Beleza Interior
O fato que muitos trataram como fatalidade me soou como uma libertação. Sou um homem livre. Não sei como tive saco para aguentar todo aquele dramalhão de discursos homenageantes, cerimônias tradicionais e ultrapassadas. Minha esposa, por exemplo, segurando uma foto minha e colando-a sobre o caixão em seguida.
Isso me deixou inconformado, mais do que todos ali presentes. Não fazia muito sentido assistir o próprio sepultamento defendendo fortemente uma ideia que muitos recusavam-se a compreender por inteiro. Eles mal sabiam. Ela, minha esposa, chorava sobre um corpo vazio, uma carcaça decrépita e frágil.
Fui um excelente professor de filosofia. A ideia de estudar o exterior e interior do ser humano me fascinava. Este é quem sou agora. Meu verdadeiro eu. A pele, a carne, o sangue... De que valem, afinal?
Sinto a grandeza da alma humana. É indescritível. O que tanto suspeitavam era real.
O exterior é efêmero e vão. Se esta condição não limitasse tanto, iria bradar as multidões tudo aquilo que aprendi com a verdadeira e absoluta beleza interior.
É o que todos são por debaixo da casca.
Minha esposa é uma tola. Me amava pelo simples fato de conseguir fazer inveja as suas amigas fúteis e superficiais. Odiava todas. Odiava as visitas, as risadas e as conversinhas asquerosas sobre moda, maquiagem e toneladas de assuntos completamente irrelevantes. Mas era nosso casamento, eu a amava mais do que tudo, mas... era insuportável ter que ser obrigado a aturar suas demoras, manias e frescuras toda vez que íamos a algum evento. A amava de verdade, contudo éramos opostos em quase tudo.
E neste exato momento, acho muito estranho ela mudar sua visão acerca do que significa ser bonito.
Enquanto vivo, eu era usado como ferramenta para despertar o pior dos pecados da essência humana. E agora, morto, me torno genuinamente amado.
Digo isso, pois estou amarrado numa cadeira neste sótão velho e exalando odores como se abutres tivessem sido criados aqui. É, a morte, decerto, muda as pessoas. É tudo uma questão de perspectiva.
Não fui apagado. Ainda sou parte do universo. Talvez seja a mais profunda razão do significado disto.
É bom ela não acabar quebrando meu fêmur com estes nós apertados. Ainda possuo meus cinco sentidos. E minha consciência se encontra na mais incrível plenitude.
Ela me quer como de fato sou. Sendo assim, devo convida-la a se juntar a mim. Minha alma está fixada a estes ossos, então posso me mover sem problemas.
Não foi muito difícil escrever esta carta ainda que estas amarras me contenham para fazer o que tanto desejo: Liberta-la.
Não vou ser lembrado por quem tanto amei com minha falsa pele estampada naquelas malditas fotos.
Perfeito, Me desamarro e farei como deve ser feito.
Espero que ela não se arrependa de ter exumado meu cadáver. Pois só na morte encontraremos a real forma de experimentarmos uma existência sem preconceitos... sem peles falsas.
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*Fonte da imagem: http://corvinum.blogspot.com.br/2017/04/pipocando-antologias-de-terror.html
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