Frank - O Caçador #31: "Mantenha Longe as Crianças"


Dentre as várias crianças que brincavam naquele extenso parque gramado, Timothy era o único naquele dia a desobedecer os pais que orientaram tanto ele quanto sua irmã, Caroline, de 7 anos, não se afastassem para próximo do bosque quando se divertissem com os colegas. A mãe e o pai jogavam um bumerangue com a filha enquanto Timothy jogava bola com uns três garotos. Uma vez que a bola foi chutada para longe, por trás de uma grande concentração de arbustos grandes, Timothy rapidamente se ofereceu para pega-la de volta. Ele se certificou de que os pais não o notavam cruzando perto de um limite.

Timothy vasculhava à procura da bola, a achando escondida nas vegetações. Assim que a apanhou, Malvus surgira atrás alguns metros de distância com seu visual de praxe tendo como destaque o longo casaco de couro preto.

O garoto virou-se para retornar ao jogo, mas travou diante da figura que não lhe inspirava confiança logo de cara.

- Olá, amiguinho. - disse Malvus, tentando amenizar a má impressão - Belo dia com sua família, né? Pode ficar ainda melhor.

- Por que não sai da frente e me deixa voltar a brincar? Não quero conversa com desconhecido.

- Mas aqueles meninos não conhecem você, suponho. Deve estar muito contente por se enturmar. - o líder dos demônios foi tomando proximidade com o garoto - Qual a última vez que foi tão fácil pra você sentir que venceu o isolamento?

- Vê se não me amola. Sai daqui e me deixa em paz. - disse Timothy, indo de volta. Porém, Malvus agachou-se na frente dele barrando-o - Qual é? O que você quer de mim? Parece que me conhece de muito tempo.

- Há algum tempo, sim. Acho que não usei a linguagem correta com você. Sei do dom incrível que possui, não é algo de nascença e sim um problema que o torna estranho aos olhos dos outros. Eu também posso fazer coisas extraordinárias.

- Como sabe que uso o poder da minha mente? Eu quase sempre causo estragos... - baixou a cabeça, entristecido - Meus pais não desistiram de mim ainda porque só tenho 9 anos... E quando eu crescer? Eu envergonho eles, todos me odeiam.

- Tenho a chave pra acabar com esse mal. Uma cura. - disse Malvus, dissimulado.

- Se tem uma cura, então porque falou que tem poderes como os meus e nunca usou em você? - perguntou Timothy.

- Eu disse que tenho, não disse que são iguais aos seus. O meu caso é bem mais complicado. - afirmou Malvus, levantando-se - Além do mais, descobri você com uma das minhas habilidades. Que sorte tenho, não? A sorte é sua também.

O anjo caído estendeu sua mão direita para Timothy.

- Quero leva-lo a um lugar onde meus brilhantes cientistas estão trabalhando no soro que vai erradicar toda a anormalidade... Ou melhor, paranormalidade. Você é especial, Timothy. Mas não precisa desses dons para continuar sendo. Você vem?

Inocentemente, o garoto levou devagar sua mão à de Malvus, vislumbrando nele uma chance de libertação.

Ambos desapareceram com o teleporte hiperveloz de Malvus. A mãe de Timothy o procurava aflitivamente.

- Timothy! - gritava ela, o pai, a irmã e os demais garotos vindo atrás - Timothy! - chamou mais alto, a expressão desesperada.

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CAPÍTULO 31: MANTENHA LONGE AS CRIANÇAS

Os olhos de Frank arregalaram-se no acordar súbito que tivera após o que parecia um pesadelo vívido e intenso. O detetive levantou-se rápido tirando o cobertor ensopado de suor, tal qual sua camisa regata branca, e ficara sentado, ofegante, praticamente num estado de choque. Na sua lembrança um senhor barbudo de rosto amigável lhe pedia ajuda enquanto era puxado pelas pernas por animais ferozes escondidos num matagal. O homem pronunciava um nome. Sua voz ecoava na mente de Frank que resolveu ligar para Carrie ciente de que aquilo não havia sido um mera experiência onírica.

- Carrie, foi mal te ligar nessa hora do dia, mas preciso que ache uma pessoa identificada como Bertha Johnson.

- Bom dia pra você também, Frank. E vou dar uma dica: quando fazemos um relato, iniciamos a história... do começo. Então não me fala a partir da metade ou do final, conta do zero. Sua voz está tão calma como alguém que acordou de um pesadelo.

- Não um simples pesadelo. - disse Frank, tenso, as gotas de suor na testa - Lembra quando falei sobre minha amnésia do tempo que passei na Terra Negativa? Pois é, acho que... Acho não, tenho certeza que as lembranças estão voltando, desbloqueando aos poucos, um flashback atrás do outro. Num deles, o que tive agora há pouco, vi um homem velho sendo arrastado por sei lá o quê, algum monstro talvez, e falando comigo pedindo que eu encontrasse essa mulher chamada Bertha.

- Anteontem, quando nos casamos, digo... quando estávamos enfeitiçados, você comentou, já tínhamos voltado ao normal, que aquela sua marca de cruz no ombro tinha desaparecido. O diretor me falou que você descreveu esse inferno repleto de monstros como um lugar onde a noite parece ser eterna.

- Sim, conversamos um pouco a respeito, eu estava recuperando a memória sem perceber. Você ligando isso à marca, só me faz pensar que o fato dela ter sumido desencadeou o fim da amnésia. E numa parte do sonho, quero dizer, dessa memória, esse velho menciona os centuriões pra mim. Eu já sabia da existência deles bem antes, minha suposição é de que ele me alertou sobre eles, a chegada deles. Contaria pra você mais cedo ou mais tarde: tem anjos entre nós e em grande número.

- Até que não me sinto tão surpresa... Afinal, logicamente se demônios existem, por que não anjos? Você esteve frente à frente com um deles? Espera aí, aquela chuva de meteoros não foi exatamente um evento astronômico, certo?

- Hoje você ta afiada na perspicácia hein. - disse Frank dando um fraco sorrisinho de canto - Enfim... Na mesma noite em que cacei o metamorfo com o Fred, após a gente terminar o serviço, eu voltava pela estrada e vi aquela bola de fogo cruzando o céu igual aconteceu na Rússia num ano aí...

- O meteoro de Cheliabinsk. Foi em 2013. - disse Carrie - Mas falando sobre esse homem que aparece nessas suas visões ou memórias destrancadas: E se ele for responsável pela marca? Calma que tô pesquisando sobre a Bertha no banco de dados.

- Teoria boa. A sensação de te-lo conhecido como uma pessoa fora do comum enquanto lidávamos com os perigos daquele lugar é um forte indício de que ele possa ter marcado como um selo de proteção anti-demônio. - disse Frank que repentinamente lembrou-se de Malvus fazendo referência ao sacerdote que criou a espada que o anjo caído havia lhe dado e levantou-se da cama quase boquiaberto - O sacerdote sobre o qual o Malvus falou de ser o criador da lâmina sacerdotal... E se for ele? São tantas perguntas que dá uma vontade de pesquisar como se invoca um anjo caído.

- Frank, quer arriscar sua vida, mais que de costume, interrogando o próprio diabo? É bom que seja apenas vontade.

- Pior que tentei mata-lo com a lâmina sacerdotal, mas naquela altura do campeonato eu não sabia o que ele era, daí ele tirou a roupa pra mim e mostrou as asinhas pretas. Isso soou meio estranho... - disse o detetive, fazendo de cara de nojo.

- Aqui está. Bertha Johnson mora em Puckville, rua 3520, casa 456. Anotou? Na sua cabeça ou no papel?

- Pode deixar, não esqueço. E tem uma ligação à espera, vou ter que atender. Você me retorna mais tarde?

- Claro. Mas não procura sarna pra se coçar. Traduzindo: Não procure o Malvus. - avisou Carrie - Até mais.

- Tchau. - disse Frank, logo desligando e atendendo a outra chamada - Alô, Fred? me ligado numa hora dessas deve ser um caso de extrema urgência e é bom que seja porque tenho que passar na ADP antes.

- Pode não parecer, mas é necessário que venha. Duas crianças desapareceram num curtíssimo espaço de tempo. Não consigo vê-las como alvos aleatórios ao ouvir os depoimentos dos pais, eu captei correspondências bem intrigantes. Tem um fraco por crianças metidas nesses casos, né? Então, acho melhor você vir depressa.

- Eu sentiria uma culpa terrível por recusar. Já tô indo lavar o rosto pra ir puxar o carro, só me diz onde você tá.

- No galpão do estaleiro, fica meio longe pra você, mas não causa tanta demora. Tenho uns amigos aqui, parei pra dizer um oi. Agora só falta você. Espero que venha logo porque... - olhou para o relógio de pulso - tenho hora marcada no médico.

- Médico é? O que você tem?

- Exame de rotina, nada mais e nada menos. Ninguém é de ferro né? Te espero bem aqui, vem antes que me comuniquem sobre um terceiro sumiço. - disse Fred cujo tom leve de inquietação deixou Frank desconfiado.

                                                                               ***

No DPDC, Carrie segurava o celular olhando para a tela ao se ver indecisa sobre mandar ou não um torpedo para Frank e informá-lo de uma coisa importante que envolvia seus colegas de trabalho, mas que hesitava falar em vista da desvinculação do amigo á corporação, o que só a deixava péssima já que sempre priorizou suas amizades independente de tudo.

A assistente então resolveu deixar o aparelho sobre sua mesa de trabalho, desistindo de pensar numa maneira menos problemática de fazer o detetive ficar sabendo. Era seu aniversário naquele dia e daria uma grande festa na sua casa.

                                                                               ***

Ao chegar no galpão, Frank abrira a enferrujada porta esquadrinhando o interior à procura de Fred.

- Fred? - chamou, entrando - Esse lance de crianças desaparecidas não é trollagem sua pra me atrair e você me mostrar outro caso completamente diferente, certo? Bem, se for mesmo, é a segunda e última vez que vai funcionar.

O detetive apareceu vindo de um outro ponto com o celular na mão.

- Desculpa, fiz suspense sem querer. Enquanto você vinha, eu terminava de falar com os agentes espalhados pelos bairros próximos na busca de notícias sobre uma terceira criança sumida misteriosamente. Felizmente, até agora nada.

- E quando isso acontece, no que diz respeito à caçadores, geralmente não é coisa que policiais normais costumam lidar. - disse Frank, tendo quase certeza de que era um caso da alçada deles - Diz aí, as crianças tem alguma correlação?

- Nenhum parentesco, nenhuma proximidade local, nenhum contato, nada em comum, exceto por um detalhe. - disse Fred, olhando fixamente sério para o parceiro - Já não é mera coincidência dois desaparecimentos de crianças ocorrerem em menos de 48 horas, que dirá duas crianças que partilham de semelhanças especiais, de acordo com os pais.

- Semelhanças especiais? Que tipo de semelhanças são essas? Você não é de ficar de enrolando assim,. - estranhou Frank.

- Ele está se referindo aos espers. - disse Adrael que surgira num piscar de olhos perto dos dois. Fred reagiu com um susto contido. O anjo trajava suas vestes de combatente: o colete de bronze que parecia feito de couro e as calças e botas num estilo que remetia à antiguidade - As crianças que foram batizadas por centuriões dissidentes, elas foram levadas.

- Eu tava quase chegando no ponto central e aparece um esquisitão do nada interrompendo nossa conversa. - disse Fred, antipatizando com o anjo - Você o conhece, Frank? Aparecer desse jeito é um dos truques dos demônios do Malvus e dele próprio.

- Muito pelo contrário, se for julgar pelo modelito, com toda a certeza ele não é parte do gado do diabão emplumado. Esse é o Adrael, nos conhecemos quando peguei a estrada e vi um meteoro fazer a noite virar dia. Achei que o planeta estava sendo atacado por alienígenas, porque se fosse eu decretaria minha aposentadoria pois sou mais entendido dos monstros que vem de baixo e não dos que vem de cima. Enfim, você falou que são crianças batizadas por centuriões... Como assim?

- Há cerca de 60 anos, esse mundo foi visitado por serafins que se desligaram da nossa armada para promoverem a causa de Malvus, eles cultuavam em segredo a maior vergonha da classe intermediária, os querubins, e também o maior ultraje á todos os centuriões. - declarou Adrael, firme - Eu sou membro da classe inferior, os serafins, mais precisamente exercendo como segundo-tenente. Aquelas pobres crianças correm um risco, não podemos permitir que Malvus as perverta.

- Então foi o Malvus que sequestrou? Pra quê ele quer tanto elas? Não será outra armadilha pra conduzir um de nós até ele, talvez eu, pra fazer joguinhos malignos brincando com vidas? Como foi com os candidatos? - especulou Frank.

- Ainda não sabemos de que maneira ele usou para ter acesso aos Espers. E pra resumir a história, os Espers são essas crianças que foram programadas pelos renegados na primeira fase do plano. Os batismos delas foram processados através da água santa, a água que nasce da fonte que abastece nosso mundo, sem ela a vida não semea e nem floresce.

- E batizadas com essa água, as crianças adquiriram dons especiais, não foi? - perguntou Fred - Foi sobre isso que os pais falaram abertamente. Contaram que são superdotadas, sobre-humanas... paranormais. Duas delas estão fora do radar...

- Faltam mais três. - completou Adrael, voltando-se para Fred - Malvus precisa de pelo menos cinco espers para testar um líquido que tem a água santa como principal ingrediente. Fontes seguras me disseram que seu objetivo é criar novos anjos caídos como uma nova linha de defesa. Almas humanas podem ser torcidas e corrompidas para dar origem a novos seres.

- Fabricar anjos? Por essa não esperava. - disse Frank - Quantos anjos caídos existem por aí?

- Atualmente, apenas Malvus. Ele matou os remanescentes não por disputa de poder, mas vinganças por traição. Ele tinha uma esposa muito cobiçada. E ela o traiu inúmeras vezes num tempo que o controle do submundo não estava decidido.

- Lilith. - disseram Frank e Fred em uníssono. Os dois se entreolharam surpresos.

- Por acaso você chegou a conhece-la? - indagou Adrael para Fred, desconfiado.

- Por que pergunta só pra mim e não pro Frank também? Eu não te causei uma boa impressão? Sou amigo dele e amigos do Frank são meus igualmente. Sim, já cruzei com Lilith, ela quis minha ajuda para descobrir o plano do Malvus, mas não cumpri a missão toda pois na hora acionou o rastreador que coloquei no Frank e tive que ir atrás para impedi-lo de chegar até o Malvus e não me atrapalhar. Não me entenda mal, foi uma fase, uma fase meio difícil, uma nuvem negra que já dissipou.

Adrael somente fez que sim com a cabeça lentamente, porém mantendo sua desconfiança que acabou afetando Frank de forma que ele detectasse um clima estranho entre ambos que não sabia explicar. Fred deu uma olhada no relógio.

- Bem, senhores, tá na minha hora. A gente se vê, Frank. Quando sair do consultório, te ligo. - disse ele, pronto para sair.

- OK, vai pela sombra. - disse Frank, compreensivo, mas guardando sua suspeita com relação à Adrael e o jeito que ele encarou Fred - Tem um outro assunto que eu gostaria de tratar com você, Adrael. A marca sagrada que eu tinha... sumiu.

- Vou tirar cada dúvida que tiver. - disse Adrael, tocando-o no ombro - Mas antes disso... Quer conhecer uns amigos meus?

                                                                               ***

Pela primeira vez, Frank tivera a experimentação de se deslocar na velocidade de um pensamento. O resultado não lhe foi tão agradável. Outros três anjos estavam dentro daquela casa abandonada, todos esperando por Adrael.

- O que foi? Não se sente bem? - perguntou Adrael, preocupando-se com o detetive.

- Nada, foi só... uma náusea, tá passando. Caramba, isso é sinistro num nível... fantástico. - disse ele, maravilhado e ao mesmo tempo horrorizado pelo efeito - Onde estamos? E esses aí devem ser...

- Os amigos de que falei. - disse Adrael, apresentando-os - Hanael, Ezequiel e Anendor. - Todos nós fomos cooptados a agir imediatamente para rastrear cada demônio que sai do esconderijo de Malvus na busca pelos ingredientes da fórmula.

- Por falar nisso, vou aproveitar que você chegou e fazer uma checagem. - disse Hanael, uma centuriã de rosto atraente, cabelos castanhos meio enrolados caindo sobre os ombros e de estatura mediana - Não, melhor: Fazer contato com os outros para manda-los interceptarem qualquer demônio que virem. A propósito, é um prazer conhece-lo finalmente, Frank.

- De minha parte não é prazer, é honra. Vocês engajados nessa guerra contra o Malvus me motiva bastante.

- Mas o que um frágil humano pode representar na nossa luta? - questionou Ezequiel, centurião de olhos verdes, face jovem, caucasiana e quadrada, que recebeu um olhar reprovativo de Adrael - O que é? Perguntar não ofende.

- Você acabou de chama-lo de frágil humano. - retrucou Anendor, o mais robusto com um cavanhaque preto e sobrancelhas grossas - Isso é sinal de que precisa dar uma boa relida no nosso livro de boas maneiras. - disse em tom brincalhão.

- E então, Hanael? Avisou todos eles? - perguntou Adrael.

- Estão posicionados, tudo entrou em curso e nenhum demônio enviado para coletar os ingredientes dará um mais passo à frente quando os encontrarem. Você vai leva-lo para aquele lugarzinho duvidoso?

- Que lugar é esse? - perguntou Frank - Na verdade, eu nem sei onde exatamente tô agora.

- É nossa base temporária. - respondeu Ezequiel - Até a missão acabar ficaremos aqui pra reuniões.

- Não cometemos ilicitude. - disse Anendor - Ninguém mora aqui aparentemente há décadas, temos liberdade pra ocupar.

- Vocês sabem a quantidade exata de demônios que o Malvus mobilizou? - perguntou Frank - Não é querendo duvidar da capacidade de vocês, mas...

- Frank, está tudo sob controle. - assegurou Adrael - Lembre-se que a prioridade é impedir o nascimento da aberração, o que mais nos preocupa é o nefilim estar entre as crianças. É possível que, dada a hipótese, ele desperte se ingerir a água.

- E, segundo à sua amiga, você quer me levar pra um local bem específico.

- Sim, é a suposta localização que me citaram sobre ser o ambiente de trabalho para criar a fórmula.

- Tipo um laboratório?

- Exato. Tem que estar preparado, Malvus pode ir direto pra lá e ameaçar sua vida que é tão preciosa. - disse Adrael, estendendo a mão direita para Frank toca-lo e teletransportarem-se - Ao primeiro indício de hostilidade dele, vou protege-lo.

- Espero não colocar os bofes pra fora dessa vez. - disse o detetive, receoso com mais um teleporte.

Enquanto isso, Fred contava sobre suas crises deitado num divã preto ao lado do psiquiatra, um homem calvo e meio gorducho de óculos, que anotava num bloquinho sentado numa cadeira e ouvia atentamente aos desabafos.

- É como se eu fosse uma bomba-relógio humana... Não, na verdade eu sequer me sinto humano às vezes. - disse Fred, olhando para o teto - Eu não conto até dez, não hiperventilo, nem respiro fundo... A raiva diminui de forma natural.

- Cite com mais detalhes um episódio de fúria. - pediu o psiquiatra - Consegue lembrar de uma situação onde pareceu impossível reaver o auto-controle? Na qual você acreditou que tinha perdido completamente o freio...

- Há dois dias quase matei um cara. - disse Fred, omitindo sobre ter matado o cupido com a surra brutal que aplicara nele - Amigo de uma colega de trabalho que acabou se demitindo por minha causa. Os dois bolaram uma artimanha para pregar uma peça em dois amigos meus... uma brincadeira que quase custou as vidas deles. Fiquei possesso de tanto ódio... que esmurrei aquele cara ao ponto de nada me parar, nada me impedir de soca-lo até todo o rosto dele ficar irreconhecível.

- Tenho a impressão de que está fazendo buracos na história como se não quisesse contar tudo. Digo, eu entendo perfeitamente o seu quadro, você perde a calma quando exposto a ocasiões que causem nervosismo e ansiedade, seus sintomas são típicos de síndrome do pânico e ataque de nervos, mas não vai colaborar com a terapia trancando sentimentos pesados dentro de si com medo de ser julgado por isso. O seu caso muito provavelmente é diagnosticável como Transtorno Explosivo Intermitente com leves traços de paranoia e surto psicótico. Reage agressivamente à situações que não necessitam de força bruta ou que não devam levar à descontrole emocional porque as proporções são diferentes entre causa e efeito.

- Admito, doutor, eu queria estar mais do que arrependido, disposto a fazer qualquer coisa pra consertar meus erros. Mas lá no fundo, bem lá no fundo... Eu não sinto nada. - disse Fred, esboçando uma genuína preocupação na sua face.

Longe dali, Frank e Adrael haviam chegado ao local que apontaram como sendo o laboratório clandestino.

- Não está se sentindo mal? - perguntou Adrael.

- Vai fazer a mesma pergunta sempre que fizermos isso? - retrucou Frank, tentando disfarçar seu enjoo - Não vamos ficar de papinho furado, seja lá pra quê você nos trouxe aqui, melhor esclarecer logo. Essa pocilga lá tem cara de fábrica ilícita... - analisou o interior sujo com paredes mal rebocadas - A aparência pode até enganar, mas tô com um pé atrás.

- Você é um investigador, não é? Portanto, conto com seu talento pra vasculhar cada parte desse prédio e se achar as crianças você as tira daqui e eu destruo todo o lugar pra não restar pedra sobre pedra. Se Malvus vir, grite por ajuda.

- O Malvus não seria tão tapado de manter as crianças confinadas aqui junto com a vitamina do mal que ele quer enfiar goela abaixo nelas. Parou pra pensar que pode não haver só um laboratório?

- Acaba de me dar uma excelente ideia, Frank. - disse Malvus, aparecendo diante deles. Frank estremeceu com a aparição extremamente repentina do líder demoníaco - Sugestão anotada. - deu um sorrisinho cínico.

- Você por aqui, Malvus?! Sabe que não fico tão impressionado... - disse Frank, assumindo uma postura corajosa.

- Falei que minhas fontes são seguras. - disse Adrael para o detetive. O centurião retirou uma de suas armas, uma lâmina curva na forma de semi-círculo que podia ser segurada por um ferro que "ligava" as extremidades.

- Pelo visto fez um novo amigo. - disse Malvus olhando para Adrael com desdém - Como vai, caro irmão serafim?

- Ou você sai da frente pra que eu passe o pente fino nessa bagaça ou vai se ver com ele. - disse Frank.

- Claro, eu te mandaria pro espaço como poeira cósmica num instante. Mas não é como se o seu amigo penudo tivesse alguma chance frente aos meus atributos. - declarou Malvus, indicando que Adrael não estaria apto a confronta-lo.

- Frank, fique fora disso! Vá encontra-la! - disse Adrael, esticando seu braço direito com a mão aberta e expulsando Frank dali. O detetive caiu de volta ao galpão do estaleiro e viu-se atônito e também confuso, mas logo foi acometido por mais flashes de lembranças de sua temporada na Terra Negativa. No filme que passava na sua mente, o sacerdote pousava sua mão sobre o ombro esquerdo de Frank que irradiou uma luz amarelada com a marca desenhando-se na pele. Ao levantar-se, rememorou cada palavra que o senhor lhe dissera antes de enviá-lo de volta ao mundo humano e saiu para encontrar Bertha.

                                                                             ***

No confinamento das crianças, uma sala cinzenta pequena com uma mesa de madeira e quatro cadeiras e desprovida de janelas, um grande clima silencioso dominava sobre os dois sequestrados que ora se encaravam ora não davam atenção um ao outro. O companheiro de Timothy era um garoto de cabelo loiro com pontas caindo na testa que resolveu quebrar a atmosfera chata de mudez.

- Você não é de falar muito né? Aposto que é tão bom no que sabe fazer quanto é em não dizer uma palavra desde que chegamos aqui. - disse ele que se chamava Garret - Deve ter batido um recorde. Eu tentei falar, mas você parece não querer me ouvir. - fez uma pausa - Quer que eu te mostre? Tá tranquilo, eles não vão descobrir, não disseram que é proibido.

- Agora mesmo eu só quero respostas. - disse Timothy - Aquele cara prometeu uma cura pra nossa anormalidade. Mas estamos aqui desde ontem. E os nossos pais? - lágrimas brotaram dos seus olhos - Nunca mais os veremos?

- Fica frio. Engraçado eu dizer isso... - disse Garret, em seguida produzindo labaredas pelas pontas dos dedos nas duas mãos e olhando-os entusiasmado - Um dia acendi o cigarro do meu pai quando ele perdeu o isqueiro. Já incendiei a cozinha...

- E você se orgulha disso? - perguntou Timothy - Ah esquece, eu também não lido muito bem com meus poderes. - levitou um tabuleiro de damas que estava sobre a mesa, movendo as pecinhas no ar com sua telecinesia.

- Uau. Cara, é demais, eu nem entendo como isso pode ser uma doença. - disse Garret. Uma outra criança foi adicionada ao cárcere. O demônio trancara a porta ao deixar a menina negra de cabelos volumosos e prendidos encarando os meninos.

- Você também vai tomar a vacina? - perguntou Garret.

- Acho que sou a única que não tá levando numa boa. - disse ela - Eu sou Penny.

- Olá, Penny, sou Timothy. E esse é o Garret. Que tipo de poder você tem?

- Posso ver auras. A cor de uma aura significa muito. Quando estão vermelhas... quer dizer risco de vida. As de vocês estão.

A porta abriu-se, era um dos demônios que vinha trazendo o cão de Malvus, Lux, para dentro da sala.

- Seja um bom menino se eles não tentarem fugir. Seja um mau menino se eles te irritarem. E acreditem, esse sarnento sabe ser mau. Divirtam-se, ele gosta de carinho. - disse o demônio, depois fechando a porta.

Lux os fitou e logo mostrara as presas num rosnado de pré-ataque e seus olhos brilharam em vermelho.

Paralelamente, Adrael e Malvus se atracavam numa luta de início improdutiva com o anjo caído desviando dos socos do centurião que optou por não usar sua lâmina, recorrendo ao corpo à corpo. O anjo caído segurou um dos braços do segundo-tenente e dera uma joelhada para cima fraturando-o, logo depois aplicando uma cabeçada forte que o derrubou.

- Não querendo generalizar, mas... se todo o resto dos serafins tem esse nível de desempenho, eu tenho pena daquele mundinho cuja proteção tem vocês na dianteira. - disse Malvus, zombando de Adrael que recuperava-se do golpe levantando-se aos poucos - Será divertido. - dera um chute no adversário fazendo impactar numa parede e quebra-la nuns pedacinhos.

Na casa abandonada que servia de base provisória aos centuriões, uma discussão se estendia e ganhava ares de animosidade. Um centurião mais velho trazia uma especulação que atormentava todos, mas não infundada.

- É o que tento dizer aos outros, não quiseram me escutar e resolveram seguir em frente. Esperava que com vocês fosse mais simples e mais compreensível. Não consigo tolerar o atraso de um mísero relatório preliminar.

- Alguém tem um palpite de quem seja o herege? - perguntou Ezequiel - Todos podem ser suspeitos...

- Só não você, não é, jovem espertinho? - disse uma centuriã de cabelos loiros e olhos azuis.

- Adrael tinha que selecionar um de nós para o encargo ao invés de esperar que qualquer um fizesse a tarefa. - disse Anendor.

- Mas o traidor assumiria ou usurparia a função deliberadamente, podendo até dar informações falsas. - apontou outro - E se não houver apenas um? Se tem uma coisa marcada na nossa história e que deveríamos ter aprendido é que traidores no meio de nós se revelam quando baixamos a guarda acreditando que não iremos falhar. Lembrem-se dos antigos renegados.

As atenção se voltaram para um objeto esférico e pequeno de cor dourada rolando pelo chão. Muitos dos centuriões encaravam com terror imediato. A bolinha dourada vibrava e emitia uma luz incandescente que intensificava. A explosão que se seguiu atingiu todos que foram desintegrados sem deixar vestígios de seus corpos. O traidor entrava na casa, pisando no chão quente e enegrecido, parando para recolher a bolinha. Enquanto isso, Adrael reerguia-se, seus olhos brilhando numa luz branca denotando a raiva que sentia do anjo caído que envergonhava todas as classes. Malvus debochava com seu sorriso.

O centurião correu de encontro ao líder demoníaco, partindo para cima dele. Ambos rolaram pelo chão até que Adrael ficara por cima segurando Malvus com toda sua força.

- Posso não ter a mínima capacidade de aniquilar você, mas ao menos posso faze-lo sentir muita dor! - disse Adrael, baixando sua mão esquerda sobre a cabeça de Malvus e infligindo nele uma luz dolorosa que o queimava de dentro para fora. O anjo caído gritava enquanto seu corpo causticava. Adrael satisfazia-se com aquela tortura, aplicando o seu máximo.

Entretanto, uma das armas laminosas dos centuriões acertou sua cabeça o fazendo cair. A arma cravou na parede e Malvus pôde recuperar o vigor do seu corpo. Adrael queixou-se da dor da pancada, tocando no ponto atingido e olhou para os dedos sujos de sangue. Ele ergueu os olhos para a figura que interferiu no sua punição contra Malvus. Tudo que expressou foi o mais puro embasbacamento. Malvus ria ao se levantar, limpando seu sobretudo negro de couro.

- Não, é um engano... Por favor, diga que não fez isso pra salva-lo. - disse Adrael, desapontado.

- Ela fez sim... com muito gosto. - disse Malvus, olhando para sua comparsa até então oculta.

Hanael vinha trazendo uma ânfora contendo o último ingrediente.

- Hanael.... Por que? - questionou Adrael, irritando-se.

- Até parece que eu continuaria sua subordinada depois do péssimo exemplo que você deu atuando como tenente. - disse ela, entregando a ânfora cheia do líquido à Malvus - Sejam fracassados á vontade, mas não comigo por perto. Chega de me associar a um bando de covardes que desvalorizam uns para favorecer outros. Você é um deles, Adrael, o pior de todos eles.

- Acho que você deve um pedido de desculpas à sua companheira de ego ferido. - disse Malvus.

- Foi isso que motivou sua traição? Insatisfeita por não ser reconhecida?! Somos irmãos de batalha, nunca desconsideraria você pra dar mérito a outro de nós! Não justifica você forjar aliança com o destruidor da nossa honra! Como líder, não admito esse seu atrevimento! Tome de volta essa ânfora agora, é uma ordem. - sacou uma espada apontando-a para ela.

A resposta de Hanael fora um empurrão telecinético contra Adrael jogando-o à uma parede.

- Sua dissimulada. - falou Malvus, o sorriso de escárnio - Parte de mim não aprova tamanha falsidade, embora eu saiba muito bem o que é ser rebaixado. Mas obrigado pelo seu esforço. Era o último que faltava para o experimento.

- O que ganho, afinal? - perguntou Hanael, feliz pelo agradecimento - Tem vaga pra mais um anjo caído?

- Hum... - Malvus fingiu pensar no caso dela - Lamento, mas não. - estalou os dedos, o que matara Hanael no mesmo instante. A centuriã irradiou uma luz de dentro para fora, pulverizando-se até cair com partes derretidas do seu corpo.

- Não! - disse Adrael, perturbado ao testemunhar a morte da irmã - Seu... maldito.

- Pode descarregar essa raiva à vontade em mim e falhar miseravelmente, mas não hoje. - disse Malvus, dando umas batidinhas na ânfora - Tenho que hidratar quatro crianças sedentas por se tornarem... normais. - deu uma risada infame.

O líder demoníaco se retirou com seu teleporte hiperveloz deixando Adrael sozinho lamentando pela sua irmã.

                                                                                   ***

Frank checou o endereço com Carrie que lhe enviou duas mensagens das quais o detetive leu apenas uma. A segunda mensagem não possuía um título, apenas reticências com um ícone de balão de aniversário. Saiu do seu carro, olhando a fachada branca da casa de Bertha e se direcionou para tocar a campainha. Já era por volta de duas da tarde, o estaleiro como ponto de partida alongou o trajeto. Bertha abrira a porta, procurando ouvir a voz do visitante já que seus óculos e os trejeitos indicavam que a mesma fosse cega. Frank cumprimentou a senhora de cabelo branco relativamente curto.

- Olá... Desculpa incomodar a senhora nesse horário, eu sou Frank Montgrow, detetive particular... Conheci seu ex-marido.

- Isaac? Um amigo de Isaac batendo à minha porta? Inacreditável. Não tenho notícias dele há vários anos. Entre.

Frank entrara na casa bem organizada da idosa que guardava uma especialidade surreal.

- Então a senhora é uma vidente? - indagou Frank sentado no sofá de frente à ela - É um dom inato ou...

- Detetive Montgrow, gosto quando meus interlocutores partem diretamente ao ponto, o cerne da questão, neste caso a razão pela qual o senhor veio para falar de Isaac. Ele desapareceu durante às nossas bodas de porcelana.

- Olha, eu presumi, antes mesmo de vir aqui, que a vidência da senhora tivesse alguma relação com seres celestiais que o seu marido mencionou pra mim enquanto sobrevivíamos juntos numa outra dimensão. Sra. Johnson, seu marido está vivo, ao contrário do que certamente pensou na época. Infelizmente, não sei se ele continua fugindo dos monstros que habitam por lá ou se foi devorado. Passamos por poucas e boas. Foi sorte encontra-lo, achei que estaria sozinho.

- Eu sabia, aqueles ordinários enganadores... - disse Bertha com certo rancor - Isaac era subserviente á eles, um homem abençoado pelo exército do Senhor, mas assim como permitir eles tinham poder para proibir. Estes anjos que transformaram Isaac no emissário sacerdotal começaram a mostrar atitudes que iam contra os ensinamentos sagrados. Isaac descobriu um conluio a favor de uma força profana e exigiu se desligar, mas foi repreendido e punido, o que também recaiu sobre mim.

Bertha levantava seus óculos para exibir seus olhos inteiramente brancos com as órbitas contornadas de manchas pretas que pareciam queimaduras. Frank recuou a face um pouco, não gostando do que via.

- Meu conselho, detetive Montgrow, é ficar de olhos bem abertos. - disse ela, arqueando as sobrancelhas, logo pondo de volta os óculos - Os centuriões não são o que parecem e nem o que dizem ser. Isaac está preso no inferno por causa deles.

- Bertha, esses centuriões que se vingaram do Isaac são traidores, não vamos colocar todos no mesmo balaio. Eu pude contar com a ajuda de um hoje, graças à ele que soube da tramoia envolvendo humanos paranormais e a senhora claramente pertence à esse grupo. Eles se fingiam de padres nos batismos usando uma água sagrada pra engatilhar o plano do diabo.

- Estou ficando cansada, esse assunto me desgasta emocionalmente, embora seja bom saber como adquiri esse poder que me atormenta. Mas a única verdade que me libertará do sofrimento é sobre a situação de Isaac. Minha última previsão dizia sobre um homem perverso iludindo crianças. Um homem vestido de preto e um rosto que não inspira confiança.

- Sim, esse aí mesmo, se chama Malvus, quer usar uma substância pra fazer as crianças que ele sequestrou beberem e virarem aberrações, monstros que ele vai controlar para destruir o mundo. Foi ele que queimou seus olhos, não foi?

- Não. - disse Bertha, categórica - O anjo que me cegou não era nada parecido com o da minha visão mais recente.

- E quem ele é? - indagou Frank, cada vez mais curioso.

- Seu nome, se bem me lembro... é Adrael. - respondeu Bertha. O espanto ficou nítido em Frank que não sabia o que dizer.

                                                                                 ***

Fred saía da clínica de psicologia e psiquiatria, pegando o controle do alarme do seu carro e apertando o botão desativava. Porém, antes que abrisse a porta, olhou de soslaio e logo virou o rosto para Adrael que apareceu para dar um urgente aviso.

- Muita coragem sua aparecer em público com suas vestes de anjo. - disse o detetive - Cadê o Frank?

- Eu o dispensei da investigação, convencemos ele de que cuidaríamos de tudo. É de você que mais precisamos agora. - disse ele, aproximando-se - Descobrimos o laboratório dos demônios, mas meu exército foi massacrado.

- Mataram seus amigos? O Malvus foi pessoalmente até eles e dizimou um à um? Porque, vamos combinar, demônios com certeza não são nada páreos pra criaturas cheias de luzes que rasgam a escuridão. E não encara isso como elogio, tá bom?

- Você tem que ir ao laboratório. - disse Adrael, pondo dois dedos na têmpora esquerda de Fred, enviando informações ao cérebro dele - Agora que sabe onde fica, faça uma averiguação.

- Olha aqui, você não é meu chefe, então baixa a bola. Por que eu? O Frank podia fazer isso tão melhor quanto.

- Eu tive que dispensa-lo porque ele tinha um compromisso no seu trabalho. Você é o único disponível para quem sabe interceptar a fabricação do elixir de Malvus, nessa altura ele pode estar no estágio final. Contamos com você.

- Tá bem, tá legal, eu bem que mereço extravasar batendo nuns demônios, é bom que hajam vários lá. - disse Fred, entrando no carro e dando a partida. O anjo observou o carro tomar distância. No entanto, sua forma alterou-se ou revelou-se... para Malvus que sorria ardiloso comemorando internamente mais um sucesso do seu plano.

Transitando por uma estrada vaga, Frank voltava da casa de Bertha e resolveu telefonar para Fred a fim de saber se ele retomou as apurações do caso. Mas na mensagem automática dizia estar fora de área ou desligado, o que influiu uma estranheza em Frank. O detetive não tentou novamente, lembrando-se da outra mensagem que Carrie mandara, nada a ver com a primeira que informava o endereço de Bertha. Na curta mensagem dizia:

"Sinto muito não falar antes ou fazê-lo lembrar, mas não te convidei pra minha festinha de arromba restrita á colegas de trabalho temendo que eu ferisse uma regra ligada ao seu afastamento. O diretor nos deu um folga de meio dia para festejar minhas 44 primaveras. perguntei à ele, falou que não acarreta em nada que me prejudique, ou seja, você tá liberado. Claro, se a ADP não tiver abarrotado você, talvez possa dar uma passadinha rápida só pra compensar."

- Ah não, Carrie... Hoje é aniversário dela. - disse Frank, frustrando-se por não poder comparecer. Enviou resposta por voz - Adoraria participar da farra, mas nesse ano não rola, foi mal. Tô enrolado com um caso seríssimo, o Fred não atende o celular e o Malvus vai lançar mão de crianças especiais pra um plano cabuloso, se eu sair vivo dessa amanhã ficará sabendo.

Frank pisou no acelerador na busca de achar a casa abandonada que os centuriões ocuparam. À quilômetros dali, Fred adentrava no laboratório com a arma em punho mirando em todas as direções ao passo que vasculhava a estrutura. Subiu escadas para acessar o segundo andar. Não demorou para que avistasse uma sala branca com porta entreaberta. Ao entrar no recinto, notou os frascos no porta-tubo sobre a mesa enchidos com o líquido azul.

- Parece que está pronta. - disse Fred, estudando a substância mais de perto. Ouviu barulhos um pouco distantes, crendo serem demônios vindo - As balas com óleo santo não darão conta se eles estiverem em maior número. - voltou-se para os frascos - Por outro lado, se eu estragar o planinho diabólico, já é alguma coisa. Aliás, foi pra isso que vim. Se controla, Fred.

Os passos ficavam mais audíveis e o detetive suava sob uma tremenda pressão.

- E agora? Quebro os frascos, derrubo essa mesa... Não, eles podem aproveitar as sobras. A menos que... - uma ideia insana pulsou na sua mente - É, não tem mesmo outra forma disso acabar. - pegara rapidamente um frasco, tomando o elixir e em seguida outro, depois mais outro e mais outro. Os efeitos colaterais surtiram após o sétimo frasco. Fred caiu de joelhos, logo mal aguentando-se tendo que arrastar-se no piso. A cólera foi assumindo-se no seu semblante e veias saltavam no rosto que ganhava um tom de cinza além dos olhos avermelhando-se e a musculatura sofrendo um aumento irrefreável. Empertigou seu corpo para dar um urro retumbante e selvagem ao passo que rasgava sua roupa com uma força descomunal. Um dos demônios flagrara amedrontado pela janela a transformação estarrecedora de um simples homem para um ser monstruosos e agigantado que rugia furiosamente. O demônio correra acovardado pela presença da aberração que Fred havia se tornado.

                                                                                  ***

A festa de Carrie ocorria na cabana da assistente, no quintal, a qual ela gostava de chamar de casa de confraternizações ou mais descontraidamente "casa da gandaia". Todos se divertiam ao som de uma música dançante tocada por um DJ. Um dos colegas de DPDC filmava com seu celular o evento. Um outro resolveu chamar o pessoal para registrar o momento.

- Aí, galera, todo mundo pra selfie! Digam ah! - disse ele, acionando a câmera frontal com um bom número de pessoas, incluindo Carrie, se juntando para a foto. A assistente, por sinal, era só sorrisos e abraços com seus estimados convidados.

- Opa, quase me despercebia da hora. - disse ela, olhando no relógio de pulso - Já são quase seis e meia, acho que cai bem pra nós funcionários competentes que acordam cedo pra pegar no batente irmos pro clímax da festa agora. O que acham?

- Carrie, quantos anos tá completando? Oito? - perguntou Sheyla, uma secretária que estava levemente alterada - Mas falando em acordar cedo, essa aqui vai ter de ser a última dose. Mais uma ou duas, caminho sem volta. Ainda tem ponche?

- Vai lá ver, boa sorte. - disse Carrie - E então? Vamos cantar parabéns, aposto que estão fervendo de curiosidade pra saber quem vai receber o primeiro pedaço do bolo. Pra ser honesta, o primeiro pedaço iria pra alguém que está ausente.

- Vivo ou morto? - perguntou um dos amigos.

- Por incrível que pareça, mais vivo do que nunca. - respondeu ela pensando em ninguém menos que Frank.

O clima de agitação parou no exato instante em que tremores intermitentes vibravam o chão. A música também parara e todos se perguntavam em voz alta o que significava aquilo. O tremor mais intenso veio com a destruição de parte do teto da cabana, boa parte dos convidados se alvoroçando aos gritos e recuos. Carrie se afastava olhando assustada para a coisa que parecia ter aterrissado num longo salto. O robusto nefilim visualizava o ambiente com seus olhos vermelhos. A face cinzenta, com algumas protuberâncias meio rochosas, assim como o tamanho, evocava o desespero de todos.

- Esse stripper que você chamou andou exagerando nos esteroides. - disse Owen que filmava com o celular.

Fred, ou nefilim, avançou contra os convidados, quebrando mesas e batendo seus punhos nas paredes e nas colunas de madeira num surto de fúria tresloucado. Os que ele podia alcançar, acabava massacrando. Carrie buscava uma saída, mas caiu para trás tropeçando numa caixa de som. O nefilim derrubava as mesas virando-as e destroçava os aparelhos de som, soltando rugidos estridentes. A criatura avistou um convidado rastejando com a perna sangrando e se aproximara com seus passos destruidores. Levantou o pé direito sobre a cabeça do homem, dando um forte pisão que espatifou fazendo espirrar bastante sangue e pedaços em algumas pessoas próximas. Carrie cobriu sua boca, horrorizada com o que assistia.

O nefilim andou na direção dela, mas sem demonstrar agressividade. Apenas a fitou inclinando seu rosto furioso ao dela completamente tomado pelo medo. Fugira saltando contra o teto derrubando mais madeira quebrada. O espaço da festa virou um amontado bagunçado de corpos, mesas viradas, comida espalhada, faíscas e objetos destruídos. Na casa abandonada, Frank encontrou rastros da chacina dos centuriões. Adrael reapareceu com pesar na expressão.

- Não esperava que chegasse aqui, pensei que não saberia a que distância fica esse lugar.

- A placa da rua fica bem ali, não deixei de reparar. - disse Frank, virando-se para ele - Parece que incendiaram isso aqui.

- Eles se foram. Hanael os matou. - disse Adraeç - Ela que forneceu os ingredientes necessários: primeiro o sangue de um centurião, depois folhas de uma erva que nasce apenas no nosso mundo e por fim a água santa.

- Quê?! A sua amiga anja que fez contato com o resto do pelotão? Ela melou com a operação "As Crianças São o Futuro"?! Vocês não são confiáveis nem entre si, a Bertha provavelmente tinha razão.

- Eu falhei! Falhei com meu exército, não sou digno da alcunha de segundo-tenente, nem de louvar ao meu grandioso Pai.

- Não é sua primeira falha, né? Queimou os olhos da Bertha e eu que achava que você não ficou de afago com os traidores da época que o sacerdote tinha valor pra vocês até que ele decidiu contrariar as decisões da cambada de traíras.

- Não jogue essa culpa nas minhas costas, naquele período eu sequer ocupava o posto de líder. Mas me iludi com o discurso que idolatrava Malvus... e acatei a ordem de matar a esposa do sacerdote. Senti tanto remorso por aquela pobre mulher que incinerar seus olhos foi um ato de misericórdia comparado ao que eles esperavam que eu fizesse.

- E sobre a marca sagrada? Foi você que a removeu? O Malvus tá na minha cola, louco pra ter minha cabeça empalhada na parede dele, e aquela marca me protegia dos demônios, fora a lâmina do sacerdote que perdi porque cedi pra um leilão. Responde!

- Sim. Eu tirei a marca enquanto você dormia, sabendo que sem ela suas memórias adormecidas iam aflorar.

Frank compreendia o benefício daquela ação, mas ainda assim não suportava o antecedente nefasto de Adrael.

- Um mal necessário, dá pra relevar. Mas não sei se posso depositar confiança em você de novo. - o telefone do detetive tocara - Alô? Carrie, o que aconteceu? Tá chorando?

- Frank, sinto uma energia desagradável pairando... - disse Adrael.

- Aquele monstro... - disse Carrie, nervosa - ... quase destrói toda a cabana... matou pessoas... algumas conseguiram escapar pelos fundos... Vem aqui, por favor. Eu não estava pronta pro pesadelo que virou essa festa.

- Frank, temos que ir ao laboratório. - sugeriu Adrael, logo tocando nele para teleportar-se. Ambos já estavam na sala branca.

- Ei tava no meio de uma ligação, perdi até o sinal. - reclamou Frank que constatou o buraco gigantesco na parede à sua frente - Caramba... - olhou para baixo e viu o celular de Fred - O Fred esteve aqui, é o celular. Essas roupas rasgadas... são dele. - olhou para Adrael - Não vai me dizer...

- É realidade. - afirmou Adrael - A aberração despertou. E como bônus descobrimos quem é.

Frank não escondia sua perplexidade ao estar diante de indícios probatórios que denunciavam Fred e sua natureza sombria.

- Pra onde você tá indo? - perguntou Frank vendo Adrael sair da sala - Como o Fred achou o laboratório?

- Não sei, a última vez que o vi foi naquele estaleiro, enquanto conversávamos. - disse o centurião, caminhando pelo corredor - Sentia uma emanação suspeita nele desde o início.

- OK, já entendi, ele fedia a mau fluido, mas ainda assim você não o acusou de imediato. - disse Frank, seguindo-o.

- Além do mais, nefilins podem funcionar como rastreadores de espers. O que significa que seu amigo manteve uma relação muito próxima com Malvus, certamente ele foi usado e manipulado esse tempo inteiro pra facilitar as coisas pro inimigo.

- Se bem que num encontro com o Malvus, ele me falou pra dar lembranças ao Fred. Fez parecer que se conheciam. - disse Frank, andando atrás do anjo pelo escuro corredor - Tá tudo explicado agora. Ele quis me atrapalhar no dia do sequestro dos candidatos pra favorecer o Malvus e não por orgulho próprio. Não dá pra acreditar que ele tá jogando no lado negro porque quer, ele deve ter sido coagido, não dá pra ganhar nada com isso em troca, a não ser desgraça e sofrimento pra vida dele.

Adrael parou a caminhada de repente. Rosnados caninos se ouviam no breu. Tratava-se do mascote de Malvus, Lux.

- O cachorrão do Malvus! - disse Frank.

- Um cão infernal. Mas essa aparência não passa de um disfarce, seu tamanho não é esse. - disse Adrael - Feche os olhos, Frank! - refulgiu uma luz branca intensa da sua mão direita que banhou todo o corredor. Frank protegia os olhos fechados com os braços. Com a redução da luz, o cão não sabia para onde rumar, batendo nas paredes e rosnando desesperado.

- Agora o bicho endoidou, não sabe pra que direção vai. - disse Frank, temeroso.

- Eu o desorientei, a visão dele foi prejudicada e isso só dura por dois minutos, vamos.

Conforme avançavam, escutavam os apelos de Timothy, Garret e Penny no confinamento. Porém, antes que libertassem as crianças, acharam um demônio sentado encostado na parede com tremeliques e num aparente estado de choque.

Adrael barrou Frank que iria falar com o demônio sem tirar o olhar sério e frio do covarde monstro.

- Ele não representa ameaça. Está sentindo um medo verdadeiro...

- Mas é um demônio. Veja os olhos pretos. Se não me deixar apontar a arma pra ele pra interroga-lo vou apontar pra você.

- Ele ainda está aqui? - perguntou o demônio, trêmulo - O nefilim! Sabem onde ele está?

- Fugiu depois de bagunçar o laboratório. - afirmou Frank - Você deu de cara com ele?

- Eu o peguei em plena transformação e meu instinto falou pra correr sem olhar pra trás... A única certeza depois que uma criatura desse nível dá o seu grito de guerra... é o fim de tudo que existe. Vamos todos morrer.

O demônio levantou-se e correu para uma janela com tábuas ao fim do corredor e despossuiu o corpo fugindo. Frank deu alguns disparos ineficazes, mas ele pulara quebrando as tábuas.

- É a primeira vez que vejo um demônio amarelar e se acuar todo. - disse Frank, pensando na dimensão apoteótica do perigo. O detetive voltou-se para o cárcere dos espers e destrancou atirando na fechadura.

- Vieram nos salvar ou nos matar? - perguntou Timothy tão apreensivo quanto Garret e Penny.

- Hora de sair do castigo. - disse Frank com um sorriso sereno - Estão livres. Definitivamente livres.

                                                                                    ***

Em um quarto de hotel situado no quinto andar, Malvus tomava um uísque contemplando a vista pela janela.

Da escuridão soou uma voz feminina lhe indagando.

- Não quer companhia pra essa celebração ficar menos solitária? - perguntou Lilith trajando um vestido vermelho decotado.

- Pra você se prestar a colocar bebida nos copos sem que eu veja e deixar cair do seu anel um pozinho venenoso no que vai oferecer pra mim? Aquele amante que você tapeava evoluiu. Eu melhorei minha percepção e você com os mesmos truques.

- Não vim provar que mudei... - disse ela, sedutora, aproximando-se - ... tampouco queimar suas asinhas... é, já considerei essa ideia... e nem forçar a barra ao meu estilo. Vim pra matar as saudades. Quando foi que não estive com você nas suas conquistas? O nosso garoto prodígio finalmente surgiu. - o beijou suavemente na boca. Malvus sentiu a recaída irresistível.

Na casa de Frank, o detetive foi ao sótão onde arrastou um baú grande. Com uma chave velha e enferrujada, pôde abri-lo e levantou a tampa. Olhou confiante para aquela pilha de armas de grosso calibre pensando num único objetivo.

- É, Fred. O que é seu tá guardado.

                                                                                  -x-

*A imagem acima é propriedade de seu respectivo autor e foi usada para ilustrar esta postagem sem fins lucrativos. 

*Imagem retirada de: https://www.verdadecrista.com.br/2017/02/que-eram-os-filhos-de-deus-em-genesis-6.html

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