Capuz Vermelho #35: "Conhece-te a ti mesmo"


"Conhece-te a ti mesmo e conhecerás os deuses e o universo." 

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Nota do capítulo: Partes em itálico representam flashback ou menções específicas.

CAPÍTULO 35: CONHECE-TE A TI MESMO


"Inúmeras questões pairam na minha mente. Será que ao menos estive próximo de ser salvo? Será que eles conseguiram destruir todas as estruturas erguidas para disseminar a praga mortal? A pior dúvida é: Estão vivos? Dois anos passaram-se e nenhuma resposta, nenhuma palavra sequer foi referida à eles. Fui tolo. Eu tive a chance e me acovardei mediante à uma possibilidade real... mas a oportunidade estava lá, ainda havia tempo restante! Minha desesperança imediata acabou por custar as vidas daqueles que lutaram ao meu lado. Esta folha... apenas esta fina e frágil folha de papel deste diário pode ser a única coisa que irá restar após minha morte iminente. Ele... aquele que deseja se aproveitar da minha inclinação... talvez veja esta folha e leia estas palavras. Sei que não vai dar fim nela. Se avistar a chance de eu ser salvo, me usará e depois dará de comer aos "cães", mas deixará estas palavras intactas... talvez largadas em um dos corredores do seu palácio lá em cima... para que seja achada por um dos meus aliados. Posteriormente, sofrerão a perda. 

O fim se aproxima. Logo mais serei forçado a falar sobre tudo aquilo que mudou minha vida, todo o legado estará completamente perdido. Abamanu... a quimera divina cujo império foi o mais bem sucedido outrora... conseguirá, desmerecidamente, cruzar as fronteiras do espaço-tempo, invadindo mundos antes inalcançáveis. E os Coletores... meus terríveis inimigos continuarão ostentando as armas dos deuses. Pelo menos até o término do julgamento do meu segundo mentor... Chronos. Estou sendo inteirado apenas sobre seu julgamento. A condenação já é praticamente certa. Tudo o que foi construído pela Ordem ruirá. Todos os ensinamentos transmitidos cairão em mãos erradas. 

Este é um desabafo escrito apenas para mim mesmo. Quero acreditar que queimarei esta folha após ver a luz do dia novamente... E junto com ela as memórias deste confinamento maldito serão aniquiladas. 

Por enquanto, só me resta contemplar o passado. Escrever o que vivi nele de forma resumida não vai abrandar o desespero, mas me fará sentir mais orgulho do que um dia já fui. 

Um assíduo mago do tempo. 

                                                                                            ***
Inglaterra - 1928. 

Uma nuvem de poeira elevara-se após a abertura de um grosso livro, cujas páginas mostravam-se amareladas e envelhecidas. O conteúdo das mesmas ganhara a atenção de Charlie, em seus bem cuidados 15 anos, que fitava curioso o livro com seus brilhantes olhos verdes. O jovem ainda possuía um físico não tão esbelto quanto teria 9 anos depois, o qual fazia caber perfeitamente uma camisa bege abotoada e calças comuns marrom claro. Seu curto cabelo castanho - com uma franja diagonal na testa - era iluminado pelas lamparinas de piso da confortável biblioteca de sua casa. 

Gustaff Brienord, seu pai - com seus bem tratados 48 anos -, observava com entusiasmo o jovem estar diante de um de seus manuscritos, prestes a ter um contato ainda mais profundo com a área que ambos compartilhavam para seus crescimentos. Para Brienord, era chegada a hora perfeita de revelar o destino daquele rapaz promissor. O sábio mago do tempo vestia um terno preto elegante e possuía feições robustas no rosto relativamente barbudo, embora seu cabelo meio cinza, olhos castanhos e lábios finos denotassem uma personalidade bem-humorada. 

Charlie, ainda sem saber das reais intenções de Gustaff, virara-se com o cenho franzido. 

- Que estranho... só tem os enunciados e os cálculos estão rasurados. - afirmou ele, dando uma rápida olhada no livro. - Qual é o objetivo, afinal? 

- Um pequeno desafio. - disse ele, sem ser muito específico. Andara até o jovem, pondo-se ao seu lado. - Olhe... sei que muito repentino, não o preparei da melhor forma possível, mas... o que este livro reserva à você é o início de uma nova fase em sua vida. - olhou-o séria e fixamente. - Uma vez que imergir neste novo mundo, não será mais possível sair. Será impossível voltar atrás. Impossível negar seu destino. 

- Não entendo. - disse Charlie, ainda não convencido, olhando para o livro. - O meu destino? O que o senhor quer dizer com isso? Com certeza vem estudando isso há um bom tempo... 

- Não, Charlie, ouça bem. - disse ele, interrompendo-o, erguendo levemente uma mão para aquieta-lo. - Necessariamente, isto não será uma aula comum. É o seguinte - apontou para o livro. -, ocultei os cálculos para que você os resolvesse... - folheou com a mão direita para as páginas finais - ... nestas páginas que deixei em branco especialmente para este desafio. Além disso... - andou pela sala, fazendo mistério. 

Charlie concentrava-se no que estava prestes a ouvir, desconfiante do que o pai estava escondendo. 

- Não estou gostando nada disso. - afirmou ele, recuando uns dois passos. - Pelo que vejo, o conteúdo desse livro... é... é completamente além do meu alcance, impossível eu resolver numa só noite. O que está havendo, pai? Por que todo esse suspense?

- É que eu estive ciente de que meu tempo para pensar numa maneira melhor de lhe contar seria curto. - confessou Gustaff, nitidamente inseguro, mantendo-se de costas. 

- Me contar... o quê exatamente? - quis saber Charlie, já impaciente, olhando-o intrigado. - Por que justo hoje uma nova fase vai se iniciar na minha vida?

- É por que você... é parte de um legado. - revelara ele, virando-se para Charlie, a face mais  confiante. - Uma fraternidade de seres humanos agraciados com o saber dos deuses. - disse, logo depois pigarreando, meio sem jeito, parecendo não ter falado da forma como esperava. - Err... me desculpe, eu não fui... Ahn... Acabei sendo direto demais. Você olhou as páginas... percebe que o pus para lidar com algo mais complexo do que atualmente está aprendendo na escola. Esse é o começo, Charlie. - andou alguns passos até ele. - Sua mãe jamais soube... e permanecerá não sabendo. 

- Guardou um segredo por todos esses anos de nós dois?! - disse Charlie, parecendo surpreso. - Porque só agora? 

- Por que é como funciona. - justificou Gustaff, sem dar maiores explicações. - Eu sou parte desta irmandade já há 35 anos. A Ordem dos Magos do Tempo. - falou, de modo solene. 

Uma torrente confusa de sensações abateu-se sobre o jovem ainda despreparado para seu verdadeiro destino. "Um legado!? Saber dos deuses!? O que deu nele?", pensou Charlie, estremecido desnorteadamente. Balançando a cabeça em negação, o jovem se manteve incrédulo. 

Esboçando um sorriso forçado de ceticismo, Charlie exigiu mais explicações. 

- Com todo o respeito, mas... o senhor bebeu? - perguntou ele, sem medo. 

Gustaff rira descontraidamente. 

- Estou plenamente sóbrio. - afirmou ele, sorridente. - Eu espero que viva o suficiente para terminar o que comecei. 

O tom daquela enrolação toda não gerava efeitos positivos no jovem desentendido. 

- Mas... por que? - insistiu Charlie, aumentando o tom de voz e demonstrando sua impaciência. - O senhor está hesitando demais... Eu achava que o senhor fazia parte de um clube comum, conversando sobre coisas comuns. 

- Tornou-se comum para mim no decorrer do tempo. - retrucou Gustaff, recobrando a seriedade, andando para um lado da sala. - Geralmente, minhas desculpas surtem o efeito esperado, por isso consigo ficar até mais tarde da noite. 

Charlie baixara a cabeça, pensando no que diria a seguir, cerrando os punhos suados.

- O que mais... o senhor faz naquele lugar? - perguntou ele, olhando-o com suspicácia. - São esses tais magos do tempo, amigos do senhor, que frequentam o clube para reuniões secretas? Não é?

- Esperava que matasse a charada. - brincou Gustaff , sorrindo e pegando uma garrafa de uísque e um copo de vidro postos numa mesinha. - Depois da meia-noite... - serviu-se com a bebida. - ... fico sentado, traduzindo manuscritos cuja linguagem é totalmente desconhecida e incompreensível para pessoas comuns. Pessoas como sua mãe, por exemplo. Jorge V... - olhou-o com tom brincalhão novamente. - ... ninguém mais além dos magos do tempo possui esse conhecimento. 

- Olha... - disse Charlie, virando o rosto para os dois lados - a porta da biblioteca e a mesa onde o livro estava - rapidamente, tornando-se cada vez mais inquieto. - Dá para ser mais claro? Eu quero saber. - aproximou-se a passos nervosos, o olhar empolgado. - O que está havendo? 

Brienord o estudou por vários segundos, com certo orgulho e um sorriso leve enquanto segurava o copo cheio. 

- Por favor, me fale. - implorou Charlie. 

- Pensei muito bem antes de chama-lo até aqui. - disse Gustaff, em seguida tomando um gole. - Achei que... não estava tão preparado quanto eu pensaria que estivesse. - tocou-o no ombro esquerdo. - A irmandade atravessou gerações. Seu tataravô, bisavô e avô... já vestiram o manto... que foi passado à mim há exatos 35 anos. Tudo começou há 200 anos. A fundação da Ordem tinha o objetivo de reunir todo e qualquer conhecimento sobre o impossível. 

- O sobrenatural? - indagou Charlie, ainda desconfiado. 

- Exato. - disse Gustaff, assentindo e sorrindo. - Eu e meus irmãos de fraternidade, graças a Chronos, temos acesso à coisas que o resto da humanidade sequer imagina. 

Charlie estremecera, engolindo a saliva ao olhar para Gustaff de modo surpreso. 

- Espere um minuto... Chonos, o deus do tempo da mitologia? 

- É. - confirmou Gustaff, assentindo com bom humor. 

- Tiveram contato... com uma divindade grega?! - interrogou Charlie, permanecendo cético, a face confusa. - Mas isso é completamente... 

- Sei o que está pensando. - disparou Gustaff, olhando-o. - É o que a maioria das pessoas pensaria. Indagações e questionamentos, mas nenhuma satisfação pela ausência de uma prova concreta. Vai mudar a sua mente. A maneira como enxerga o mundo. De uma forma benéfica, garanto. 

Ainda aturdido com a revelação, Charlie tentava processar do modo mais aceitável possível. 

- Eu não sei o que pensar. 

- Eu entendo. - aquiesceu Gustaff, tomando mais um gole em seguida. - Tive a mesma reação quando seu avô me contou sobre o que ele andava aprontando secretamente. Eu falei: "Engraçado, me chamou até aqui somente para me dizer que faz parte de uma sociedade secreta que faz sabe-se lá o quê!". - falou, de modo engraçado. - Infelizmente, ele não era tão flexível quanto eu e... me deixou de castigo. No mesmo dia, ele teve uma discussão terrível com sua avó. Então... ele se foi. Me deixou uma carta onde me dava instruções detalhadas, mais precisamente sobre uma localização secreta de um bunker abandonado pelo Exército na Primeira Grande Guerra. Disse que era lá onde eu encontraria as respostas. - fez uma pausa, colocando o copo sobre a mesa. - No entanto, eu soube de sua trágica e misteriosa morte. 

- E o senhor não perguntou nada a quem fez a investigação? - quis saber Charlie. 

- Não. - afirmou Gustaff, sério. - Por que não houve. 

- Ser mago do tempo pelo visto tem o seu preço. - disse o jovem, fitando um canto da biblioteca, reflexivo. 

- Ah, esta é a pior parte. - declarou Gustaff, arqueando as sobrancelhas. 

- Por isso disse que devo viver o bastante... - disse Charlie, inseguro. 

- Não, não, espere, não interprete mal. - acalmou Gustaff, erguendo de leve as duas mãos. - Abraçar o destino de mago do tempo não é sinônimo de se direcionar para uma morte rápida, não é abrir da própria vida e arrisca-la em vão. Toda sociedade secreta possui inimigos. E, devo confessar, sei muito bem quem são os meus. 

- Eu procuraria exílio se os conhecesse, vendo o modo como o senhor fala. - afirmou Charlie, mantendo-se curioso quanto ao "trabalho" secreto de seu pai. 

- E o mais interessante: Eles não me conhecem. - disse Gustaff, seguro de si. 

- De quem está falando? - perguntou Charlie. 

- Eu não os considero como rivais, mas... estou confiando nos boatos. - disse ele, dando de ombros. 

- E quem consegue as informações? - perguntou Charlie, ainda mais compenetrado. 

- Um amigo. - disse Gustaff, secamente, como se não quisesse revelar além do necessário. 

- O senhor tem vários amigos. - retrucou Charlie, não convencido. 

- Um amigo que integra o clube. - declarou o pai, dando um sorrisinho sacana, ainda evasivo. 

- Que estranho. - disse Charlie, virando-se ao dar as costas para Gustaff, fitando um canto. - Por que será que me vem à mente você me mandando ir subir para o meu quarto sempre que a campainha tocava às nove da noite, sempre as quartas-feitas? 

Gustaff rira novamente. 

- Mais uma vez provou-se astuto. - disse ele, orgulhoso. - Ele se chama Isaac. Está encarregado de repassar informações dadas por membros ocultos. Informações relacionadas à uma suposta irmandade de homens vestidos de mantos vermelhos, conhecidos como Red Wolfs. - fez uma pausa, caminhando até Charlie. - Mas fique tranquilo. As testemunhas que contratamos possuem truques de disfarces que espero jamais caírem nas mãos de criminosos. 

Charlie virara-se para ele, com preocupação no semblante. 

- E como o senhor espera sair dessa investigação da mesma forma que entrou? - questionou. 

Com um suspiro pesado, Gustaff ficara pensativo. 

- Há poucas semanas - começou Brienord, mais sério do que nunca. -, eu e mais três membros, não são magos do tempo, passamos a compartilhar uma suspeita. Um Judas entre nós. Ou talvez até mais. Hoje o clube possui mais de 20 membros. 

- Magos do tempo também podem participar desse grupo de... investigadores, caçadores de conspirações? - perguntou Charlie, sentindo-se cada vez mais preso à trama secreta. 

- Bem, nenhum dos meus irmãos da Ordem tem algum interesse em participar, já os convidei, mas preferiram recusar. Você, obviamente, está se perguntando: "Se toda sociedade secreta tem inimigos, então quais seriam os dos magos do tempo?". A verdade é que... nossos inimigos são a maior parte da população. 

- Por uma boa razão, creio. - disse o jovem, concordante. 

- Exato! - disse Gustaff, animado. - Só imagine... Pense no quão devastador seria caso a massa alienada e, sobretudo, a mais religiosamente conservadora, obtivesse acesso a todo o conhecimento adquirido pelos magos do tempo em décadas e fosse disseminado em poucas semanas. Todo o saber dos deuses. A linguagem, os costumes, as histórias ricas em detalhes que nenhum livro de história contém. - andou alguns passos á frente, sorrindo de leve para seu filho. - O mundo não está preparado para esse saber. Mas acredito... que chegará o dia em que a verdade virá à tona. 

- Por isso traduz manuscritos de forma secreta... como método de estudo e aprofundamento. - arriscou Charlie, especulativo. 

- No caso desses estudos... - disse Gustaff, o olhar evasivo. - ... não estão relacionados à Ordem. Eu diria que uma pequena parte está sim. Lembra-se do leilão que eu disse à sua mãe que iria? Há exatamente 1 ano? Pois é. Meu lance foi o último e decisivo. Um livro, cuja datação por carbono definiu que ele remete aos tempos da antiguidade. Ainda estou traduzindo-o... - ela sorrira abertamente. - ... e começo a imaginar que ele possui total relação com os Red Wolfs. Brevemente mostrarei minhas traduções aos meus amigos do clube, bem como minhas conclusões. O dialeto dos deuses, filho. 

O jovem ficara lívido após aquela fala. 

- Uma linguagem universal dos deuses?! Isso é... - disse Charlie, sorrindo fracamente, claramente nervoso. - ... incrível. Ainda não consigo acreditar. 

- Vai acreditar. - assegurou Gustaff, condescendente. - Quando ouvir aquela voz majestosa e contagiante... tenho certeza de que finalmente sentirá ter encontrado seu lugar no mundo. 

- O apoio que você, mamãe e os professores tem me dado me fez acreditar que meu verdadeiro lugar no mundo seria em Oxford. - declarou Charlie, com firmeza e mais segurança no tom, não deixando de dar rápidas olhadelas para o livro aberto na mesa. - Não sei se devo tentar. - afirmara, balançando a cabeça em negação. 

Gustaff, por sua vez, respirara fundo. 

- Já imaginava que... seria árduo convencê-lo. - falou o experiente mago do tempo, parecendo mais rendido à relutância do filho. - Mas esta é uma oportunidade única. Diferente de qualquer outra que já teve e muito mais vantajosa. - andou alguns passos adiante, olhando para Charlie fixamente. - Eu não quero força-lo de modo insistente, mas... Você não abandonará sua mãe, seus amigos, aquela garota ruiva da qual você tem um certo interesse... 

- Oh, por favor, isso não. - disse Charlie, virando o rosto e sorrindo de modo acanhado. - Alexia e eu somos apenas amigos. 

- Também não vai largar o colégio, nem a universidade... continuará vivendo sua vida, da maneira como sempre quis e sonhou, mas com este diferencial, que, obviamente, eu sei, fará muita, mas muita diferença. - fez uma pausa. - Poderá utilizar o conhecimento ganho nas sessões da Ordem e alia-los aos que já domina.

- Então espera que isso facilite minha estrada como universitário? - perguntou Charlie, desconfiado.

- E como físico brilhante que está destinado a se tornar. - complementou Gustaff, o sorriso entusiasmante. 

- Não, pai. Me desculpe. - disse o jovem, afastando-se da mesa em lentos passos. - Eu... - pôs uma mão na cabeça, os olhos fechados. - Eu ainda estou tentando aceitar essa nova realidade. 

- Será ainda mais difícil quando estiver no local secreto, Mas sei que vai se acostumar. - assegurou Gustaff, visivelmente nervoso em dispersar mais tentativas de convencimento ao filho. - Você é forte e facilmente adaptável, jamais dispensaria um desafio que beneficiasse seu intelecto. 

- Talvez não tão forte o bastante para absorver todo um conhecimento que minha mente mal consegue imaginar. - retrucou Charlie, já exaltado com a insistência de Gustaff. - E quanto ao senhor? Você não mencionou a si mesmo quando falou sobre não abandonar o que é mais importante para mim. 

- Por que... - Gustaff pausara de repente, baixando um pouco a cabeça, as mãos juntas para frente. Reerguera-a, desta vez com a face dotada de uma seriedade nunca antes vista pelo jovem. - A verdade é que... Como o legado é passado de pai para filho... você só poderá assumir o manto quando eu morrer. Por isso resolvi avisa-lo só agora, não queria que dependesse dos meus arquivos para mergulhar nesse mundo estranho e extraordinário, isto só tornaria a descoberta mais perturbadora e difícil de aceitar. 

- E onde estão esses arquivos? - perguntou Charlie, curioso e temeroso ao mesmo tempo. 

- No porão. Mas seria melhor que não colocasse os olhos naqueles papéis agora. - avisou Gustaff, voltando-se para a mesa onde estava a garrafa de uísque e o copo. - É cedo demais. Enquanto o dia da minha morte não chega... - pegara a garrafa e colocara mais uma quantidade de bebida no copo. - ... deve ceder ao desafio que está bem aí na sua frente. Resolva os cálculos, mas guarde para si mesmo, não é necessário que me mostre. - bebera um longo gole. - É o preparo mais eficaz que encontrei para fazê-lo se sentir mais seguro com esse novo mundo que seus olhos vão enxergar no futuro. 

- Espero que não tão cedo. - disse Charlie, ainda mais temente, olhando-o com certa preocupação. 

- Eu também espero. - disse Gustaff. - Quando Chronos lhe ensinar tudo o que deve saber e você sentir a grandeza do alto conhecimento ... tenho certeza de que sua mente vai revisitar esta noite e fará você desejar ter aceitado a proposta desde o início. Bem, só espero que não fique frustrado por ter hesitado tanto. 

- Gus! - chamara uma voz feminina que ressoara pela biblioteca e o corredor que dava acesso à ela. 

Gustaff, rapidamente, largara o copo e andou até a porta com certa pressa. 

- Sua mãe está me chamando... Por favor, faça o que lhe mandei. Estou confiante... - tocara a maçaneta, logo girando-a. - ... de que vai se sair muito bem... - abrira a porta, pondo-se para fora. - ... e, com muita sorte, vai me superar como mago do tempo. Eu acredito em você. - por fim, fechara-a.

O rapaz se viu sozinho e estagnado no ambiente silencioso da biblioteca. Apenas alguns insetos pequenos com seus zunidos quase inaudíveis dançavam nas luzes alaranjadas proporcionadas pelas duas luminárias de piso. 

Charlie virou-se para o livro aberto na mesa, engolindo em seco tudo o que o pai dissera-lhe sobre seu real e irrecusável destino. 

Sem mais perder nenhum segundo, puxara uma cadeira e sentou-se, logo aproximando uma pequena luminária, pegando o lápis e focando toda sua atenção naquele livro, sobretudo naquele conteúdo de resolução complexa. Para tornar o trabalho mais rápido e prático, arrancara as folhas - quatro de uma só vez - deixadas em branco e separou-as ao lado do livro, não demorando a ler o primeiro enunciado. 

As últimas palavras de Gustaff, antes de sair da sala, gravaram-se em seu subconsciente, encorajando-o de uma maneira que não pedia por explicações tamanho era o efeito gerado. 

Os minutos passavam... e Charlie resolvia os cálculos com um brilhantismo e dedicação únicos. 

                                                                                       ***

Cemitério Langfall, Londres, Inglaterra - 1929 - Sete dias depois da trágica morte de Gustaff Brienord. 

O clima densamente gélido tentava transpassar as vestimentas agasalhantes e pretas de Charlie, cujo único item que se destacava e se diferenciava do restante era o seu cachecol vermelho carmesim. O jovem caminhava lentamente pelo solo gramado, carregando flores amarelas e vermelhas na mão direita. Alguns fios de seu liso cabelo castanho esvoaçavam com o vento, que levava ao ar várias folhas secas de outono. A face era de alguém que não havia dormido um segundo sequer nas noites anteriores. As olheiras eram os detalhes mais nítidos de seu semblante triste. 

A luz solar fora parcialmente bloqueada por nuvens brancas-cinzentas formando certa nebulosidade no céu daquela manhã. 

Gustaff Brienord foi encontrado morto, brutalmente ferido em todo o seu corpo, juntamente com seus companheiros de irmandade. O acesso da polícia ao bunker de onde ocorriam as sessões se deu pela coleta de várias informações fornecidas por amigos de lugares aos quais ele frequentava semanal ou diariamente. Até a Sra. Brienord se fez interrogada... antes de conseguir abandonar a casa e o filho sem dar nenhum aviso, por puro medo de acabar não superando o luto e ver o futuro de seu filho ser destroçado por tamanha perda. Gustaff morrera sem saber dos podres daquela mulher que um dia amara como se nada mais importasse. Apenas Charlie sabia. Soubera em uma noite que tentava, em vão, não lembrar quando o rosto dela lhe vinha a memória. Seguiu os passos de sua mãe discretamente... até desembocar em uma área suburbana, precisamente em um local sem nenhum pudor. Escondido e envergonhado, observou, pela janela, sua mãe, em um canto discreto, completamente nua em cima de uma mesa, sendo cortejada por dois homens, também despidos, lambendo seu corpo e seus seios até chegarem ao pescoço... e, por último, a boca. Charlie correra com olhos marejados, sem conseguir permanecer assistindo aquele show de libertinagem e constrangimento, nem querendo imaginar como terminaria. Aquela, de longe, fora a maior decepção de sua vida. A partir de então, fingia olha-la com os mesmos olhos, a cada vez que ela surgia à sua frente a imagem daquele ato desinibido lhe vinha à mente. 

Pôs as flores diante da lápide, na qual estava escrito: "Gustaff Brienord; 1895 - 1929; Amado pai, amigo e esposo". 

Charlie levantara-se e fitou o túmulo por alguns segundos, indiferente ao frio que fazia. 

- "Conhece-te a ti mesmo e conhecerás os deuses e o universo". - disse ele, citando a famigerada frase filosófica. - Foi esta frase que estava escrita no final na última página dos arquivos. Eu entendo o que quis dizer ao passar o significado à mim. Não vou obter esse saber... para meu próprio benefício. Mas não quer dizer que vou compartilha-lo com o mundo revelando tudo em detalhes. Eu sei porque o senhor foi morto. - fez uma pausa, suspirando com pesar. - Por expor esse conhecimento além de um limite estabelecido. Seja lá quem tenha feito essa... essa barbaridade... irá pagar caro. 

- Cuidado com o que diz, garoto. - avisou uma voz grave por trás. 

Charlie virou-se e se deparou com um homem alto, vestindo uma camisa branca e uma gravata vermelha por baixo de um casaco preto e calças marrom escuro e usando um chapéu com uma mistura das duas cores. O homem foi se aproximando com uma face séria, em respeito ao estado do jovem. 

- Quem é você? - perguntou Charlie, desconfiado. 

- Um dos membros do clube liderado por seu pai. - disse ele, firme. - E futuro novo líder. Muito prazer, meu nome é Howard. - estendeu a mão para Charlie em um aperto amigável. 

- O que o traz aqui? - perguntou ele, como se não o visse como um amigo íntimo de Gustaff. 

- A mesma razão que o levou a vir. - disse ele, olhando de relance para a lápide. - Dar o último adeus. - tornou a olha-lo. - No entanto, estou aqui também para lhe informar algo de extrema relevância associado à Ordem dos Magos do Tempo. 

- O quê? - indagou Charlie, franzindo o cenho. - Por acaso você é um deles? Se sim, vir até aqui se expondo dessa forma, com um maldito assassino à solta por aí, é bem arriscado. Não acha?

- Na verdade, eu não esperava encontra-lo nessa hora do dia. - declarou Howard, logo tirando um envelope branco do bolso do casaco. - Vim para lhe dar... isto. - entregou-o ao jovem. 

Charlie estudara o envelope por alguns segundos. 

- O que é, afinal? - perguntou ele, dando de ombros. 

- A nova localização secreta. Seu pai foi friamente seletivo ao me escolher para essa tarefa. - revelou o homem, enfático. 

- Então... significa que... ele previu a própria morte? - especulou Charlie, fitando o nada. 

- Não chamaria de previsão, mas de intuição segura. A coisa que o trucidou cometeu massacres geração após geração. 

- Ele não me contou isso. - disse Charlie, parecendo aborrecido. 

- Sábia decisão ele teve. - retrucou Howard, assentindo positivamente. - Eu tenho contato com um dos parentes próximos de um herdeiro do manto. Ele me disse que... 

- Espera aí! - disse Charlie, fechando os olhos, ficando impaciente tamanha era a pressa de Howard em dar aquele aviso. - Vamos por partes. Primeiro: Como esse herdeiro teve coragem de revelar ao parente que é parte do legado? Não faz sentido. Revelar ser um mago do tempo para alguém tão próximo, ainda mais sendo um familiar... é pedir para ser incluído na lista negra de quem que esteja por trás dos assassinatos. Inclusive você, estando aqui agora, diante de mim, me entregando uma informação tão importante assim, corre risco de ser morto também. - argumentou ele, basicamente exaltado. 

Howard suspirou longamente, esperando que Charlie se mantivesse calmo até ele ir embora. 

- A questão é que somente magos do tempo estão inclusos na lista. - afirmou Howard, ciente. - Olha, rapaz, eu também não faço a mínima ideia de como eles tiveram acesso ao bunker. 

- Eles!? - indagou Charlie, levantando uma sobrancelha. - Então um grupo foi responsável pelo massacre. - fez uma pausa, passando as duas mãos no rosto, parecendo mais abatido. - Olha, eu não tenho estado por dentro das investigações, mas... 

- Ela já foi encerrada. - disparou Howard, não fazendo mais que sua obrigação. - O bunker foi interditado. Eu só não posso dizer mais sobre o novo local porque temo que os inimigos estejam sondando esta nossa conversa por algum meio desconhecido. Os detalhes estão todos no papel. 

- Sua intuição pode não estar errada sobre essas pessoas. - disse Charlie, olhando para o envelope. 

- Eu não diria que são pessoas... - disse Howard, olhando de soslaio para um canto, a postura intrigante. 

- Criaturas de outro mundo? - teorizou Charlie, quase sentindo-se certo. 

- Boa dedução. - comentou Howard, sorrindo de modo misterioso. 

- Foi fácil. Você mencionou a palavra "desconhecido" sobre estarmos sendo supostamente vigiados. - disse Charlie, satisfeito, mas não mais confiante. - E o que os magos do tempo são? Conhecedores do desconhecido. Papai lhe deu exclusividade, não foi? Não queria que eu soubesse da verdade sobre os assassinos sobrenaturais, então confidenciou somente à você, para que após a morte dele você viesse me avisar. - concluiu ele. 

Howard olhava-o com mais interesse desta vez. 

- Muito bem pensado. - disse ele. -

- O plano do meu pai também foi, pelo visto. - disse Charlie, parecendo decepcionado por ter sido o último a saber. - Não havia nada nos arquivos sobre seres de outra dimensão que matam seres humanos que sabem demais. 

- Ele tinha razões convincentes para ocultar este detalhe de você, Charlie. - afirmou Howard, tocando-o no ombro de modo amistoso, o semblante tranquilo. - Para manter seu bom senso preservado e longe de qualquer sentimento de vingança. 

- Nada além de vingança passa pela minha cabeça agora. - confessou Charlie, o tom amargurado.

- Pense melhor no legado e pare de enganar a si mesmo. - aconselhou Howard, dando as costas para o jovem, andando em direção ao portão do cemitério a fim de ir embora. 

Uma eferverscência de emoções crescera em Charlie de um modo avassalador. O rapaz bufara em raiva e desaceitação, mal controlando a torrente de pensamentos terríveis que atormentavam-o. 

- Não vá embora achando que pode me dizer o que fazer! - disse Charlie, o tom colérico. 

Howard parara, mantendo-se de costas, parecendo angustiado. 

- Eu estou com raiva. - disse Charlie, sincero. - Quero fazê-los pagarem... 

- E acha quem tem alguma chance? - perguntou Howard, assumindo um tom irritado, virando-se para o jovem. - Eu vi o corpo de Gustaff! Irreconhecível de tão retalhado que estava! Meça suas palavras, garoto! 

- Já sou adulto o bastante para ter ciência dos meus atos. - retrucou Charlie, desafiante. 

- Não, não é! - rebateu Howard, explosivo. - Ainda não. - suavizou o tom. - Abra o envelope, depois vá para o local no dia exato, está na última linha. 

- Por que me parece que está me escondendo mais uma coisa? - perguntou Charlie, olhando-o com certo desprezo. 

- E o que mais eu esconderia após a morte de Gustaff? - redarguiu Howard. 

- Só me diga como se chamam esses monstros. Tenho quase certeza que papai lhe falou, você parece ser o membro do clube em quem ele mais depositou confiança. - disse Charlie, pressionando-o. 

- Eu até diria... - disse Howard, fazendo mistério por uns segundos. - ... se eu soubesse o nome! - revelou, provando não saber de mais nada a respeito. - Gustaff, evidentemente, não falou mais do que o necessário. Eu realmente lamento, Charlie. - disse ele, balançando de leve a cabeça em negação. - Ele era um bom homem. E acreditava em você. 

- Não posso aceitar. - negou Charlie, derramando uma lágrima. - Ser um mago do tempo... conhecedor do universo como nenhuma outra criatura da Terra... parece ser o caminho mais curto para uma sentença de morte bem dolorosa. Eu vou ter esse mesmo destino. 

- Se depender da chefia oculta... não vai. - disse Howard, transmitindo-o confiança. 

- Como tem tanta certeza? - perguntou Charlie, debulhando em lágrimas. 

- Ele me disse. - falou Howard, mais calmo. - Seu pai, mesmo não entrando em detalhes, me fez acreditar que exista algo que esse mentor extraordinário possa usar para evitar um novo massacre. - fez uma pausa, assentindo devagar, desviando os olhos. - Boa sorte. 

Charlie ficara parado naquele mesmo ponto. Olhando Howard, grande amigo de seu pai, ir embora com seu longo casaco ondulando com o vento gelado da manhã nublada. Guardou o envelope no bolso de sua calça, logo voltando-se paras a lápide com um olhar que transbordava determinação. 

- Se esse conhecimento vai me tornar mais forte... que me deixe mais forte para fazer justiça pelo senhor. - disse ele, o tom decidido e um semblante que denotava uma coragem inabalável. 

                                                                                           ***

Inglaterra, proximidades da Grande Londres, Bunker alternativo, Primeira sessão - 1929. 

1 mês depois. 

O lugar era detentor de uma atmosfera intensa, com suas paredes altas e cinzentas e grossas colunas quadradas que sustentavam o teto, além do piso quadrangular de concreto. A sala principal do bunker alternativo parecia uma réplica exata do anterior que fora fechado por ordens da polícia inglesa. 

Atrás de Charlie - já vestido com sua túnica cor cinza e um capuz de mesma cor sobre sua cabeça. - estavam seus irmãos de fraternidade, já iniciados, tendo o jovem aspirante a físico sendo o último a passar pelo ritual de iniciação, que consistia em tocar no anel cronal - artefato de tamanho médio e circular criado por Chronos e trazido à Terra pelo mesmo, de matéria-prima metálica e com símbolos entalhados que correspondiam ao dialeto dos deuses. O objeto flutuava no ar acima de um bloco quadrado de concreto e girava verticalmente em uma velocidade considerável, com seus símbolos brilhando uma leve luminosidade alaranjada. Charlie precisaria toca-lo e torcer para que o anel parasse e mostrasse, na parte de "dentro" do anel, o símbolo correto, o qual, traduzido para a língua humana, significava sabedoria.  

Charlie aproximou o indicador direito em direção ao artefato girando em grande velocidade. Os símbolos - em tom laranja brilhante - "dentro" do anel passavam no mesmo ritmo, como uma sequência projetada. Sem hesitar, o jovem tocara no objeto, no mesmo instante fazendo-o parar subitamente. 

Os demais apenas observavam, hipnotizados e apreensivos. Pelo menos dois deles Charlie conhecia do colégio. No total, eram seis membros. 

O símbolo de sabedoria fora um golpe de sorte. Caso o contrário, Charlie teria de passar pelo processo por mais três tentativas. Se não acertasse o símbolo nelas, seria dispensado da Ordem por tempo indeterminado até que pudesse voltar para realizar a iniciação novamente. 

Charlie exibiu um sorriso de satisfação, comemorando consigo mesmo. Manteve o dedo no metal frio do anel, sentindo uma carga de energia imensurável ser transmitida pelo seu braço... até o seu cérebro em questão de segundos. Uma sensação de peso na mente foi passageira, além dos contornos de suas íris castanho e sua pupila terem brilhado uma fina luz alaranjada e tremeluzente. 

- Tens minhas congratulações. - bradou a voz retumbante e grave de Chronos, modificada e o mais adequada possível para se comunicar com os mortais. - Você, a partir de agora, és um mago do tempo... Charlie. 

                                                                                              ***
Inglaterra, Richmond, Grandes Londres - 1930. 

O porão estava preenchido com um forte odor de mofo e poeira. Charlie, com uma lanterna em punho, andava até a estante de ferro oxidado, focando o facho de luz branca diretamente na grande caixa de papelão em um canto à direita, na parte de cima do móvel. "Vamos lá... Vejamos o que deixei passar batido naquele dia", pensou o jovem, logo pondo a lanterna embaixo do braço esquerdo e pegando a pesada caixa com as duas mãos. A sensação de algo ter passado despercebido o martelou por vários meses. Curiosamente, foi apenas naquele fim de noite que encontrou disposição e coragem para adentrar naquele cômodo empoeirado. O medo se resumia em lidar novamente com a dor ao revisar aquela volumosa pilha de papéis anexados uns aos outros. 

Deixou a lanterna no chão - apontada para a caixa - ao sentar-se numa cadeira e remexer descontroladamente naqueles papéis, à procura de um suposto item que veementemente passou a jurar a si mesmo que se encontrava ali e foi ignorado. 

"Tem que estar aqui!". 

A papelada já se encontrava desorganizada fora da caixa. Charlie, por fim, alcançara o fundo do "baú". Algo que revelou-se surpreendente. 

"Não pode ser...", pensou ele, os olhos fixados no minúsculo fio de barbante que surgira, pedindo para ser puxado cuidadosamente. Charlie o fizera com êxito e paciência, sem especular absolutamente nada a respeito do que estivesse abaixo daquele fundo falso, espertamente inserido por Gustaff. Um sorriso leve foi formando-se na face do jovem mago do tempo. 

- Já devia imaginar... - disse ele para si mesmo. 

Após puxar completamente o barbante e retirar o fundo, Charlie, sem pestanejar, pegara o objeto deixado ali por seu pai para que ele descobrisse, talvez pensando que ocorreria no mesmo dia em que o filho leria os arquivos pela primeira vez. Era uma pequena caixa de madeira, com o emblema da Ordem entalhado na tampa. Abrindo-a, o jovem achara o verdadeiro "tesouro" escondido. 

- Uma chave... - disse ele, em tom sussurrante, pegando o objeto prateado de dois dentes. - Ótimo... sem maiores especificações no fundo da caixa, isto facilita muito as coisas... - falou, em tom de ironia. No entanto, percebera um detalhe. Aproximou a chave aos olhos estreitados para verificar melhor. - Isto são... inscrições acrônicas. 

O acrônimo era de fácil leitura. A chave, como um todo, parecia não ser tão antiga quanto se pensava, já que nenhum resquício de ferrugem foi notado. 

- STOMT? - indagou Charlie, balançando levemente a cabeça com o cenho franzido. - Mas o que diabos significa isso? 

Girou a chave para ver se encontraria outro acrônimo. 

"Uma seta.", pensou ele, encontrando um pequeno símbolo em relevo de uma seta apontada para cima, pois Charlie estava segurando-a na posição horizontal. "Quando a encontrei... estava na vertical... significando que a seta aponta para...". Olhou para a parede á sua direita com curiosidade. "Uma passagem secreta?", especulou, logo pegando a lanterna e apontando a luz para a parede descascada. "Não. Óbvio demais. Não há nada que indique isso. Nenhum ponto estranho, nenhuma saliência...".

A lógica seguida pelo jovem era esta: Vertical - Direita e Horizontal - para cima. O orgulho pelo seu pai só aumentara ao ter o lampejo definitivo para a resolução daquele enigma. 

- Quem diria... - disse Charlie, sorrindo para si mesmo, olhando para chave e levantando-se depois. - Ele previu meus movimentos. - andara em direção à escada que levava à porta para sair do porão, segurando firmemente a chave prateada. 

"Quando a encontrei, os dentes também apontavam para o lado direito, igualmente à seta. Virar a chave para a horizontal iria facilitar a leitura do acrônimo, sendo que é um movimento extremamente natural quando se pega um objeto daqueles, qualquer um faria o mesmo. Mantendo-a na horizontal, mas girando-a para ver se havia outro detalhe, vi que a seta aponta para cima. Uma ordem...", pensava Charlie, enquanto subia devagar pela escada que rangia a cada passos dado. "Direita e acima. Um recinto vizinho ao porão... mas que só pode ser acessado... pelo andar de cima.", concluiu ele, saindo do cômodo, andando mais depressa. 

O jovem percorria a passos largos o semi-escuro corredor, ávido para descobrir o que Gustaff havia reservado através da solução do mistério. "A sala vazia que serviria como quarto de hóspedes, mas nunca sequer foi ocupada!", pensou ele, empolgando-se à medida que chegava mais próximo. 

Após subir a escada para o segundo andar, entrara na sala, ligando a lanterna e seguindo diretamente à um alçapão, o qual esperava que estivesse coberto por um pano como artimanha do seu pai para dificultar o desafio e não fazê-lo desconfiar de início que a passagem se daria ali. 

"Bem no alvo.", disse Charlie para si mesmo, focando o facho de luz nas portas do alçapão. 

Abrira-o com facilidade e descera as escadas, concentrando-se na luz que rasgava as trevas do local.

"Está esquentando...". 

Finalmente, encontrara. Uma robusta porta metálica com uma fechadura encaixável à chave bem no centro. Sem titubear, o jovem inserira-a e girou-se. 

Ouviu-se um "click" agudo. A válvula redonda um pouco mais acima tornou-se mais frouxa graças a inserção da chave, logo sendo girada por Charlie sem utilizar muita força. 

O rangido metálico soou irritante enquanto ela abri-se... e a visão do recinto do outro lado foi se esclarecendo mais e mais. O jovem mago do tempo entrou de modo abrupto, dominado pela ansiedade em esquadrinhas a sala, tanto visualmente quanto fisicamente. Como esperado, o aposento estava completamente às escuras Tateou uma parede, à procura de um interruptor para acender as luzes. 

Encontrando o botão, apertara-o, as lâmpadas fluorescentes do teto acendendo-se em simultâneo, revelando a aparência rústica da sala, com destaque para um extenso bloco de pedra quadrado parecendo se tratar de uma arena de combate. Nas laterais viam-se vitrines que abrigavam armas de calibre poderoso, até mesmo medievais em um canto mais distante. 

Maravilhado e confuso ao mesmo tempo, Charlie mal sabia o que dizer ou pensar sobre o tal segredo. 

- Uma sala secreta... ocultada por 35 anos. - disse ele, olhando em volta. Baixou os olhos para um tapete quadrado, cinza escuro, poucos centímetros de distância dos seus pés, o qual possuía os singelos dizeres: "Bem-vindo (STOMT - Sala de Treinamento da Ordem dos Magos do Tempo". Agachou-se para ver o que havia por debaixo dele, não demorando para se surpreender. 

- Um bilhete... - sussurrou Charlie, os olhos quase arregalados. Pegara o papel dobrado e o lera. 

"Filho... Enfim, você conseguiu alcançar o término da última parte do desafio. Deve estar se perguntando: 'Por que diabos ele não resolveu me contar enquanto estávamos na biblioteca?'. Honestamente, eu planejei que esta parte final deveria ser descoberta através da anterior, então não me vi obrigado a revela-la à você, pois sei que descobriria sozinho... além disso, que graça teria se eu contasse? Sendo direto... esta é a sala onde eu e meus irmãos da Ordem treinávamos para aprimorar nossas habilidades combativas a fim de lutar contra qualquer opressor que viesse nos ameaçar. Não tem obrigação de usa-la caso queira focar apenas no seu crescimento intelectual. Caso o contrário, ela será importante para que você se prepare para enfrenta-los. Para que acerte no ponto onde eu falhei. Como bem instruí Howard a dizer: Não se submeta ao desejo de vingança. Ela só será um empecilho que só vai aproxima-lo da morte. Espero não tê-lo assustado."

Com lágrimas escorrendo pelo rosto, Charlie encarava aquelas palavras com intensa comoção. 

- Até parece... que não acreditava que eu sou forte o bastante para fazer qualquer coisa para ver a justiça acontecer. Mas eu entendo. - disse ele, dobrando o papel e enxugando as lágrimas com o braço direito. 

                                                                                              ***
Inglaterra; proximidades da Grande Londres, bunker alternativo - 1934. 

Nick, um dos membros da Ordem, andava de um lado para o outro segurando uma lança cronal oferecida por Chronos, visivelmente aflito e lívido. Era um dos mais confiáveis amigos de Charlie no colégio. Seu porte era atlético, o rosto caucasiano meio fino e os olhos castanhos. Cofiava nervosamente a barba por fazer, fitando o chão com um olhar vago e praticamente aterrorizado. 

- Nada pode garantir nossa sobrevivência nisso. - disse ele, convicto, voltando-se para os demais. - Temos essas lanças, uma vingança em comum, mas nenhuma garantia de que vamos sair ilesos! 

- Ninguém aqui está falando de vingança, Nick. - retrucou Caleb, um universitário loiro com cabelos ralos e de olhos verdes, mantendo-se de braços cruzados perto do bloco onde ficava o anel cronal. - Tenta ficar calmo. 

- Eu, particularmente, não sinto nenhuma outra presença além das nossas. - declarou Liam dando de ombros, um rapaz de cabelo no estilo militar, rosto branco e quadrado e olhos pretos meio puxados. 
- Nem eu. - disse Ivan, um franzino jovem de rosto fino e usando óculos de grau médio e cabelo castanho liso penteado de lado. 

- E você, Charlie? - perguntou Nick, fitando-o. 

- Oh, por favor, sejam mais confiantes, pra variar. - reclamou Charlie, que estava de costas para os irmãos de fraternidade. Virou-se para eles, sério. - Estamos sob ameaça. OK. Mas, até agora, não notamos nenhum sinal que comprove que eles realmente estão aqui. 

- Chronos não deu sinal ainda. - comentou Franz, olhando de modo preocupado para o anel cronal imóvel e deitado sobre o bloco. O rapaz barbudo e de face amistosa voltou-se para os companheiros exibindo apreensão. - Uma sessão tão importante ser cancelada sem aviso... acho muito desrespeitoso da parte dele, me desculpe vocês, mas... acho que nós envolvemos em uma cilada. 

- O quê?! - indagou Liam, franzindo a testa para o amigo. - Depois de todos esses anos... 

- Nossos pais mentiram para nós! - esbravejou Franz, esbaforido. - Nos amaldiçoaram com uma vida que eles não foram obrigados a seguir. 

- Não penso que foi um erro Chronos ter nos informado sobre os Coletores. - opinou Ivan. - Precisávamos nos prevenir. 

- E de que adiantou todo o peso que carregamos? - questionou Franz, aborrecido. - Foi justo? Não compensa reunir tanto conhecimento, expandir a mente se no fim tudo vai ser reduzido às cinzas. 

- Nós não morreremos hoje. - disse Caleb, confrontando as ideias de Franz com desafio pulsando na expressão. - Estamos nesta juntos por cinco anos. Nossos pais por 35... 

- Isso não quer dizer nada. - retrucou Franz, olhando-o com tédio. - Chronos pode ter sido sequestrado. Algum outro palpite melhor? - olhou para os demais. 

- Cedo demais para aprender sobre viagem no tempo? - arriscou Liam, dando de ombros. 

- Nossos progressos recentes dizem o contrário. - redarguiu Franz, logo passando a olhar para Charlie. - Você, Charlie - aproximou-se com passos vagarosos -, tem sido o mais seguro de si hoje. O que o deixa tão convencido de que não há nada estranho acontecendo por aqui nesta noite? 

- Só estou considerado as possibilidades mais reais. - justificou Charlie, olhando-o com firmeza. - Julgar antes de qualquer sinal, isto sim é um erro. 

- E sobre Chronos? O que tem a dizer? - perguntou Franz, cada vez mais exaltado. 

- Chegamos meia hora adiantados. Talvez ele esteja pensando numa melhor forma de nos ensinar . - disse Charlie, andando para um lado, pensativo. - O anel logo logo vai se erguer, fiquem tranquilos. 

- É, Franz. Um pouco de otimismo e paciência nunca é demais. - disse Caleb, concordante com Charlie. 

- Me perdoem, mas estou com Franz. - declarou Nick, pondo-se ao lado do companheiro, respirando de modo nervoso. - Por mais incrível que seja, por mais fantástico que seja... eu sinto que, mesmo assim, não era para estarmos aqui. 

Charlie parou de andar, encarando com olhos estreitos o irmão de Ordem. 

- É um legado. - disse Liam, discordante. - Um aprendizado em que honramos as memórias de nossos pais. Eles morreram por não terem os recursos que hoje temos. As lanças foram aprimoradas. Ora, pessoal, podemos nos teleportar! Nos defender e atacar de um modo que eles não sabiam como naquela época. - fez uma pausa, olhando com súplica para Nick e Franz, tentando convence-los a mudarem de postura. - Nos temos cartas nas mangas para evitarmos que esse conhecimento se perca. É por isso que peço à vocês... 

Todas as luzes fluorescentes postas nas partes altas das paredes apagaram-se súbita e repentinamente, fazendo todo o recinto mergulhar em escuridão profunda e insuportável. 

- Quem apagou a luz?! - perguntou Franz aos berros. 

Um som rascante semelhante ao de inúmeras lâminas sendo desembainhadas de uma só vez ressoou por todo o espaço imerso em trevas de um modo arrepiante. 

Pouquíssimos segundos depois, sucedeu-se um som de carne humana sendo perfurada e um gemido fraco e triste. 

A perplexidade tomou conta dos humores aflitos daqueles jovens quando as luzes voltaram. 

O corpo de Liam estava bambo e havia sido brutalmente perfurado, dos buracos formados um sangue fresco jorrando e derramando-se no chão cinzento do salão. Sua boca também sangrava e seus olhos também perfurados e deles golfando uma grande porção de sangue. 

Ivan gritara de horror, enquanto recuava depressa, notando os danificados globos oculares de Liam caídos no piso. O corpo já sem vida do jovem tombara no chão de modo angustiante. 

Charlie e os outros recuavam ao mesmo tempo em que notavam uma figura espectral em um canto opaco do salão. O filho de Gustaff Brienord engoliu a saliva, sentindo o sangue gelar. "Eu não entendo. Essa... estranha força... que me motiva a fugir ao invés de atacar! Não consigo lutar contra ela... Seria esse o puro instinto de um mago do tempo diante de seu pior inimigo?". 

Das sombras saíra um homem com barba por fazer, cabelo preto curto e banhado com gel, feições sisudas e com vestes totalmente pretas e de mãos nuas. Os braços estavam estendidos e unhas que antes estavam alongadas e naquele instante voltavam ao tamanho normal. O rosto do homem denotava frieza e apatia fora do comum. 

- Ele iria pedir para que aceitassem a morte. - disse ele, a voz sombria, andando mais rápido em direção aos rapazes amedrontados. 

Outro surgira de surpresa, caindo por trás de Nick feito um espectro fantasmagórico. Este usava um sobretudo de couro preto e tinha longos cabelos prateados. 

- Não... - disse o mago do tempo, com a lança em punho, afastando-se. - É bom saber com quem está lidando. 

- Você primeiro. - rebateu o outro, movimentando os dedos para atacar. 

Os demais saíam pelos diversos corredores do bunker, adentrando em um labirinto do qual temiam não conseguirem escapar até que encontrassem a saída para a superfície.

Charlie corria por um corredor a toda velocidade. Suas pupilas corriam mais freneticamente que suas pernas, vasculhando as paredes para ver se havia algum indício claro de um sigilo de banimento para atrasar os Coletores. 

Caleb dobrara para o mesmo corredor que ele, esbarrando com o amigo. 

Ofegante, apoio-se na parede. Charlie o tocara no ombro, também recuperando o fôlego. 

- Precisamos... continuar. - disse Caleb, a respiração pesada. Arregalara os olhos e abrira a boca para gritar algo. - Atrás de você! 

Rapidamente, Charlie virou-se, retirando a lança em sue tamanho menor, logo apertando um botão que a fazia alongar-se de tamanho, assumindo a forma de uma lança combativa. 

Charlie, cerrando os dentes e com fúria nos olhos, investira contra o Coletor no mesmo instante em que ele avançara. Involuntariamente, um dos botões da lança acionou o teleporte e ambos sumiram feito fantasmas. 

Caleb, ainda encostado na parede, olhou para o quadro ao lado e viu um traço semelhante ao de um sigilo banidor. 

Não perdera a chance assim que outro Coletor, parecendo ser o mais velho dentre os outros, aparecera no corredor, do lado em que havia vindo de encontro à Charlie. 

Derrubara o quadro, o Coletor correndo em sua direção. Por fim, o sigilo se revelou e o jovem batera com sua mão direita a tempo de não ser atacado. O símbolo irradiou uma intensa luz branca que parecia preencher todo o espaço. Caleb protegeu os olhos enquanto o Coletor gritara alto ao sentir a poderosa força que o repelia contra o mundo dos mortais, seu corpo desaparecendo como uma fumaça negra e dissipante como se um vento tempestuoso o atingisse. 

No salão principal, o Coletor de cabelos longos e branco-prateados tivera êxito no horrendo serviço, limpando as mãos. 

Ele andou até uma das portas que davam para um dos corredores enquanto olhava com desdém por cima do ombro para o corpo decapitado de Nick caído no chão... e para a cabeça do jovem enfiada na ponta da lança ensaguentada que havia sido cravada no piso pelo assassino. 

Charlie caíra em uma sala espaçosa, cuja lâmpadas acesas tremeluzia assombrosamente, alternando claridade e escuridão em questão de milésimos formando um cenário de puro terror. 

- Apareça, maldito! - berrara Charlie, levantando-se com dificuldade, sentindo fortes dores nas costas. Sua lança estava caída e à uma certa distância. 

Perto de uma parede, o Coletor que o atacou surgiu na velocidade de um relâmpago. Percebendo-o, Charlie recuava, claramente assustado e desconfortável com aquela instabilidade de luz. 

Encarando-o com forte desprezo, o Coletor - um homem careca e pardo com as mesmas vestes que o primeiro surgente - aproximava-se ameaçadoramente de Charlie. 

- Seu pai o instruiu muito bem a não medir o preço de um saber tão poderoso. - disse ele ,logo dando uma risadinha zombeteira, metade de sua face, em rápidos segundos, apresentando uma monstruosidade com vários dentes afiados, uma pele preto-azulada, além de olhos totalmente vermelhos. 

Um extremo arrepiou abateu Charlie como um choque elétrico, o jovem fitando seu opressor com tremulação incontrolável no corpo. 

- Admita, mago do tempo: Está com medo. - disse o Coletor, ainda se aproximando, o tom humilhador. 

O Coletor avançara contra Charlie com uma supervelocidade arrasadora, fazendo-o impactar com suas costas na parede, logo em seguida aplicando um esmurramento contínuo contra o rosto do jovem mago do tempo. 

Àquela altura, Charlie mal sentira seus músculos faciais, apenas uma dormência no maxilar que aumentava quanto mais socos potentes eram desferidos contra sua face. O mundo ao redor não passava de um mundo borrado, confuso e disforme e os punhos de seu infame agressor soavam como sombras que iam e voltavam incessantemente. 

"É o meu fim.", pensou Charlie, sentindo-se às portas da morte certa. 

Caíra no chão após o último e mais violento soco, a seguir sendo reerguido pelo Coletor que o espremia contra a parede enquanto levantava-o, amassando sua túnica cinza. O rosto de Charlie sangrava e algumas feridas nas bochechas pareciam cortes abertos. 

Seria apenas uma questão de tempo até que o golpe de misericórdia fosse dado. 

- A brincadeira acabou, pequeno aprendiz. - disse o Coletor, apertando-o mais contra a parede. - Se Chronos recusou em dar a foice, nós tomaremos suas vidas. É perfeitamente justo dentro da nossa política. 

Discretamente, Charlie movia os dedos da mão esquerda, estimulando sua lança, com ose quisesse acionar um comando especial para se livrar daquela situação agoniante - seus olhos relanceavam-a mesmo com aquele espetáculo sinistro de alternância entre luz e trevas. A arma foi movimentando-se lentamente, aos poucos sua ponta sendo direcionada precisamente ao Coletor. 

O dedo anelar foi erguido e, automaticamente, a lança se ergueu do chão, naturalmente flutuando no ar, a ponta mantendo-se mirada no Coletor. 

A aberração estava prestes a alongar suas garras e crava-las na carne fresca do reles mortal que tanto repudiava. 

Ao baixar o dedo indicador, Charlie acionara um disparo de energia divina que a lança gerava. O raio retilíneo de cor alaranjada atingira em cheio o lado direito do rosto do Coletor, lançando-o contra o chão e livrando o mago do tempo de suas mãos encharcadas de sangue. 

O Coletor contorcia-se no chão, gritando de dor enlouquecidamente e pressionando suas mãos no ponto do rosto atingido pela rajada de energia. Uma fumaça branca elevava-se dele, indicando a extrema gravidade do ferimento. 

Trôpego e bastante machucado, Charlie correu em direção à lança para apanha-la. Quando o fez, acionou o comando para se teleportar, logo sumindo em piscar de olhos e deixando o Coletor sofrer sua dor terrível sozinho na enorme sala. 

Em um dos muitos corredores, Caleb ainda tentava fugir das garras do Coletor que o perseguia. Definitivamente, era inútil. O sigilo permitia um banimento que durasse, no máximo, dez minutos, um ínfimo tempo para barrar uma ameaça daquele porte. Já fazia mais de quinze minutos que o rapaz cruzava corredor após corredor na tentativa de, ao menos, escapar com ferimentos mas com vida. 

Ao deparar-se com uma porta entreberta de um recinto, correra até lá a toda rapidez. 

Abrira-a a porta por completo... mas travara abruptamente antes de por um pé, sua expressão adquirindo um pavor excruciante. 

Para seu total desespero, o Coletor anteriormente banido ressurgira à sua frente com um sorriso cínico, comemorando sua vitória consigo mesmo. 

- Fim da linha, verme. - disse ele, deixando as garras alongarem-se nos dedos. 

Seguido do grito apavorado de Caleb, uma grande quantidade de sangue espinchara na parede cinza, criando uma imensa mancha de líquido escarlate. 

Após ver todos os seus amigos combalidos e mortos nos lugares em passou em sua fuga, Charlie corria sem rumo pelo labirinto, a expressão de trauma estampada em seu rosto... e que ficaria marcada para sempre em sua memória. 

                                                                                          ***

O ar pesado do subterrâneo castigava os pulmões de Charlie a cada minuto que se passava. O mago do tempo permanecia a escrever em seu pequeno diário - o qual não percebera que portou antes, durante e após a árdua missão para impedir o cumprimento da profecia nas Ruínas Cinzas. A luz alaranjada das chamas da tocha fixa na parede iluminavam parte de sua abatida face. Seu cabelo castanho curto estava um tanto desgrenhado e as roupas bastante sujas por conta do precário ambiente.

"Estarei morto antes que este caderno seja preenchido totalmente.", pensou ele, pessimista acerca de seu destino aparentemente já traçado pelas forças corrompedoras do Cavaleiro da Noite Eterna.

Agarrara tremulamente a caneta com a mão direita, como se suas forças para continuar escrevendo estivessem findando-se. Estreitou os olhos verdes, visando fixamente a página em que discorria sobre sua vida até ali.

Antes que pudesse recolocar a ponta da caneta novamente ao papel, sua linha de pensamento fora rapidamente rompida.

- Olá, pequeno transeunte. - a voz monstruosamente soturna era inconfundível.

Levando um súbito susto, Charlie virara o rosto para sua direita, logo escondendo o caderno.

- Você nunca veio... - gaguejou ele, atônito, levantando-se com pressa. - Por que só agora? - perguntou, recuando alguns passos.

O jovem encarcerado fitava com horror a figura malévola à sua frente. Abamanu postava-se diante das grades da masmorra, esbanjando sua imponência física através de sua robusta armadura prateada Seu tom soava praticamente fantasmagórico e seu olhar de frieza parecia destacar-se em comparação aos demais detalhes.

- Imagino o que possa estar pensando agora. - disse Abamanu, o tom da voz calmo e sombrio. - "Oh, enfim chegou o momento derradeiro de minha patética vida, finalmente serei submetido a cooperar com um deus que possui intentos erráticos". Ledo engano, meu caro mortal. - disse ele, sorrindo sacanamente, as presas à mostra.

- Ora, pare de rodeios. - disse Charlie, encarando-o enraivecido. - Normalmente algum soldado seu vem até aqui para me informar sobre o julgamento de Chronos... mas nunca sobre meus amigos! Por que? - questionou, corajosamente dando alguns passos adiante.

- Não vim para discutir a respeito deles. - retrucou Abamanu, ligeiramente desconversando. - Obviamente é sobre seu propósito... sua vantajosa importância. - inclinou-se um pouco, observando-o dos pés à cabeça. - Está em favoráveis condições físicas e psicológicas. Sabia que se comportaria para manter-se forte até que chegue a hora.

O mago do tempo rangera os dentes em repúdio total, virando seu rosto para não ter de olhar para aquele monstro infame por mais tempo do que o necessário.

- Diga logo... Por que veio? - olhou-o de soslaio, sério. - Certamente é algo bem mais relevante do que simplesmente observar meu estado.

- Sim, é claro... - disse, pondo as mãos para trás e andando para um lado. - A sua sobrevivência é mesmo um assunto de extrema relevância.

O mago do tempo sentira seus pelos eriçarem-se após as palavras daquela frase passarem pelos seus ouvidos. Arregalando os olhos em profunda curiosidade, Charlie voltara-se novamente para Abamanu, olhando-o com um misto de expectativa e desconfiança.

- Do que realmente está falando?

- Ah, não vamos enveredar pelo caminho do fingimento... - disse o deus, revirando os olhos.

- E por acaso eu estou com cara de quem está fingindo? - indagou Charlie, aproximando-se um pouco mais, aparentando estar irritado. - Já sobrevivi a diversas coisas...

- Está bem, está bem. - interrompeu Abamanu, virando-se para ele com seriedade. - Não pense que escapou pelo que os mortais chamam de sorte. O acordo havia sido oficializado já naquela época.

- Refere-se ao último massacre... - disse Charlie, estupefato. - Espere... acho... - andou para um lado, pondo uma mão na cabeça. - ... acho que estou começando a entender o que acarretou na minha salvação. - virou o rosto para Abamanu, enfurecendo-se. - Então foi exatamente desta forma que ocorreu. Fui poupado para que eu estivesse reservado ao seu maldito plano.

Um sorriso de satisfação formou-se na animalesca face do deus.

- Você compreendeu mais rápido do que qualquer outro mortal inteligente. - fez uma pausa, pigarreando - Seus passos foram postos sob vigilância apenas para que os Coletores se certificassem de que não cometeria um ato estúpido contra si mesmo, dada a crise em que você vivia.

- Então vamos para a questão óbvia: Por que eu? - perguntou Charlie, exasperando-se para obter uma resposta rápida e direta.

- Se não fosse pelo fabuloso poder de meu escriba, sua importância nada mais seria do que fruto de uma mera aleatoriedade. - disse o imperador, soberbo. - Graças à ele, pude saber que seu destino estava traçado... destinado a viver à sombra do meu poder.

Em um surto de fúria, o mago do tempo avançara contra as grades de ferro oxidado, agarrando-as fortemente. Seu olhar de cólera era um prato cheio para Abamanu saborear cada segundo.

- Sou capaz de acabar com minha própria vida antes do dia chegar. - garantiu ele.

- E tenho várias maneiras a meu dispor para que eu possa trazê-lo de volta. - o olhou estreitamente. - Pelo visto, meu contraponto prevalece, como sempre, é claro.

Charlie afastara-se das grades, demonstrando um semblante de ojeriza profunda.

- Serei salvo. Vou reaver minha liberdade. Custe o que custar. - disse o mago do tempo, tentando exibir otimismo.

- E farei este mundo testemunhar minha vitória perfeita. - prometeu Abamanu, os olhos faiscando de arrogância. - Doa a quem doer.

Uma fração de segundos passada... e o deus lunar desaparecera instantaneamente. Charlie correu os olhos pelo espaço do lado de fora da masmorra subterrânea, sentindo ter visto uma ilusão por conta do veloz teleporte.

No dado instante, somente teve forças para ajoelhar-se, fitando o nada com um olhar vago e sem expressão.

Uma única lágrima escorrendo pelo seu rosto bastou... para que abandonasse-se a esperança.


                                                                                      CONTINUA...

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