vendo?

Ela se esforçava para emitir algum som, enquanto seu tormento só aumentava. Soltou apenas gemidos angustiados e chorosos, virando o rosto para os lados rapidamente.

- Está tudo bem. Só me diga o que vê. - disse Eleonor, mantendo o tom de voz.

- São... São enormes! - exclamou ela. - Eles não param! Não param!

Percebendo que não conseguiria nada enquanto ela estivesse no transe, a moça suspirou longamente e resolvera cessar o processo. "Certamente deve ser uma visão bem trágica.".

- Hora de acordar, Alexia. - bradou ela, logo em seguida estalando os dedos próximo ao rosto da vidente.

Com um súbito sobressalto, Alexia despertou arquejante e com uma face de pânico estampada. Eleonor a segurou para que não caísse da cadeira, chiando levemente para acalma-la.

- Está tudo bem, você já acordou... - apoiou a bruxa segurando os ombros dela. - Como se sente?

A jovem olhou para ela com caráter alertante.

- Como se tivesse voltado milhares de anos no tempo. - disse ela, a respiração forte. - Pareceu tão real. Aqueles dois... seres gigantes se enfrentando nos céus...

- Que tipos de seres? - perguntou Eleonor, com expectativa.

- Algo me diz... que presenciei a luta entre Abamanu... e seu oposto, Yuga. - disparou Alexia, deixando uma lágrima escorrer pelo rosto. - Na noite em que estávamos nas Ruínas Cinzas, Abamanu disse à Rosie que ela está sendo ameaçada pelo seu inimigo... Yuga. E que deveria protege-la dele.

- Então... é isso. - Eleonor ficara reflexiva novamente, baixando a cabeça para pensar. - Rosie provavelmente foi forçada a escolher qual dos dois lados ficar... e agora pode estar dividida e desesperada.

- Você parece se importar bastante com ela. - comentou Alexia, percebendo a aflição repentina da bruxa sobre o destino da jovem. - Mas mal a conhece.

- É... eu sei, é estranho. - disse ela erguendo a cabeça, reprimindo uma lágrima. - Hector me falou tão bem dela que... - ela rira. - Acho que me tornei uma bruxa muito sentimental, que se importa com qualquer pessoa que necessite de ajuda. Principalmente com aqueles que tem ligações com os que já cruzei e formei uma aliança.

Levantando-se, Alexia recobrou a compostura tranquila com a qual inicialmente estava, cravando um olhar penetrante em Eleonor, como se fosse fazer um pedido apressado.

- Ainda não me contou por que você e Hector se separaram.

- Irei cumprir minha promessa, Alexia, fique sossegada. - garantiu ela, determinada. - Mas confesso estar arrependida de ter feito o que fiz à ele. - fez uma pausa, adquirindo uma expressão aflita. - E o resultado me faz sentir culpada pelo perigo que Rosie pode estar correndo.

Alexia balançava a cabeça, esboçando uma face confusa. "Que estranho. Ela fala como se, de alguma forma, conhecesse Rosie há um bom tempo. Será uma parente distante? Se fosse, ela, obviamente, mencionaria enquanto me contava sobre o que ocorreu antes de me encontrar. Só está revelando aos poucos... E agora passo a me questionar quanto a guardar minhas visões em segredo. Quanto mais ela falar, mais obrigada vou me sentir a retribuir.".

- O que quer dizer? - perguntou a vidente, sem entender.

- Rosie e Hector não podem estar próximos. - afirmou ela, o tom firme. - Não nessa fase turbulenta onde Abamanu está reinando aqui na Terra. Rosie está triplamente ameaçada.

- Ainda não me convenceu. - disse Alexia, dando de ombros, mas curiosa pelo mistério que a bruxa fazia em torno da situação grave. - Por qual razão Hector, além de dois deuses poderosos, ameaçaria Rosie?

As mãos trêmulas de Eleonor se evidenciaram cada vez mais. A vidente percebera a apreensão da amiga e se limitou a encara-la com inquietação.

- Alexia... Eu preciso ir para meu quarto, agora mesmo. - disse Eleonor, aproximando-se do interruptor para acender a segunda lâmpada da sala, mais forte e mais nova. - Mas eu prometo que saberá o motivo, em breve. Só preciso ganhar tempo. - disse, acendendo a luz que banhou todo o recinto. Virou-se para a vidente. - Devo reencontrar Hector... e impedi-lo.

- De quê? - indagou Alexia, franzindo o cenho.

- De perder o controle. Vai saber com mais detalhes ainda hoje, prometo à você. - já se encaminhava para a porta. - Preciso ir rápido treinar uma magia, ela vai ser essencial para acha-lo. - girou a maçaneta, abrindo a porta.

- Espere! - disse Alexia, andando depressa até ela. - Preciso que faça mais uma sessão comigo.

- Ainda hoje? - perguntou a bruxa, levantando uma sobrancelha.

- Não... - balbuciou a vidente, intimidada com a urgência que Eleonor emitia em seus olhos. - Pode ser amanhã. - disse ela, suspirando calma. - Se conseguir... o que pretende fazer depois?

- Talvez eu considere trazê-lo para cá. - afirmou Eleonor, pensativa quanto àquilo. - Mantendo-o bem longe de Rosie e oferecendo meu apoio... só assim vou ter uma chance de me redimir.

                                                                                         ***

Área florestal de Raizenbool; 22h20

A lua cheia se fazia reluzente e pálida em meio ao céu lindamente estrelado.

Em algum ponto da floresta estava Rosie... parada diante de Áker, proferindo, do modo mais cauteloso possível, a explicação referente ao inesperado convite pacífico de Abamanu. Estava à espera dos soldados do deus lunar para leva-la ao palácio secreto, tendo seu nervosismo e ansiedade crescentes.

- Uma trégua!? - disse o arauto, cético, balançando a cabeça em negação. - Inacreditável. Ao meu ver, é uma tentativa de golpe, e bem certeiro na sua esperança.

- Além do mais - disse Rosie, mal contendo sua inquietação - o soldado disse que se trata de algo importante. Posso estar errada, mas... sinto que se aproveitaram da minha curiosidade. - suspirou, desalentada. - Ameaçaram matar um dos meus amigos se eu recusasse.

- E se for uma armadilha? - deduziu Áker, andando para um lado, pensativo.

- Essa foi minha primeira suspeita. - retrucou Rosie, olhando-o com certa empolgação. - E o que me motivou a chama-lo.

O mensageiro de Yuga parara e virara-se para ela, encarando-a preocupado.

- Quer que eu interfira de alguma forma? - perguntou ele, parecendo já saber a resposta.

- O que você acha? - Rosie dera de ombros, deixando a questão bem clara. - Olha, tudo pode acontecer nesse encontro, inclusive uma ameaça direta à mim com base na suspeita de que seja uma cilada.

- Não espera que eu resgate o mago do tempo, certo? - indagou ele, franzindo o rosto.

- Se é que Charlie está lá... - disse Rosie, imaginando com pesar a figura do jovem físico. - A pacificidade é só uma fachada. Não entendo porque ele considerou essa ideia mesmo sabendo que não sou idiota pra não suspeitar.

- Então pode-se entender como um aproveitamento. - afirmou Áker, chegando mais perto dela. - Ele quer algo de você. Há milhões de possibilidades e sugestões, mas, infelizmente, é uma coisa que só se descobrirá se for até lá. Não deixe que a usem. Não facilite o trabalho sujo dele.

- "Não deixe que a usem". - repetiu Rosie, soltando um resmungo de raiva e virando-se para um lado para caminhar lentamente, olhando para o chão. - Engraçado você dizer isso... Como se eu não lembrasse do que Yuga quer fazer comigo.

- Ainda há tempo de se decidir. - insistiu Áker. - Mas não vou pôr isso em discussão agora, portanto pretendo respeitar seu instante de pressa e ansiedade a níveis extremos. - ouvira, de repente, ruídos de passos por entre as folhas secas em todo o chão da floresta, olhando rapidamente para a exata direção de onde vinham. - Estão vindo. Melhor se preparar.

- Está bem. - disse Rosie aos sussurros e assentindo, - Você virá, não é?

- Desde que não a revistem... É bom que mantenha o amuleto seguro consigo, só assim poderei acha-la. Vou me manter escondido no ponto mais próximo em que estiver.

- O.k. - respondeu ela, sem olha-lo, fixando sua atenção nos soldados que se avizinhavam com suspense na densa floresta banhada pela luz fria da lua.

O arauto desaparecera em questão de milésimos, deixando Rosie solitária por um breve tempo. Cerca de três minutos passados, os dois lobos bípedes, segurando suas lanças, surgiram irrompendo pelas volumosas folhagens dos arbustos, os olhos amarelos fitando a jovem diretamente parecendo intencionar uma intimidação. Rosie não se surpreendeu com aquele gesto, sendo para ela algo forçado e desnecessário. "Idiotas. Tentem ser mais originais se quiserem me pôr medo.".

- Rosie Campbell - bradou um soldado, sua voz rouca e incômoda. - Venha conosco.

- Como pretendem me levar até lá? Alguma fórmula mágica? - perguntou Rosie, olhando-os com ironia na face.

- Graças as memórias do receptáculo de nosso Lorde compartilhadas com ele, temos em mãos uma magia para nos teleportarmos, mas só usaremos em casos específicos, como este. - disse o outro, empertigando-se soberbamente.

"Espera aí... Mollock sabia de uma magia de teleporte?! Mas como? E é possível que as memórias da casca sejam compartilhadas com as do possessor?", questionou Rosie, intrigada a respeito daquela questão, o que a fez lembrar de sua provável e iminente decisão sobre Yuga. Andara até eles, exibindo uma face mais séria desta vez, como se quisesse transparecer a completa ausência de temor perante à uma experiência daquelas.

- Muito bem. - disse ela, colocando-se ousadamente no meio dos dois. - Já podem nos tirar daqui.

                                                                                         ***

A sala de estar estava com sua luzes acesas. Abajures a base de pilhas espalhados pelos móveis - estantes, cômodas e mesas pequenas. Áker andava tranquilamente de um lado para o outro, como se estivesse à espera do momento certo para agir, tratando o lar da dupla de aventureiros como um refúgio, talvez da ameaça de Sekhmet que, estranhamente, não deu sinais de sua presença naquele dia.

"Ela pode estar ocupada planejando uma ofensiva contra Rosie, recrutando soldados coagidos a agir a favor de seus interesses.", pensava ele, andando de um lado para o outro. "É exatamente isso que me preocupa. Sekhmet estando aliada com um Coletor... e os Coletores aliados à Abamanu... Não me soaria estranho que ambos estivessem juntos e Abamanu, incentivado por ela, tenha tido esta ideia. Uma condução perfeita para uma armadilha mortal...".

A presença sorrateira de Hector descendo devagar a escada cortara os pensamentos do arauto. Ele se virara, logo denotando sua surpresa.

- Hector?! Pensei que estivesse...

O caçador ergueu uma mão pedindo para Áker não completar a frase. Andara até ele, a expressão séria e dura.

- Tenho sorte que esteja aqui. - disse ele, tocando o arauto no ombro. - Preciso de sua ajuda. É urgente. - o caçador não demonstrava estar se sentindo bem, embora tentasse se conter.

- Rosie e eu estávamos preocupados. Por onde andou?

- Fui mantido preso... - relatou ele, seu olho esquerdo tremendo - Pela suspeita de um crime. Rosie não pode saber disso... muito menos que fui libertado.

- E por que quer manter sua liberdade em segredo? - perguntou Áker, sem entender as motivações de Hector. - Rosie não parece ser do tipo que aprecia boas mentiras.

- Ela odeia. - salientou ele, cerrando os punhos, a voz embargada de desconforto. - Além do mais, Áker... Eu sinto muito, mas muito mesmo. Meu amuleto foi confiscado pelo General Holt. Ser trancafiado naquela sala por horas... despertou meus instintos mais selvagens. - Hector começou a tremer discretamente, mas foi o bastante para o arauto notar algo errado.

- Não parece estar bem. - afirmou Áker, olhando-o com suspicácia. - De qualquer modo, não pode se esconder por muito tempo. Cedo ou tarde, você e Rosie estarão juntos novamente. - ele fez uma pausa, analisando-o. - O que sugere que eu faça para ajuda-lo?

Hector iniciou uma respiração mais pesada, um mal-estar de atravessar os nervos. Virou-se para a escada e andou até ela praticamente cambaleando.

- Siga-me. - pediu ele.

O segundo e último andar do casarão era composto por um corredor sem iluminação, dotado de paredes cinzas descascadas e rachadas e um piso de uma madeira insuportavelmente rangente. Na extensão, viam-se portas - umas quatro ao todo -, sendo estas entradas para quartos de hóspedes que não receberam atenção adequada para serem organizados e higienizados.

Curiosamente, havia uma porta no fim daquele corredor, sendo esta a quinta. Abrindo-a com cuidado, Hector sentiu o forte cheiro de poeira invadir-lhe as narinas. Indiferente aos odores execráveis, ele seguiu adiante, andando mais rápido até a parede oposta. Áker o seguiu paciente e em silêncio. Uma janela envidraçada deixava a luz do luar chegar a boa parte do recinto.

Aproximando-se da penumbra, o caçador deixou à mostra dois ferros circulares conectados à correntes enferrujadas e prendeu-os próximos aos calcanhares. Pegara mais outros dois e colocou-os nos pulsos, a dor do aperto lancinando com estalo dos fechos.

O arauto observava-o com certa curiosidade na escuridão.

- Sei muito bem o que está sentindo. Anseia por entender algo que parece domina-lo completamente. - ele fez uma pausa, olhando para a janela. - Os estímulos externos... pulsando dentro de seu ser. Influenciando-o sem escrúpulos.

Hector tentava manter-se consciente da realidade enquanto olhava desalentado para o arauto.

- Não vou culpa-lo por ter se feito de desentendido. - afirmou o caçador, respirando cada vez mais pesadamente.

- Mas eu não sei o que você se tornou. - retrucou Áker, firme. - Não conheço as maldições humanas.

- Então verá. - disse Hector, olhando de soslaio para a lua cheia. - A razão... pela qual eu não posso, em hipótese alguma, proteger Rosie, como me prometi há algum tempo. Depois que fui libertado, sabe-se lá porque, a única pessoa que me veio à cabeça... foi você. Eu não sabia mais a quem recorrer. - fez uma pausa, fitando o chão com os olhos marejados. - Não consigo controlar... essa ânsia... essa sede que me consome até o limite da loucura.

Áker estreitou os olhos, estudando-o e compreendendo exatamente a situação.

- O que lhe atormenta tanto? - perguntou ele, interessado em apoia-lo.

- Há... um monstro dentro de mim... - começou Hector, ainda cabisbaixo. - Ele consegue me abater com afirmações que vão contra meus princípios. Me faz ver que me perdi de mim mesmo. Corrói tudo que me torna eu. - erguera a cabeça, olhando para Áker, chorando. - Não vou pedir para que me livre dessa provação. Mereço estar nesta condição, cometi mais erros do que consigo suportar. Este é o preço.

- Significa que está disposto a sacrificar sua própria humanidade... em prol da sobrevivência de Rosie? - disparou Áker, rapidamente assimilando o ponto exato onde o caçador queria chegar.

- Eu estou disposto... - sua voz falhara, deixando claro que não conseguia mais controlar a si mesmo. - ... a me distanciar de Rosie... para que ela sobreviva. Eu falhei miseravelmente. Falhei com meus amigos, com minha família... Sou uma ameaça em potencial para Rosie. - fizera caretas de desconforto intenso, mal aguentando-se em pé. - Proteja-a, Áker. Você faria isto melhor do que eu, tenho certeza.

- Hector, se pensarmos no futuro... - disse ele, dando alguns passos à frente - Você verá que Rosie, uma hora ou outra, vai acabar decidindo sobre a proposta. Mandarei o comunicado a minha majestade e tudo o que ele sonhou irá se realizar prosperamente. Após isso, no entanto, não terei mais utilidade para com Rosie. Meu trabalho estará encerrado. - fez uma pausa, inclinando-se para ele. - Seu dever como protetor não se cancela comigo por perto. Mas para que sua imagem seja convincente... não terá que sacrificar sua humanidade para se entregar ao seu monstro interior... mas sim sacrificar aquilo que o força a guardar tantos segredos. Se agir assim... sendo honesto com Rosie e consigo mesmo, as forças que ambos compartilham se tornarão imbatíveis.

O conselho motivador de Áker lhe proporcionou um lampejo que o fez ficar reflexivo por vários segundos. Era de se esperar que fosse lidar com a questão excruciante sobre honestidade mútua. Uma sensação de impotência invadiu-lhe a alma, ao passo que a respiração tornava-se mais intensa. Hesitava em olhar para a lua, mas a claridade que adentrava tornava quase impossível não virar o rosto para a esquerda.

- É estranho... Eu vinha controlando isso por um bom tempo... mas só agora parece me torturar. - ditou o caçador, inquieto. - Só há um jeito de isso acabar. Esta só é a primeira de muitas vezes em que irei me sentir assim. O que você disse é completamente impossível. - andou alguns passos cambaleantes à frente, o olhar tornando-se raivoso e penetrante. - O que existe em mim... o sangue corre nas minhas veias agora... não existe uma cura que possa purifica-lo. Não há cura para meu mal.

- Se entregar a seu demônio interior é o caminho mais curto para a perdição. - afirmou Áker, preocupado quanto ao estado do caçador. - Hector, não vou força-lo a cometer atos de loucura que possam vir a destruir qualquer laço que tenha com alguém. Pense em seus amigos. Pense nas possibilidades.

- Você não entende! - vociferou Hector, a fúria finalmente subindo à cabeça. - Isso está me matando! Eu preciso liberar isso de mim! Eu menti...

- Sobre o quê? - perguntou Áker, interrompendo-o.

- Desta ser a primeira vez... - revelou Hector, ajoelhando dramaticamente, como se houvesse se rendido ao seu mal interior. - Isso já aconteceu antes. Passaram dois anos... tempo suficiente que consegui para obter um controle. Se eu liberar agora... posso garantir mais dois ou até quatro anos de domínio sobre ele.

- E se perceber que está errado? - arriscou o arauto, incerto. - E se o controle obtido antes não ter passado de pura adaptação? Adaptação esta que você está deixando-se perder...

- Já chega! - bradou Hector, pondo as mãos na cabeça, não suportando mais nenhum segundo daquela resistência. - Vá embora! Eu estava na floresta... ouvi tudo o que você e Rosie conversaram. Vá salva-la, ela precisa de você agora! Abamanu pode estar planejando algo contra ela. - ele se debateu loucamente, balançando a cabeça de modo frenético, não conseguindo mais resistir a olhar para a lua cheia.

Áker fechara os olhos por um instante, parecendo decepcionado ao vê-lo daquela forma.

- Se é o que me pede... O farei. Afinal, eu fiz uma promessa à ela. - disse ele, afastando-se ao andar para trás.

O caçador urrou fortemente, o som reverberando pelo espaço. Sentia suas presas crescerem, bem como os pelos e as unhas.

- Mas... - prosseguiu Áker, prestes a ir embora. - A sua promessa é bem mais valiosa. - e desaparecera em questão de milésimos, desafiando a percepção.

Os olhos desesperados de Hector, inevitavelmente, desviaram-se para o astro pálido, seu rosto iluminado pela luz mortiça do mesmo. Suas íris desapareceram totalmente, restando somente as pupilas diminuídas, enquanto as sobrancelhas avolumavam-se.

Querendo se desvencilhar das correntes que o aprisionavam, Hector dera passos rápidos à frente, mas parara subitamente devido aos ferros presos à parede, de tal forma como um animal feroz ansiando para se libertar.

Completamente transformado e se esforçando para se libertar, dera um rugido mordaz e selvagem, suas presas crescidas em assustadora evidência.

                                                                                          ***

Os soldados que faziam guarda na entrada do salão do imperador cruzaram rispidamente suas lanças, impedindo a passagem de Rosie. O som rascante dos metais se cruzando soou como uma ordem de afastamento. A jovem fechara a cara em aborrecimento e fulminou ambos com o olhar.

- O que é agora? Não me digam que vão usar algum tipo de burocracia estúpida para que eu tenha permissão de passar. - disse ela, relanceando o interior do aposento e entrevendo uma conhecida figura lá presente.

Um dos soldados que a acompanhavam se aproximou e assentiu, indicando que todas as exigências feitas foram cumpridas devidamente.

- Deixem-a entrar! - ressoou uma voz pesada e monstruosa.

Hesitantes, mas obedientes, os guardas deram rosnados simultâneos e quase inaudíveis ao descruzarem as lanças e abrirem passagem para Rosie. A jovem passara, fixando sua atenção para frente.

Por fim, adentrara no imenso salão imperial de Abamanu. O trono era, claramente, o item mais destacável em todo o recinto. Fora a primeira coisa que Rosie avistou logo ao entrar. Depois passeou os olhos pelas paredes pintadas de laranja forte, os candelabros de cristais com suas luminosidades aprazíveis, e uma mesa de jantar colocada no centro, além de vários soldados parados nos dois lados, observantes com suas lanças em punho. À medida que avançava, Rosie sentia o escárnio e o ódio profuso daqueles lobos bípedes em seus olhos amarelos e suas bocas animalescas rosnando sem parar.

"Que belo comitê de boas-vindas".

A jovem baixara o capuz, deixando à mostra seus cabelos pretos. Mal acreditava que estava ali como anfitriã de seu mais pérfido inimigo. Abamanu a aguardava com paciência, sentado à mesa. as mãos cruzadas. Sorrira para si mesmo ao vê-la se aproximar, o corpo voluptuoso dela chamando bastante sua atenção.

- Não faço ideia do porque me chamou. - disse ela, sentando-se, forçando para estar à vontade. - Estou desarmada. Seria mais justo se seus guardas também estivessem.

- Medida de precaução, apenas. - retrucou o deus, sentando-se melhor.

- Já falei que estou desarmada. - alegou Rosie, adquirindo uma face colérica.

- Isso não é garantia de segurança. Estamos partilhando da liberdade de suspeitarmos um do outro. - salientou Abamanu com um sorriso sacana.

- Pode acreditar que sim. - respondeu Rosie, assentindo, sem alterar o semblante sério. - Se for sobre Charlie, eu...

- Não é nada relacionado ao mago do tempo. - interrompeu ele, pegando uma taça com um líquido vermelho dentro. Dera um gole demorado, saboreando a bebida peculiar. - Quero lhe fazer... uma generosa oferta. - deixara a taça em seu lugar, lambendo a boca. Olhara para ela com curiosidade. - Vamos lá. Dê uma chance aos meus pareceres. Eu já sabia de sua decisão antes mesmo que a fizesse.

Estremecendo na cadeira, Rosie se viu atemorizada com aquela declaração.

- Como se não bastasse... você também resolve se aproveitar de mim. - disse ela, os nervos em ebulição. - Se vai fazer alguma chantagem... é melhor não chamar mais isso aqui de encontro pacífico.

- Como eu disse em nosso primeiro encontro: Eu estou tentando salva-la. - disse Abamanu, inclinando-se levemente à ela.

- E que tipo de salvação você planeja pra mim? - indagou Rosie, intrigada. - Você matou um homem. Levou meus amigos e os trancafiou em lugares diferentes. Está por trás de uma proliferação infecciosa massiva... - ela bateu fortemente na mesa com o punho fechado, inclinando-se para ele com uma expressão furiosa. - O que você acha que eu espero?

- Que se una à mim. - disse o deus, sucinto. - Yuga deturpa os próprios princípios, minha cara. E presumo que seu mensageiro não especificou totalmente as razões. A propósito, qual é a posição atual dele?

Rosie revirou os olhos, cada vez mais impaciente.

- Foi apenas pra isso?! Tentar me convencer de que Yuga é quem deve ser parado ao invés de você? Ele apenas está esperando. Você é quem está espalhando o caos!

- E o mensageiro, provavelmente, a colocou sob proteção até que pudesse se decidir. - disparou Abamanu, acertando em cheio o alvo.

A resposta pegara Rosie desprevenida. "Droga! Como ele pode saber?"

- Não vou ser presunçosa a ponto de não dizer que está certo. - disse ela, respirando fundo para manter-se calma. - Mas como pode saber de algo assim?

- Fonte misteriosa. - afirmou ele, deixando um ar de suspense. - Uma triste notícia foi alardeada neste espaço. Um dos meus nobres aliados Coletores foi eliminado. Por traição.

- Sekhmet. - disse Rosie, em tom baixo, semi-cerrando os olhos. - Então você sabia que ela estava, de alguma forma, ligada aos Coletores?

- Não, até sabermos da morte de um deles. Este, em especial, cuidava da preservação dos artefatos de outras entidades, roubados durante o início do julgamento de Chronos. Quem nos informou foi outro Coletor, provavelmente coagido por ela para se tornar um substituto. No entanto, agora ela deve estar ciente de que estou muito bem informado e supostamente decidiu alterar suas diretrizes.

Rosie sentia-se, a cada minuto que se passava, aprisionada em uma gaiola e prestes a ser conduzida para qualquer tipo de obrigação cruel que fosse passar.

- Isso significa que não está aliado à ela, certo? - perguntou Rosie, se vendo como uma detetive em pleno interrogatório.

Abamanu soltara uma gargalhada estarrecedora, fazendo a mesa vibrar.

- O que é tão engraçado?

- Eu jamais cometeria uma estupidez dessas. - afirmou ele, recompondo-se. - Não sei absolutamente nada sobre ela. Contudo, pelo que me foi dito, ela estaria tendo você como alvo.

Rosie franziu o cenho, notando uma certa lacuna nesta história.

- Espera... O Coletor estava morto e a aliança entre ele e Sekhmet parecia ser bem secreta. Como os outros souberam dessa traição após a morte dele?

- Os Coletores - começou Abamanu, empertigando-se na cadeira. - possuem uma brilhante habilidade de se apossarem das memórias de seus irmãos. Em outras palavras, quando um deles se aproxima de seu irmão morto, este se apodera de suas lembranças. Não necessariamente deve-se chegar perto, apenas basta um rápido contato telepático...

- Tudo bem, tudo bem! - disse Rosie, abruptamente se levantando, não conseguindo suportar nenhum minuto a mais naquele lugar. - Já entendi. E minha resposta é não. E não me chantageie ameaçando as vidas dos meus amigos!

Levantando-se também, Abamanu assumiu uma postura rigorosa, sua robusta armadura prateada auxiliando nesse feito.

- Sei o que está a incomodando. Perdoe-me meus soldados... - olhou de esguelha para a sua esquerda. - Eles ainda não se acostumaram com sua presença. Mas creio que brevemente irão.

- O que quer dizer com isso? - perguntou Rosie, o tom de desconfiança.

- Nada demais. - respondeu ele, dando de ombros. - Sugiro que venha comigo para conhecer o laboratório onde fabricamos nosso produto. - pediu, dirigindo-se a uma pesada porta metálica à direita.

O instinto de fuga de Rosie se aflorou imediatamente. "Ele quer me mostrar como se faz a substância!?"

- Há alguém que deseja conhece-la. - acrescentou Abamanu, olhando-a por cima do ombro.

- Aquela enfermeira infectada disse a mesma coisa... Não vou cair na mesma armadilha de novo!

O deus lunar dera uma risadinha.

- A principal diferença é que ele não está infectado. Aposto que irão se dar muito bem. - disse ele, ordenando um soldado a abrir a enorme porta.

Uma estranha centelha de esperança acometeu o coração da jovem, tão descompassado. Era lhe plausível o fato de outra pessoa estar coibida a produzir mais da substância, sendo este indivíduo seu criador original. Aceitando o passeio pelo laboratório, teria-se o conhecimento de toda a produção da praga, além de uma possibilidade de se conseguir uma brecha para arrancar informações do criador. Posteriormente, repassaria todos os detalhes obtidos para os caçadores e facilitaria a compreensão da natureza do problema. Lembrou-se da amostra que havia pegado no hospital antes de escapar. "Se o General Holt tiver contato com cientistas, posso apresentar a amostra e, quem sabe, eles consigam criar uma cura, por mais difícil que seja. Sim, isso pode ser possível.", pensou Rosie, resistindo em querer transparecer qualquer sinal de júbilo.

- Está bem. - decidiu-se ela, por fim, aceitando. - Se for apenas uma demonstração, eu pretendo ver sim.

- Sem exigir nada em troca. Interessante. Não podia esperar menos - disse Abamanu com certa ironia, mergulhando na escuridão do outro lado.

Um ar gélido fez os pelos de Rosie se eriçarem ao atravessar a soleira, despertando sua curiosidade sobre onde o palácio do Cavaleiro da Noite Eterna se localizava. "Já estava um pouco frio antes. Agora... acho que quanto mais eu andar, mas rápido vou congelar.", pensou, sentindo a presença de dois soldados andando atrás dela com lanças em riste. O corredor era absurdamente sombrio, as paredes cobertas com lodo seco, um forte indicativo de que o ambiente havia inundado-se.

- Se me espetarem, eu juro que... - disse Rosie irritada, cortando a frase ao lembrar-se que estava sem suas adagas e estacas de prata. "E de que adiantaria? Não são mais as quimeras de Robert Loub..."

Abamanu caminhava rápido pelo espaço escuro... até parar numa parte um pouco mais iluminada. "De onde vem aquela luz?", estranhou Rosie, divisando algumas paredes em torno de um espaço semi-circular, além de uma luminosidade branca e mortiça logo à direita.

Quando se aproximou mais um pouco, entreviu uma figura espectral no centro do compartimento.

Quando menos se esperava, um par de olhos emitindo um brilho alaranjado revelou a identidade de quem estava ali parado.

- Vejam só... - disse Abamanu, sorrindo cinicamente. - O príncipe finalmente veio salvar sua donzela.

- Áker!? - soltou Rosie, quase que por reflexo, a expressão tensa.

Abamanu levantara uma mão pedindo para que não se aproximasse.

Recitou algumas palavras incompreensíveis... sendo elas parte do dialeto do deuses e, especificamente, de uma técnica extraordinária.

De imediato, linhas com um brilho amarelado se desenharam no chão ao redor de Áker, cercando-o. O arauto olhara para baixo, estupefato. "Isso não pode estar acontecendo!"

Surgira um símbolo no formato de um círculo com um trapézio dentro e um triângulo no meio - no qual estava sobre. Como se perdesse toda sua envergadura, Áker se ajoelhara com uma expressão de dor.

Assistindo, Rosie procurava entender o que significava aquilo.

- O que fez com ele? - perguntou ela, desesperada e aborrecida.

- Lhe dei uma lição. - disse ele, olhando para o arauto de seu inimigo com desdém.Virou-se para Rosie, fitando-a com ameaça. - Logo você também aprenderá a sua.

Um arrepio percorreu a pele de Rosie, seguido de um embrulho no estômago.

- Nada pode desprende-lo. - afirmou Abamanu, deliciando-se com o sofrimento de Áker. - Uma técnica primorosa de aprisionamento, cuja finalidade é enfraquecer sua vítima até que seus atributos sejam completamente absorvidos pelo fluxo de energia. Até a próxima meia hora sua casca não passará de lixo descartável.

- Áker, me desculpe! - exclamou Rosie, sentindo-se culpada por envolvê-lo, os olhos marejados.

- Não, Rosie. Você não sabia. - retrucou o arauto, rangendo os dentes tamanha era sua sofreguidão.

Voltando-se para Rosie novamente, Abamanu estalara os dedos. Depois deu uma ordem aos soldados, inicialmente com um meneio de cabeça para o caminho à direita.

- Levem ela daqui.

Quando se deu conta, Rosie se vira presa por fortes e grossas algemas de ferro. Esbugalhou os olhos e os desviou para encarar o deus com toda sua raiva.

- Desgraçado! - vociferou ela, enquanto os soldados a agarravam pelos braços, conduzindo-a para o laboratório.

O deus lunar voltara-se para Áker, observando com um olhar sádico todo o tormento pelo qual o mensageiro passava, tendo sua energia sugada para a terra através de um símbolo bastante utilizado pela armada de ambos os impérios.

- Grave minhas palavras, arauto: A última coisa que quero é mata-la. Eu realmente esperava que viesse em algum momento. No entanto, sua presença denuncia que eu devo... agracia-la com o que tenho a oferecer. - afirmou ele, logo sorrindo abertamente.

                                                                                         ***

"Essa é a coisa que é responsável por produzir aquela gosma preta e nojenta?!", pensou Rosie, sendo soltada pelos guardas com brutalidade, quase sendo jogada. Seus belos olhos azuis cravaram-se no gigante de metal que se postava diante dela. Uma verdadeira máquina opulenta e robusta, como um imenso botijão de gás de cozinha fumaçando um abafado vapor a cada 5 segundos. Nas laterais, cilindros lisos e volumosos de ferro rubro conectando-se à mais outras quatro máquinas repletas de tubos... por onde saía um líquido negro e espesso, sendo o mesmo conduzido até um recipiente de vidro com mais de 3 metros localizado à esquerda do montante de ferro. Abamanu ia explicando, exaustivamente, todo o processo de fabricação, como se fosse um guia turístico apresentando um monumento prestigioso e de valor histórico. Todavia, Rosie mal lhe dava ouvidos. Pôs o capuz de volta sobre a cabeça, como uma forma de se sentir sozinha naquele espaço com paredes de concreto cinza e resistentes, além de luminárias no teto forrado.

Um dos soldados viera até Abamanu.

- Lorde, lamento informar, mas o Dr. Lenox trancou-se em seu quarto e se recusa a vir se juntar a nós. - relatou ele.

Rosie virara-se rapidamente para eles, denotando curiosidade súbita.

- Quem é esse Dr. Lenox?

- O cientista contratado por mim para ajudar a dar vida às minhas ideias. - declarou Abamanu, chegando um pouco mais perto dela, a armadura de prata fazendo alguns ruídos enquanto andava.

- Correção: Sequestrado. - rebateu Rosie, com fogo nos olhos. - Quero vê-lo.

- Não ouviu meu soldado? - indagou o deus, apontando com o polegar para o subordinado atrás dele,  franzindo as sobrancelhas. - Ele se nega a vir, embora eu não tenha lhe concedido a permissão para agir por conta própria.

- Então cabe à ele uma punição! - manifestou o soldado, revoltado.

- Calado! - retrucou Abamanu, severo, suas presas aparecendo. - Lenox ficará onde exatamente está.

- Sou sua privilegiada, não sou? - indagou Rosie, numa tentativa de instigar o deus a trata-la de forma gentil se quisesse tê-la na palma de sua mão, embora fosse óbvio que a jovem não facilitaria depois.

- E o que espera conseguir depois de descumprir o protocolo? - questionou o deus rispidamente, desmoronando o "plano" de Rosie. - Com ou sem o Dr. Lenox presente, você será aprimorada.

- É isso que vamos ver. - disse ela, desafiadoramente, cruzando os braços em um postura brava.

                                                                                           ***

Áker já não sentia-se mais o mesmo. Mal se reconhecia. "Estou morrendo.".

Suando demasiadamente, o arauto estava de quatro no centro do símbolo brilhante, respirando com dificuldade enquanto suas últimas energias iam se esgotando pouco à pouco. A promessa que cumpriu estaria fadada ao revés se morresse ali, sentindo-se humilhado e patético. "Rosie será envenenada com aquele agente contaminante abominável! Era esse o plano o tempo todo! O sonho de majestade... se arruinará... se for feita esta atrocidade... com a privilegiada de nosso império!". Cravou seus dedos no chão úmido, intensificando uma resistência.

Após alguns minutos de tentativas em vão, Áker sentira, estranhamente, que não estava sozinho. "Estou delirando? Será que...". Ergueu a cabeça e se surpreendeu com o que viu. "Ah... Como tiveram coragem?".

Á sua frente estavam dois homens de pé com faces rígidas e sérias, vestindo fardas do Exército Britânico. Um era meio loiro, com olhos azuis e rosto meio redondo, enquanto o outro era pardo com feições antipáticas.

- Seu emblema emitiu um sinal de alerta, senhor. - disse o loiro, firme.

- Pensamos em agrupar mais, mas parece que estão sob o controle de Sekhmet. Seria um perigo para o senhor e para a privilegiada se caso um deles fosse expor suas suspeitas. Além do mais, libertamos Hector Crannon sob as ordens do mortal que foi supostamente atacado por Sekhmet.

O soldado caucasiano tirara do bolso um amuleto com o formato do emblema do império. Disse algumas palavras em dialeto divino, fazendo o objeto brilhar uma luz amarela e logo flutuar no ar e voar alguns centímetros acima brilhando cada vez mais forte. O soldado pardo erguera uma mão, dizendo algumas palavras. O símbolo que aprisionava Áker desaparecera no mesmo instante, libertando-o por fim.

O arauto se levantou depressa, arquejando fortemente, o ar novamente entrando nos pulmões.

- Obrigado. Juro, pela honra do império, que vou retribuir o favor. - prometeu ele, tocando o soldado no ombro e vislumbrando outras marcações de símbolos no chão proporcionadas pela influência do amuleto flutuante, não muito próximas umas das outras. - Vieram em boa hora. - ele sorriu fracamente.

- E esta técnica também. Sempre a pratiquei para que um dia tivesse a oportunidade de libertar um dos nossos. Maldita quimera. - disse ele, olhando para as marcações deixadas por Abamanu premeditadamente, armando um cerco de emboscadas para possíveis resgates. Felizmente, ele não contava com aquela façanha igualmente perspicaz.

O amuleto deixara de reluzir e caíra rumo ao chão. O soldado que o manipulara pegou-o a tempo e guardou-o.

- Vamos. Rosie está em perigo. - disse Áker saindo na frente, após assimilar os pontos exatos onde as marcações estavam, ziguezagueando por entre elas.

                                                                                             ***

As lanças estavam perigosamente apontadas para Rosie, suas pontas vermelhas em evidência. A jovem recuava vários passos, furiosamente encarando o grupo de seis soldados que a ameaçavam.

- Não abuse da auto-confiança. - afirmou Abamanu, assistindo ao desespero da jovem com as mãos para trás. - Eles não vão atirar, mesmo que queiram.

- E estas coisas atiram? - indagou Rosie, incrédula, olhando para ele.

- Se eu ordenasse um ataque direto, seria a última coisa que veria. No entanto, isto não vai ocorrer, já que a quero plenamente viva. A menos que ceda ao meu pedido, estará liberta do sofrimento que Yuga poderá causar à você se caso abraçar a sua proposta sórdida.

Um barulho ecoante de portas se abrindo fez o deus e seus subordinados se viraram em simultâneo.

- Não apodreça a mente de Rosie com suas mentiras. - afirmou Áker, entrando no laboratório, destemido, juntamente com seus dois asseclas à sua direita e esquerda.

Abamanu soltara um rosnado de ódio, fuzilando o arauto com seus olhos amarelos.

- Aaaaah! Mas como?

- Nós temos nossas saídas de emergência. - disse ele, sorrindo levemente. - Agora acho uma boa ideia seus soldados encontrarem as suas.

- Nos impondo rendição!? - disse Abamanu, logo soltando uma risada alta e amedrontadora. - Yuga fez crescer seu ego ao invés de fazer o império prosperar? Você se tornou uma espécie de "filho bastardo" dele! O caminho de Rosie até aquela máquina é a ponte para seu declínio.

- Não se nós evitarmos. - retrucou Áker desafiante e sério. - Rosie corra e se afaste! - bradou ele com urgência na voz grave.

Obedecendo ao pedido sem titubear, a jovem correra para um lado, se esgueirando no emaranhado de fios, cabos e pequenas maquinações praticamente empilhadas. Aqueles eram, provavelmente, os projetos fracassados do Dr. Lenox, também formado em engenharia genética e mecânica. Rosie se escondia por entre as montanhas de ferro, procurando alguma saída alternativa.

Áker e seus sentinelas - os únicos que aceitaram apoiar os ideais de Yuga -, emanaram quantidades de energia adequadas para ser liberada. As três mãos direitas superaqueceram, brilhando uma luz laranja e flamejante, além dos olhos que apresentavam pupilas faiscantes. O soldados de Abamanu correram em investida com suas lanças em punho, com sede por guerra. Conseguindo calcular uma boa distância, Áker bradara para atacarem e, por fim, lançaram, com toda a potência, suas rajadas de energia solar.

Antes que pudessem alcança-los, os soldados do Cavaleiro da Noite Eterna foram pegos pelo castigante ataque, gritando dolorosamente ao passo que seus corpos reduziam-se à cinzas em questão de segundos... silenciado-os para sempre, deixando somente as lanças intactas e largadas ao chão.

Ganhando tempo, Áker aproveitou para neutralizar Abamanu antes que o mesmo pensasse em sair à procura de Rosie por toda a sala. Erguera uma mão com rapidez na direção do deus, sussurrando para si mesmo algumas palavras. Um símbolo amarelo e brilhante no formato do emblema do império de Yuga cercara Abamanu antes que ele pudesse esboçar qualquer movimento. O deus lunar rangia os dentes pontudos, quase a espumar pela boca.

- Não! - gritou ele, colérico. - Voltem... voltem correndo. Batam suas asas e digam àquele miserável que sua prometida... está sob meu controle!

- Não mais. - declarou Rosie, saindo das sombras e se juntando aos seus novos companheiros. - Agora que sei basicamente como se cria aquela substância, não há nada que você possa fazer para tentar algo contra mim. Um sequestro seria, no mínimo, previsível, e, além disso, Áker tem a função de me proteger de qualquer uma das suas ameaças, por mais que eu não goste de admitir que ele tenha que se dar ao trabalho de assumir esse papel. - fez uma pausa, colocando-se lado à lado com o mensageiro. - Quando nos encontrarmos de novo, vai ser quando eu estiver pronta para resgatar meus amigos! Me sinto mais forte do que nunca e ninguém que eu conheça pode negar isso!

- Está errada! - rebateu Abamanu, mal conseguindo se mover. - Está lutando com as armas erradas e do lado errado. Yuga a envenenou com algo que ele mal consegue controlar. - dera uma risadinha de escárnio. - Estes soldados atrás de você... e este "garoto de recados" que se diz seu protetor... não conhecem a natureza de Yuga da forma como eu conheci durante aquele confronto. O dia que jamais irei me esquecer. - disse ele, pensativo ao rememorar o maior confronto de sua vida.

Sem fôlego para suportar mais alguns minutos, Rosie o olhara friamente, virando-lhe as costas em silêncio. Chegou mais perto de Áker, para lhe sussurrar algo no ouvido.

- Eu odeio estar confusa. Então só faz o favor de tirar daqui. - fez uma pausa, suspirando com certo desânimo ao olhar para os soldados. - Mas não vou esconder o fato de que o que ele disse... me despertou muitas dúvidas.

                                                                                       ***

No QG do Exército Britânico alastrava-se uma infindável quantidade de burburinhos e cochichos referentes ao incidente ocorrido ao General Holt, como um vírus mortal e apavorante. Um dos tenentes que substituía por tempo determinado algumas funções de Holt dera uma ordem seriamente categórica: Sigilo total e absoluto. Nenhuma informação relatada pela vítima deveria cruzar as paredes do prédio e alcançar o mundo externo. Em outras palavras, não se devia facilitar o risco de um vazamento que, especialmente, chegasse ao conhecimento do Colégio dos Caçadores. Ao que parecia, Holt preocupava-se com a parcialidade das informações para com Walter Vannoy e ninguém ousava questionar as razões pelas quais ele agia assim. O mentor de vários caçadores experientes se negara a participar das operações, sem nem mesmo considerar uma supervisão. Tampouco ligava para a forma como era visto e tratado pelo Exército Britânico, além de que suspeitava de que estava sabendo menos que o necessário. A aliança era plástica e superficial, pois sabia-se que o responsável - dadas as informações de Hector - era uma ameaça potencialmente extraordinária. No entanto, a informação de que o cabeça daquela onda de infecções em massa seria um deus lunar não havia sido dita a nenhum dos dois.

E novamente Holt saíra na frente graças ao ataque repentino e violento de Sekhmet. "Deuses... Aqui. Neste mundo!?". A deusa parecia querer cooperar com informações que somente ele teria direito a saber, o que, por um lado, seria uma vantagem para o General, tornando-o inteirado de fatos que jamais chegariam ao canal auditivo de Vannoy. "Ele continuará avistando somente a ponta do iceberg.", pensava Holt.

Estava sendo tratado na enfermaria, uma sala pintada toda de branco vivo e com apenas uma janela que deixava a luz da lua adentrar com esmero. O médico contava com um abajur que iluminava seu rosto e o de Holt.

Infelizmente, aquele foi o preço a ser pago. O olho esquerdo em troca do bom comportamento e colaboração de Sekhmet. Além do amuleto dourado fragmentado no chão, um bilhete dobrado havia sido colocado sobre a mesa. "Certa vez um infame chamado Seth arrancou fora o olho de meu amado. Eis seu castigo, General, por ter desafiado minha autoridade. No entanto, vou recompensa-lo com fatos que irei coletando à medida que minha presa estiver mais próxima. São meus termos. Coopere." 

O papel foi jogado no lixo imediatamente, sem ser visto por mais ninguém além do próprio destinatário. Holt, sentado em uma cama para examinação e semi-desfardado, imaginava, da pior forma, as implicações e possibilidades aterrorizantes. "Meu exército inteiro... à mercê de alguém que se diz onipotente. Devo me livrar desse meu ceticismo... Encarar os fatos como eles se apresentam. Não foi sonho, pesadelo ou alucinação. Há mesmo forças ainda mais além da nossa pobre compreensão. Por mais inaceitável que seja para mim... Acho que não tenho escolha.", pensava ele, apertando o colchão tremulamente, como se não segurasse a própria exasperação.

A anestesia já estava quase cessando. A limpeza do canal ocular vazio, bem como as pequenas cirurgias, haviam sido bem sucedidas. O doutor pegara sua maleta e deu alguns breves avisos prévios para Holt. Depois acenou com a cabeça e se despediu. Holt assentira de volta, sentindo-se mais melhor.

Um soldado que observou os procedimentos médicos veio por trás do General e lhe colocou um tapa-olho preto. A face robusta de Holt estava mais severa e áspera do que nunca.

- Senhor, posso fazer uma pergunta? - pediu o soldado, não muito à vontade.

- Mas é claro. - concedeu Holt. - Presumo que seja em relação ao meu terrorista.

- Ela era, de fato, uma deusa? - indagou ele, fazendo uma cara confusa. - Não acho que faça muito sentido. Se deuses realmente existissem não se apresentariam como... seres humanos. Seres que, sei lá, nos desprezam por sermos inferiores e...

- Está errado. - disparou o General, interrompendo o soldado. - Ela assumiu o controle de Betsy Rossman. Corpo, mente e alma. É óbvio que nossa agente mais requisitada deixou de existir. - desviou os olhos para a janela, com ar desanimado. - Eu vi minhas crenças morrerem junto com aquele soldado. E... o pior de tudo é que me sinto incapaz de fazê-la pagar. Ela pode ficar impune, mas não me darei à humilhação de me rebaixar.

O soldado assentiu para si mesmo com perseverança, motivando-se com aquelas palavras.

- Eu também não, General. - afirmou ele, pondo as mãos para trás e empertigando-se. - Vamos seguir o protocolo que o senhor estabeleceu com honra.

Cortando o clima da conversa, um outro soldado entrara de surpresa na sala. Parecia ter algo relevante a informar.

- Desculpe se interrompi algo... mas o caçador chamado Edgar veio nos informar por telefone que Rosie Campbell aceitou a licença. - contou ele, olhando fixamente para o General.

Um sorriso estranho e irônico se formou nos lábios de Holt.

- Algo mais?

- Bem... No entanto, poucos minutos depois, alguém do grupo de caçadores recebeu uma ligação. Era ela pedindo que adiassem sua admissão como líder para amanhã. - informou o soldado.

Holt fizera uma cara de suspicácia para o homem, levantando uma sobrancelha, como se quisesse um contato quase telepático a fim de surrupiar os motivos que levaram a jovem a decidir aquilo.

- Não especificou o motivo?

- Disse que teria um outro compromisso esta noite. Não revelou nada mais a respeito. - concluiu o soldado, prestes a se despedir.

- Está dispensado. Acho que passarei a noite aqui. Mantenha-me informado.

Assentindo, o soldado saíra da sala, fechando a porta tranquilamente.

O outro que ficara como observador se aproximara, pondo-se ao lado de Holt. Ambos compartilhavam um sentimento de desconfiança pura.

- Como vamos proceder, senhor? A tal deusa disse que a senhorita Campbell é uma ameaça... Vai relevar um argumento desses?

- Ela foi bastante enfática quando mencionou que Rosie Campbell representa um perigo real ao nosso exército por esconder uma espécie de energia oculta dentro de si. - disse o General, suspirando pesadamente. - Claramente estava falando muito sério. Foi por causa disso que fui obrigado a libertar o senhor Crannon antes do tempo previsto.

- Mas, considerando que isso seja verdade, como vamos agir? - insistiu o soldado, parecendo tenso. - A senhorita Campbell pode ser um atrativo perigoso para aquela deusa cravar suas garras e revelar outros planos. E... isso pode possibilitar mais sacrifícios desnecessários.

Holt parecera reflexivo por vários segundos. Voltou-se para o soldado com um olhar presunçoso.

- Estive, até agora, confidenciando á você várias informações importantes. Portanto, você será a testemunha da oficialização da licença. - disse ele, com certa empolgação. - E também... será o principal encarregado a ficar de olho em Rosie Campbell.


                                                                             
                                                                                  CONTINUA...

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