Capuz Vermelho #17: "Uivando de dor"


CAPÍTULO 17: UIVANDO DE DOR

Naquele exíguo espaço - que mais parecia um pequeno-médio círculo -, a chama alaranjada provinda de um maçarico era a única fonte de iluminação, cintilando uma figura refém do medo, ajoelhada, semi-nua e acorrentada. Um homem calvo, aparentando ter lá seus 40 e poucos anos. Assassino de aluguel da mais requisitada experiência. Arquejava de pânico, o olhar parado fitando o chão. Em suas costas escorria um suor que não se sabia se era do desespero ou do calor gerado pela chama. Atrás dele, homens vestindo mortalhas e mantos vermelhos, escondendo-se nas trevas fixadas no local. Um deles estava perfeitamente visível, sendo o que segurava o maçarico.

O homem levantou a cabeça, sentindo uma presença vindo até ele. O olhar arregalado de pavor encarando um ser da escuridão aproximando-se. A chama do maçarico voltou-se para a pessoa que chegara.

Era Michael, sendo iluminado de baixo para cima pela luz laranja, lhe dando um aspecto tenebroso. O Mestre de Cerimônias mostrava-se de mãos juntas com os dedos cruzados, as mangas da mortalha caídas. Sua face estava séria, olhava para seu selecionado com arrogância exalante.

- Eu não estou entendendo... - a voz do homem era trêmula, gaguejante. - Você me contratou não foi? Era sua voz no telefone, não era? - assentia com a cabeça esperando uma confirmação.

Michael deu mais um passo à frente.

- Senhor Lark. - disse, em tom firme. - A fraternidade alterou seus protocolos recentemente. O senhor aceitou, por livre e espontânea vontade, agir a favor de nossos planos. Concordou com os termos. Portanto, sou eu quem não entendo.

- O... o que você não entende? - o homem passou a tremer mais rápido.

- Por que está com medo? - Michael inclinou seu rosto para vê-lo melhor. - Como um assassino como o senhor, inescrupuloso e preciso, pode estar neste estado? Você não leu o contrato que lhe mandaram por encomenda?

O refém passou a balançar a cabeça em negação freneticamente, desesperando-se mais e mais.

- Eu sinto muito... só li o parágrafo que dizia sobre a recompensa. - fez uma pausa, tentando lembrar do valor. - 20 milhões de euros! Você prometeu!

- Então dinheiro é mais honroso do que participar de nossas atividades? É isto que quer dizer?

- Não! - o homem olhou de relance para os dois lados. - Não é isso... Eu só não esperava que fosse chegar à esse ponto! E é claro, isso me dá medo, muito medo!

Michael dera uma risada baixa, evidenciando a covinha em suas bochechas.

- Não precisa ter medo de trabalhar conosco. - e inclinou mais sua face, deixando a luz da chama ilumina-la por completo. - Apenas tenha medo de recusar nossas propostas.

Lark remexeu os ombros em espanto. As pesadas algemas lhe apertavam os pulsos que certamente deixariam marcas. Sentiu o peso do arrependimento como uma bigorna afundando sua cabeça.

- O que vão fazer comigo? - disse, quase aos prantos.

Uma lágrima rolou pelo rosto do assassino, tomando brilho pela luz da chama.

Michael nem respondeu. Fez um gesto com os dedos e uma mão surgira da escuridão por detrás dele, lhe entregando o que parecia ser um ferro de marcar. Expondo o objeto à luz, revelou a ponta do mesmo como sendo um círculo "cortado" por uma linha curva.

Aproximou o símbolo à chama do maçarico. Lark observava atento, e escutou o chiado da figura circular entrando em brasas.

Significava uma lua, aparentemente minguante. Michael logo apontou o ferro para o peito nu de Lark, demonstrando não esperar nem um segundo a mais. Se seu pai ainda estivesse são o suficiente para testemunhar aquilo, certamente revoltar-se-ia com aquelas drásticas mudanças, tão contradizentes e radicais em relação às regras deixadas para trás.

- Todos aqueles que possuem o mesmo ofício que o seu, fizeram a iniciação. - Michael chegara mais perto dele, a lua de ferro toda em brasas estralando ameaçadora. - Seja bem-vindo à fraternidade, senhor Lark. Definitivamente.

Em um movimento rápido como uma bala, O Mestre de Cerimônias marcou o peito de Lark à fogo, a carne chiando e queimando. Uma marcação profunda, pode-se constatar.

Um estridente e apavorante grito ecoou por todo o negrejante ambiente. O esconderijo secreto dos Red Wolfs ainda mantinha-se em segredo absoluto.

                                                                              ***

Um pesado e empoeirado livro fora jogado sobre a mesa, produzindo um barulho estrondoso. Tanto a poeira do livro quanto da móvel lançaram-se no ar e fundiram-se em uma só nuvem. O sol mostrava-se calmo com seus cintilantes raios atravessando as duas janelas retangulares daquela sala. Charlie dissipava com a mão a poeira que ofuscava sua visão. Uma segunda reunião estava sendo realizada naquela manhã, cujos participantes acordaram empolgados para novas descobertas.

Um espirro fora dado por Lester ao se aproximar da mesa, curioso, segurando uma xícara.

- Atchin!! - o café quase derramou-se. - Nossa! Que velharia é essa? - rodeou a mesa, analisando o livro.

- É o exemplar original da Bíblia de Abamanu. - respondeu Charlie, contemplando a grandeza da obra. - Eu gostaria muito que vocês tivessem trazido o escrito pelos Red Wolfs, assim eu faria uma comparação tanto das capas quanto do conteúdo. Certamente ambos tem diferenças.

- Tem razão. - Êmina se aproximou comendo um cookie, não tirando os olhos do livro. - A capa do livro que temos é diferente. E é menor. Este é maior e mais velho do que qualquer outra coisa que já vi.

- Ué, você não tem avós? - disse Lester, piadista.

- Cala a boca. - disse ela, lançando-lhe um olhar fulminante. O caçador estrategista aproveitou para rir consigo mesmo em baixo tom enquanto tomava mais um gole de café.

- Err... acho que Adam e Alexia já deviam ter vindo, não é? - perguntou Charlie, meio ansioso.

- Acho que já devem ter acordado. - disse Êmina, dando mais uma mordida no biscoito. - Me diz uma coisa, Charlie: Os magos do tempo possuíam algum mecanismo de defesa, alguma arma, escudo, qualquer coisa que pudessem lutar contra os Coletores?

O jovem suspirou levemente, novamente sentindo a tensão e o caos no nome de seus inimigos. No entanto, aquilo não o impediu de proferir uma resposta.

- Quando Cronos nos falou do que ocorreu às últimas gerações, nos instruiu a usar armas, de fato. - fizera uma pausa, coçando a barba por fazer. - Usávamos uma espécie de lança prateada , concedidas à nós pelo próprio Cronos. Contudo, nada disso foi suficientemente eficaz para barrar a ameaça. Foi quando... foi quando vi meus amigos serem mortos por suas próprias armas. Era impossível reagir. Os Coletores são imunes a qualquer arma de caráter humano.

Lester não deixou de expor sua dúvida.

- Mas espera aí. As lanças foram dadas por Cronos, então ele, obviamente, as criou. Não foi?

- Sim, ele as fez, mas a explicação lógica para isso está no fato das armas perderem seu "fator divino de criação" logo ao chegarem a este mundo. A lança foi criada pelo homem desde os tempos das cavernas. Então era lógico para Cronos que elas não surtiriam efeitos permanentes à seres maiores, por ser uma criação originalmente humana. - explicou, mantendo o semblante firme, sem deixar nenhuma brecha para um lampejo emocional. - Se Cronos fizesse cópias de sua foice, incitaria ainda mais a ambição dos Coletores, os tornando mais violentos. Creio que nesse caso, eu já não estaria mais vivo.

- Acredite Charlie. - disse Êmina, chegando mais perto dele, as tranças laterais destacando-se. - Também não é fácil ser um caçador. Principalmente quando se é da Legião. Ás vezes as perdas geram mais marcas do que as conquistas. - disse, adquirindo uma expressão triste.

Lester a olhou como se adivinhasse seus pensamentos, a face mais séria desta vez em seu branco rosto. Ambos recordavam a tragédia que marcou na diminuição do grupo. Dois caçadores mortos por um massivo ataque de lobisomens Lycans em uma aldeia pobre, eram bastante queridos dentro da equipe. Estavam próximos de serem promovidos, não fazia nem 1 mês que ainda haviam sido escalados para missões de alto risco.

- Eu entendo perfeitamente o que sente, Êmina. Devem ter passado por muitas dores. - concordou Charlie, baixando a cabeça, reflexivo.

A porta da sala finalmente se abrira, o rangido alto quebrantando o silêncio. Eram Adam e Alexia, entrando no recinto com olhares calmos, porém, que transmitiam certo temor. O braço-forte da Legião pegara uma cadeira e sentara-se perto da caixa onde Charlie guardava seus disfarces de idoso. Passou a mão pelo rosto, suspirando pesadamente, parecendo querer despertar para a realidade. Alexia dera um fraco "Bom-dia" para os presentes.

Lester, analítico como sempre, não deixou passar despercebido o ar abatido de ambos.

- Vocês dois estão bem? Parece que não tiveram uma noite muito boa. - e deu um último gole do café.

- Claro... - disse Alexia, tentando encontrar palavras. - Eu dormi bem, sim. Só estou um pouco cansada. - e sentou-se em um banquinho de madeira.

- Não me diga que teve uma visão? - perguntou Êmina, preocupando-se.

A vidente perdeu o fôlego ao ouvir a pergunta. Arregalou os olhos por poucos segundos, percebendo a incrível rapidez do pensamento da caçadora. Presumir prováveis causas era um dos dons de Êmina, característica que fortalecera seus laços com a Legião. Alexia quis desconversar, tentando ao máximo eclipsar sua preocupação com uma falsa alegria.

- Que nada. - e dera um sorriso aberto, expondo seus brancos dentes. - Eu só estou cansada por tentar me adaptar, só isso. Eu... demoro a me habituar com ambientes novos. Principalmente àqueles em que eu não visito há anos.

- Você me pareceu bem à vontade ontem. - replicou Charlie, claramente intrigado com o estado de Alexia, mas não menos desconfiado com a pergunta de Êmina.

- Talvez tenha sido impressão sua. - disse ela, com um tímido sorriso.

- Err... pessoal. - falou Adam, erguendo a cabeça. - Preciso contar algo à vocês: Hector telefonou para cá ontem.

Lester quase se engasgara com a própria saliva ao ouvir a última frase. Êmina sentiu um aperto no coração, mas alertando esperança. A dupla procurava entender uma melhor forma de expressar aquele redemoinho de sensações que os acometiam.

- Está falando sério? - perguntou a caçadora, incrédula.

- Sim. Ele está hospedado em um hotel, mas não disse em qual cidade. Estava com uma voz fanha, contida. Suspeitei que ele estivesse acompanhado. Mas vou direto à parte importante. - levantou-se, recuperando o espírito de líder. - Ele me alertou sobre uma ameaça que está à solta, totalmente relacionada à Abamanu, a profecia, ao que ocorreu na mansão de Ethan Nevill, à invasão à Londres e ao incidente na delegacia. Tudo isto está interligado. - revelou, convicto das palavras de seu companheiro de caçada.

Um silêncio arrebatador instalou-se no aposento. Todos os quatro olhares focavam em Adam.

- Loub não foi responsável pelo ataque à Londres. Uma espécie de monstro tomou posse de seu exército...

Lester o interrompera repentinamente, abismado.

- Espera! Acho que tudo está começando a se encaixar. - vasculhou em sua mente as peças do quebra-cabeça. - Você mencionou a mansão de Ethan Nevill. É isso! O monstro que de lá foi libertado aliado ao último capítulo da profecia...

- Fala do hospedeiro de Abamanu? - perguntou Charlie, igualmente tenso.

- Exato! Isso mesmo! - Lester estalou os dedos para ele, confirmando. - No capítulo é dito que "aquele que for a imagem, corpo e alma de nosso deus, construirá seu império a partir das ruínas de outro" e "conduzirás a marcha na escuridão em longas fileiras banhados pela rubra lua.". Este segundo trecho já se concretizou.

De imediato, Charlie abrira o livro. Antes disso, pôs uma daquelas máscaras brancas que os médicos e dentistas usam em seus procedimentos, para proteger suas narinas da poeira. O grosso exemplar foi aberto exatamente na página onde relata, em detalhes, a profecia. Letras pequenas e estranhas podiam ser vistas, em formatos indecifráveis para óticas desconhecedoras da sabedoria de um mago do tempo.

Adam revelou sua surpresa ao reparar no livro.

- Então... essa é a verdadeira Bíblia de Abamanu.

- Aqui está. - disse Charlie, apontando para um parágrafo. - "E viu-se o rei abrir mão do orgulho e do materialismo, reverberando à luz da lua, saciado de conhecimento, seus preciosos diamantes revestidos da folhas". O que entendem desta citação? - voltou-se para o quarteto.

Alexia, irrequieta, possuía inúmeras questões ardentes, mas até aquele momento expôs apenas uma.

- Charlie... - se levantou, aproximando-se do rapaz. - Como consegue ler esta linguagem?

- Ah sim, desculpe, eu não tinha revelado isso à você naquela época. - coçou a cabeça, desconcertado. - Os Magos do Tempo são os únicos seres humanos aptos à aprenderem o dialeto dos deuses.

- Dialeto dos deuses? - estranhou Adam. - Quer dizer que falam apenas uma língua?

- Precisamente. - afirmou, assentindo levemente com a cabeça. - Nós, frequentemente, nos comunicávamos dessa forma, isto quando atingimos o grau máximo... pouco antes do massacre.

- Será que você poderia falar uma palavra nessa linguagem, só para demonstrar? - pediu Lester, interessado em saber como o idioma divino era falado.

Charlie se conteve, tirando suas mãos do livro.

- Desculpe, Lester. Com os Coletores tentando me rastrear, é altamente perigoso que eu pronuncie qualquer palavra deste livro. Eles possuem olhos e ouvidos em quase todos os lugares, além de conseguirem detectar o dialeto dos deuses à anos-luz de distância.

A impaciência reinava na mente de Êmina, que batia o pé com os braços cruzados, aguardando por surpresas. Pensou em repreender Lester, mas já enxergava a irrelevância de tornar o clima entre ambos mais conflitante. Ajeitou sua calça apertada, voltando novamente sua atenção à explicação de Charlie.

Limpando seu colete marrom sujo de poeira, Charlie prosseguiu.

- Bem, eu havia perguntando o que entenderam da passagem que li. O receptáculo de Abamanu já está aqui na Terra. Significa que a profecia já avançou o bastante para se findar em pouco tempo.

Adam interrompeu o discurso do jovem físico para adicionar mais detalhes.

- Ahn... Só um instante, Charlie. - pediu, levantando a mão. - Além do que eu disse anteriormente, o nome da criatura é Mollock, ele tomou o Museu de História de Londres e o usa como uma espécie de palácio. Há passagens relacionadas à isso, tal como no livro escrito pelos Red Wolfs?

Charlie não respondeu. O fez tão rápido, que uma nova pergunta de Adam se mostrou desnecessária. Folheou várias páginas, voltando alguns capítulos, a poeira sendo jogada na luz solar que atravessava as janelas. Em um minuto, já havia encontrado.

- Aqui. - apontou para o primeiro parágrafo. - "A fortaleza do Rei resplandece a sabedoria de todas as eras.", ou seja, o Museu. "Engolindo vorazmente, sem vicissitudes, todos os filhos do Forte.", significando que Mollock deve absorver todo e qualquer conhecimento presente lá.

- "construirá seu império a partir das ruínas de outro." - disse Êmina. - Não faz sentido, sendo que o Museu está intacto e lá ele se firmou como seu local de reinado. - cruzou os braços, batendo o indicador na testa com os olhos cerrados. Estava mais atenta e reflexiva com todo aquele quebra-cabeças do que nunca.

- Espere um segundo. - pediu Charlie, novamente folheando freneticamente o livro. - Aqui, encontrei. "De um lugar esquecido, erguerá a bandeira da guerra, consolidando, definitivamente, seu domínio. Tingido de cinza, o império será construído sobre os cadáveres daqueles que outrora pertenceram-no.". O que me dizem? - levantou a cabeça, o olhar focado no grupo.

Uma atmosfera pensativa isolou aquele espaço, regado em profunda concentração. Todos os quatro olharam para cantos distintos da sala, deixando suas mentes instigarem-os a encontrar uma peça fundamental para um encaixe perfeito. Imaginaram lugares históricos, caídos no esquecimento. A luz do sol lhes dava certa segurança, cada vez mais alastrante ao chão arejado.

Três minutos de puro silêncio. Charlie emanava uma calma habitual, mesmo tendo ciência da urgência que a principal missão alertava. Durante o período, observou aqueles rostos tentando decifrar os caminhos misteriosos de suas mentes.

Lester fora o primeiro a quebrar o emudecimento.

- Já sei! - exclamou, estalando os dedos ao descruzar os braços. - Pode ser o Stonehenge.

Êmina segurou-se para não cair na gargalhada.

- Ahn... Lester, acho que é meio precipitado. - disse, forçando uma expressão séria. - O Stonehenge é conhecido mundialmente, sendo historicamente comprovado como um dos monumentos mais misteriosos que existem. O que está em questão é algo esquecido...

- Charlie, só uma coisa. - disse Adam. - Não diz mais nada a respeito deste lugar aí?

- "Com pilares, sustentou sua honra.". É tudo o que este capítulo diz. Vejam bem: Pilares. - ergueu o indicador para atenta-los.

- Eu havia pensado no Coliseu, em Roma. - proferiu Alexia, tentando ser participativa. - Mas já que você mencionou isso... Talvez o Templo de Poseidon. - a vidente pôs a mão no queixo, voltando seu olhar baixo para um canto.

- Não. - indagou Charlie, firme. - O Templo de Poseidon pode estar em ruínas e possuir pilares, mas não tem tons de cinza, logo excluímos ele facilmente.

- "sobre os cadáveres". Uma civilização. - especulou Adam, rápido como uma flecha, se sentindo mais à vontade com a discussão.

- Charlie, será que pode haver mais um capítulo que facilite a descoberta desse lugar? - disse Êmina, sem mais ideias a apresentar.

- Se for como Adam diz, talvez... - e folheou mais páginas, retrocedendo a profecia. Agora chegara em um outro capítulo, tão importante quanto. - Esteja sendo explicado aqui. A primeira aparição de Abamanu na Terra, como eu havia dito a vocês ontem. A lenda que me disseram era apenas lenda.

Forçou um pouco mais sua visão para as palavras escritas, semi-cerrando os olhos.

- Eu traduzi este capítulo. É intrigante. A guerra entre dois deuses. Foi aqui que Abam...

Uma vertigem atracou-se com sua cabeça estendendo-se para o corpo. O rapaz passou a ver a sala girando, até transformar-se em um lento borrão. Sua visão tornara-se turva à medida que piscava na tentativa de reavê-la. O recinto estava confuso, como se o tecido do espaço-tempo estivesse colapsando ao seu redor. Recuou alguns passos para trás, cambaleante, visualizando o chão.

- Charlie! - gritou Alexia, preocupando-se e se levantando.

Adam fora rápido o bastante para apoia-lo e impedi-lo de cair no amontoado de caixas perto dele. O segurou pelas axilas assim que começou a cair, dando os primeiros sinais de um desmaio. Êmina, Lester e Alexia rodearam-o, desesperados.

- Charlie, por favor... - dizia Alexia, agachando-se. - Acorda.

- Espera... - Adam fez força para levanta-lo e senta-lo na cadeira onde estava. O arrastou até o ponto.

Segundos passados, o jovem se via sentado, gradualmente recuperando a boa visão. Entreviu, confuso, os rostos tomando forma diante dele, ouvindo as vozes aflitas a seu redor. "Charlie! Charlie está me escutando?", o som lhe era longínquo, mas a voz e os alaranjados ruivos cabelos eram reconhecíveis. Deixou as pálpebras levantarem-se por completo.

- Oh, graças a Deus. - aliviou-se Alexia, pondo a mão em seu peito. - Você está bem?

O jovem físico não respondera. Ajeitou-se na cadeira para sentar-se melhor, ao passo em que reavia o fio da meada. Os quatro o fitavam, os olhares seriamente preocupados.

- Charlie, o que houve com você? - perguntou Adam - Por que desmaiou assim, tão de repente?

- É, e justo numa parte importante. - disse Lester ao lado dele.

- Eu... - o mago do tempo esforçava-se para falar - Perdão. Me desculpem. Tudo de repente rodopiou e eu perdi a consciência. Senti algo pesado me arrastar...

- Não era nada demais. - respondeu Êmina, aproximando-se dele. - Foram só os braços do Adam. - e tocou seu ombro sorrindo.

- Obrigado. - agradeceu ele, voltando-se para Adam.

- De nada. - o caçador sorriu levemente.

- Você está pálido. - avaliou Alexia. - Não acha que se esforçou além da conta?

- Sim, é verdade. Acho melhor eu me poupar por hoje. O texto que eu estava lendo demandava uma leitura muito concentrada. O traduzi faz anos, além de que não leio manuscritos com dialeto dos deuses há um bom tempo. Nesse caso, estou meio enferrujado. - lamentou.

- Havia mencionado "guerra entre deuses". - disse Adam, não escondendo sua curiosidade. - Acho que não preciso dizer o quanto isso nos deixou... você sabe.

- Sim, tudo bem. - disse Charlie, se levantando a cadeira. - Não se preocupem, prometo que não deixarei isso passar em branco, vocês merecem saber. - caminhou rápido em direção a mesa.

Alexia tentou uma interceptação repentina, tendo em vista o quadro de seu amigo.

- Charlie, o que vai fazer? - andara a passos largos, alcançando.

O jovem barrou-a erguendo levemente a palma de sua mão, com um semblante aparentemente austero.

- Por favor, Alexia. Eu estou bem. Apenas irei guarda-lo.

A vidente deixou cair os ombros, entendendo a justificativa. Assentiu, voltando para o ponto onde estava, parecendo abatida. Segundos de reflexão passaram-se como torturantes minutos para Charlie. Nos áureos tempos escolares, seu bem-estar era preservado mais por Alexia do que por ele. Sempre fora grato por toda a preocupação exibida, mas por outro lado isto o incomodava posteriormente. Seu complexo de autossuficiência era o defeito mais vil que poderia demonstrar. Infelizmente, naquele momento já era tarde demais para fazer parecer algo diferente. Ajeitou seu colete cor de terra e fechou o pesado livro, os resquícios de poeira cintilados pela luz.

- Bem, creio que devem estar curiosos sobre como consegui este livro. - disse, segurando-o. - Sei que devemos agilizar, podemos estar avançando a passos lentos, a amiga de vocês, Rosie, pode estar viajando entre universos diferentes em constante perigo... Eu já preparei tudo. Agora resta vocês se prepararem.

- O que quer dizer? - perguntou Adam, desconfiado.

- Sigam-me. - disse Charlie, virando as costas e enveredando-se para um canto quase opaco da sala.

O jovem parara perto de uma pequena estante, pondo o livro no seu devido lugar em meio a outros de mesmo tamanho. Diante dele um tapete verde quadrado de cetim jazia no chão.

O arrancou, praticamente atirando-o longe. Mal se deu conta que o quarteto já estava perto dele, em polvorosa por tamanho mistério. Um alçapão foi revelado. Charlie puxara a corda fazendo a porta ranger estridentemente. Uma escada de madeira, aparentando ser de boa qualidade, surgiu, bem abaixo da abertura. O mago do tempo prontificou-se a descer primeiro.

- Bem, agora sim: Sigam-me.

                                                                            ***

Já estavam a centenas de milhares de quilômetros do lugar onde passaram. Andarilhavam por um bosque deserto, em uma estrada pequena, serpenteando entre os altos pinheiros. O céu empalidecido parecia prenunciar uma chuva que há muito se esperava naquela terra. Rosie tentou se aquecer, devido ao gelado vento que arrastava as folhas e balançava galhos. O ser magro ao seu lado flutuava com tamanha paciência que dava a impressão de não conseguir ter reações naturalmente humanas, como a pressa, por exemplo.

"Sem querer julgar pela aparência, mas sinto uma certa vergonha ao andar junto com ele. Me sinto exposta demais.", pensou Rosie, fitando sua face vazia e repleta de cicatrizes costuradas.

"O desafio-extra será de extrema importância para que Lorde Abamanu ganhe tempo e organize suas ideias. Ela deve sofrer mais um pouco, até que tudo esteja inteiramente nos conformes.", pensou o Guia, confiante no andamento do plano.

- Acho que vou gritar. - disse Rosie, com frio, quase sussurrando.

- Por que está dizendo isso? - perguntou o Guia, sem virar o rosto.

- Tudo isso... está me enlouquecendo, já estou cansada. Além de estar praticamente congelando. - disse, praticamente batendo os dentes.

- Já estamos perto. Queria saber sobre o desafio-extra, certo? Então, ele nada mais é do que uma complementação às suas inclinações redescobertas nos desafios anteriores.

Em um despertar violento, Rosie desprotegeu seus braços do frio apenas para reclamar a situação.

- Olha aqui! - pôs-se na frente do Guia, interrompendo sua levitação. - Eu cansei de enrolação! Quantos desafios eu vou ter que encarar, afinal? E é engraçado como tudo isso é tão misterioso, a ponto de você, que se diz meu orientador, não me revelar praticamente nada sobre você, nada sobre mim ou sobre essa porcaria de deus, talismã e o diabo a quatro! - sua enervação inesperada realmente assustara o Guia.

- Paciência, Rosie. Você está em uma jornad...

- Ah sim, que bela jornada estou tendo. - assentiu, cravando seu olhar furioso nele. - Pois ela acaba a partir de agora.

Rosie virara-lhe as costas, saindo a passos agitados, rejeitando o frio que insistia em para-la. O único capaz de faze-lo ficara para trás, profundamente desapontado.

- Rosie, volte aqui! - ordenou ele, autoritário.

- Isso é uma ordem? Boa tentativa, mas não funciona comigo. - seus passos alargavam-se mais.

- Não adiantará fugir, posso me comunicar com telepatia. Se fizer algo sem minhas orientações pode acabar entrando em perigos. - a voz do Guia tornava-se distante e rouca.

- Perigos que com certeza não serão maiores dos que aqueles em que você me põe. - replicou ela, ríspida.

- Estou ordenando, Rosie, volte imediatamente. Não tem ideia do que a espera.

- É verdade, eu não tenho. - enxugou uma lágrima descendo pelo seu rosto. - Mas se me seguir ou entrar na minha mente, eu juro que vou me suicidar.

Aquela sim fora uma declaração realmente espantosa. "Impossível. É óbvio que neste estado de pura incerteza e temor ela não conseguiria tirar a própria vida. Estou com a maior vantagem, não será difícil para-la.", pensava o Guia, não deixando a fúria de Rosie abater sua confiança. Se possuísse habilidades mais ambicionadas, já veria-se hipnotizando-a, conduzindo sua mente para os rumos que lhe convinham. Naquela hora, desejou aquilo mais que tudo em sua existência ida como vã para aqueles que não o compreendiam.

"Segure-se. Não se enerve tão tolamente. Se eu for contagiado pela rebeldia desta garota, ela é quem sofrerá as piores consequências. Devo me controlar.", pensou ele, mantendo-se estagnado no exato ponto onde cessou o percurso. Embora a jovem não tenha percebido, a sombra do Guia nunca poderia ser vista, como se o mesmo fosse desprovido de tal.

Rosie já estava a milhas de distância. Dobrara para uma curva à direita, desaparecendo na névoa que se formava. Caminhou mais lentamente quando, por um curto período de tempo, o espaço ao seu redor tornou-se esbranquiçado e denso, além de absurdamente gelado. Ajeitou seu capuz, ajustando-o melhor à sua cabeça. Via-se, de repente, diante de um armazém, a névoa já parcialmente dissipada.

Divisou, em meio aos últimos resquícios de neblina, o estabelecimento construído com madeira parda escura, sendo semelhante à uma cabana. Do lado direito, via-se um poço, quase imperceptível por ser nada chamativo. Um pouco atrás da grande construção, avistava-se um humilde vilarejo, cujo acesso se dava através de uma descida íngreme. Com a mente decididamente esvaziada, Rosie direcionou-se ao local.

A voz do Guia voltara a ecoar em sua cabeça, insistentemente.

- Rosie! Escute-me. - pedia ele, sem muita carência. - Só porque não suporta mais meus mandos, não significa que está livre dos desafios. Mas eu devo dizer que está se encaminhando para o lugar certo.

- Vai se ferrar. - replicou ela, aborrecida.

- De qualquer modo, terá que deixar de me ignorar. Enfim, sendo direto, você deve encontrar a chave.

Rosie, a poucos metros da porta, sentiu uma sensação estranha. Olhou para cima, o branco do céu convertendo-se em um melancólico cinza envolto de nuvens de mesmo tom. Aquilo não lhe chamava mais a atenção do que a inexplicável esfera negra que contrastava. Um círculo enegrecido que não deixava brecha para certezas. Rosie franzira o cenho.

- Mas o que é isso?

- O que está vendo? - perguntou o Guia, curioso.

- Não... não é nada. - e tirara seus olhos do céu. - Que chave é esta?

- Está localizada em algum ponto desta casa. Você tem a incumbência de descobrir onde ela está, mas terá que ultrapassar alguns empecilhos.

- Não estou com a menor vontade de discutir isso, eu vou entrar. - apressou-se Rosie, continuando a caminhar à porta.

Estava entreaberta, para o alívio da jovem. Uma senhora, com uma expressão mal-humorada deixando em evidência suas rugas, estava servindo de atendente no balcão. A mesma possuía um aspecto quase que cadavérico, com seus cabelos brancos mal-penteados. Havia uma única e repugnante diferença: Seus olhos. Completamente negros. Atrás dela viam-se prateleiras enormes com mantimentos de diversos tipos. Não demorou para perceber a chegada de Rosie quando a abertura da porta deixou tocar o sino. Um novo cliente era sinônimo de estresse para a velha dona do armazém.

Rosie caminhou até ela, sem olhar para os lados.

- Olá. - cumprimentou, aproximando-se do balcão. - Pode parecer estranho, mas estou a procura de um objeto de valor. - revelou ela, sucinta.

A senhora inclinou a cabeça, na tentativa de fazer Rosie se impressionar com sua aparência. Os olhos negros eram os únicos elementos que afastavam a maioria de seus clientes para sempre. Não era de se admirar, tendo em vista as teias de aranha instaladas nos potes com líquido estranho e verde armazenados nas prateleiras mais distantes. A velha moveu seus lábios pela primeira vez naquele dia.

- Não está surpresa ao me ver... assim? - sua voz era de uma rouquidão enojante.

- Senhora... eu não vim para julga-la, apenas quero a chave. - disse Rosie, em tom sereno e educado.

A proprietária do armazém, em um lampejo de raiva, bateu com força no balcão, aproximando ainda mais sua face enrugada ao rosto branco de Rosie.

- Meus olhos, menina! - exclamou, apontando para a escuridão de seus globos oculares - Qualquer um que venha até aqui e me vê assim sente medo! Eu quero ver o seu medo...

Rosie obrigou-se a recuar poucos passos, fitando, estarrecida, o olhar sombrio da mulher.

- Eu não estou com medo. - afirmou, um tanto trêmula. - Apenas quero a chave, sei que está aqui. Por favor, me mostre onde está.

- Não! - vociferou a senhora, deixando seus cinzentos dentes à mostra. - Sabe o que eu faço para que meus clientes sempre venham aqui? Eu os intimido. É! É assim que se faz! É assim que se trata essa gente! - e batera novamente sua mão no balcão, expressando ao máximo seu descontentamento.

- Eu vou pedir só mais uma vez. - Rosie levantou o indicador, já tensa com toda a situação. - Quero a chave. Me mostre onde está. Ou...

- Ou o quê!? - esbravejou ela, com gotículas de saliva penetrando no ar. - Vai! Vai lá! Entra! Sei exatamente o quer. Essa chave é tão valiosa que já fui ameaçada de morte por não querer vende-la. Vai lá, está em cima da última prateleira.

Em uma fração de segundos, Rosie desaparecera da frente da senhora, correndo para uma sala do armazém. "Quando esse pesadelo vai acabar?", perguntava a si mesma enquanto vasculhava o cômodo, percorrendo entre as empoeiradas prateleiras.

- À sua esquerda. - dizia a voz do Guia na sua mente.

- Até que enfim apareceu. Devia ter me ajudado com aquela velha. Que tipos de seres humanos vivem nesse mundo? - perguntou, se enveredando para a direção orientada.

- Tipos dos quais não vai querer testemunhar tais naturezas. - afirmou, evasivo.

- Muito calmante. - ironizou Rosie, tirando algumas teias de aranha de sua cabeça.

A prateleira mais alta estava na sua frente, imponente, embora com a madeira desgastada. Rosie encarou, desanimada, a altura do móvel, permitindo esvair-se qualquer fio de esperança.

- Está brincando, não é? Não vou subir nessa coisa. - apontou para a prateleira, fazendo uma careta.

- Sem problemas. - disse o Guia.

A chave voou, instantaneamente, para as mãos de Rosie, provinda de sabe-se lá em qual ponto do móvel. A jovem não demonstrava surpresa alguma com o feito.

- Foi você não foi? - perguntou, olhando para o aspecto dourado da chave.

- Não discuta. - disse o Guia, frio. - Agora lhe resta encontrar a porta.

- Espera aí... Isso está me parecendo uma cópia do desafio na mansão. Quanta criatividade.

- Você deve ir logo, Rosie. O tempo urge. Além disso, não é o único desafio-extra.

A jovem estacou, logo quando se preparou para correr.

- Não é o único? - seu tom era, decerto, medroso. - Quanto tempo isso vai durar? Olha, é sério, eu já estou cansada. Se eu tive uma vida em um passado do qual não consigo me lembrar, eu quero te-la de volta. Você parece desobedecer as ordens do seu mestre, eu percebo isso só pelo jeito como você facilita as coisas para mim em alguns momentos. - afirmou Rosie, exausta e em um limiar de depressão pela impotência que o rumo daquela jornada lhe proporcionava.

- Terá suas lembranças de volta, isso eu garanto. Mas recomendo que olhe para trás, se não quiser se machucar.

Rosie virou, vagarosamente, seu pescoço. O tom que o Guia utilizou para a frase de alerta a fez estar seriamente disposta para um iminente perigo. Foi movimentando suas pupilas, até deparar-se com uma figura conhecida recentemente.

A dona do armazém. Estática, parecendo uma boneca em estado de desgaste puro. Seus olhos negros fulminando Rosie, escondendo as trevas dentro de si. Sorrira, deixando escorrer um líquido preto e viscoso, sujando sua camisola branca. Rosie observou, com ojeriza, aquela transformação aterradora.

- A chave! Devolva! - disse a senhora, em uma rápida e monstruosa modificação de voz.

A jovem logo estranhara o pedido. "Essa velha é mesmo louca? Me permitiu encontrar a chave e agora a quer de volta!?", pensou enquanto assistia, atônita, o terror vivo tomando forma.

- Rosie, encontre a porta, depressa! - disse o Guia, apressando-a. - Vá, antes que seja tarde. Ela certamente irá ataca-la e não vai querer ver o que vem depois.

- Que tipo de monstro você é? - perguntou Rosie, com um sorriso curioso.

A senhora respondera com um gemido alto, escabroso, o líquido enegrecido borbulhando em seus lábios. Pegando Rosie de surpresa e praticamente desprevenida, a dona do estabelecimento girou a cabeça para diferentes lados, em movimentos insanos. A cada giro sua face alongava-se e enrijecia, tomando uma tonalidade cinza-azulada, além de dentes afiando-se vertiginosamente ao passo em que sua boca esticava para baixo.

A jovem paralisou, observando o horror na aparência mais ardilosa, como nunca havia visto antes. Segurou a chave com mais firmeza, se preparando aos poucos para acionar seus mecanismos de defesa. Seu olhar mudara, tornando-se mais penetrante e desafiador, mesmo recuando alguns passos.

A velha, com seus cabelos brancos quase que se confundindo com as volumosas teias de aranha ao seu redor, sorriu novamente, exibindo seu rosto terrorífico. Seus olhos alongaram-se também, não abandonando o preto. A boca alongada para baixo movimentava-se, com seus dentes enormemente afiados, sujos com o líquido estranho.

- A chave! Devolva! - repetiu, desta vez com um som genuinamente demoníaco.

Erguera a pálida mão esquerda, e das pontas dos finos dedos saíram longas garras quase invisíveis.

                                                                          ***

Lester fora o último a descer a escada de madeira. Durante a descida, podia-se ver uma abertura quadrada em uma parede de concreto que formava o apertado espaço, localizada atrás da escada. Nela via-se uma pequena parte de um quarto de hóspede. Pararam diante de uma alta porta amadeirada maciça com uma maçaneta prateada e circular. Charlie, em rápido movimento, atravessou o quarteto e sacou um pesado molho de chaves de um dos bolsos de sua calça.

- Mais algum segredinho dos magos do tempo? - indagou Lester, emanando um misto de excitação com curiosidade.

A resposta do rapaz foi o lento abrir da porta, aos poucos mostrando o amplo espaço reservado aos heróis. Quando as dobradiças já se limitavam, o ambiente que se via era de magnífica estrutura. Os quatro, calados, ficaram a observar a grandeza das paredes com mais de 4 metros de altura, mas nada comparado ao conteúdo. Maravilhados, foram entrando devagar, os olhos passeando por todos os cantos. Uma espécie de arena em grande relevo, podendo ser acessada por meio de uma pequena escadaria, era, claramente, composta por cimento puro e da mais alta qualidade. Os blocos eram quadriculados, as linhas perfeitamente colocadas. Nas paredes laterais, vidraças que conservavam armas dos mais diversos tipos: espadas, lanças, escudos, dardos, discos metálicos, shurikens, pistolas, revólveres, metralhadoras e outras armas de fogo. Cada vez mais próximo da área de treinamento, o grupo parecia estar hipnotizado.

- Bem, pessoal... - dizia Charlie, apresentando o local. - Sejam bem-vindos a um dos lugares mais secretos deste país: A ala de treinamento dos Magos do Tempo.

- Incrível. - disse Êmina, pasma. - Até armas vocês guardavam... - apontou para uma das vidraças.

Adam dera um risada de empolgação.

- Caramba, se todos os nossos amigos vissem isso aqui... eles iriam pirar, parece ótimo para treinar o corpo e a mente. - andou contornando a arena, sorrindo.

- Adam está certíssimo. - afirmou Charlie, pondo as mãos para trás e passando seus rápidos olhos pelo aposento. - Era este o lugar onde meu pai e seus companheiros sempre vinham para meditar ou aprimorar técnicas combativas. Como podem ver, qualquer arma era prioritariamente usável para diversas situações.

- Isso é demais. - disse Lester, cobiçando um pacote de flechas de prata reluzente.

- Eu realmente sinto uma atmosfera de tranquilidade... uma paz muito grande. - comentou Alexia, abrindo um sorriso. - Charlie, você pareceu ler meus pensamentos... não estou surpresa.

O jovem físico girou para ela com um olhar de estranheza. Até aquele momento, embora não demonstrasse reparar, ele percebia Alexia tensa na maior parte do tempo. Ao fita-la, não enxergou nenhum resquício da sensação ruim em seus olhos azuis. Até o ruivo laranja de seus cabelos parecia mais vivo, o elemento que mais o encantara naquela jovem mulher presa a seus medos.

- O que quer dizer?

- Que eu realmente precisava estar aqui. Neste exato lugar. - disse, assentindo levemente ao vislumbrar as luzes brancas que iluminavam o espaço.

- Err... Charlie, você ainda não nos disse como conseguiu o livro. - disse Lester, aproximando-se, cortando qualquer fio de ligação na conversa entre Charlie e Alexia.

- Ah sim, me desculpe. - voltou-se para ele, parecendo ignorar Alexia. - Meu pai costumava participar de leilões no Museu de História de Londres, e não me admirou ele ter conquistado a Bíblia de Abamanu lá por uma bagatela de mais de 100 milhões de euros.

- 100 milhões!? - espantou-se Lester. - Será que sobrou um pouco para dividirmos?

Êmina bateu de propósito seu cotovelo no braço de Lester, desaprovando seu comportamento. O caçador a olhou desanimado enquanto esfregava de leve seu braço.

- Mas... como o livro chegou ao Museu? Tem alguma ideia? - perguntou Adam, chegando mais perto.

- Isto ainda permanece um mistério, nem mesmo meu pai saberia responder. - afirmou Charlie, com firmeza.

- Charlie, agora entendemos o que quer que façamos. - disse Êmina, empolgada. - Treinaremos física e mentalmente para nos protegermos de alguma ameaça dos Coletores enquanto estivermos viajando entre os mundos. Estou correta?

- É exatamente esta a ideia. - confirmou. - Podem ficar aqui o tempo que quiserem, enquanto faço os últimos preparativos para a viagem.

- Gostei das suas armas. - elogiou Lester, olhando novamente as vidraças. - Engraçado, algumas delas se parecem muito com as que meu pai usou para fazer uma expedição num lugar conhecido como Ruínas Cinzas, ele me contava umas histórias bem malucas de lá depois que voltou...

Charlie sentiu um baque tremendo em sua calma. Franziu as sobrancelhas, a face séria, as pupilas dilatadas, contemplando o prazer de uma descoberta inesperadamente apropriada ao momento. Enquanto Lester falava, o mago do tempo partilhava seu semblante com os demais presentes.

- Lester! - exclamou ele, em alto e bom som. - Pare de falar e me ouça atentamente. - baixou a cabeça, seus cabelos castanhos cobrindo de seus olhos.

- O que foi? Eu falei alguma bobagem?

- Não... muito pelo contrário. - e lançou seu olhar intenso para o caçador. - Você é um gênio.

Até o momento em que Charlie interrompera Lester, ninguém havia entendido com exatidão o porque do mesmo tornar-se tão assustado de repente. Ao chamar o despreocupado caçador sobrenatural de "gênio", todos passaram a entender a verdade.

- Você... me chamou de...

- Isso mesmo. - deu as costas, caminhando largamente em direção à porta. - Por favor, comecem a treinar, Lester acabou de dizer o local onde Abamanu poderá retornar.

O quarteto ficara mudo por vários segundos. Procuravam esboçar uma reação que casasse com o momento, mas era difícil àquela altura.

- É sério que ele chamou você de gênio? - disse Êmina, rompendo o silêncio.

- Pessoal. - disse Adam, excessivamente sério. - Ruínas Cinzas. Eu conheço este lugar. Obrigado Lester.

- De nada... - disse ele, tentando entender aquele momento estranho.

- Eu vou atrás dele. Vejo vocês mais tarde. Até. - disse Alexia, indo até à porta para alcançar Charlie.

O trio da Legião passou a se entreolhar sério após a batida da porta. Graças ao comentário feito por Lester, já poderiam ver não só a chance de agilizarem os passos... mas também um raio de esperança em seus bravos corações.

                                                                          ***

Naquele calmo fim de tarde, o filho de um dos advogados mais requisitados do país, Dwayne Nevill, estava de pé em uma cabine de telefone, impaciente e pressionado. Numa mão segurava sua maleta de couro marrom que levava ao trabalho. A outra segurava o fone, demasiadamente suada. Seu casaco de lã bege estava em seu ombro, não houve tempo de vestir-se completamente sabendo que aquela ligação era de tamanha importância que uma parada em um algum restaurante seria considerada um crime contra a atenção que, obrigatoriamente, deveria ser prestada à sociedade.

Após minutos de aguardo, uma voz finalmente surgiu do outro lado.

- Dwayne. Estava esperando sua ligação.

- Tem algo de que precisa saber, é urgente. - falou de modo tenso.

- Eu também tenho uma notícia urgente: No nosso encontro de hoje, você será o responsável por mais uma iniciação. O primeiro grupo já está formado. Os mantenho sob custódia em uma cela espaçosa. - o tom era soturno, esbanjando uma aura trevosa. - Mas diga-me, o que descobriu hoje?

- Uma palavra: Hector. Ele voltou. - sentiu o sangue ferver ao lembrar do rosto do caçador. - Estava acompanhado de uma mulher, que confessadamente se revelou uma bruxa.

- Hum, Hector... Então ele está vivo. Presumo que a filha do herege esteja desaparecida.

- Provavelmente, mestre. - concordou Dwayne, assentindo. - Mas eu asseguro que eles não vão ser nenhuma pedra no nosso caminho. Vão estar atentos à outra ameaça, ainda maior que a nossa.

- Já posso imaginar qual, tendo em vista as últimas notícias. Que a profecia se cumpra.

- Que a profecia se cumpra. - repetiu Dwayne, sério.

- Espero você as 10.

E a pessoa do outro lado, por fim, desligara. Dwayne, ao por o fone em seu lugar, já sentia o calor das chamas em suas mãos.

                                                                         ***

O gélido ar da noite esfriava a imensa fachada de mármore do museu. A lua nova mostrava-se melancólica perante à diversidade de estrelas no céu noturno. Nos cantos inóspitos da floresta próxima à estrutura histórica, formavam uma estranha vigília dois heróis determinados a fazerem o que é certo, mesmo os atos mostrando-se errados.

Eleonor e Hector aguardavam o momento ideal para porem em prática o plano ficando entre os arbustos em meio a altas árvores. A bruxa nível Õmega esperava sentada em um tronco cortado, um tanto entediada. Por outro lado, o caçador, sem esconder seu desejo de vingança, afiava a lâmina de um facão.

- Quer mesmo fazer isso agora? - perguntou Eleonor, incerta.

- Mais do que tudo. É a nossa melhor chance, sem dúvidas. - respondeu Hector, intensificando a afiação da arma.

- E se Loub não estiver lá? E se Mollock for rápido o bastante para nos prender em uma armadilha?

- E se você deixar de ser tão pessimista, hein? - o caçador sorriu levemente para ela. - Tentaremos driblar qualquer tentativa de Mollock em nos impedir, aconteça o que acontecer.

- Quisera eu poder estar com essa confiança toda. - disse ela, espalhando com o pé umas folhas secas. - Só acho que apenas nós dois não é o bastante. - levantou-se abruptamente.

- O quê? - indagou Hector, franzindo o cenho. - Eu tenho o preparo, você tem a magia. Por favor, coopere. Vamos tentar lidar com isso da maneira mais perseverante possível.

- Hum. - riu baixinho - Minha magia não é tão pacífica quanto pensa, certos feitiços exigem riscos, e está quase óbvio que vou ter de usar os mais severos.

- Melhor ainda. Não há vitória sem riscos. - disse Hector, guardando a lâmina em um bolso de seu sobretudo.

- E se eu acabar te matando acidentalmente? - perguntou Eleonor, categórica.

- Isso não vai acontecer. Você me parece experiente demais para cometer algum erro estúpido. - disse, aproximando-se dela.

- E você me parece confiante demais para não temer nenhuma dor. - replicou ela, semi-cerrando os olhos.

- Medo é uma palavra inexistente no vocabulário de um caçador da Legião.

- Tudo bem, não iremos discutir isso. - virou-se para trás, tentando avistar alguma coisa entre as árvores.

Hector se viu desconfiado, acompanhando os olhos de sua companheira para uma direção indefinida.

- O que está observando?

A mulher, de súbito após um sobressalto, virara-se rápido para ele, exibindo um sorriso constrangido.

- Bem... não é nada. Eu só...

Repentinamente, uma voz espalhafatosa ecoou por todo o ambiente, cortando o clima paciente que ambos desfrutavam antes de seguirem rumo à batalha. A dupla tornou seus olhares, igualmente surpresos, para a figura que se aproximava animada em direção à eles.

- Não pode ser... Você!? - impressionou-se Hector, arregalando os olhos.

A pessoa que chegara era um jovem afro-descendente, vestindo um casaco de couro preto, uma calça comum e coturnos. Portava consigo uma mochila pesada sobre os ombros, na qual guardavam-se seus úteis apetrechos de caçada. O rapaz bem-humorado apresentava um largo sorriso ao ver Hector que, para ele, estava em sua melhor forma num pré-julgamento. Seu nome era Josh Revalli, nascido e criado nos Estados Unidos, tendo sido aos 18 anos ingressado na universidade. Após cerca de 4 anos cursando direito, por rigoroso apoio dos pais, que facilmente era interpretado como obrigação. Entretanto, teve de abandonar rapidamente os estudos após receber uma carta de "admissão aleatória para jovens habilidosos". Atraído pelo objetivo nada específico no documento, Josh enveredou-se para o grupo de seleção dos Caçadores de Aluguel, um exército menor que era conduzido para missões de pequeno porte. Fora aprovado depois de inúmeros testes de aptidão, tendo que estar face à face com o sobrenatural, dia e noite. Os pais mudaram-se para o Canadá, visando uma melhor condição de vida, enquanto o filho prodígio escrevia a cada dois meses discorrendo suas conquistas e sua vida como um todo.

Voltou-se para Eleonor, a voz da moça fixada em sua mente unindo com o rosto fino e moreno, os olhos verdes cor de folha. Era ela. A responsável pelo chamado de emergência.

- Hector. - disse, largando a mochila no chão. - Há quanto tempo, irmão!

Estupefato, Hector apertara sua mão, olhando para Eleonor rapidamente.

- Josh. Eu realmente não esperava que viesse. Como soube que estávamos aqui? - disse, com ar suspeito diretamente para a Eleonor.

- Você e suas perguntas diretas, não mudou nadinha mesmo. - e riu do momento. - Bem, primeiramente, eu já tinha pensado em vir aqui, neste mesmo dia e horário.

- Sério? - Hector o fitou, incrédulo. - Simplesmente pretendia enfrentar o exército lá dentro... sozinho?

- E por que não? - disse, despreocupado. - Graças ao que a sua companheira gostosa... quero dizer, generosa me disse, pude reunir mais coragem para vir aqui.

- Então quer dizer que... - e girou para diante de Eleonor, com um semblante que ela definia como "exigência rápida para explicações".

- Hum, sobretudo novo. - comentou Josh, avaliando a vestimenta nova de Hector. De couro marrom escuro com mais quantidade de bolsos. - Finalmente largou aquele bege cor de vômito de cachorro.

- Digamos que uma certa pessoa me forçou a joga-lo fora. - curvou os ombros, visando um ponto da mata.

- Estava velho e surrado, ora. - disse Eleonor, com ar autoritário.

Pegando sua mochila novamente, Josh desembainhou uma pequena espada presa à seu cinto, prontificando-se para a missão da noite.

- Muito bem, tripulação. O que acha de entrarmos naquele museu e cortarmos umas cabeças. Quem sabe doamos uns corpos para uns taxidermistas. - disse ele, elevando sua preparação, a lâmina da espada adejando no ar.

- Err... Josh. - Hector pôs a mão na boca para fingir um som de um pigarro na garganta. - O objetivo em questão não é parte de uma missão simples, das quais você esteve acostumado nos meses em que ficou no acampamento. trata-se de algo muito, muito além do que qualquer caçador já enfrentou.

A empolgação brilhava nas pupilas de Josh, como fogos de artifício lentamente piscando. O sorriso branco no rosto do jovem foi inevitável.

- Isso... vai ser incrível. Mal posso esperar. - visualizou o metal da espada, inebriante.

Hector não se deu ao trabalho de convence-lo do contrário. Apenas se voltou para Eleonor, o rosto duro como uma pedra. A mesma compreendia de imediato a expressão, e descruzou os braços.

- Está bem, está bem. Fui eu, Hector. Eu o contactei através da sua lista de contatos que estava no seu sobretudo velho, pouco antes de eu pô-lo no lixo. - explicou, olhando para ambos.

- Ela até me mandou um beijo de despedida. - revelou Josh, lembrando do telefonema. - Quem dera se fosse pessoalmente... Você é um cara de sorte, Hector. - saíra pelo meio dos dois em direção ao museu.

- Ei, Josh. Espere. Não vamos entrar pela porta da frente. - disse Hector, pegando seu arsenal e seguindo-o.

- Não vão com tanta pressa, também não façam muito barulho. - afirmou Eleonor, correndo para alcança-los, já distantes da floresta.

- Ué, ela também vai? - perguntou Josh, olhando para trás enquanto andava pelo gramado semi-molhado. - Ha-ha! Tem como essa noite ficar ainda melhor?

- Já está ruim. - reclamou Hector, andando já ofegante. - Pior do que está não pode ficar.

O trio percorria o extenso gramado que contornava todo a área construção do museu, mas seguindo para uma entrada pelos fundos. O Museu de História de Londres comumente era comentado, em rodas de conversas entre historiadores do mundo todo, em relação à passagens subterrâneas de acesso furtivo. Todavia, para aqueles três aventureiros tal informação era desconhecida. O exército de Mollock mantinha uma guarda apenas no interior, já que uma das ordens do Rei era não se expor, se não fosse à luz do dia muito menos pela noite.

Um veneno chamado vingança corria fervente nas veias de Hector, que só pensava no estado de Loub como cativo da subjugação de Mollock. Aquele não lhe era um castigo suficiente.

Eleonor caminhava depressa ao lado do caçador-detetive da Legião, cada vez mais incerta do sentido da missão. Mas sua incerteza maior apontava para Hector e aos atos que ele planejava realizar.

Josh... ia na frente, a excitação pulsando agressivamente em todo seu corpo. Transmitia a sensação para a espada, em um belo compartilhamento de desejos entre arma e guerreiro.

Juntos, caminhavam por um só ideal: Fazer declinar aquele império em ascensão.

                                                                         ***

A mais de 200 quilômetros dali, em uma região repleta de cavernas e túneis, mergulhada no escuridão, ouvia-se um urro gutural e estrondoso. Um bando de corvos, que estavam em uma árvore, alçaram voo assustados.

- Um grito na escuridão... Que bela música para os ouvidos. - dizia uma voz sussurrante.

Era Dwayne, experimentando obcecadamente a sensação brutal ao segurar um ferro de marcar, cuja ponta sendo um círculo em brasas estralava suavemente.


                                                                          CONTINUA... 




*A imagem acima é propriedade de sue respectivo autor e foi usada para ilustrar esta postagem sem fins lucrativos ou intenções relativas a ferir autorais. 

*Imagem capa do livro Frostbite, de David Wellington. 



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