Capuz Vermelho #18: "Mollock vs. Mollock"


O pupilo do "Cavaleiro da Noite Eterna" rumou, visivelmente entorpecido de tédio, por um largo corredor em um dos pontos mais prestigiados do Museu de História de Londres. A Galeria Principal. Com mais de 100 obras de grandes pintores de várias épocas expostas, o local arrastava multidões de ávidos adoradores da arte. As paredes pintadas compostas de mármore cor de creme proporcionavam certa tranquilidade aos visitantes e o piso em cerâmica, quadriculado, uma confortabilidade sem igual.

Era bem verdade que Mollock preferiria passar horas a fio sentando em seu trono, ostentando o conteúdo de uma enorme pilha de livros posta diante dele, uma ordem prioritária que boa parte dos soldados não atrevia-se a recusar em cumprir. Todavia, naquela noite, o Rei decidira "sair da rotina" e movimentar-se um pouco mais. Até porque, fizera pouco tempo que tomara posse daquela imensa fortaleza.

O olhar baixo denotava uma sonolência decorrente do ócio. Suas passadas ecoavam pelos outros corredores enquanto passava, ao mesmo tempo que sua cauda chicotava o ar de leve. De súbito, uma presença inesperada aparecera bem diante dele, vinda de outro corredor.

Parara abruptamente, os olhos levantando-se por completo, esbugalhando-se na hora.

"Um espelho?", pensou ele, franzindo o cenho. O ser que surgira do nada era como um reflexo dele, uma espécie de clone, mas com uma expressão diferente. Exalava uma aparente calma, mas mascarava uma arrogância perceptível. Uma soberba que só o próprio Mollock reconheceria.

- O que está havendo? Quem é você, afinal? - indagara ele, perplexo.

O imitador sorrira largamente, exibindo as brancas presas.

- Eu? - perguntou. - Eu sou você.

- Não... - deu alguns passos para trás, a expressão assustada. - Isso é um pesadelo! Será que estou... enlouquecendo? - pôs a mão na cabeça, querendo, mais do que tudo, acreditar que tal experiência era apenas uma ilusão provinda de seu sono. Até acreditou estar em seu trono, dormindo e completamente preso em um sonho, desejando despertar logo.

- Sim, você está louco, Mollock. - disse o igual, inclinando o rosto para um lado.

Com uma velocidade quase sobrenatural, o imitador se aproximou do original em milésimos, estando face à face com o autêntico. Sobressaltado, Mollock não percebera o rápido movimento, se afastando ainda mais.

- Eu vejo o medo nos seus olhos. Torturando você internamente, e quando externa-lo por definitivo seu império todo irá ruir sobre sua cabeça. - e prosseguiu com o tom desafiador, a mesma voz macabra do genuíno. - Que tipo de Rei é este que apenas gasta a maior parte de seu tempo lendo? O seu poder é só uma ilusão que o conduz para sua própria cova, Mollock. Não há poder, apenas medo.

Os olhos do clone brilharam uma luz vermelha viva, descomunal. As íris amarelas dos olhos do rei adotaram um escuro tom de vermelho.

Naquele instante, Mollock, pela primeira vez, sentira a pior sensação humana. Olhava, hipnotizado de temor e sem ação, para aquela cópia barata que, aparentemente, surgira do nada. O limiar da loucura latejava em sua mente.

Pela primeira vez, Mollock se sentiu fraco diante de si mesmo.

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Nota do capítulo: Partes em itálico representam flashback.

CAPÍTULO 18: MOLLOCK vs. MOLLOCK

30 minutos antes.

O trio aventureiro, destinado a destronar os planos do hospedeiro de Abamanu, já se encontrava na ala de esculturas históricas, monumentos vigorosos e colossais erguiam-se em ordenadas fileiras à medida que caminhavam pelo recinto. As luzes de cima estavam fracas, fornecendo um clima tenebroso. Apenas umas cinco lâmpadas fluorescentes mantinham-se funcionadas, presas ao teto abobadado. Os vigilantes que eram responsáveis pela segurança do local questionavam o uso das luzes, especulando que fosse para economizar energia. Isto fortalecido pelo argumento de que o filho do dono do Museu - que assumiu o controle dos negócios - herdara a avareza do pai.

A luz de uma lanterna, portada por Hector, relampejava por entre vários cantos opacos da ala. Eleonor estava ao lado do caçador-detetive, alerta e preparada, seu vestido azul-marinho de cetim - o único que possuía - ondulando a cada lento passo. Josh era o que menos andava em silêncio. Também com um lanterna, estando em outro lado, vasculhava por entre as estátuas que se sucediam, uma mais atraente que a outra.

Um grito abafado e veloz rompeu o silêncio.

Era Eleonor, que deparara-se com um objeto ensanguentado, de tamanho médio.

Hector pousou a luz da lanterna na coisa. Tratava-se de, nada mais e nada menos, um braço decepado em pleno estado de decomposição. Vermes alimentando-se do tecido morto esgueiravam-se por entre os orifícios. Os dedos da mão putrificados eram de um preto aterrorizante.

A moça punha sua mão na boca, fitando, horrorizada, o membro. Hector chegou perto dela para apoia-la, bem como orienta-la.

- Procure não fazer muito barulho. - disse, aos sussurros. - Isto certamente pertence a uma das vítimas do ataque conduzido por Mollock aqui, antes de firmar seu reinado. - e movimentou a luz da lanterna, seguindo o que parecia ser uma trilha de sangue.

Josh veio correndo, as passadas praticamente audíveis.

- Josh! Silêncio! - exclamou Hector, em tom baixo. - São licantropos, podem nos ouvir a longa distância. - salientou, aborrecido.

- Desculpem, é que eu... - fez uma pausa para engolir a saliva. - Eu descobri uma passagem secreta ou coisa do tipo, bem ali. - apontou para uma parede atrás de uma réplica da estátua de Abraham Lincoln sentado em um trono.

- Onde? Não estou vendo. - disse Eleonor, forçando a visão.

Josh lembrou que teria de apontar a luz da lanterna para facilitar a identificação do ponto. O fez, meio constrangido com o pequeno deslize.

- Ali - indicou. - O pessoal desse museu devia investir mais nessa iluminação pobre. - reclamou, olhando para as fracas luzes no teto.

- Então vamos. - apressou-se Hector, caminhando na direção.

Forçaram uma pequena abertura a tornar-se mais espaçosa. A parede não produzira quase nenhum som comprometedor. Empurraram com força, Josh e Hector, mas não fora o bastante, deixando visível apenas uma estreita passagem.

Impaciente e temerosa, Eleonor dera suspiro pesado.

- Ratza hau! - sussurrou ela, proferindo um feitiço.

De imediato, para o espanto dos rapazes, a parte da parede abriu-se velozmente, porém, produzindo um ronco pelo concreto estar velho em relação às outras partes. Uma bela sala em tom de sépia se revelou para eles.

Hector olhou para Eleonor, impressionado. Dera um sorriso fraco, mas grato.

- O que é que foi isso? - indagou Josh, sem entender nada.

- Ela é uma bruxa. - respondeu Hector, lacônico, adentrando de uma vez na sala.

O caçador de aluguel fitou os dois entrando, estupefato e boquiaberto.

- Agora eu vi vantagem. - disse ele para si mesmo.

- Ué, você não vem? - perguntou Eleonor.

Antes que Josh pudesse responder algo, um ínfimo som de passos incomuns atravessou seus ouvidos re-alertando sua percepção invejável. Virou o rosto rapidamente para a direita, encarando uma passagem escura.

- Ahn... acho que não vou me juntar a vocês agora.

- Por que não? Josh, o que está vendo? - perguntou Hector, intrigado.

- Silêncio. - disse, em baixíssimo tom. - Vem vindo alguém... alguém não, vários.

- Então entre logo. - pediu Eleonor. - O que está esperando?

- Olha, se quisermos agilizar isso... - disse Josh, categórico. - Vou ter que me separar de vocês. Hector, você quer encontrar esse tal de Loub, não é mesmo? Então talvez nos encontremos em algum ponto desse lugar, talvez eu o encontre e o traga para você. Tudo vai depender de como as coisas vão se desdobrar. E espero que da melhor forma possível.

- Tudo bem... - concordou Hector, convencido da decisão do companheiro. - Se acha que é o melhor método, não custa nada arriscarmos. Mas, por favor, procure tomar cuidado.

- Ótimo. Vou indo nessa. Boa sorte para vocês. - disse, logo correndo para a direção de onde vieram, desaparecendo na escuridão da abertura da ala.

Os olhares preocupados de Hector e Eleonor colidiram-se. O caçador a repreendera minutos antes, enquanto direcionavam-se para o museu, sobre a ciência da inexperiência de Josh para uma missão como aquela, algo que, para ele, faltava nela.

                                                                              ***

- Não devia tê-lo chamado. - disse Hector, aos cochichos. 

- Acha que só nós dois daríamos conta disso? E não adianta me dizer que minha magia serve como último recurso. Não sou uma arma. - replicou Eleonor, intensificando seus passos, à medida que a tensão aumentava. 

- Não foi bem isso que eu quis dizer. - ponderou o caçador, mantendo o olhar reto. - Me preocupo com a insegurança que isso causará nele. Tenho certeza que Josh jamais experimentou algo assim em todos os anos em que esteve no acampamento. 

- E o que esperava que eu fizesse? - indagou ela, virando seu rosto para Hector, desconfiada. 

- Que mantivesse a calma. É um caçador de aluguel. E você selecionou o mais teimoso da nova ingressão. Sei que não compartilha do mesmo otimismo que o meu, mas poderia ter pensado duas vezes antes de contactar alguém ligado à mim sem antes me pedir permissão. - afirmou ele, rígido como uma rocha. 

Eleonor dera uma pequena risada de deboche, não acreditando no ego inflado que o caçador exibia sem nenhuma hesitação. 

- Permissão? Como eu ia saber? É do feitio de alguém da Legião tratar caçadores de aluguel como inferiores e inexperientes? 

- Inexperientes, sim. Inferiores, nunca. - disse ele, voltando seu olhar absurdamente sério para Eleonor, claramente no limite da paciência. - E antes que pense que me sinto superior em relação à eles, saiba que me preocupo com a segurança daqueles que um dia podem fazer parte da Legião. 

- Tarde demais. Foi exatamente o que pensei. - salientou Eleonor, fechando a cara. - Olha... eu realmente não sabia. Achava que a Legião era um imenso grupo, que se revezava em caçadas mundo afora. Josh foi escolhido a dedo por mim. Mas se tivesse escrito uma pequena ficha dos membros, com informações básicas sobre eles, talvez eu teria feito uma escolha melhor... algo que agradasse você. 

- Então esta foi a sua intenção? Está totalmente enganada. - erguera a coluna para adquirir mais segurança ante aquela pequena divergência, obviamente prevista por ambos. - Na minha lista de contatos, constam apenas nomes de caçadores de aluguel e alguns estudiosos da conspiração. A ideia de trazer um caçador em nível básico para cá está me assombrando desde que Josh mostrou sua face. Nós vamos enfrentar Mollock, não um licantropo qualquer. Não, creio que Josh ainda nem tenha se deparado com criaturas assim ainda. 

- O resultado só veremos quando ele mostrar sua performance. Se algo terrível acontecer, pode me culpar à vontade. - falou ela, amarrando ainda mais o semblante. - Aí sim será justo dizer que cometi um erro. 

Diante daquele argumento aparentemente irrefutável, Hector calara-se até o fim do caminho. Baixara a cabeça, imaginando quantas possibilidades horrendas consideraria-se para atribuir o fracasso da missão à inexperiência de Josh. Continuou andando, ao lado de Eleonor. 

Há vários metros, quase próximo à entrada dos fundos do museu, Josh virara-se para eles gesticulando com o braço para virem mais rápido. 

                                                                           ***

A parede falsa da passagem secreta fechara-se com uma palavra mágica proferida por Eleonor. O estrondo do lado de fora foi suficiente para atrair as figuras espectrais que aproximavam-se da ala, em passos adquirindo rigorosidade. Dentro da sala secreta, ambos se viam envolvidos em um mundo tingido de sépia pura. Quatro paredes ornamentadas com criativos espirais que se interligavam horizontalmente através de linhas onduladas. O piso era de cerâmica vermelha, quadriculado. Duas tímidas luminárias, localizadas nas paredes laterais, banhavam o aposento com uma luz amarela.

- Não consigo ver nenhuma brecha ou abertura. - disse Hector, passando seus olhos por todos os cantos. - Odeio admitir... mas acho que minha visão não está tão boa quanto antes.

- Se há uma outra passagem secreta... - disse Eleonor, andando e avaliando. - Talvez somente o diretor ou algum outro funcionário do museu saiba onde fique. Talvez nem seja nesta sala.

- Não devemos sair daqui agora. Josh havia ouvido passos... com certeza são as quimeras, elas mantém guarda em todas as alas. Tivemos sorte de quando nós entramos por estar vazia. Presumo que deixam propositalmente as alas desertas para, estrategicamente, pegarem de surpresa possíveis invasores. - especulou o caçador, focado.

- E novamente tivemos sorte por chegarem atrasados. - disse Eleonor, sem tirar os olhos das paredes. - Já chega de procurar buracos, hora de fazermos um. - e esfregou as mãos, em uma preparação um tanto quanto animada para uma bruxa altamente perigosa.

Hector franzira as sobrancelhas, voltando-se para ela.

- O que quer dizer?

- Já vou explicar. Me dê uma faca. - estendeu a mão para Hector.

- O quê? - confundiu-se ele, fazendo uma careta. - O que pretende fazer?

Insistindo, a bruxa manteve a mão estendida, movimentando os dedos ao pedir a lâmina. Obviamente, não preferia discutir suas ideias para perder mais tempo. Para a natureza das bruxas, a revelação de um plano sempre deveria ser realizada com a intenção de surpreender tanto inimigos quanto aliados. Com Hector não seria nem um pouco diferente.

Rendido à insistência da moça, o caçador tirara de um dos bolsos de seu sobretudo de couro marrom uma pequena faca, especial para romper amarras em casos de sequestro nos quais a vítima era sempre submetida à torturas físicas e psicológicas. Inseparável para um detetive como Hector.

- Obrigada. - agradeceu, virando-se rapidamente para a parede à sua frente.

Curiosamente, o espiral à frente era bem maior. Só então Hector percebera algo intrigante.

- E se estas linhas em espiral forem passagens escondidas?- semi-cerrou os olhos. - Sinto que pode haver um círculo invisível em torno delas que sirva para abri-las apenas com um pequeno empurrão...

- Já é tarde para considerarmos isso. - afirmou Eleonor, enquanto cortava a palma da própria mão direita com a faca. O sangue fresco escorria, gotejando em excesso no chão.

A visão detalhista de Hector finamente alcançara o piso de cerâmica, não tardando a enxergar pequenas e médias manchas circulares de sangue caindo à medida que Eleonor andava lentamente.

- O que...Que tipo de loucura está fazendo? - os olhos dele esbugalharam-se.

Eleonor agachara-se, sem dizer uma palavra. Estava desenhando, despreocupadamente, um grande círculo, até ficar de joelhos. Em seguida, desenhara linhas que se interceptavam dentro da figura. Formara-se, para o espanto repentino de Hector, um pentagrama.

- Pode me dizer o que está planejando? - o caçador ficava mais impaciente quanto mais ela mantinha segredo.

Enfim, ela se levantara, confiante demais para parecer tão temerosa quanto Hector. Era uma expressão reconhecível para qualquer bruxa que fosse realizar uma façanha incomum.

Colocou-se de costas para ele, mantendo os olhos fixos no espiral. O pentagrama de sangue cintilava à luz da lamparina amarela. Estendeu as mãos, as palmas abaixo do símbolo.

- Tartarus hebraviru's ik macabru's ul ic ref Alfa lonelis ra demonium reviran't... 

Aquelas incompreensíveis palavras soavam como uma música invertida entoada aos sussurros para Hector, que assistia confuso e desconfiado ao início da cerimônia sombria. Recuou alguns passos, temendo que Eleonor pudesse estar perdendo as estribeiras e, desesperadamente, estar conduzindo um plano à risca, sem qualquer visão de consequências.

Um pequeno tremor o fez parar. As palavras tornaram-se mais fortes, o tom evoluindo para uma gutural ópera de uma libertação imprevisível. A boca de Eleonor movia-se em sincronia com o tremor contínuo, embora estável.

Estagnado e boquiaberto, o caçador se viu sem reação. Detestava, mais que qualquer coisa, estar sem entender o significado de um plano. "Mas o que está havendo aqui?", se perguntou.

Eleonor, abruptamente, erguera os braços, passando a intensificar suas cordas vocais emitindo palavras cada vez mais esquisitas. Hector sentia-se em um culto ao demônio, conivente à um cartel satanista. Jamais podia esperar presenciar algo daquela natureza. Sentia a sala inteira vibrar.

Um facho de luz tremeluzente surgira em uma rachadura no espiral da parede. A falha era vertical e emanava uma luz alaranjada. Logo se tornou um enorme buraco quando mãos esmagadoras e selvagens se puseram para fora, rapidamente alcançando o chão. Um vento abafado ressoou para ambos enquanto a luz se fortalecia, fazendo ondular o vestido azul de Eleonor. A visão definitiva de um ser infernal nascia para Hector, cada vez mais estupefato.

Como um animal saindo do ventre de sua mãe, a criatura caiu no chão sebenta após se libertar. Seu aspecto era macabramente negro, com grossos espinhos que denotavam sua coluna vertebral. A cauda parecia uma serpente, deslizando no piso. Estranhamente, estava domada, quase adestrada. Os olhos da besta fitavam Eleonor, brilhando uma luz vermelha trêmula, mal dando para ver suas pupilas. Como se demarcasse território, a fera rodeava o pentagrama, dando-se conta de sua condição.

- Caiu bem na armadilha. - disse Eleonor, sorrindo, comemorando consigo mesma.

Hector nem pensava em ousar chegar mais perto. Os únicos músculos que conseguira mover foram os de sua boca para coletar respostas.

- O que significa isso, Eleonor? - seu tom era trêmulo. - Me responda desta vez.

- Por que está tão assustado? É só um demônio Alfa. - disse, calmamente. - Está bem, você e a Legião jamais viram um desses, creio eu.

- E nunca vimos. - confirmou, fazendo que não com a cabeça. - Na verdade, eu era bem cético com relação à estas coisas. Rituais, demônios, Tártaro... Agora que presenciei, consigo perceber o que Dwayne Nevill sentiu ao libertar a parte demoníaca de Mollock.

- Eu usei um feitiço goético para invoca-lo. Unifiquei-o com mais um com antecedência para que aprisionasse-o no círculo. - explicou ela, os olhos fixos na besta. - Ele não pode sair sem minha permissão. Além disso, o sangue de uma bruxa nível Ômega, como eu, aumenta as chances de controle sobre o demônio. - disse ela, sentindo-se poderosa ao domar a fera tão facilmente.

- Goético... Já ouvi esta palavra antes... - disse Hector, aproximando-se lentamente. - Refere-se à Goethia, o livro no qual listam-se 72 demônios com 80 selos de invocação.

- Na verdade, são 76. - corrigiu. - O mito dos 80... que piada. - soltou uma risada baixa e debochante.

- Agora me fale porque libertou esse monstro. - o caçador recuperara sua postura firme.

- Mollock é ávido por poder, certo? - fez a pergunta retórica como um belo início de explicação do plano. - Vamos usar uma briga de cães raivosos como uma distração.

- Seja mais específica, por favor. - disse Hector, exigente, sem olhar para a enojante besta. - Distração para quê exatamente?

A mulher sentiu-se obrigada a virar-se para ele.

- Loub é o seu principal alvo. Sabendo disso, nada melhor que distrairmos Mollock, mas eu ainda darei o toque final para que o plano se complete. Enquanto Mollock o enfrenta, nós vamos até a sala do diretor, pegamos um mapa de todo o museu e vemos se há alguma outra sala secreta ou passagem subterrânea. - explicou, a fala rápida.

- Não gostei de como você falou sobre "toque final". - fez um gesto com os dedos denotando aspas. - Além disso, não há como irmos até a sala do diretor, pode estar trancada, quimeras podem estar no corredor. O arsenal que tenho pode não ser suficiente para matar todas. A não ser que, por pura sorte, encontremos Josh ainda vivo para que nos ajude.

- Hector Crannon, você aprendeu tudo nesta vida, menos a confiar nas pessoas que, embora perigosas, podem ajudar de mil e uma formas. - disse ela, assentindo negativamente de leve. - Olhe e perceberá minha intenção.

Virou de costas para Hector, fechando os olhos por um breve momento, suspirando tranquilamente. A criatura continuava rodeando dentro do círculo, expelindo pela boca um líquido viscoso e corrosivo por entre as presas, os olhos ainda mais fumegantes e brilhantes.

- Mollock verá o que o poder é capaz de fazer para sua mente. Uma doce ilusão. - disse Eleonor, seus castanhos cabelos lisos reverberando à luz do teto.

Hector contraíra os músculos e cofiou o cavanhaque, silenciando qualquer dúvida em sua mente apenas para observar o que a bruxa estava prestes a concretizar. O rosnado incômodo da criatura o fazia conter os arrepios. Jamais estivera diante de uma genuína besta infernal, sua ferocidade incomparavelmente sibilante à de um Lycan - vulgo Puro-Sangue.

Eleonor, novamente, vomitava palavras estranhas, desta vez mais suaves em seu tom. Um breve feitiço. A moça mostrava a palma direita com o corte profundo ensanguentado, direcionando-a à criatura. Curiosa e inesperadamente, a ferida cicatrizara em um abrir e fechar de olhos. Porém, a cicatriz tomava a forma de um símbolo, ainda mais gritante que o pentagrama. Um pequeno círculo, tendo dois triângulos cruzando, um em cima e outro embaixo.

De súbito, a criatura erguera-se em postura quase humana, semi-reta. As presas ainda mantinham-se á mostra, mas os gemidos e rosnados haviam cessado, para a surpresa de Hector. A besta de pele lisa e negra postava-se de pé, obedientemente calma, o brilho vermelho dos olhos diminuído drasticamente.

- E aí está. - disse Eleonor, dando um suspiro de alívio em seguida. - Percebe o que pretendo, não é Hector? - perguntou, virando-se para trás.

Para seu rápido assombro, a visão que tivera lhe rendeu um misto de sensações, que iam desde vergonha à fracasso. Encarou com um olhar penoso e tristonho, desesperada.

- Essa não, droga! - praguejou, raivosa.

Virou-se para a criatura e mentalizou um feitiço de "invasão de mentes" e deu a ordem. A besta, em um impulso avassalador, avançou com selvageria para a passagem, correndo apenas com as patas traseiras, tal como um ser humano. A parede quebrara-se em um estridente impacto, pedaços voaram nas proximidades das estátuas. O "animal de estimação" da bruxa deparara-se com um vasto cardápio ao seu dispor. Uma serventia gratuita em um banquete proveitoso.

As quimeras que chegavam para fazer a guarda da ala pularam por entre as estátuas para atacar a criatura, suas garras fazendo trincar o mármore das obras. A besta reagira, lançando suas garras diretamente naqueles corpos que nada mais lhe eram do que bolas de pelo acinzentadas e frágeis para seus padrões. Trucidara uma por uma, sem lhes dar chance de defesa, lhes arrancando braços, caudas e até rasgando-lhes a pele. Pouco ou quase nenhum dano sofria, enquanto andava pela ala e enfrentava as feras que a impediam, sua pele negra e lisa reluzindo às luzes enfraquecidas da ala.

Assistindo ao confronto brutal e aos banhos de sangue que o chão e as estátuas recebiam a cada golpe, aturdida, Eleonor deixava os ombros caírem, sentindo-se totalmente só.

Voltou seu olhar para Hector, tornando-se mais horrorizado. Em relance, percebeu uma quimera invadir a pequena sala misteriosa. Antes que a mesma desse um pulo, Eleonor a parou com apenas uma mão, mantendo-a afastada enquanto proferia velozmente um feitiço mortal. A quimera coçava todo o seu corpo chegando a arranha-lo por inteiro, enlouquecida. Protuberâncias em seu corpo formavam-se e amontoavam-se, como bolhas prestes a estourar, de onde saíram, logo em seguida, besouros escaravelhos. Os insetos alastraram-se pelo corpo da criatura, comendo sua carne, de dentro para fora e vice-versa.

A bruxa voltou sua atenção novamente para Hector, ao mesmo tempo em que seu "demônio magicamente adestrado" já desparecera na escuridão rastreando sua principal presa, deixando inúmeros rastros de sangue e corpos de quimeras estraçalhados pelo caminho, até mesmo nos braços das estátuas jaziam.

- Hector! Por favor, me ouça! - disse Eleonor pegando o rosto do caçador, em um pedido aflito.

Hector desmoronara e mergulhara no pior pesadelo que temia naquele período. Encolhido em um canto da parede, com os braços juntos, fitava, assustado e chorando, imagens perturbadoras que intercalavam com aparições intermitentes de Adam, Lester e Êmina agindo como fantasmas zombeteiros. Via o trio o olhar com um desprezo fulminante, armados com facões, além de memórias da morte de seu pai, nas quais via nitidamente a monstruosidade abater o corpo de seu progenitor violentamente com suas garras.

A voz de Eleonor não o alcançava. Apenas escutava, enquanto assistia ao filme de horror, a palavra mais temida por ele, com os três afirmando em uníssono: "Traidor!".

                                                                          ***

Um dor lancinante acometeu Robert Loub, encostado nas grades dianteiras de sua jaula. A agulha pungente de uma seringa perfurava o braço direito do cientista em uma longa aplicação.

Após os segundos que pareceram minutos, Loub removera o objeto pontiagudo, logo em seguida ajeitando a manga de sua camisa branca listrada.

Fitou, em êxtase, a seringa vazia, o olhar desesperançoso.

- A última dose... - disse a si mesmo, começando a arquejar.

Acomodou-se para tentar dar uma dormida rápida, antes que, inesperadamente, seu "filho" rejeitado entrasse naquela mal iluminada sala para lhe infernizar novamente. Guardou a seringa em um bolso de sua calça.

Para seu alívio a lâmpada finalmente queimara, após inúmeras piscadas.

A sala mergulhou em uma profunda escuridão que certamente favoreceria o sono de Loub.

                                                                          ***

A vários quilômetros dali, em Kéup, Rufus via-se paralisado e pouco à vontade em uma cadeira, na sala de estar da cabana, estando atrás da janela, sentindo-se rendido por um sequestrador ardiloso. A camisa verde-escuro que sempre usava estava praticamente ensopada de suor juntamente com suas grossas mãos juntas devido à pressão.

Na parede oposta, uma figura sombria, completamente ocultada, mostrava-se intimidadora ao robusto assistente de Alexia. Apenas pequenas ondulações na sua túnica preta podiam ser fracamente vistas.

- Senhor... - gaguejou Rufus, a voz trêmula. - Me perdoe por não ter dado informações úteis nos últimos dias... eu meio que estava ocupado demais...

- Ocupado demais se apegando amigavelmente à eles? - indagou a voz do indivíduo misterioso.

- Não! - exclamou, afligindo-se. - Quero dizer... um pouco, mas não tanto quanto pensa. Eles nem sequer desconfiam, posso lhe garantir.

- Hum. - suspirou o homem, desconfiado. - Muito bem. Como já sabe o propósito de minha visita, quero que me fale tudo o que coletou recentemente. Foi apropriado ter me ligado agora, aproveitando que está sozinho, afinal esta é uma das questões que você me responderá.

- Está bem... - disse ele, hesitante. - Sabe a sua profecia, aquela coisa toda que o senhor me falou... Então... eles estão determinados a impedi-la.

- Por favor, senhor Rufus, seja mais específico, mas sem mencionar o óbvio. - exigiu o homem, tomando um tom severo.

- Err... eles foram até a casa de alguém... alguém que Alexia, desde muito tempo, conhece. - fechou os olhos e suspirou pesadamente, lembrando do doce rosto da vidente. - Seu nome é Charlie e ele é um mago do tempo. Não me pergunte o que ele faz, senhor, eu não saberei responder....

- Está ótimo. - disse o homem, interrompendo-o. - Alexia, a profetisa, certo? Interessante. Meu pai havia me contado sobre esses tais magos do tempo, ele tomou conhecimento dessa informação em conversas com outros membros da fraternidade, os quais se infiltravam nos grupos de estudiosos, onde um deles, supostamente o líder, era um mago do tempo. - prosseguiu - É praticamente óbvio que esse Charlie é filho do único mago do tempo vivo daquela época.

- Pode ser. - disse Rufus, em baixo tom. - Eles querem salvar Rosie... ela está desaparecida em um lugar que eles acham ser um universo paralelo. Dizem que Abamanu a mandou para lá e retirou suas memórias. - revelou ele, temeroso.

- Nós geralmente nunca costumamos saber dos planos de nosso deus, mas ouvir isso foi como a 8ª sinfonia de Beethoven criada novamente. - alegrou-se o indivíduo, andando para um lado. - Estou muito contente com essa informação, senhor Rufus. A filha do herege está fora do nosso caminho, e seus aliados focam-se no seu resgate, abrindo passagem para que a profecia se desenrole sem problemas. Agora entendi tudo.

- Irei ligar para o senhor assim que puder. - disse Rufus, apressadamente levantando-se da cadeira. - Até mais.

- Espere. - disse ele, frio. - E quanto à Hector? Você sabe onde ele está, não sabe? Presumo que ele tenha ligado para o senhor.

Rufus sentiu a saliva evaporar-se de sua garganta logo quando estava prestes a alcançar a porta para ir ao seu quarto. Virou-se para o visitante sombrio, quase encolhido de medo. Entremeou um denso pavor com uma massacrante incerteza. Nunca depois de sair de sua casa para trabalhar com Alexia sentira tanta falta de sua família como naquele momento. Era tudo ou nada. Mentir só o manteria temporariamente como um informante bem articulado. Dizer verdade resultaria no mesmo. Como a prioridade de Hector, para ele, era o declínio dos Red Wolfs, Rufus sentiu seu instinto paterno aflorar dentro de si, vendo o caçador como um filho que jamais pensava em ter. Aquele bravo grupo lhe era sua terceira família. E quando o assunto é família o prezo pela segurança da mesma é fundamental para aquele homem rude de coração mole. Abrir mão disso era como uma traição ainda pior para ele.

- Não, senhor. - disse ele, optando pela crua mentira. - Ele não me ligou recentemente. Parece estar desaparecido também.

- Não, não está. - afirmou o vulto, caminhando para a porta - Um de meus subordinados me informou que ele o abordou durante seu trabalho para lhe exigir explicações. Portanto, Hector está na ativa. Provavelmente, neste exato momento, de acordo com o que meu companheiro disse, ele está no Museu de História de Londres.

"Hector está em Londres?", pensou Rufus, intrigado.

- Está perdendo o tempo dele. Espero que morra pelas mãos do pupilo de nosso deus. - disse o homem, girando a maçaneta da porta. - Foi um imenso prazer ter sido tão bem recebido pelo senhor. Por favor, tente me ligar mais vezes se caso ainda descobrir mais sobre o mago do tempo e o que ele almeja para salvar a filha do herege. De preferência, mantenha contato regular com a profetisa, assim repassando as informações obtidas com ela diretamente para mim.

- Sim, senhor. - gaguejou novamente, os olhos dilatados de tensão. - Prometo não falhar.

"Burro, burro, burro. Por que se deixa levar por esse medo infantil?!", pensou Rufus, brigando consigo mesmo.

Sem despedida, o homem fechara a porta e, por fim, fora embora.

Rufus correra para o seu quarto, imaginando como a Legião estaria se saindo na missão.

- Minha nossa... Preciso avisar Alexia e os outros. Apenas eu sei o que os Red Wolfs planejam contra eles. - disse, trancando a porta.

                                                                        ***

Tateando um macio chão de pedra ao seu redor, a visão turvada como quando alguém leva uma coronhada na cabeça e perde rapidamente a consciência, Rosie se via deitada, próxima à uma porta de madeira renovada. Jurou a si mesma ver com mais nitidez o lugar onde estava apenas quando se levantasse. Ficando de pé, a jovem olhou em torno, deixando a cabeça livre do capuz. Duas paredes pintadas de um amarelo fraco e quase morto, sendo, em grande parte, preenchidas com fileiras desordenadas de relógios dos mais diversos modelos e tipos, em tique-taques que interceptavam uns e outros.

No centro da quase estreita sala, via-se uma larga mesa de madeira na qual um velho de cabelos alvos e vestindo uma camisa xadrez vermelha estava sentado, trabalhando no conserto de vários relógios velhos. O homem de idade avançada era caucasiano, possuindo um rosto redondo e enrugado no qual destacavam-se um par de olhos azul claro, dando-lhe um aspecto amigável.

Rosie se aproximava dele, a passos lentos, olhando para os dois lados a infinidade de relógios.

- Ah, eu sabia. - murmurou o velho, largando a pequena chave de fenda. Voltou-se para Rosie, já esperando que chegasse mais perto. - Vou adivinhar: Veio aqui por mero acidente, não foi?

- Como eu vim parar aqui? - perguntou Rosie, direta e séria.

- Confesso que fingi não notar sua chegada... - disse ele, fazendo pouco caso da presença da jovem. - Mas é bem verdade que é raro eu receber visitas e, acredite, elas me irritam.

- Não respondeu minha pergunta. - disse Rosie, fazendo cara de confusa. - Como eu cheguei aqui? - perguntou rispidamente batendo sua mão na mesa.

O velho, assustado com o comportamento de Rosie, teve de replicar.

- Mais respeito comigo, menina. - exigiu, chateado. - Você simplesmente chegou. Estava ali deitada... Não se lembra do que aconteceu antes de vir até aqui?

- Para falar a verdade... - fitou um canto da sala, tentando recordar-se dos fatos anteriores. - Estou quase me lembrando... Eu estava em um armazém... de repente uma senhora estranha me atendeu, ela tinha os olhos completamente negros e... a voz de meu orientador ecoava na minha mente...

- O quê mais? - perguntou ele, inclinando-se e dando um sorriso misterioso.

- Bem... Sim, lembrei agora! - disse ela, estalando os dedos. - Eu estava á procura de uma chave que me permitiria abrir uma porta... mas acho que acabei fazendo tudo errado.

                                                                     ***

- Rosie! Tome cuidado! Encontre a porta! - pedia o Guia, a voz demasiadamente amplificada. 

A jovem se esgueirava por entre prateleiras empoeiradas, sem saber qual rumo tomar, mas alerta a um ataque iminente, mantendo os olhos mais abertos do que nunca. 

- Qual porta, droga? - questionou, estressada, enquanto segurava firmemente a chave misteriosa e corria para encontrar um lugar seguro. 

A jovem se encostara em uma prateleira maior, mas não menos cheia de teias de aranhas, porém. Apenas escutava barulhos ameaçadores, embora distantes. Ofegava ao olhar para os lados sem virar a cabeça, seu pescoço doía em demasia em decorrência das situações passadas. 

- Siga seu instinto. - aconselhou a voz calma do Guia em sua mente. - Lembre-se da mansão... o assassino do baile. 

- Aquilo foi diferente. - salientou ela, em voz baixa. - Acho que agora eu mereço um pouco da sua vontade de facilitar as coisas para mim. 

- Bem... acho que agora é pouco diferente. - disse o Guia, deixando-a irritada por completo. 

Pegando-a de surpresa, um som arrebatador de garras cravando na madeira velha da prateleira a fez sobressaltar de modo trêmulo. As afiadas garras soavam como espadas sendo desembainhadas, desta vez mais alongadas e um pouco mais grossas. 

Recuar vários passos apenas a atraiu para o próximo golpe. Garras da mão direita da senhora surgiram avançando, destroçando alguns potes da prateleira e seus conteúdos desconhecidos. De relance, Rosie vira um corte em seu braço direito, elevando um sangue fresco. 

Ignorando a ferida, a jovem se viu sem saída, a qualquer momento as armas daquela mulher idosa poderiam perfurar todos os pontos de seu voluptuoso corpo. Mais uma investida. As garras vieram em alta velocidade, passando por vários pontos da prateleira, buscando incansavelmente atingir seu alvo, bem como as da direita. 

Por um breve momento, Rosie sentira-se prestes a ser esmagada por uma prisão constituída por finas grades laminadas. Olhava rapidamente para os dois lados, para frente e para trás, no limite do desespero, as dez garras quase alcançando-a à medida em que a madeira da prateleira ia sendo quebrantada fortemente.

"É o meu fim!", imaginou ela. 

Em um último segundo, jogou-se contra uma prateleira à sua frente, em um pulo que soou selvagem de tão abrupto. Por sorte, o móvel estava cerca de 3 metros de distância, tendo as garras não alcançado o corpo de Rosie no exato momento. 

A jovem inclinou-se junto à prateleira, que caía naturalmente indo de encontro ao chão. Agarrou-se, segurando-se firme. Ao fim da queda, um nuvem de poeira maciça e cegante invadiu seu campo de visão, além de um barulho considerável para atrair a atenção do inimigo. 

Tossindo e espantando a densa poeira, Rosie se levantava tentando se orientar novamente. 

- Atrás de você, Rosie! Você está parcialmente visível para ela! Fuja daí rápido e encontre a porta! - insistia o Guia, o som da voz beirando ao ensurdecedor. 

A jovem virara-se para trás e deparou-se com a figura da velha vindo em sua direção, com as mãos estendidas e as garras balançando em uma dança macabra e repulsiva, além dos olhos inteiramente negros e o sorriso comprido com os pontudos dentes à mostra. 

Rosie sentia o ar tornar-se mais gélido quanto mais olhava atônita para a face pálida daquele monstro transvestido de uma senhora idosa mal-humorada. 

- Chega de esperar. - disse a si mesma, encarando a velha. - Se estou aqui para assumir riscos, então é exatamente isso que farei! - e voltou seu olhar furioso para a primeira porta que avistou... e selecionou aleatoriamente. 

Correra até ela, já ouvindo o sibilante ruído das garras vindo em sua direção. Estava á sua esquerda, próxima à prateleiras menores enfileiradas uma atrás da outra. 

As garras da mão esquerda penetraram fundo na parede. Rosie estendeu o braço para agarrar a maçaneta redonda... ao passo em que a última garra - do mindinho direito precisamente - quase irrompeu contra suas costas, embora rasgasse o tecido da capa do capuz. 

Um pequeno urro ojerizante fora dado pela monstruosidade devido ao insucesso. Rosie enfiara a chave na fechadura da porta de modo nervoso, mas rápido. 

- Não! Rosie! - exclamava a voz do Guia, preocupada. - Esta não é a por... 

A porta abrira-se antes que o ser esquelético telepático concluísse o apelo. Uma ofuscante luz branca engoliu Rosie, praticamente sugando-a para dentro de um compartimento secreto... 

                                                                    ***

- E foi assim... - disse ela. - Que eu, inexplicavelmente, cheguei aqui.

- E, pelo que vejo, ainda possui a chave. - disse o senhor, inclinando seu rosto para um lado, observando algo na mão esquerda de Rosie.

- Hã? - indagou ela. - Espera... Como isso pode ser possível? - perguntou-se ela, olhando para a chave dourada de dois dentes em sua mão.

- O objeto que segura é um dos mais antigos já criados em toda a história. - contou ele, erguendo a postura. - Denominada de "O Caminho do Viajante". Quem quer que a tenha lhe feito encontra-la, obviamente queria lhe por em sérios problemas.

A figura de uma certa criatura magérrima e com a face coberta de cicatrizes costuradas surgiu involuntariamente na sua cabeça, como uma foto mostrada diante de si mesma. A desconfiança relacionada ao Guia era algo que, àquela altura, já a deixava nervosamente insegura. Desde o início, intrigara-se profundamente com o propósito do cumprimento dos desafios, além de que as tarefas extras lhe pareciam ainda mais estranhas, sendo a tal ideia facilmente processada como uma enrolação, um adiamento para um acontecimento importante. De fato, indubitavelmente, o ser escondia segredos em um fundo buraco. Rosie apenas desejava cavar esse buraco, pois lá, talvez, suas memórias ainda residiam intactas. Voltou a olhar para o homem, a expressão de alguém com fome por explicações.

- Quem é você? Preciso que me conte tudo o que sabe, principalmente onde estou. Você sabe o que houve à mim, não adianta tentar esconder.

O velho homem suspirou de leve, mantendo o olhar fixo nela.

- A quem estou querendo enganar, não é? Me parece ser bem mais esperta do que vi. - disse, sorrindo levemente. - Você não vê o mesmo que eu. O que você vê?

Mesmo denotando confusão em sua expressão, Rosie respondera mesmo assim, esperando qualquer resposta que soasse menos normal possível.

- Bem... Uma sala meio longa... um pouco estreita até... - disse, analisando cada ponto que visualizava. - Paredes com vários relógios pendurados... e um senhor de idade muito enigmático na minha frente. - respondeu ela, lançando um olhar estranho à ele.

- Uma perspectiva genuinamente humana. - disse o homem, empolgando-se. - Rosie Campbell, você está no lugar conhecido como "A Central".

- Espera aí. - ela franziu o cenho instantaneamente. - Como sabe meu nome? E me explica melhor que lugar é esse.

- Sou aquele que tudo sabe sobre todos os tempos... todas as épocas... todas as vidas. - dizia ele, constituindo uma aura ainda mais misteriosa. - Também conhecido como "O Relojoeiro", pelos mais humanos. Não me ache injusto por não dizer o que vejo... Acontece que faço isso pelo bem de sua mente. O que está vendo, estes relógios funcionando ao mesmo tempo, nada mais é do que uma perspectiva advinda de uma predisposição sua para aceitar o que vê, baseado em suas vivências e lembranças.

A jovem, estando fixamente focada no homem, tentava, de todo modo, processar a informação, palavra por palavra, em um misto de descrença e loucura.

- Tudo bem... acho que entendi. - assentiu levemente com a cabeça, meio desconcertada. - Então, esta chave permite acesso à apenas este lugar, certo?

- Precisamente. - respondeu ele, cruzando as mãos na mesa. - Os relógios que vê representam os tempos de todos os países, mundos e universos. Esta chave já passou por inúmeras mãos diferentes, seres que entravam aqui por acidente e se perdiam nas suas viagens.

- Olha, toda essa conversa criou várias perguntas na minha cabeça, e como estou apressada quero que me fale como sair daqui...

Rosie sentira um lampejo de urgência, como um estampido de uma bomba. Apenas juntou forças para correr até a porta por onde entrara. Quando a abriu, deparou-se com a visão mais magnífica e assustadora ao mesmo tempo que já testemunhou. Um leve vento gelado ressoou por entre seus pretos cabelos. Mas aquilo era ignorável, pois o que via hipnotizava até os seres menos impressionáveis que existiam.

Do lado de fora da sala, Rosie assistia um espetáculo onde relâmpagos, trovoadas e raios dançavam em um céu púrpuro sombrio. Montanhas flutuantes eram avistadas, em variados tamanhos e formas. Andou em passos vagarosos, voltando seu olhar atordoado para baixo. A sala fixava-se à um imenso bloco de pedra flutuando naquele estranho espaço. Por fim, vira o que estava abaixo. Relâmpagos roxos iluminaram seu rosto cada vez mais pálido.

A vários metros abaixo, via-se uma espécie de "esfera elétrica", rodeada por raios intermitentes e uma profunda nebulosidade. Uma verdadeira tempestade sem chuva ocorria naquele mundo desconhecido e caótico.

"Estou no espaço sideral?", pensou Rosie, logo questionando de onde vinha seu conhecimento pelo que estava além de um planeta, ligeiramente fazendo-a pensar em sua amnésia.

- Não, não está. - dizia a voz do Relojoeiro, ressoante.

Rosie, estupefata, correra de volta para a sala. Batera a porta fortemente ao fecha-la, em seguida caminhando a passos largos na direção do homem. Sua expressão fulminava-o, carente por mais explicações.

- O que foi aquilo? Você lê mentes? - parou próxima à mesa, cerrando os punhos.

- Você fez uma pergunta, eu apenas respondi. - disse ele, calmamente. - A Central é o lugar mais inóspito já explorado. Não é um universo... é a mãe deles. O que viu abaixo de si foi um portal... o mais ativo dentre todos os outros que existem aqui.

- Já chega, estou no meu limite. - disse a jovem, enveredando-se para um ponto além da mesa, onde encontrava-se uma porta, facilmente entendida como uma saída.

- O que vai fazer? - perguntou o Relojoeiro, fingindo não saber.

Calada, Rosie enfiou a chave na porta. Vislumbrou, acima dela, uma pequena placa dourada com os dizeres: "Saída de Emergência". "Que estranho. Tenho a sensação de isso não estava aqui antes. É como se minha visão, aliás, minha aceitação pelo que vejo, estivesse me guiando juntamente com meus instintos e criando coisas que não existem. Ou eu estou realmente perdida ou estou completamente louca", pensava ela, tremendamente aflita, enquanto a chave girava na fechadura.

- Hum, todos fazem isso. - disse o homem, virando-se novamente para seu trabalho, passando a ignorar um certo risco que Rosie, de uma forma ou de outra, teria.

Abrindo a porta finalmente, a jovem fora abordada por um agressivo cheiro de carne podre. Meio zonza devido ao odor, pôde enxergar um recinto com ar pesado e incômodo. Aparentava ser um tipo de frigorífico. No entanto, o que se via eram mesas de metal onde homens pálidos, sem boca e com os olhos que pareciam ter sido arrancados, fatiavam pedaços de carne... carne humana! Os trabalhadores bizarros vestiam roupas brancas com aventais sujos de sangue, cortando braços, pernas, dedos, pés e até órgãos internos. Não tardou para que a vissem.

Ficaram parados, encarando-a por vários segundos, até que ergueram suas lâminas de fatiar. Rosie sentiu tomada pela apreensão, suando frio. Sua visão periférica denunciou algo extremamente curioso. Virou seu olhar para a direita, logo se arrependendo do que vira.

Um balde enferrujado de tamanho grande posto em um balcão, guardando uma pilha de globos oculares. Rosie quase regurgitou tamanha era sua repulsa, mas apenas um grito de horror conseguiu expressar.

Fechou a porta em uma batida ecoante. Encostou-se nela, com o intenso desejo de tirar aquelas imagens de sua cabeça.

- Eu iria dizer que era uma péssima ideia. - comentou o Relojoeiro, voltando-se para ela. - Adivinhe só qual a saída correta. - sorriu de modo canalha, logo virando seu olhar para a porta de entrada.

Rosie semi-cerrou os olhos, acompanhando uma expressão furiosa como um míssil lançado diretamente para aquele senhor idoso e folgado.

                                                                         ***

Aquelas visões tornavam-se a cada segundo gravações de um filme de terror, onde cada frame se fixava na mente pouco à pouco. Êmina, Lester e Adam, aproximavam-se de Hector segurando seus facões em uma clara intenção mortífera, suas imagens vibrando como espíritos vingativos. Sob a alcunha de "traidor", o caçador se viu a mercê de um pesadelo sem fim. Eleonor afastava seus lisos cabelos da testa, molhados de suor, tocando em seu rosto e insistindo para que ele voltasse a si. Era inútil, decerto.

"O que foi que eu fiz? Se eu soubesse que iria ser assim, eu teria pedido para que ele tomasse distância.", pensou, sentindo-se culpada pelo erro.

- Hector! - chamava ela, sem sucesso.

- Vão embora! - esbravejou o caçador, encolhendo-se ainda mais no chão. - Por favor, me perdoem!

Vendo que qualquer tentativa seria em vão, Eleonor se levantou, desesperando-se com o estado do companheiro. Pôs as mãos na cabeça em sinal de extrema preocupação.

- Droga, ele nem consegue me ouvir! E o pior é que não lembro a reversão do feiti...

Interrompeu-se após pensar no demônio que libertara. "É isso!", imaginou ela, adquirindo um semblante mais esperançoso.

- Aquele demônio não é forte o suficiente para matar Mollock, portanto ele será morto. - disse consigo mesma. - Assim que Mollock vencer a luta, o feitiço já terá desaparecido em Hector, já que ele também foi afetado. Logo não vai ser preciso ir até lá para quebrar o selo do demônio.

Agachou-se novamente para amparar o caçador, cada vez mais aterrorizado com o que via.

- Aguente firme, Hector. Vai acabar... Mesmo que minha voz não alcance você, eu estou aqui, do seu lado. - apoiou ela, quase abraçada á ele. - Aguente só mais um pouco. Seja forte... - deixou uma lágrima de emoção escorrer em seu rosto e um medo de que tudo aquilo durasse mais do que ela esperava crescer.

"Josh, onde quer que esteja, encontre Robert Loub e o liberte. Que merda, como eu queria ser uma telepata!", pensou ela, enquanto abraçava-se ao corpo de Hector, que, quase aos prantos, mantinha o olhar fixo na infame ilusão de seus três grandes amigos prestes a tentar "mata-lo".

Todavia, a pior de todas as visões inesperadamente fez sumir as anteriores assim que surgiu.

Rosie, em uma fração de segundo, aparecera diante do caçador. Os olhos fervilhando de ódio, brilhando aquela luz vermelha intrigante da cor de seu capuz... a luz que exibira na fatídica noite da lua sangrenta.

- Você me traiu, Hector. Como punição você irá morrer. - dizia a ilusão, em um tom de voz distorcido e cavernoso.

- Não!!! - berrava o caçador, esbugalhando os olhos marejados, enquanto Eleonor mantinha-se presa a seu corpo para faze-lo permanecer parado.

                                                                        ***

10 minutos depois.

Um estridente som de pedra maciça quebrando ecoou por toda aquela ala. Uma parede fora destroçada após um forte impacto de dois corpos cujos punhos se entrelaçavam em uma dança violenta. Pedaços de pedra voaram pelo recinto, o som fazendo tremer alguns candelabros.

Para qualquer espectador de uma luta livre que, com um olhar desinteressado, pudesse vislumbrar em rápidos segundos, aquilo parecia uma espécie de esfera de carne bolando no chão de modo extremamente selvagem.

Mollock retribuía socos em uma sequência quase interminável, cada golpe gerando uma vibração pulsante na face do demônio que se dizia ser ele. Suas garras sujaram-se de baba viscosa, que exalava um odor fétido. O feitiço nos olhos denotado pela íris vermelha, substituindo o amarelo ameaçador.

- Não sei de onde você veio, mas farei com que se arrependa amargamente por tamanhas mentiras! - vociferava Mollock, a face mais macabra do que de costume, socando o seu clone até fazer rachar vertiginosamente o chão de pedra lisa acinzentado.

Em uma tentativa de para-lo, o imitador lançou sua cauda peluda a fim de enrola-la no pescoço de Mollock. O movimento dera a deixa para o oponente se expressar, enquanto concentrava toda a sua força na cauda para estrangular o atordoado rei daquele palácio.

- Você não pode me matar tão facilmente. - argumentou o clone. - Eu sou você! Juntos fracassamos e juntos iremos cair!

Jogou-o, em um rápido lance, em direção à uma parede à frente. Em uma forte colisão, Mollock teve seu pesado corpo lançado de cabeça para baixo contra o concreto, estraçalhando-o em uma determinada parte.

Levantando-se rapidamente, o pupilo de Abamanu voltou seus ardentes olhos, encarando intensa e insanamente o adversário. O sangue em suas veias reenergizava-o em uma crescente ebulição, rangendo as presas e evidenciando as garras.

- Eu vou descobrir quem foi o responsável por esta brincadeira de péssimo gosto... - proferiu, raivosamente, ao mesmo tempo em que uma aura de selvageria crescia em torno de si. - Eu tenho meu reino... meus soldados... meu palácio... minha sabedoria... Eu tenho o poder! E não vai ser uma imitação fajuta como você que me convencerá do contrário! Nunca! - esbravejou, as palavras atiradas junto com gotículas de saliva.

- Isso... Enlouqueça! Desprenda-se dessa ilusão! - incitava o igual, se levantando. - O poder corrompe! Ele é vazio! Você não o possui!

- Conhecimento é poder! - berrou Mollock, avançando, com os braços para trás, em velocidade feroz, contra seu oponente.

Tentara golpeá-lo na cabeça com as mãos cruzadas após dar um pulo. Previsivelmente, o alvo se desviara, dando a impressão de ter sumido em um passe de mágica por tamanha rapidez e reflexo.

As mãos pesadas de Mollock acabaram por golpear o chão, em um estrondo arrebatador fazendo-o rachar-se em pequeníssimos pedaços, além de uma extensa nuvem de poeira que o ocultou por certo período.

O rei dera-se conta de sua força enormemente elevada quando este submetia-se ao descontrole quase absoluto. Ofegava, liberando um ar abafado de seus pulmões. Em nenhum momento esperava passar por uma experiência doentia como aquela. Teria mesmo sido a ânsia por poder - que subira à sua cabeça como água enchendo um balde até vazar pelas bordas - que lhe tirara a sanidade mental? Não bastou uma breve reflexão sobre o problema. Enlouquecer para matar a ilusão ou se entregar à ilusão para enlouquecer? Eis a questão excruciante.

- Não faz ideia do quão patético está ao insistir nessa sede desnecessária. - dissera-lhe a imitação, o par de olhos brilhando um vivo vermelho em meio a cortina de poeira que dissipava-se lentamente.

"Eu teria lidado melhor com essa situação... ", pensou Mollock, "... se eu soubesse explicar que sacrifícios foram precisos para que eu evoluísse mais."

Erguera a coluna, logo em seguida fitando o seu clone ainda persistente. Cresceu suas garras furtivamente, almejando um ataque certeiro de surpresa.

                                                                          ***

Em um corredor subterrâneo, Josh rasgava o denso breu do local com a luz de sua lanterna, concentrado. O aposento exalava um cheiro predominante de terra úmida.

Encontrando uma porta metálica, com a ferrugem já alastrada por todas as extremidades, Josh pôs a lanterna em outra mão para tocar a maçaneta.

Seriamente cauteloso, abrira a porta... parecia estar escancarada, a maçaneta tinha um certo calor... alguém a abriu pouco tempo antes!

Empurrando-a com mais liberdade, Josh presenciou uma cena revelada como uma verdadeira surpresa desagradável.

"Oh, meu Deus!", pensou, pondo rapidamente a mão no nariz.

Dentro da pequena sala jaziam, empilhados um acima do outro, corpos retalhados de quimeras, restando apenas pele e ossos... o sangue havia sido inteiramente sugado.


                                                                          CONTINUA...

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