Frank - O Caçador #35: "Elo Perdido"


Orfanato Estrela do Amanhã - 1986

Aquela era uma pouco costumeira noite para os três pequenos órfãos que conviviam no dormitório especial idealizado por uma das madres que os considerava apenas extraordinários. Ao invés do desafio de quem conseguia manter-se acordado até mais tarde para dormir na cama de cima da beliche enquanto o perdedor, caso bocejasse no mínimo, faria uma desconfortável dormida num velho colchonete. O trio estava reunido em torno de uma vela cuja chama iluminava seus rostos juvenis. para conspirarem um plano de fuga motivado pela visão de uma possibilidade prejudicial às suas vidas.

- Será que não dá pra gente aceitar como vivemos aqui? - indagou uma menina chamada Abigail que tinha um cabelo castanho meio chanel com uma franja - Não tô gostando disso, quero me retirar.

- Agora não dá mais, Abbie. - disse Max, um menino negro de cabelo meio raspado - Tem um poder que vai nos ajudar e logo você que tá reclamando. Fred, você é o líder, fala que não iremos sem ela.

- Só querem que eu vá junto porque meu poder é útil, eu sei seus idiotas. - retrucou ela, enfezada.

- Se fôssemos mais que três nossa vantagem aumentaria. - disse Fred, de oito anos, seu rosto branco arrendondado combinando ao seu cabelo tão relativamente raspado quanto o de Max - Uma parte do grupo ficaria de distrair a irmã Ursula com um sonífero no chá e nós pegaríamos a chave dos fundos que está no quarto dela.

- Nós todos não. - objetou Abbie - O Max ficaria encarregado disso, o poder dele é perfeito pra isso.

- Somos mais que suficientes então? Pode deixar, eu fico com a parte mais difícil. - disse Max.

- Estão prontos? - perguntou Fred, levantando-se do chão - Tudo o que mais queremos é uma família e passar a vida inteira aqui seria um pesadelo.

- Não vamos nos despedir da madre Lilian? - perguntou Abbie - Afinal, ela é quem nos deu esse quarto de presente e guardou nosso segredo. Podíamos escrever uma carta de agradecimento.

- Não temos tempo pra isso, Abbie. - destacou Fred - Por mais que eu também goste dela.

Max levantou-se, aparentando entusiasmo e otimismo na missão.

- Tá legal, vamos começar logo. Abbie, você primeiro. Só não exagera, tá bom?

- Não precisa ficar com medinho. - disse ela, dirigindo-se à janela. Abbie pegara um caixote e usou-o para subir a fim de alcançar a janela para abri-la. Uma brisa fria soprou no seu rosto. A menina olhou fixamente para o céu e concentrou-se para executar sua habilidade que causava distúrbios climáticos. Nuvens carregadas e trovejantes se formavam rapidamente e o vento se fortificou tornando-se uma ventania que arrastava folhas e balançava árvores - O que estão esperando?

- Vai Max. - disse Fred, confiando no amigo. Max correu para fora do quarto, passando por corredores. Abbie manipulou seu poder para que um raio caísse num poste danificando o sistema elétrico do orfanato, facilitando se esgueirar pelos corredores escuros quando as freiras estariam ocupadas tomando as precauções contra tempestades - Abbie, quanto isso vai durar?

- Acho que posso segurar por cinco minutos. - disse ela, afastando-se da janela. A chama da vela apagou-se com o vento arrasador - Tomara que o Max volte logo. Ele tá sem lanterna, vai ser difícil achar o quarto da irmã Ursula.

- Só tenha fé, Abbie. Ele vai conseguir. Nós vamos conseguir. - disse Fred, fortemente convicto.

Max dobrou para um corredor e entreviu o número do quarto da irmã Ursula. Os relâmpagos piscavam através das janelas com vidro quadriculado. Olhou para trás ao escutar passos e enxergou uma sombra avizinhando-se. Uma estante de madeira com vários itens decorativos parecia convida-lo a se salvar. A irmã Mercy chegava ao corredor portando uma lamparina de luz amarela, passando pela estante, mas diminuiu o ritmo. Ela esquadrinhou o corredor minuciosamente. Resolveu voltar por ouvir o chamado de uma das freiras. Assim que ela fora embora, Max, encostado na estante, pôde dar uma inspirada profunda, ficando visível, já que sua camuflagem ativava-se somente com o prender da respiração. O garoto não perdeu a deixa e foi ao quarto da irmão Ursula, abrindo a porta depressa. Sabia exatamente em qual gaveta da cômoda a chave estaria guardada. A pegara e partiu na correria, mas esquecendo de fechar a porta. Reencontrou Fred e Abbie, mostrando a chave.

- Finalmente hein. - disse Abbie.

- É isso aí, toquem em mim, podemos sair camuflados, só ficarmos pertinhos das paredes. - sugeriu Max.

- Boa ideia. - aprovou Fred - É quase que como se estivéssemos invisíveis. Você é um gênio, Max.

- Vai aguentar ficar sem respirar até chegarmos lá? - questionou Abbie, relutando.

- Não importa, anda logo, eu acabo de lembrar que deixei a porta do quarto da irmã Ursula aberta quando saí.

- Isso não foi nada genial. - repreendeu Abbie, tocando-o no ombro.

Passaram pelos caminhos que direcionavam à porta dos fundos sem enfrentar obstáculos. A tempestade prosseguia com raios, trovões e ventania. O trio saiu para o mundo exterior parando próximo à uma tampa de bueiro.

- Pelo esgoto?! Pensei que iríamos pular o portão! - disse Abbie.

- Essa tampa deve pesar uma tonelada. - disse Max.

- Moleza pra mim. - disse Fred, pegando a tampa e erguendo-a com uma força colossal - Vambora.

Desceram pela escada de ferro, pisando com os pés descalços no chão úmido e sujo da tubulação e seguiram em frente pelo estreito piso que ladeava o rio de imundície. Quando avistaram uma outra escada, correram desesperadamente, porém a mesma se encontrava do outro lado.

- Como vamos atravessar? - perguntou Max que acabou se descuidando e escorregou - Ai!

- Max. - disse Fred, parando para ajuda-lo. Abbie viu atemorizada uma luz alaranjada advir de uma ramificação do esgoto.

- Te-temos... que voltar. Vem vindo alguém...

- Eu torci... meu tornozelo. - disse Max, queixando-se de dor.

- O que vocês fazem aqui à essa hora acordados? - perguntou a madre Lilian, uma moça de rosto jovial e atraente, segurando um castiçal com uma vela - Francamente, estou surpresa que tenham tido a coragem de saírem do aposento.

- Foi tudo ideia do Fred, madre. - acusou Abbie - Ele nos obrigou, mentiu pra nós.

- Cala a boca, Abbie! - disse Fred, irritado - Você podia me dar uma ajudinha aqui com o Max.

- Já chega. - ordenou Lilian - Desculpa nenhuma os salvará do castigo. Quero saber porque planejaram fugir?

- Nos perdoe. madre. - disse Abbie, acuada - Ficamos com medo de que ninguém nos adotasse pois já fizemos oito anos. Nas ruas seria mais fácil, os adultos não resistem a crianças desabrigadas.

- Mas as chances de vocês aparecerão. - disse Lilian, mais condescendente - Continuem esperando, tenham mais paciência.

- E a senhora? Por que está andando pelo esgoto? - perguntou Fred.

- É um patrulhamento para evitar que escapulidas como essa sejam arruinadas. Agora voltem ao dormitório, peçam à irmã Dalia para cuidar do Max. Não me olhem assim, queridos. A motivação de vocês me comoveu tanto que desisti de puni-los.

- Obrigado, madre. - disse Fred, carregando Max junto à Abbie - Não vai acontecer de novo.

Vendo-os se afastarem, a freira sorriu serenamente, mas seus olhos tingiram-se inteiros de preto

Lilian nada mais era que um pseudônimo para uma infiltrada e ardilosa Lilith estudar as crianças sobrenaturalmente dotadas.

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CAPÍTULO 35: ELO PERDIDO

Frank encostou seu sedã prata olhando para a fachada branca do hospital psiquiátrico localizada alguns metros à sua direita. O detetive estava ao telefone com Carrie que obteve acesso irrestrito às fichas de pacientes instalados.

- Já parei quase em frente. Rua Lively 6052. Confere o endereço?

- É esse mesmo, certinho. - disse Carrie - Há um Atticus dentre os pacientes. Acho que o tal Roman não criou uma mentirinha sentimental para posar de vítima e justificar seu plano anti-caçadores.

- Não vejo porque ele mentiria. Armou aquela cilada para proteger o irmão, se ele teve tanta coragem pra partir pro vale-tudo com certeza quer dizer que ele temia pela segurança do Atticus. Vou indo nessa.

- Só não esquece que o cara é classificado como perigoso. O que será que arrastou ele pra reclusão?

- É o que vou descobrir e me recuso a sair de mãos vazias. - disse Frank, saindo do carro.

- Tenta não sair com elas sujas de sangue, principalmente se for o seu sangue.

- Por que essa preocupação exagerada de repente? Ele é um esper poderoso e mentalmente instável, claro que não vou ser o policial malvado. Não tô afim de atiçar as coisas pra saber a que ponto vai a extensão do poder dele. Te ligo depois, tchau.

Como o detetive já havia contactado a recepção do hospital pelo número de telefone fornecido por Carrie e agendado uma visita fingindo ser um parente, os enfermeiros realocaram Atticus para uma cela fora da chamada ala vermelha, designada para os internos que representassem um perigo potencial à sociedade. Atticus estava sentado de costas para Frank.

- Procure não perturba-lo, seja educado, o que significa que terá de pisar em ovos pra ter uma conversa calma. - orientou o enfermeiro - Se não quiser que seu cérebro vire pasta de amendoim, faça com que dure menos do que gostaria.

- Ele pode não se recordar de mim, mas uma vez o convencendo de que sou da família, talvez isso amanse a fera. - disse Frank - Obrigado. - entrara na sala após o enfermeiro acenar e ir embora - Atticus? - se aproximou da mesa.

- Quem é você? - perguntou Atticus, a voz soturna. O irmão de Roman tinha cabelo curto, mas que mostrava-se meio desgrenhado, e uma pele pálida. Uma barba por fazer tornava sua aparência mais velha em relação à sua idade.

- Não me orgulho do que eu fiz pra conseguir uma chance de falar com você. - disse Frank, sentando-se na cadeira frente ao esper. No momento, ele notou a heterocromia nos olhos fundos de Atticus - Eu não sou amigo da família, vim pelo seu irmão.

- Como sabe dele? - indagou Atticus, parecendo um tanto apático.

- A ocasião não foi das melhores. O Roman foi manipulado por um cara extremamente mal-intencionado que estava interessado em você pra explorar suas habilidades. Pra ser mais exato, te fazer ingerir uma fórmula pra transforma-lo numa criatura que atendesse às vontades dele. Esse mesmo cara uma narrativa de que caçadores estariam massacrando espers e isso motivou seu irmão a armar uma cilada que envolveu a mim e meus amigos para nos eliminar. Só pra te proteger.

- E onde ele está?

- Lamento te dar essa notícia... Ele foi morto. Tentei apaziguar o clima quando nós ficamos cara a cara com ele, mas um dos caçadores atirou nele e fugiu. Pode acreditar que sinto muito pela sua perda.

- Não. - disse Atticus, secamente - Não sente. Eu também não. No dia em que fui jogado nessa masmorra, a vida se tornou minha pior condenação. Nada mais me importou desde então. Por que veio? O que quer de mim?

- Bem, ahn... Sobre o incêndio no orfanato Estrela do Amanhã que segundo o Roman ocorreu pouco tempo após vocês serem adotados. A propósito, ele falou que seus poderes são mais avançados que os dele.

- A diferença entre nós dois era o controle. Ele mesmo sendo fraco, sabia dominar. Eu não.

- E a respeito do incêndio no orfanato? Tem algo a dizer?

- Aquilo foi causado por uma força maligna que sempre senti estar lá... nos observando dia e noite.

- Que tipo de força maligna seria essa? - perguntou Frank, o desconfiômetro ligado.

- Eu não sei. - disse Atticus, frio - Chame alguém, estou com dor de cabeça.

- Calma aí, Atticus, ainda não terminamos...

- Eu mandei... chamar alguém. - disse Atticus, esboçando raiva na face. Frank deu uma olhada para cima, focando na lâmpada fluorescente cuja luz piscava tremida. O detetive levantou-se devagar, cedendo ao pedido do esper.

Na saída do hospital, Frank retornava ao seu carro não percebendo uma van suspeita estacionada um pouco mais longe. Homens com olhos pretos viam o detetive partir, logo aproveitando para saírem da van. Atticus escutava barulhos agitados nos corredores, sobretudo gritos e tiros. A porta da cela recebeu um chute pesado. Aticus via sangue nas botas do homem.

- Hora de vir conosco, olhinhos coloridos. - disse o demônio, sorrindo perfidamente.

                                                                               ***

Mo trajeto de retorno para a ADP, Frank resolveu checar rapidinho a caixa de mensagens no seu celular. Foi justo quando um novo envio surgiu, este sendo de Fred, não surpreendendo o detetive que deu um longo suspiro pela boca cansado daquela insistência interminável. Encorajou-se para realizar uma ligação para Fred e dizer se concordava ou não com o encontro para naquele horário.

- Eu não me zango com você me ligando e mandando mensagem a curtos intervalos de tempo desde o último dia que nos vimos porque sei que essa conversa significa muito pra você. Mas não tanto quanto pra mim, tenho que admitir

- Olá pra você também, Frank. - disse Fred - E então, será que rola de nos vermos agorinha mesmo?

- Não é emboscada do Malvus usando você de chamariz?

- Garanto sinceramente que não. Eu fugi da casinha faz uns dias, mas ainda tô com a coleira.

- Beleza, tô a caminho. - disse Frank, o tom de seriedade. Desligara, logo dobrando para uma outra rua como um dos percursos para a ferrovia abandonada próxima de um viaduto.

A corrida durara cerca de 40 minutos e após tal período Frank chegara ao endereço indicado por Fred na mensagem. O encontrou na estação e passou pelos trilhos para aproximar-se.

- Não acredito que achou esse um ótimo local pra batermos um papo ultra-reservado. - disse Frank - É um local perfeito também pra uma cilada, daquelas que mal dá cinco minutos de guarda baixa.

- A sua boa vontade em aceitar meu pedido, pelo que parece, não reduziu sua desconfiança. - retrucou Fred - Não tem demônios de tocaia, apenas eu e você pra uma conversa franca, esclarecedora e amigável, se depender de você.

- O que você acha que eu esperaria de um serviçal do capiroto que quase matou minha amiga?

- Eu fiquei fora de controle, fui idiota de esvaziar aqueles frascos pra impedir os demônios de obrigar as crianças a tomarem. - contou Fred, atordoando-se com a postura indiferente de Frank à sua demonstração de arrependimento - Sim, foi um ato desesperado e inconsequente, mas...

- Fez com a melhor das intenções? - indagou Frank, evitando encara-lo - Não me desce você não ter suspeitado nada, deduzido que aquilo era armadilha fácil pra pegar presa ainda mais fácil. Querendo ou não, agiu em favor do Malvus.

- A ignorância e o descuido não me absolvem da culpa? Frank, pelo amor de Deus, olha nos meus olhos! - disse Fred, pegando no rosto do detetive e o virando para a frente do seu - Eu não vou levar a sério essa sua pose de durão e inflexível pro meu lado. Você podia estar me caçando, atrás de arrancar minha cabeça, mas me ignorou por dias e isso diz muito.

- Diz o quê? Como se fosse tranquilo arrancar a cabeça de um monstro feito você.

- Não estava buscando um meio de me matar, só... quis dar um tempo. Me perdoa pela Carrie. Os amigos dela que matei sem nenhum escrúpulo. A voz do Malvus gritava na minha mente me estimulando a derramar sangue.

- Mas é certo que tem um motivo muito obscuro por trás do seu rabinho preso com ele, tá claro como a luz do dia.

- Não duvide disso. - disse Fred tentando conter seus nervos - Eu não quero forçar a barra pra fazer tudo parecer igual como se nada tivesse acontecido, como se ainda fôssemos parceiros, você nunca mais vai olhar pra mim como antes. Mesmo assim, preciso te mostrar algo e principalmente da sua opinião porque se eu seguir o que meu coração diz é provável que eu caia nas mãos do Malvus novamente. Topa ir na minha casa? É lá que guardei essa coisa que anda me dividindo.

- Olha, eu te acompanho, numa boa. Mas seja o que for, vou manter meu sensor de cilada ligado no talo. - avisou o detetive. O celular de Frank tocara quebrando a atmosfera da discussão - Fala aí, Carrie. - fez uma pausa, escutando - O quê?!

- Frank, o que houve? - perguntou Fred, curioso - Pela sua cara, é bem grave.

- Tá, já tô indo pra lá a mil por hora. Mais tarde a gente se fala, tchau. - disse Frank, finalizando a chamada - Cacete. - colocou o celular no bolso - Quer retomar a parceria? Rolou um baita massacre no manicômio onde fica o esper mais sinistro.

                                                                                 ***

Nos primeiros corredores do hospital psiquiátrico jaziam corpos de funcionários, dilacerados e destrinchados, sujando de bastante sangue o piso de ladrilhos brancos. Frank e Fred seguiram pelas pegadas das marcas das botas que pisaram no sangue e no avanço um odor de enxofre crescia.

- Essa podridão forte... - disse Frank, tapando o nariz.

- É enxofre. - disse Fred, desconfortado com o cenário horrível - Os demônios do Malvus estiveram aqui.

- Sabia o tempo todo desse plano? - questionou Frank, irritado.

- Não, seu imbecil! O Malvus apenas compartilhava comigo planos que ele mandava eu executar. Será que dá pra você entender de uma vez por todas que tô a fim de me livrar da influência dele?

- Você de novo. - disse Atticus aparecendo no final do corredor fixando seu olhar estático em Frank.

- Atticus. - disse o detetive, dando passos adiante - Não viemos te machucar.

- Frank, você tá com uma arma em punho e falando pra um maluco que não pode ser ameaçado. - disse Fred, inseguro quanto á abordagem pacífica - Terá que fazer mais que isso. Se temos tempo, são outros quinhentos.

- Eu não sinto uma boa energia vinda do seu amigo. - declarou Atticus. Um tremor de terra começara balançando as lâmpadas que piscavam e causando rachaduras no piso e nas paredes - O trouxe pra me matar, não foi?

- Não, eu vim te proteger. Digo, nós, eu e ele!

Atticus dera um berro agudo e estremecedor de fúria que assustou a dupla. O tremor se intensificou e eles precisaram correr. Fred tentou puxar Frank para escapar. O detetive corria tentando se proteger dos estilhaços de vidros das janelas que estouravam nos dois lados com o poder avassalador do esper em manifestação pura. O grito estridente cessou de repente.

Eles não contavam com a inesperada presença que intervia salvando suas vidas, mas não intencionalmente.

- Fica quietinho aí, nervosinho. - disse Lilith, tocando nas têmporas de Atticus por trás dele. O esper caiu inconsciente - Agora que pus o bebê problemático pra dormir antes que ele rachasse todo o espaço-tempo e não somente essas paredes...

Frank disparou contra Lilith acertando-a na cabeça.

- Frank, espera, não tinha que... atirar nela. - disse Fred.

- Isso sou eu me apresentando formalmente a um demônio. Tá vestida de enfermeira, mas peguei deixando o Atticus desacordado com o toque de mágica. Se não tô enganado... é a Lilith. Não é?

- Deu pra sentir a água santa queimando minha epiderme. - disse Lilith, inclinando o rosto para frente removendo a bala que fez cair na palma da mão esquerda. Ergueu a cabeça, sorrindo sacana para Frank - Adorei as boas-vindas.

- O que você tá fazendo aqui, Lilith? - perguntou Fred, aborrecido - Pra quê se intrometer?

- Eu quero matar esse sujeito, o último trunfo que Malvus pode ter a disposição.

- Nem ferrando. - disse Frank, categórico - O Atticus vive e fim de papo.

- E quem você é pra me servir de empecilho? Não é imbatível só pelo fato de ter o privilégio e o azar de se envolver com forças maiores do que seu intelecto de ameba pode compreender.

- Não sei se é impressão minha, mas... Acho que a soneca durou menos do que devia. - disse Fred notando Atticus despertar.

- Está bem, bandeira branca. - disse Lilith, soando enfezada - Levo ele de volta pra cela. Vou criar uma proteção. E Fred... Resta pouco tempo pra acharmos o tridente. Os centuriões são os únicos que sabem. Frank tem afinidade com um deles, talvez deva usa-lo. Até mais. Foi um prazer, Frank.

A demônio sumira com Atticus num piscar de olhos. Frank virou-se para Fred sedento por explicações.

- Que história é essa de tridente?

                                                                                 ***

No esconderijo secreto de Malvus e seu cortejo de demônios, o anjo caído arremessara um dos seus subordinados contra a parede após receber uma notícia não muito animadora.

- Você devia estar morto junto àqueles outros incompetentes! - disse Malvus, humilhando-o - Fui um tolo confiando uma missão desse porte a um bando de lesmas, palermas e inúteis!

- Senhor, por favor... - disse o demônio, levantando-se - Foi sorte eu ter sobrevivido... Não tínhamos a mínima chance.

- É óbvio que não! Por isso orientei pra que agissem com cautela! Pode deixar, eu mesmo farei o trabalho direito.

- E quanto à mim? Posso acompanha-lo?

Malvus o fitou com um desprezo fulminante.

- Não. Considere-se dispensado. - disse ele, logo estalando os dedos e matando o demônio que explodiu em fumaça negra.

Na sua cela, Atticus estava deitado no chão, ainda sentindo-se meio indisposto por conta do efeito sedativo do toque de Lilith. Malvus teleportara-se diretamente ao confinamento, observando o esper pela enorme parede de vidro reforçado que os separava. O anjo caído reparou num símbolo que Lilith gravou no chão do quarto com giz cuja função sobrenatural impedia qualquer outro ser de adentrar no recinto. Atticus levantava-se devagar, estranhando a presença de Malvus que retirava um frasco contendo uma dose do elixir desenvolvido para transformar espers em anjos caídos aprimorados.

- Mais um visitante estranho. - disse Atticus, intrigado - Foi você quem me pôs de volta nessa prisão?

- Essa é a primeira vez que o conheço, meu caro jovem extraordinário. E trago uma salvação. - mostrou o frasco.

- Então quem me fez perder a consciência tão subitamente? Eu sinto que foi alguém, senti dedos tocarem minha cabeça.

- Não faço a menor ideia, eu cheguei agora. Mas vamos ao que importa. Dentro deste frasco... - Malvus se interrompeu ao não vê-lo na sua mão direita, em seguida olhara para Atticus que o segurava, constatando que o esper teleportou-o para suas mãos com um poder mental imensurável - ... como você pode analisar mais de perto... É um tipo de cura criada a partir de uma fórmula celestial, ingredientes puramente celestiais. Pra ser exato, é uma dose extra que reservei especialmente à você.

- Por que chama esse líquido de salvação? Pra mim? Por que eu deveria confiar em você?

- Porque sou o arquiteto de um plano revolucionário. Desejo todo e qualquer esper vivendo sem se atormentar pelos seus dons incompreendidos. - falou Malvus, dissimulado - Quer se livrar desse fardo, não é Atticus?

- O que me garante que eu deva confiar na sua palavra?

- É claro que deve. - disse Malvus expressando um sorriso soberbo - Eu sou um anjo.

Atticus encarava Malvus com uma desconfiança contida, mas optou pelo risco. Tirou a tampa do frasco, bebendo o elixir num único gole. Porém, a expressão animada de Malvus mudou para preocupação aflita quando Atticus deixou o frasco cair no chão quebrando-se ao experimentar uma reação adversa que o colocou de joelhos numa sofrível dor que acometia seu organismo inteiro. Atticus gritava, contorcendo-se no chão, convulsionando e espumando pela boca.

- Mas não é possível... - disse Malvus, apreensivo - Atticus! - batia no vidro da cela, mas o sigilo era um obstáculo inultrapassável - Isso não pode estar acontecendo... Aquela vadia! - a autoria da sabotagem não viria de nenhum outro demônio senão Lilith - Eu vou mata-la... - dava ombradas mal-sucedidas no vidro - Resista, Atticus, não morra!

                                                                                 ***

Frank seguia o carro de Fred pela estrada rumo à casa do nefilim naquela ensolarada tarde. A residência localizava-se numa rua pacata, tinha uma estrutura agradável aos olhos transmitindo comodidade pela fachada. Ambos estacionaram e saíram de seus veículos. Fred andou depressa até a porta, demonstrando uma certa euforia. Fred abrira a pota, mas não entrou.

- Eu finalmente o arrastei pra cá! Venham! - disse Fred elevando a voz. Virou-se para Frank com uma expressão contente.

Uma mulher morena de cabelos castanhos com luzes e vestindo uma blusa amarela sem manga e calças jeans saía da casa, descendo os três degraus para conhecer o detetive de quem tanto Fred falava.

- Não brinca... - disse Frank, perplexo - É mesmo o que eu tô pensando que é? Caraca...

- Aqui está ele, Pamela. O ilustre e inveterado Frank Montgrow em pessoa.

- O Fred não parava de tagarelar sobre você nesses últimos dias que só aumentou minha curiosidade de saber quem era esse amigo tão exemplar e inspirador. - disse Pamela, simpática - É um prazer.

- O prazer é todo meu. - disse Frank, não sabendo muito bem como lidar diante de tal revelação - Não sabia que era casado.

- Claro, afinal eu nunca mencionei o nome dela fora de casa. Uma hora ou outra tinha que ser uma surpresa.

- E põe surpresa nisso. - disse Frank fazendo um sorriso meio nervoso.

- Já falei pra ele parar de ser tão reservado, mas nenhum conselho que dou entra nessa cabecinha dura. - disse Pamela, bem-humorada - Bem, rapazes, vamos entrando? Uma visita é incompleta se eu não servir um cafezinho, no mínimo.

- A gente já vai. - disse Fred dando uma piscadela para a esposa. Pamela retornava à casa quando um garoto de cabelo liso que quase ocultava seus olhos pela franja saía de casa correndo com sua bola de futebol - Ah, e esse aqui é o meu garoto. Dá um oi pro tio Frank, Donald.

- Oi. - disse ele acenando timidamente - Desde quando o senhor tem amigos papai?

- Ahn... Eu sempre tive amigos, filho, apenas nunca tive o hábito de apresenta-los, fiz a diferença hoje com o Frank. - disse Fred, desconcertado - Vai lá pra sua mãe, daqui à pouco nós entramos.

- Cara você tem muita história pra contar. - disse Frank, ainda estupefato.

- A história menos longa está dentro do meu quarto. Vem. - disse Fred, chamando-o com um meneio de cabeça.

                                                                               ***

O quarto do casal Hackson era um cômodo confortavelmente espaçoso com paredes tingidas de marfim e enfeitadas com quadros produzidos por Pamela, frutos de seu trabalho como artista plástica. Frank sentou-se na lateral da cama king size observando algumas pinturas enquanto Fred ia até o criado-mudo puxar a primeira gaveta e remover o fundo falso para pegar o frasco com o elixir reverso. As formas desenhadas nos quadros despertava uma curiosidade que Frank gostaria de verbalizar.

- Vocês dois curtem esses lances artísticos?

- É a Pamela, são todas obras dela. - disse Fred vindo com o frasco - Realizando o trabalho dos sonhos dela em casa nunca dependemos de babá pro Donald. E por falar em sonhos, o que você vê nessas pinturas nada mais são que meus sonhos e pesadelos pincelados. Toda vez que eu acordava assustado de um pesadelo ou confuso com um sonho, ela me pedia pra descreve-los em detalhes. Faz um tempinho que ela parou porque tá quase faltando espaço. - deu uma risadinha.

- Mas e aí, o que você queria ansiosamente me mostrar? - disse Frank, ficando de pé.

- Isto aqui. - destacou o recipiente - Você provavelmente vai querer me dar um soco ao saber porque conservei essa droga.

- Fred, o que tem nesse frasco? Parece sangue de alguma coisa não-humana e não é um animal.

- Invoquei a Lilith na semana passada. - disparou Fred, controlando a tensão.

- Você o quê?! - reagiu Frank, reprovando com a expressão - Barganhou com aquela cretina?!

- Shh, fala baixo. Estamos na minha casa, esqueceu? Tem sido um desafio enorme manter em sigilo minha vida de caçador desde meu primeiro ano metendo bala nos lixos sobrenaturais que infestam essa cidade. Mas voltando à Lilith: Me passou pela cabeça a possibilidade de um demônio tão influente como ela ter conhecimento de uma fórmula que ativasse meu lado celestial, a minha metade angelical, imaculada e pura. Ela disse que sim, embora não garantindo a eficácia.

- O que é uma boa razão pra não cair na lábia da embusteira. - disse Frank, atarantado com a confissão - E você é filho de um anjo caído, um ser puro... de pura maldade.

- Malvus me contou que um nefilim pode geneticamente herdar a essência... digamos recessiva de um anjo caído, ou seja, a parte boa que ficou trancada nos porões da alma, um resquício de bondade ainda existente lá no fundo.

- Isso é bem poético, mas não levo fé nessa ideia da Lilith, tá cheirando à gambiarra pra te ferrar.

- Frank, não posso sair do guarda-chuva do Malvus por muito tempo e com ele por perto é impossível despertar a minha pureza espontaneamente. Além do mais, a Lilith é uma agente dupla, quer arruinar os planos do Malvus para cedo ou tarde agarrar um proveito. Você viu bem, ela quis matar aquele esper insano porque certamente ele convém ao interesse do Malvus. Ela tá frustrando o maridinho na surdina pra no final ele ficar na rua da amargura.

- Não é diferente de certas mulheres pelo mundo. - disse Frank - Mas vai por mim, cara: Agente duplo é ainda menos confiável. Ela não tá fazendo isso por você, pra te fazer sair ganhando com ela no fim das contas.

- Sei disso, portanto fiquei numa encruzilhada. Tomar ou não, eis a questão. - olhou para o frasco, segurando-o firmemente.

- Se livra, se desfaz, se desprende. - sugeriu Frank - É um demônio, Fred. Não tem merda nenhuma de bom pra oferecer.

Os pensamentos de Fred se embaralhavam. Mas aos poucos iam se reorganizando.

- Tem razão. Meu otimismo, se é que dá pra chamar assim, não compensa o risco. Quer fazer uma caminhada meio longa?

- Depende. Pra onde?

- Nas corredeiras. Quando o dinheiro tá escasso é nosso ponto de férias. Mas com certeza nós dois não vamos tomar banho.

                                                                                  ***

Frank e Fred alcançavam proximidade com as margens das águas rápidas passando por uma extensa floresta.

- Tá pronto? - perguntou Frank olhando-o - Não gastei perna até aqui pra te ver desistir.

- Tem uma coisa que esqueci de contar. - disse Fred - No momento em que Lilith ia me entregar o elixir, Adrael, apareceu pra interferir, ele seguiu meu rastro pra me levar como um troféu. Sorte minha ela ter o intimidado.

- Peraí, a Lilith botou terror no Adrael? Que eu saiba demônios são formiguinhas comparados aos anjos. E você tá grato à ela? Fala sério....

- Só que ela não é um demônio qualquer, se quisesse podia mata-lo, segundo ela. Isso porque ele é um serafim.

- Mas não precisa agradece-la por salvar sua pele. O Adrael tem seus excessos, mas ainda confio nele, apesar da mancada com a Bertha, uma esper que prevê o futuro e que foi esposa do sacerdote que criou a lâmina anti-demônio. No passado ele queimou os olhos dela a mando de Malvus.

- O Adrael já apoiou o Malvus? Por essa eu não esperava. Mas quem é que não guarda um esqueleto no armário? Enfim... - disse Fred com o frasco na mão esquerda - Isso é toda minha gratidão pela Lilith - arremessou o frasco no rio o mais longe que pôde. O recipiente era levado pela forte correnteza das águas cristalinas e reluzentes - As costas ficaram mais leves.

- Você fez a coisa certa. - disse Frank, tocando-o no ombro, um gesto bastante reconciliador para Fred.

                                                                                  ***

Durante o término da volta para a casa de Fred, o sol já estava prestes a se pôr completamente sinalizado pelo céu rosado-avermelhado do final da tarde. Frank idealizou algo para fortalece-los defensivamente.

- Eu estive pensando... sabe, rezar pro Adrael aparecer e discutir alguma estratégia que nos proteja.

- Que ideia de gerico é essa, Frank? Eu vou repetir caso você não tenha assimilado bem: Adrael é um centurião e como tal ele sente-se no dever de perseguir incansavelmente um nefilim. Podemos ter nos reaproximado, mas no que diz respeito à travar as batalhas, não estamos jogando no mesmo time. Nada vem antes da minha família, não posso deixar o Malvus ameaça-los em hipótese alguma. O único modo de manter eles vivos é fingindo lutar pelo lado negro da força.

Antes que Frank emitisse uma réplica, um grito de pavor vindo da casa os alarmou, fazendo-os parar.

- Ah não, é a Pamela... - disse Fred, atemorizado - Frank, tem estranhos lá dentro... - estreitou os olhos para visualizar pela janela o homem de gorro preto e jaqueta azul.

- Eu não vou especular invasão domiciliar porque foi coincidência demais você falar justo da chantagem do Malvus que te deixa atado com ele. - disse Frank, não menos tenso.

- Inacreditável... É um demônio, consigo ver os olhos pretos. - disse Fred - Tá ameaçando Pamela e Donald!

- Calma, espera aí, chegar com o pé na porta talvez não seja prudente. - disse Frank segurando-o.

- Entrada furtiva e ataque-surpresa? OK, vamos pela janela do meu quarto. - determinou Fred, logo correndo com o parceiro para o outro lado mais à esquerda. A dupla adentrou no quarto pulando a janela. No entanto, havia mais alguém a entrar sem convite - Tá de brincadeira... - disse Fred, pego desprevenido pela aparição de Lilith - Eu tava com um mau pressentimento...

- E ele vai se concretizar, já que você teve a audácia insana de desmanchar nosso trato.

- Então o demônio que tá na sala aterrorizando uma mãe e seu filho inocentes é pau-mandado seu? - questionou Frank.

- Dois, na verdade. Peguei eles emprestados, se é que me entendem. - disse Lilith, a postura escarniante - Eu facilitei tanto pra você, Fred. Toda a liberdade tem que vir com um preço. O seu será ver a querida esposa e o filho serem esquartejados e desossados para decorar as paredes com o sangue deles.

- Deixa eles em paz! - esbravejou Fred - Se não quiser que o nefilim desperte de novo, é bom não cutucar a onça com vara curta agora, sua vagabunda. Eu vou acabar com você se uma gota de sangue da minha mulher ou do meu filho for tirada, nem que isso destrua meu pacto com o Malvus pra obedece-lo em troca de não matar as pessoas que amo porque ele caiu na sua farsa e te blindou.

- Falando em pacto... Nós selamos um naquele dia. Incrementei uma magia no frasco para torna-lo um símbolo da nossa aliança. Uma vez danificado ou a posse abdicada, o pacto é desfeito e o contratante recebe um alerta instantâneo. Achou que se livrando do frasco eu não ficaria sabendo?

- O Frank tinha razão de fato. Demônios são todos mentirosos e traiçoeiros, não tem exceção.

- Pensando bem, acho que vou começar por ele. Quem sabe arranque uma lágrima de arrependimento. - disse Lilith, esticando o braço direito para empurrar Frank com telecinesia contra a parede e imobiliza-lo. Moveu os dedos como se quisesse fechar a mão, causando um efeito mortífero ao detetive. Cortes sangrentos riscavam o corpo de Frank e rasgavam sua roupa. O detetive sofria com a dor intensa dos ferimentos provocados pelo poder impiedoso da demônia.

- Pára com isso! - pedia Fred, colérico - Quer que eu me arrepende? Fechado, você venceu!

- Experimenta pedir com mais jeitinho. - disse Lilith, provocativa, elevando a dor excruciante em Frank cujos ferimentos se agravavam - Ou pode ir salvar seus tesouros que não valem o mesmo que a confiança que depositei em você!

- Escondeu que tínhamos feito um pacto mágico e vem falar de confiança? O papel de otário é mais meu do que seu!

- Era surpresa. - disse ela, cinicamente, dando de ombros com um sorriso sádico - Meus lacaios estão prestes a completar o serviço. A tortura física vem depois da psicológica. O que vai escolher?

Fred cerrou os dentes, dominando-se pela raiva que precisava canalizar e extravasar contra algo. Correu para fora do quarto a fim de socorrer Pamela e Donald à mercê dos demônios.

- Que pena pra você, Frank. Seu amigo te largou à própria sorte. - disse Lilith, aproximando-se do caçador - Mas você tem serventia pros centuriões, né? Devem te querer como o favorito ao tridente, então descasca-lo até os ossos seria um desperdício.

O corpo de Frank caíra um tanto debilitado no chão, o sangue manchando a camisa branca e o sobretudo do detetive.

- Admite que tá realmente... interessada na derrocada do Malvus?

- Se você cravar aquele tridente nele, serei eternamente grata. Minha briga não é com você, Frank. Fiz uns risquinhos na sua carne pra atormentar o Fred por duvidar da minha intenção nobre de salva-lo.

- Salva-lo?! Me engana que eu gosto. Na certa você queria mesmo era piorar o estado dele. - disse Frank, discretamente retirando algo do bolso interno do sobretudo. De súbito, o detetive se reergueu segurando a lâmina sacerdotal e desferindo um corte veloz no rosto de Lilith - Ás na manga, vagaba. - falou ele, satisfeito ao ver a demônia se queixar do golpe.

- Gostei da prontidão. - disse ela, mostrando o corte sangrando entre a maça do rosto passando pelo olho direito e a testa - Que tal irmos pra reunião de família? - desaparecera num milissegundo. Frank não perdeu tempo e correra para a sala.

Fred atracou-se com um demônio, pulando para cima dele o esmurregando incessantemente.

- Fujam daqui, vão! - disse ele para Pamela e Donald que hesitavam correr por conta do outro demônio que os intimidava. Pamela abraçava o filho aos prantos, extremamente apavorada. Lilith aparecera na sala com as mãos na cintura assistindo o confronto de Fred e o demônio. Frank viera direto para atacar o demônio, mas olhou de relance para o lado esquerdo vendo Pamela e Donald amedrontados. O demônio estralou seus dedos preparados para investir contra Frank.

- Se escondam num lugar seguro! - pediu ele. A mãe e o filho foram pelo corredor se refugiar. Frank rapidamente efetuou um corte diagonal no corpo do demônio que o fez transformar-se em fumaça negra que se deslocou para o lado dissipando. O demônio que enfrentava Fred conseguiu joga-lo contra uma estante com portinhas de vidro. Fred impactou-se no móvel, os vários caquinhos caindo em cascata. Frank assumira a posição do parceiro, tentando desferir um corte, mas o demônio esquivava-se até que aplicou um soco e uma joelhada na barriga do detetive e em seguida dera um outro soco que o derrubou ao chão. Fred levantou-se exibindo os olhos vermelhos de fúria. Impediu que o demônio pisasse em Frank transpassando o peito do monstro com a mão esquerda que saiu atravessando encharcada de sangue.

O demônio andava com a boca aberta numa expressão de horror, sentindo a morte consumi-lo de dentro para fora, o preto dos seus olhos mais vivo do que nunca. Seu corpo desmanchou-se em fumaça que desvaneceu até apagar-se no ar. Fred estendeu a mão ensaguentada para ajudar Frank, porém trocou rápido pela limpa. Lilith não tirava o sorriso debochado do rosto.

- Você fica aí só assistindo... - disse Frank - Ainda tô com a lâmina anti-demônio, duvido você tomar ela de mim.

- Quem vai dar cabo dessa desgraçada sou eu. - disse Fred, mirando seu olhar odiento para Lilith que usara telecinesia para empurra-los violentamente e caírem praticamente um em cima do outro.

- Foto legal da sua família. - disse ela, pegando um porta-retratos com uma fotografia de Fred com Pamela e Donald num parque. Deixara-o cair com a parte frontal virada para o chão, quebrando o vidro que protegia o registro - A espada do Frank foi um trunfo bem inesperado. Mas não saio daqui sem ver um espetáculo de carnificina alucinante. Por isso, hora do plano B. - pôs os dedos indicador e polegar na boca e assoviou. A porta da frente sofreu um tremendo baque que a cedeu ao chão.

Lux, o cão doberman de Malvus, adentrava na residência, salivando e rosnando engatilhado para o ataque. Os olhos do cão infernal piscaram um brilho vermelho direcionado à Frank e Fred. A criatura se metamorfoseou para uma aparência mais robusta e monstruosa. As unhas e patas cresciam tal qual o volume do corpo e a pelagem ganhando tom amarronzado. Tudo em Lux cresceu anormalmente, tornando-o um legítimo canídeo do inferno na aparência assustadora.

- Quando ele abandona o disfarce é sinal de que ele tá faminto por uma refeição dando bobeira. - disse Lilith. O cão avançou contra Frank, pulando sobre o detetive que tentava ao máximo não deixar as presas medonhas do animal encostarem no seu rosto. Fred continuava no chão, inerte e atônito - Você virou a tartaruguinha de chocolate dele. Primeiro a cabeça, depois os braços, as pernas e por fim o resto. Eu bem que gostaria que permanecesse vivo, mas não tenho culpa se ele te achou mais suculento. E Fred... Em breve crio outra dose e faço você bebe-la à força. Até lá, tente não liberar todo seu potencial.

A demônio sumira. Frank penava para segurar Lux que babava sobre o rosto do detetive, esforçando-se para morder um pedaço, os olhos vermelhos do cão fumegando. Eis que Fred aplicou um chute fortíssimo que o afastou de Frank e se dirigiu ao cão para dar um golpe na cabeça com as mãos juntas e os dedos entrelaçados. Frank se forçou a levantar do tronco para cima, entrevendo um tom de cinza nas mãos de Fred que afundavam o crânio do animal, além do tamanho levemente engrandecido.

O sangue de Lux começava a respingar na face irada de Fred dada a força colossal do nefilim concentrada nas mãos. O cão jazia morto com a massa encefálica exposta junto ao sangue profuso.

- Fred, Fred... Chega. - disse Frank, segurando-o - Acabou. Esmagou a cabeça dele que nem pilão no alho.

Porém, ao virar-se Fred continuava com os olhos de íris avermelhadas. Deparou-se imediatamente com Pamela e Donald no início do corredor o fitando horrorizados. Pamela não escondia seu choque.

- Eu posso explicar... - disse Fred, tentando aproximar-se. Mas Pamela recuou agarrada ao filho, balançando a cabeça negativamente num misto de pranto e horror. Fred ficou arrasado com as reações, vendo-os virarem as costas. Fred voltou-se para Frank, devastado emocionalmente - Você tá certo, acabou. Eu estraguei tudo.

                                                                                 ***

Na beira da estrada silenciosa, com a noite já tendo caído, Frank e Fred estavam diante de Adrael após solicita-lo.

O centurião tocou no ombro curando as feridas sangrentas do detetive.

- Obrigado. A partir de hoje você será meu hospital ambulante particular. - brincou Frank.

- Que averiguação foi essa você fez na minha casa? - perguntou Fred, ainda abalado.

- Arrumei a bagunça. Tudo está no seu devido lugar. Menos você.

- O que tá querendo com isso? O Frank me disse que era possível você apagar memórias com a mesma facilidade que tem para fazer lembrar, como havia feito com o Frank. Foi isso? Eles esqueceram as coisas horríveis que viram hoje?

- Sim. - respondeu Adrael, sério - Inclusive você.

Fred arqueou as sobrancelhas, pensando não ter ouvido direito.

- O quê? Como assim de mim também? Não tá falando que... - sua expressão tomava-se pela raiva novamente.

- Adrael, esclarece isso direito. - disse Frank, exaltado - Deletou o Fred das memórias da esposa e do filho dele?

- Não! - gritou Fred,, pondo as mãos na cabeça e agachando-se desolado - Não, não, não...

- Foi necessário, ele é um perigo constante para si e às essas pessoas vulneráveis às consequências que o trabalho dele sempre traz. - argumentou Adrael - Os deixei dormindo para que eu tivesse um tempo de reorganizar limpando cada detalhe que fizesse recordar de Fred. Não é culpa que recai sobre mim, é responsabilidade.

- Por que sentiria culpa? Todo esse tempo só quis me dar uma boa razão pra que eu te odiasse. - disse Fred, as lágrimas escorrendo e molhando seu rosto. Levantou-se, o ódio estampado - Vai pagar caro.

- Não devo nada à você. - disse Adrael, irredutível. O anjo desapareceu imperceptivelmente. Fred ficou de quatro no chão, amassando a grama e derramando mais lágrimas com soluços. Frank o olhava tristemente, sentindo um dó lancinante.

                                                                                     ***

Pamela e Donald estavam aparentemente vivendo bem sem a presença de Fred, afinal Adrael modificara vários detalhes para condizer totalmente às memórias falsas que implantou e nada às que apagou. A mãe ensinava o filho a lição de casa na mesa de jantar. Frank e Fred observavam em alguns metros de distância pela janela. Fred não alterava o olhar de profunda tristeza.

- Não dá pra acreditar que o safado do Adrael se passou por policial inventando a historinha do invasor que dopou eles com uma droga. E além disso, como se não bastasse, colocou falsas lembranças com outro homem. - disse Frank.

- Por que se sente mal por mim, Frank? Nunca teve a infelicidade de perder uma esposa e um filho por uma causa sobrenatural. Ou a felicidade de constituir uma família.

- Eu perdi o meu pai. - enfatizou Frank, retrucando - Foi uma barra sofrida pra encarar o luto e tocar a vida pra frente com o legado que ele me deixou. Você é uma raridade pro movimento dos caçadores. Os meus ascendentes também eram, mas ficou no passado, hoje um caçador mal pode ter um amigo que os problemas surreais chegam até ele e o arrastam pra morte.

- Mas você não devia estar feliz? Eu sou um monstro e um caçador, uma contradição ambulante. Como o Adrael disse: uma ameaça pra eles 24 horas por dia. O pior é que ele está certo. Mas não justifica tira-los de mim. - desabafou Fred, lacrimejando - Pra minha vida é como se estivessem mortos. Por que resolveu tomar minhas dores?

- Cara, isso se chama empatia. Eu te entendo perfeitamente. É assim que sempre acontece na vida de um caçador ativo, essas coisas de laços familiares a partir de casamento e paternidade não duram até seu último suspiro.

Fred enxugou uma lágrima que caía, fungando o nariz. Frank sentia-se afetado pelo fundo do poço emocional do parceiro.

- Eu não tenho mais nada a perder, a não ser o emprego, o carro, as chaves e a roupa do corpo.

- Ainda tem seus pais. Eles estão vivos, certo?

- À essa altura, talvez, o maldito do Adrael pode ter feito uma visita à eles e uma limpa nos arquivos. Não duvido da capacidade de colher dados sobre qualquer histórico que esses anjos tem. É plausível, eu sou o nefilim, então não seria nem um pouco estranho haver uma conspiração para apagar das pessoas que conheço e gosto a minha existência.

- Então... por via das dúvidas... - disse Frank, pensativo com a cabeça baixa - ... passa uns dias lá em casa.

Fred virou o rosto para ele como se tivesse escutado uma sandice.

- Eu? Um hóspede seu? Frank, não fala besteira, respeita o meu momento doloroso, por favor...

- Tô tentando reajustar você. Pra mais tarde sua cabeça não pirar. Não vou aceitar "não" como resposta.

- Tudo bem. - disse Fred, mais calmo - Eu vou me ajeitar. Recomeçar do zero.

- Depois que vencermos o Malvus. - complementou Frank, querendo transmitir otimismo - E a gente vai vencer.

Fred apreciou a determinação sentida na voz de Frank. Uma ponta de conformismo brotava da sua alma.

                                                                              ***

No quarto de hóspedes, Fred meditava deitado na cama de barriga para cima com a cabeça apoiada nas mãos e fitando o teto, se perdendo na imersão dos seus pensamentos conflitantes. Enquanto isso, Frank já havia caído no sono que se encontrava no ápice da fase REM. Um paraíso onírico se formou ao redor dele, mais precisamente um vasto campo gramado com algumas árvores distantes umas das outras e iluminado por um sol resplandecente em meio a um céu de azul vívido.

- Que lugar é esse? Incrível... Eu sinto uma paz tão grande. Se isso for um sonho, não tô afim de acordar.

- É decorrente do fato de que não é um mero sonho. - disse uma voz masculina e firme por trás de Frank. Um homem com um traje branco com capuz parecendo ter vindo da idade média e de fisionomia atlética e face jovial e atrativa com olhos verdes semicerrados e cabelo curto loiro.

- Eu fiquei preso num mundo paralelo? Num joguinho de RPG?

- Sou Raguel, um ofanim líder da primeira armada. Sei quem você é, Frank Montgrow. O escolhido.

- Escolhido? - indagou ele, franzindo o cenho - Ah sim... Presumo que tá se referindo ao tridente.

- Exato. Mas não é a respeito da arma mortal contra o diabo e sim ao próprio. Haverá uma decisiva batalha após dois dias.

- Me trouxe aqui só pra dar esse "aviso"? - perguntou fazendo aspas com os dedos - Entrou no meu sonho...

- Não é um sonho, Frank. Fiz sua alma se projetar fora do seu corpo diretamente para cá, o reino celestial. - disse Raguel contemplando a imensidão de verde do solo - Você tem que se preparar.

- Me preparo desde que trombei com o diabo pela primeira vez.

- Então se condicione melhor para se fortalecer. Um futuro desastroso virá dessa batalha. Precisa obter o tridente com os serafins. - disse Raguel, passando o teor de urgência - Para matar Azrael.

- Azrael?

- Sim. O verdadeiro nome do diabo. - disse Raguel com uma seriedade intensa - Azrael, o herético.

                                                                                -x-

*Aproveito para comunicar que a série está renovadíssima para uma quarta temporada! 😉

*A imagem acima é propriedade seu respectivo autor e foi usada para ilustrar esta postagem sem fins lucrativos. 

*Imagem retirada de: https://www.terra.com.br/noticias/ciencia/como-o-cristianismo-moldou-a-figura-de-satanas-para-combater-outras-religioes,2f10c84313b253b0715c1dd2dd93a3a0g5srgvjb.html

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